Você está na página 1de 23

centes, calcula-se que existem pelo menos 41 dialetos das duas

principais línguas indígenas, o quechua e o aymará. Investi-


gações feitas na província de Loreto, ao norte do país, che-
garam a constatar a existência de 45 línguas distintas nessa
região. Quarenta e cinco línguas e não apenas dialetos. E
isso numa província que é, talvez, a menos povoada do país.
A - Uma experiência ·de teatro Essa enorme variedade de línguas certamente ' facilitou
a compre·ensão, por parte dos organizadores da Operação Alfa-
popular no Peru* betização Integral (ALFIN), de que os analfabetos não são
"pessoas que não se expressam", mas simp.lesmente são
soas incapazes de se expressarem em uma hnguagem determi-
nada, que é o idioma castelhano, neste caso. :B. importante
compreender que todos os idiomas são linguagem, mas nem
todas as linguagens são idiomáticas! Existem muitas linguagens
além de todas as línguas faladas e escritas.
O domínio de uma nova linguagem oferece, à pessoa que
a domina uma nova forma de conhecer a realidade, e de
transmitir' aos demais esse conhecimento. Cada linguagem é
absolutamente insubstituível. Todas as linguagens se comple-
mentam no mais perfeito e amplo conhecimento real. Isto
é, a realidade é mais perfeita e amplamente conheCJda através
E plano1973,
M o Governo Revolucionário Peruano iniciou um
nacional de alfabetização Integral, com o objetivo de
lia soma de todas as linguagens capazes de expressá-la.
O ensino de uma linguagem deve necessariamente partir
erradicar o analfabetismo em um prazo aproximado de 4 anos.
desse pressuposto. E isto era pérfeitame?te e
Supõe-se que haja no Peru entre 3 a 4 de analfabetos
considerado pelo projeto ALFIN que constderava os segumtes
ou semi-analfabetos, em uma população 14 milhões de
pessoas. pontos essenciais:
Em toda parte, ensinar um adulto a ler e a escrever é 1 ) alfabetizar na língua materna e em castelhano, sem
um problema delicado, e difícil. No Peru, talvez seja mais di- forçar o abandono daquela em benefício desta;
dicil ainda, considerando-se o enorme número de línguas e
dialetos que falam os seus habitantes. Segundo estudos re- · 2) alfabetizar em todas as linguagens possíveis, especial-
mente artísticas, como o teatro, a fotografia, os títeres, o
cine, o periodismo, etc. (Ver Quadro de Linguagens, ao
final deste ensaio.)
• (Esta experiência foi realizada com a inestimável colaboração
de Alicia Saco, dentro do Programa de Alfabetização Integral (ALFIN)
dirigido por Alfonso Lizarzaburu, e com a participação, nos diversos. A preparação dos alfabetizadores, selecionados nas mes-
setores, de Esteta Lii'íares, Luis Garrido Lecca, Ramón Vilcha e Jesus. mas regiões onde se pretendia alfabetizar, desenvolveu-se em
Ruiz Durand, entre outros, em agosto de '1973, nas cidades de Lima
e Chaclacayo. O método de alfabetização utilizado por Alfin era, na- 4 .. atro etapas, segundo as características específicas de cada
turalmente, inspi(ado em Paulo Freire) - Março, Buenos Aires, 1974. grupo social:

124 125
1) barriadas ou pueblos jóvenes que correspondem às
nôssas favelas ( cantegril, villamiséria . .. ) ; não é revolucionário em si mesmo, mas certamente pode ser
2) regiões rurais; um excelente "ensaio" da revolução. O espectador liberado, um
homem íntegro, se lança a uma ação! Não importa que seja
3) regiões mineiras ; fictícia: importa que é uma ação.
4) regiões onde a língua matema não era p castelhano,
e que incluem 40% da população. Destes 40%; metade Penso que todos os grupos teatrais verdadeiramente revo-
está constituída por cidadãos bilíngües que aprenderam lucionários devem transferir ao povo os meios de produção tea-
o castelhano depois de1 terem dominado a língua materna tral, para qu.e o próprio povo os utilize, à sua maneira e para
indígena. A outra metade não fala castelhano. os seus fins. O teatro é uma arma e é o povo quem deye ma-
nejá-la!
O Plano Alfin ainda está começando e é demasiado cedo Como deve, porém, ser feita esta transferência? Quero co-
para avaliar seus resultados. Neste trabalho, quero tão-somente meçar dando um exemplo do que fez Esteta Liõares, orientado-
relatar o que foi minha participação pessoal no setor de teatro . ra do setor de fotografia de ALFIN.
e contar todas as experiências que fizemos, considerando .o tea- Qual seria a velha maneira de se utilizar a fotografia num
tro como linguagem, apto para ser utilizado por qualquer pes- plano de alfabetização? Sem dúvida, seria fotografar coisas,
soa, tenha ou não atitudes artísticas. Quero mostrar, através ruas, pessoas, panoramas, comércios, etc., mostrar essas fotos
de práticos, como pode o teatro ser posto ao serviço aos alfabetizandos, e discuti-las. Quem tiraria as fotos? Os
dos oprimidos, para que estes se expressem e para que, ao uti- alfabetizadores, capacitadores ou instrutores. Mas quando se
lizarem esta nova linguagem, descubram igualmente novos con- trata de entregar ao povo os meios de produção, deve-se entre-
teúdos. gar, neste caso, a máquina fotográfica. Assim se fez em ALFIN.
Para que se compreenda bem esta Poética do Oprimido Entregava-se uma máquina às pessoas do grupo que se estava
deve-se ter sempre presente seu principal objetivo: tránsfor- alfabetizando, ensinava-se a todos a utilizá-la, e se faziam pro-
mar o povo, "espectador'', ser passivo no fenômeno teatral, em postas: - "Nós .vamos fazer perguntas a vocês. Nossas per-
sujeito, em ator, em transformador da ação dramática. Espero guntas vão ser em castelhano, e vocês vão nos respon-
que as diferenças fiquçm bem claras: Aristóteles propõe uma der. Mas. vocês não podem responder em castelhano: vocês têm
Poética em que os espectadores delegam poderes ao persona- que 'falar' em fotografia. Nós vamos perguntar coisas na lín-
para que este atue e pense em seu lugar; Brecht propõe uma gua castelhana, é uma linguagem. E vocês vão nos. respon-
Poética em que o espectador delega poderes ao personagem para der em fotografia, 'que também é uma ·linguagem."
que este atue em seu lugar, mas se reserva o direito de pensar As perguntas que se faziam eram muito simples e as res-
por si mesmo, muitas vezes em oposição ao personagem. No postas, isto é, as fotos, eram depois discutidas pelo grupo. Por
primeiro caso, produz-se · uma "catarse"; no segundo, uma exemplo: quando se perguntou: "Onde é que você vive?" obti-
"conscientização". O que a Poética do Oprimido propõe é a veram-se fotos-respostas dos seguintes tipos:
própria ação! O espectador não delega poderes ao personagem
para que atue nem para que pense em seu lugar: ao contrário, 1) uma foto mostrando o interior de uma choça. Em Lima,
ele mesmo assume um papel protagônico, transforma ·a ação não chove nunca e por isso as palhoças são feitas
dramática inicialmente proposta, ensaia soluções possíveis, de- de esteira de palha em lugar de paredes e tetos. Em geral, são
bate projetos modificadores: em resumo, o espectador ensaia, feitas num só ambiente que serve de cozinha, sala e dormitó-
preparando-se para a ação real. Por isso, eu creio que o teatro rio; as famílias vivem na maior promiscuidade, sendo muito fre-
qüente que· os filhos menores assistam às relações sexuais de
126
127
seus pais, o que faz com que seja muito comum que irmãos e como se fossem inimigos. A foto ajudava a COQstatar sua seme-
irmãs de lO ou 12 anos de idade pratiquem o sexo entre si, lhança: miséria dos dois lados. As fotos dos bairros elegantes,
simplesmente por imitar seus pais. Uma foto que mostre o inte· por outro lado, mostravam os verdadeiros inimigos. A _foto da
rior de uma choça responde perfeitamente à pergunta "Onde rua divisória mostrava a necessidade de reorientar a violência
é que você vive?" Todos os elementos de cada foto possuem que pobres exerciam contra pobres. O exame e a discussão dessa
um significado especial que deve ser discutido por todos os foto ajudava a sua autora e aos demais a compreender sua
participantes do grupo: os objetos enfocados, o ângulo esco- realidade.
lhi(jo para tirar a foto, a presença ou ausência de pessoas na
foto, etc. • 5) Um dia um homem tirou uma fotografia do rosto de uma
criança de poucos meses, como resposta à mesma pergunta.
2) Para responder à mesma pergunta, um. homem tirou uma Claro, todos pensaram que esse hom:em tinha se enganado, e
foto da margem do Rio Rímac. A discussão em grupo esclare- reiteraram a pergunta:
ceu o significado: o Rio Rúnac, .que cruza Liina, cresce muito - "Você não entendeu bem: o que nós queremos é que
em certas épocas do ano. Isso toma extremamente perigosa a nos mostre onde é que você mora, onde vive. Queremos que
vida nas suas margens, já que é freqüente o.desmoronamento tire uma fotografia mostrando onde é que você vive, nada mais.
de grandes extensões de terra, superpovoada de choças, e a Qualquer foto serve: da rua, da casa, qa cidade, do rio ... ''
conseqüente perda de vidas humanas. S muito comum também
que crianças caiam ao rio, enquanto brincam e, quando estão - "Esta aqui é a minha resposta: eu .vivo aqui ... "
altas as águas, é quase impossível salvar as pequenas vítimas. - "Mas é uma criança ... "
Quando um homem responde a essa pergunta com essa foto, - "Olha bem no rosto dela: tem sangue. Esse menino,
está contundentemente expressando toda a sua angústia: como como todos os outros que vivem onde eu vivo, vivem amea-
poderá em paz se o seu filho. está brincando na beira çados pelos ratos que pululam nas margens do Rio Rímac.
do rio, e talvez se afogando? Quem cuida dessas crianças são os cachorros que atacam os
ratos e não deixam que cheguem perto. Mas houve por aqui
3) Outro homem tirou uma foto de uma parte desse mesmo
rio, onde os pelicanos costumam vir comer o lixo que se acu- uma epidemia de sarna e a Prefeitura teve que pegar a maio-
mula, em épocas de grande fome; os homens, igualmente fa- ria dos cachorros, e levou embora. Esse menino tinha um ca-
mintos, capturam os pelicanos, matam-nos e comem-nos. Mos- chorro que cuidava dele. Durante o dia, o pai e a mãe iam
trando essa foto, esse homem expressava, com uma grande ri- trabalhar e ele ficava sozinho, com o cachorro .tomando conta.
Agora já não. Na semana passada, quando você me pergun-
queza lingüística, que vivia em lugar onde se bendizia a
fome, porque esta atraía os pelicanos, que saciavam sua pró- tou onde é que eu vivia, os ratos tinham vindo de tarde, en-
pria fome. · quanto o .menino dormia, e comeram uma parte do nariz
Por isso ele tem tanto sangue no rosto. Olha bem a fotografta:
4) Uma mulher, que havia emigrado de um pequeno povoado essa é a .minha resposta. Eu vivo num lugar onde coisas como
respondeu com uma foto da "rua" principal ó :1 essa ainda acontecem."
favela onde morava: de um lado da rua viviam os antigos ha- Eu podia escrever uma novela sobre os meninos que vi-
bitantes limenhos, do outro lado os que vinham do interior do vem às margen.s do Rio Rímac, mas tão-somente nessa foto-
país. De um lado, os que sentiam seus empregos ameaçados pe- grafia e em nenhuma outra linguagem não fotográfica podia-
los recém-chegados; do outro lado, os pobres que tudo deixa- -se expressar a dor daqueles olhos infantis, daquelas lágrimas
ram atrás; em busca de trabalho. A rufl dividia esses irmãos, misturadas com aquele sangue. E, para maior ironia e raiva,
igualmente explorados, que se frente a frente, a foto era em kodakrome, made in USA .. •
128 129
. ,A utilização fotografia pede ajudar a des- ' 'S muito fácil -dar uma máquina fotográficá á uma pessoa
cobrit -símbolqs válidos. para toqa uma ou gru{>o qtie jamais tirou umà foto, dizer-lhe por ande deve olhar para
soci_al.. Oron:e. muitas ,vezes que grupos teatrais intencio- poder enfocar, e que botão deve apertar. Basta isso, ·e · os meios
não conectar-se com um público ·popular de da fotografia estarão .em mãos dessa ..pessoa. Mas,
símbolos que, .par.. a esse públic:o, ,. nada signi- como pr oceder no .caso específico do teatro? . ;) ·
f Pode ser que · coroa real seja um símbolo, .pé po- Qs .meios de produção da fotografia estão constituídos
der. . . mas apenas para af pessoas que aceitam, c.orno ·símbolo pela -máquina .fotogr-áfica.• que é relativamente fácil de, 1panejar,
de poder, uma coroa realf . . Um símbolo só é um símbolo se mas os meios de proàução do tçatrô estão pelo
é .aceito por do'is . interlocutares: o ·que transmite •.e. o que re- próprio homem, que já não é tão fácil de manejar.
cebe. A coroa pode provocar um tremendo. impacto em ·uma
pessoa \e deixar uina outral:completamente insensível. · Podemos mesmo afirmar que a primeira palavra do voca-
O que é a exploração? A tradicional figUra do' Tio Sam bulário teatral· é o corpo humano, principal fonte de' som . e
é; para grupos sociais' espalhados · po.r' todo d mundo o movimento. Por isso, . para qúe se poss.a dominar O!! meios ae
máis perfeítct e acabado sím}?dlo da exploração. Expressa .produção ' teatral, deve-se ' primeiramente conhecer o próprio
perfeição a rapina do. imperialismo iànque: · ·· . corpo, para poder depois tomá-lo mais expressivo. SÓ d'epois
. Na·· teatràl limenhá também · periuntou ·a de conhecer o próprio corpo e ser çapaz de torná-lo mais
vánas _o ·que era exploração·, exigindo-se a' _resposta em exP.ressivo, o "espectador" estará habilitado·• a ·praticar formas
fotografta. Muttas fotos-respostas mostrávam o dorio do arma- teatrais que, por etapas, ajudem-no a ,Iibetàr.:.se de súa condição
,zéQl; qu o que v:inha cobrar o aluguel, ou um balcão de de "espectador" e assumir a de deixando· de ser objeto
·venda; ,ou lJIIl.a· repartição.. pública, etc. ·Um menino res- e passando a ser sujeito, convertend0-se 'de testemunha em
pondeu a essa pergunta com uma f<»to que mostrava um prego protagonista.
na parede. P·a ra ele, esse prego era- o símbolo , mais ·perfeito L .
O plano geral da conversão do espectador em ator· pode
ninguém entendeu porque, mas .todos os ser sistematizado no seguinte esquema de quatro. etapas:
demats:,memnos estavam totàlme,nte de acordo. A discussão da
foto ..es.clareceu· 0. porque. Em Lima, os meninos, começam tra-
para .ajudar a econom.ia .doméstica, quando chegatn PRIMEIRA ET.\PA - do Corpo .- :; de
l;!. · $ ou .6 anos: ,com,eç<,tm cemo .engraxates. lógico exercícios em, que se começa a conhecer o · próprio corpo,
favelas onde vivem ·não existem sapatos para engraxar, limitações e suas ,pos{ibilidaçles, suas deformaç,ões sociais
e, por ,1sso essas. crianças devem ir ao centro de Lima· exercer e. suas possibilidades de recuperação;. . . .
o seu ·afício. Levam consigo uma da ,qual colocam
todas os apetrechos· necessários à, _profissão. Mas ev:ident,é - ETAPA- Tornar o Corpq _:,Seqüência
mente ·não podem ficar .carregando .todas as manhãs e todas de jogt)s .em que cada , pessoa comçça a se expressar unicamen-
as noites suas caixas, do trabalho à casa e da casa ao traba- te através do corpo, abandonaqdo outras formas de express.ão
U10• .PQr isso, são obrigados a alugar um prego -na parede de mais usuais e cotidianas; ·
um ' b;tr, e o proprietário. lbes cobra Cf três soles
por·,:noite e por .prego. Quando vêem _um, prego,. esses meninos TERCEIRA ETAPA - 0 Teatro como Linguagem - Aqui ·se
a. op.x:essíio; se vêem. uma coma o Tio Sam ou· a praticar o teatro como lingUagem viva ·e presente, e
uma foto de Nixon, etc., o m.ais provável que, não compreen-
dam nada. ·· · nao .. oomc:> produto acabado que mostra imagens do pàssaào:

IJQ i31
PRIMEIRO GRAU- Dramaturgia Simultânea: os especta- simples:fato de que o alfabetizador vem com a missão de alfa-
dores "escrevem", simultaneamente com os atores que re- betizar (que se supõe ser uma ação coercitiva, impositiva) ten-
presentam; de a afastá-lo da gente do lugar. Por isso, convém que a apli-
SEGUNDO GRAu- Teatro-Imagem: os espectadores inter- cação de um sistema teatral comece por algo que não seja
vêm diretamente, "falando" através de imagens feitas estranho aos participantes (como por exemplo certas técnicas
com os corpos dos demais atores ou participantes; teatrais dogmaticamente ensinadas ou impostas); deve, ao con-
trário, começar pelo próprio corpo das pessoas interessadas em
TERCEIRO GRAu- Teatro-Debate: os espeçtadores inter-
participar da experiência.
vêm diretamente na ação dramática, substituem os atores
e representam, atuam! Existe uma enorme quantidade de exercícios que se podem
praticar, tendo todos, como primeiro objetivo, fazer com que
o participante se tome cada vez mais consciente do seu corpo,
QUARTA ETAPA- Teatro como Discurso- Formas simples de suas possibilidades corporais, e das deformações que o seu
em que o espectador-ator apresenta o espetáculo segundo suas corpo sofre devido ao tipo de trabalho que realiza. Isto é:
necessidades de discutir certos temas ou de ensaiar certas cada um deve sentir a "alienação .JDUScular" imposta pelo tra-
ações. Exemplo: balho sobre o seu corpo.
Um pequeno exemplo ·poderá esclarecer este ponto: com-
1) teatro-jornal pare-se as estruturas musculares do corpo de um datilógrafo
2) teatro invisível com as de um vigia noturno de uma fábrica. O primeiro realiza
3) teatro-fotonovela seu trabalho sentado em uma cadeira: do umbigo para baixo,
4) quebra de repressão seu corpo se converte, durante o trabalho, em uma espécie de
5) teatro-mito pedestal, enquanto que os seus braços e os seus dedos se agi-
6) teatro-julgamento lizam. O vigia, ao contrário, é obrigado a caminhar de um
7) rituais e máscaras lado para outro durante oito horas seguidas e, conseqüente-
mente, desenvolverá estruturas musculares que o ajudem a
.·;·
caminhar. Os corpos de ambos se alienam segundo os traba-
lhos que realizam respectivamente. .
PRIMEIRA ETAPA- Conhecimento do· COrpo
/ O mesmo que acontece com esses dois trabalhadores
acontece igualmente com qualquer pessoa, em qualquer função,
O contato inicial com um grupo de camponeses ou ope- em qualquer status social. O conjunto de papéis que uma pes-
rários é extremamente difícil se se coloca a proposição de soa desempenha na realidade impõe sobre ela uma "máscara
"fazer teatro". O mais provável é que nunca hajam ouvido falar social" de comportamento. Por isso terminam por parecer-se
de teatro óu, se alguma idéia têm a respeito, é uma idéia de- entre si pessoas que realizam os mesmos papéis: militares, clé•
formada pela televisão, pelo mau cine ou por algum grupo cir- rigos, artistas, operários, camponeses, professores, latifundiá-
cense. g muito comum também que essas pessoas associem rios, nobres decadentes, etc.
"teatro" com ócio ou perfumes. De modo que é necessário ter Compare-se a placidez angelical de um cardeal passeando
cuidado, ainda que o contato inicial se dê através de um alfa- sua bem-venturança pelos jardins do Vaticano, com um beli-
betizador que pertença à mesma classe dos analfabetos ou coso general dando ordens aos seus subalternos. O primeiro
semi-alfabetizados, ainda que viva entre eles em uma choça caminha suavemente, ouvindo música celestial, colhendo flores
semelhante à deles, com a mesma falta de comodidades. O coloridas com as mais puras cores impressionistas. Se, por ca-

132 .I
133
sualidade, um passarinho cruza pelo seu caminho, supõe-se que que uma corrida .convencional de 500 metros: o esforço ne-
o cardeal lhe dirá alguma coisa ternamente, alguma palavra cessário para manter o equili'brio em cada nova posição, a
amável de estímulo cristão. Ao general, pelo contrário, não fica cada pequeno deslocamento, é enorme e muito intenso.
bem falar com os passarinhos, mesmo que tenha vontade. Um
general deve falar como se estivesse sempre ordenando, mesmo
que esteja dizendo à sua mulher que a ama. Um militar deve 2) Comda de Pernas Cruzadas - Os participantes se unem
usar esporas, sempre que possível, mesmo que se trate de um em duplas, se abraçam pela cintura e cruzam suas pernas (a
almirante ou de um brigadeiro. Por essa razão, todos os ge-- perna esquerda de um com a perna direita do outro), apoian-
nerais se parecem entre si, e o mesmo acontece com todos os do-se cada um na perna não cruzada. Durante a corrida, cada
cardeais; mas os cardeais são completamente diferentes dos ge- dupla se move como se fosse uma só pessoa, e cada pessoa se
nerais. move como se o companheiro fosse sua perna. A "perna" não
Os exercícios desta primeira etapa têm por finalidade pode saltar sozinha: tem que ser movida pelo seu coptpa-
"desfazer" as estruturas musculares dos participantes. Isto é: nheiro.
desmontá-las, verificá-las, analisá-las. Não para que desapare-
çam, mas sim para que se tomem conscientes. Para que cada 3) Corrida do Monstro - Formam-se "monstros" de quatro
operário, cada camponês, compreenda, veja e sinta até que pon-
• pés, com duplas ém que cada um abraça o tórax do compa-
to seu corpo está determinado pelo seu trabalho. nheiro, estando um de cabeça para baixo, de tal forma que
Se uma pessóa é capaz de "desmontar" suas próprias estru- as pernas de um encaixam no pescoço do outro, formando um
turas musculares, será certamente capaz de "mentar'' estrutu- monstro sem cabeçá e com · quatro patas. Correm, levantando
ras musculares próprias de outras profissões e de outros status cada um ó corpo inteiro do outro, dando uma volta no ar,
sociais, estará mais capacitado' para interpretar outros perso- firmando-se outra vez no chão, e assim sucessivamente.
nagens diferentes de si mesmo.
Todos os exercícios desta série estão, portanto, destinados 4) Corrida de Roda - As duplas formam rodas, cada um
a "desfazer"; não interessam os exercícios acrobáticos, atléti- agarrando os tornozelos do companheiro, e correm uma corrida
. cos, que tendam a criar estruturas musculares próprias de atle- de rodas humanas.
tas e de acrobatas.
A título de exemplificação, descrevo alguns destes exer- 5) Hipnotismo - As duplas se põem frente a frente e cada
cícios: um coloca a mão a poucos centímetros do nariz do compa-
nheiro, que está obrigado a manter essa distância permanente-
1) Corrida em Câmara Lenta - Os participantes são convi- mente; o primeiro começa a mover a mão em todas as direções,
dados a fazer uma corrida com a finalidade de perdê-la: ganha para cima e para baixo, para a esquerda e para a direita, mais
o último! O corpo de cada um, ao mover-se em câmara lenta, rápida ou mais lentamente, enquanto que o segundo move
em cada centímetro em que se desloque o seu centro de gra- todo o seu corpo de tal maneira a manter a mesma distância
vidade, terá que uma nova estrutura muscular entre o seu nariz e a mão do companheiro. Nestes movimen-
que promova o equiHbrio. Os · participantes não podem nunca tos, os participantes são · obrigados a assumir posições corpo-
interromper o movimento, uma vez iniciado, e ficar parados; rais que jamais ·assumem na vida diária, "reestruturando" per-
devem também "dar .o passo mais comprido que puderem e, ao manentemente suas estruturas musculares.
"correr", os seus pés devem passar por cima dos joelhos. Neste Em seguida, formam-se grupos de três: um lidera e os
exercício, uma corrida de 10 metros pode ser mais cansativa outros dois acompanham cada uma das mãos do líder que pode,
134 135
por sua vez fazer qualquer coisa, cruzar os braços, separar utilizados ·nesta etapa. Creio, porém, que é sempre conveniente
as mãos, enquanto que os outros dois devem propor um exercício e ao mesmo tempo propor que os parti-
pre a mesma distância. Deve-se observar que se a mao do h- cipantes inventem outros. :e importante manter uma atmosfera
der está com os dedos para cima, o rosto do que o segue criadora: todos estão criando, os que ensinam e os que apren-
deve igualmente estar na vertical, e se a mão se inclina para dem. Todos devem inventar. E, nesta é necessário ima-
a horizontal, igualmente se inclinará o rosto. . ginar e praticar exercícios que "analisem" as estruturas muscula-
Em seguida, formam-se grupos de cinco, se_ndo um h- res de cada participante
dera e os outros quatro seguem as mãos e os pes do llder, 9-ue
.pode fazer o que sentir vontade, inclusive dançar. tlp?
· de exercício o líder deve procurar permanentemente deseqUI- SEGUNDA ETAPA- Tomar o Corpo Expressivo
librar" o do companheiro que, assim, será a
buscar um novo equilíbrio através de posições corp.o:a1s
O objetivo da segunda etapa é o de desenvolver a capaci-
lutamente novas; quanto mais ridículas
novas serão menos usuais, e portanto mats aJudarao a des- dade expressiva do corpo. Estamos acostumados a tudo comu-
montar" as musculares usuais e mecanizadas. nicar através da palavra, o que colabora para o subdesenvolvi-
mento da capacidade de corporal. Uma série de
"jogos" pode ajudar os participantes a desenvolver os recursos
6) Luta de Box à Distdncia - Os participantes são convida- .do corpo; como forma de expressão. Trata-se de "jogos de sa- , •
los a praticar nma luta de box, ma'!; não se podem tocar tão" e não necessariamente de exercíCios de laboratório. Os •
uns aos outros. Cada um deve lutar como se estivesse lutando participantes são convidados a "jogar" e não a "interpretar"
de verdade mas sem tocar o companheiro que, não obstante, personagens, mas é certo que "jogarão" tanto mellior quanto
deve reag;l fisicamente como se tivesse recebido cada golpe. melhor "interpretem".
Estas lutas podem chegar a ser extremamente violentas e a
única coisa que se ·proíbe é que os lutadores se toquem ... AJguns exemplos de "jogos": distribuem-se entre os par-
ticipantes pequenos papéis com nomes de animais, macho e
:e
7) Far-West- uma variação do exercício anterior. par- fêmea. Cada participante tira um papel, na sorte. Durante dez
minutos de "jogo" devem tentar dar uma visão física, corporal,
ticipantes improvisam uma cena típica das más comédtas. de
far-west, representando o pianista bêbedo, o garçom afemma- do animal que lhes tocou. :e proibido falar ou fazer ruídos
do, as bailarinas-prostitutas, os homens maus que dando óbvios que denunciem o animal, já que a comunicação deve
pontapés nas portas de vaivém, etc. Toda esta cena muda se ser exclusivamente corporal. Portanto não se pode miar no
representa sem que os participantes possam tocar-se, mas de caso de "gato" ou "gata", nem ladrar, no caso de "cachorro"
tal maneira a reagir a todo gesto ou fato que ocorra,. como ou "cachorra". Depois dos dez minutos iniciais, e obedecendo
por exemplo uma cadeira imaginária que se atira contra uma a um aviso do orientador, cada participante deve procurar o
fila de garrafas, cujos fragmentos saem disparados e.m todas as seu par, entre os demais participantes, que também estarão
direções: é necessário reagir ao movimento cade1ra, gar- imitando seus animais, sempre em suas versões "macho" ou
rafas quebradas, etc. No fim da cena estarao todos bngando "fêmea". Quando dois participantes estiverem convencidos de
contra todos. que eles formam UfP de "cena" e só então se lhes
No meu livro 200 EXERCÍCIOS E JOGOS PARA O ATOR E permite falar para saber se realmente são um casal, e o jogo
p A O NÃo-AUTOR COM VONTADE DE DIZER ALGO ATRAVÉS DO termina quando todos os "animais" hajam encontrado seus
sistematizei diversas séries de exercícios que podem ser companheiros. E isto terá sido feito através da comunicação

136 137
exclusivamente corpóral, sem a .utilização de palavras, ·nem - "Eu sou o colibri macho e você é a colibri fêmea,, não
sequer de ruídos óbvios. é verdade???" ..
Nos jogos deste tipo, o .importante é. o O gordo desalentado. olhou pra ele e disse assim:
importante .é fazer com' que todos os participantes se :- "Não, imbecil ... vocênãp vi.u que·eu sou o touro? .. , "
para ,através. de seus corp,os, coisa a .que nJío O movimento da, mão significava (O \I pretendia!) o mo-
acostumados. Ainda que se cometam todos OS·. ,magmá- vimeqto que fazem os .touros pa de investirem
veis, o exercício será igualmente bom se os participantes ten- ,contra o to,ureiro. Mas nunca de que Dfaneira ;'um
tarem se expressar fisicamente, sem o recurso da palavra. gordo -interpretando um touro ao pobre homem
Deste modo, e sem .que se dêem estarão já "fazendo um. deljcado e canoro colibri. Não ·importa: a jm- .
teatro". . . · · · portante é que, durante 15 ou 20 minutos, toda essa gente ten-
tou "falar" com seu corpo. ,
Eu me. lembro. gue uma vez, num,a favela, a .um ltomem Este tipo de jogo po.de. variar ao infinito e os papéis po-
lhe tocou. interpr,etar. o coliqri. .O pobre . coitado. não tinha , a dem conter, por exemplo, nomes de.profissões. Se os partidpan-
menor idéia .de como seri.a possível fisicamente· um tes mostram animais, talv.ez isso ·nada tenha. que ver com a
colibri; mas se lembrou' de que esse voa muito rapi:- ideologia. .Mas se um c amponês ·deve in.terpretar um latifundiá-
damente de flor:.. parado no a.! ppr alguns rio, ou se um operário deve interpretar um dono fábrica,
enquanto l?eija çada flor e. e,mit,e, um rujdq . .Com ou se a mulher de :'!Jm. destes deve interpretar um policial, nestes
braços, o homem comC9ou a 9 bater d,e .asas dq . casos a ideologia também conta e encontra sua expressão atra-
beija-flor, ,e . "voando" de..;Bltrttc;_tpante e\11. c9mo vés do jogo. Os papéis podem ·também conter o.s nomes dos
se' seus companheiros fqssem. detinha-se diante d!? próprios participantes, de tal forma que uns interpretarão os
um por alguns instantes e emitia um ruído que supunha pró- óutros, desta maneira :revelando suas opiniões e fazendo fisica-
prio dessa ave: "Brrrrrrrrrr!" Durante dez minutos todos tive- mente suas críticas mútuas. . .
ram que · agüentar o aguerrido ·sênhor fazendo Também nesta etapa, como na primeira, exi,stem muitíssi-
diante de-uns ·é outros.. Depois, quando começliram todos a bus:- mo·s jogos que se podem utilizar, ·tratando-se semp,re de
car o t:ompanheir<?", este ·bomeril à todos e. com . que os •partiçipantes inventem outros, -e que .não, seJaw.
nenhum lhe parecia suficiente "colibn para atrai-lo. Fmal- receptores passivos do divertimento · que .·vem de fora.: •
mente descobriu um· senhor gordo e alto que, COn;J. suas mãos, .
fazia desalento ·um movimento pendular e não teve
das, pensou q.ue era: á s'uà_ amada. 'rolit>ri;·' e ' pra TERCEIRA ETAPA- Teatro como l,.inguagem
cima dt> ·gordo, âando vo1tas ao seu redor, cada vez ·.caiitando
com mais galhardia "Brrrrrrrrrrriinrr!!! . :): ", · . .
mente 'batendo· ·asas e; dando beijiiÜlOs' no ' ar; ·esperou· que' Esta etapa se divide em três-, partes,. significandb cada uma
o gordo o· 0 gordo tentava escapar de. tó'? o um grau diferente e -progressivo ··de participação do
vinha ,.sempre em cima o colibri macho enamorado, espectador no espetáculo. Trata-se de· fazer com que O· espec-
alegrenrente; até que o ·gordo, eriquàntó ,os 'outros tador se disponha a intervir na ação,. abandonando sua condi-
ção de objeto e assumindo plenamente o papel de sujeito.
riso; decidiu ·acompaiihá-lo para fota·1da '·'c'êna" e .As· duas etapas anteriores ·são preparatórias e estão cen-
1
nar seus padecim."etitds,' ·embófa estivesse' que na?. tradas no trabalho do participante com o seu próprio corpo.
tratava tle üm casaL Quandó sàíram ··(e só enta:o se permitia Esta nova etapa· enfatiza ·o tema a ser discutido, e promove o
falar) ;, cheio de , alegria, o h omedi quase gritou: ' · ·· passo do espectador à ação -verdadeira;_

138 139
Primeiro Grau: Dramaturgia Simultdnea - Este é o primeiro atores improvisaram a história que ela lhes contou até o ponto
convite que se faz ao espectador para que intervenha, sem que em que o marido retoma a casa, depois de um dia de trabalho
seja necessária sua entrada física em "cena". Trata-se aqui de e quando a mulher acaba de ser informada do mistério das
interpretar uma cena curta de 1O ou 15 minutos, proposta por cartas. Aqui se interrompia a ação e a participante-atriz, que
alguém do lugar, por um vizinho da favela, e improvisado pelos. interpretava a senhora analfabeta, perguntava aos demais parti-
atores, depois de discuti-la com o "autor" e delinear o enredo. cipantes-espectadores qual devia ser a sua atitude frente ao ma-
Pode-se, inclusive, e sempre que haja tempo, escrever a cena, rido.
que não tem que ser necessariamente improvisada. Em qualquer Todas as mulheres da platéia se alvoroçaram, começaram
caso, o espetáculo ganha em teatralidade se a pessoa que pro- a discutir e a expor suas opiniões. Os atores ouviam as dife-
pôs a cena, que contou a história, estiver presente na platéia. rentes sugestões e representavam segundo as non:nas dadas pelo
A cena deve ser representada até o ponto em que se apresente público, procurando ser intérpretes fiéis desse público-dra-
o problema central, que necessite uma solução. Neste ponto, os maturgo. Todas as possibilidades de feminina vingança foram
atores param de interpretar e pedem ao público que ofereçam examinadas a quente, em teatro, e não a frio, em palavras.
soluções possíveis, para que as interpretem, para que as anali- Neste caso particular, foram estas as soluções propostas:
sem. Em seguida, improvisando, interpretam todas as solu-
ções propostas pelo público, uma a uma, sendo que todos os
1) Chorar muito para fazer com que o marido se sentisse
espectadores têm o direito de intervir, corrigindo ações ou falas
culpa4o. Foi uma jovem que sugeriu que a mulher se pusesse
inventadas pelos atores, que são obrigados a retroceder e a
interpretar outra vez as mesmas cenas ou dizer as novas pala- a chorar muito para que o marido se desse conta de como
vras propostas pelos espectadores. Assim, enquanto a platéia havia se comportado mal. Os atores não podem recusar as
soluções propostas, gostem ou não dessas propostas. Devem
"escreve" a peça, o elenco simultaneamente a interpreta. Tud<> interpretar todas. A atriz portanto chorou muitíssimo, enquan-
o que possam pensar os espectadores é discutido "teatralmen- to o marido a consolava e lhe assegurava que águas passadas
te" em cena, com a ajuda dos atores. Todas as soluções pro- não movem moinhos, que. já se havia esquecido desses amores
postas e opiniões são expostas em forma teatral. A "discussão" juvenis, que a amava, etc., e quando ela parou de chorar, ele
neste caso não se produz através da utilização de palavras so- pediu que ela servisse o jantar e tudo ficou por isso mesmo,
mente, mas sim de todos os elementos teatrais possíveis. na santa paz de Deus. O público não aceitou essa solução, pois
Um pequeno exemplo: numa favela de San Hilarión, em pensavam todos (especialmente as mulheres presentes) que o
Lima, uma senhora propôs um tema candente. Era ela analfa- marido merecia maior castigo..
beta e seu marido lhe havia dado para guardar, anos atrás.
certos "documentos" que, segundo ele, eram de suma impor- 2) Abandonar a casa deixando· o marido sozinho, como cas-
tância. A boa senhora os guardou sem suspeitar de nada. Um tigo. A atriz, sem discutir, interpretou esta sugestão e, depois
belo dia, os dois brigaram e a mulher se lembrou dos tais de mostrar ao marido como havia sido ruim, agarrou as suas
"documentos" e quis saber exatamente de que se tratava, pois. coisas, meteu tudo dentro de uma mala e foi embora, batendo
temia que se relacionassem com a casinha que possuíam. Como- a porta na cara do marido, que ficou sozinho, muito sozinho,
não sabia ler, pediu a ajuda de uma vizinha. Muito amável,. dentro de casa. Mas, assim que saiu, perguntou ao público o
veio a vizinha e leu os "documentos" que, para posterior di-· que deveria fazer em seguida. Para castigar seu marido, ter-
versão de todo o bairro, não eram documentos e sim cartas. minava por castigar-se a si mesma. Aonde iria agora? Em
de amor escritas pela amante do marido da pobre analfabeta. que casa poderia viver? Esse castigo positivamente não servia,
A mulher traída jurou vingança. Mas, como vingar-se? Os. já que recaía sobre ela mesma.
140 141
\
3) Expulsar o marido de casa. Também esta variante foi soas conseqüências, suas indicações e contra-indicações. Todo
ensaiada. O marido pediu e pediu que o deixasse entrar, mas espectador, por ser espectador, tem o direito a experimentar
a mulher decidiu que ficasse de fora. Depois de muito rogar, sua versão. Nada de censura prévia. :e. a própria representaçã o
o marido comentou: -"Muito bem, eu vou embora. Hoje foi teatral que mostrará os acertos ou desac:rtos prop?sta.
o dia de pagamento e eu vou com esse dinheiro viver eom a . O ator não se modifica em sua funçao prmctpal:· contmua
minha amante, porque eu gosto muito mais dela do que de sendo o intérprete. O que se modifica é à quem tem que inter-
você, e você que se vire sozinha!" E foi :mbora. A atriz pretar! Se antes interpretava a um senhor que escrevia fecha-
mentou que não gostado dessa soluçao, do em seu escritório (e não tenho nada contra esses senhores:
o sou um deles!), aqui, ao contrário, deve interpretar um pú-
agora viver com e ela,.. pobre, Nao.
nhava o suficiente para VIver sozinha e nao podta prescmdtr blico popular, um dramaturgo coletivo, que não lhe oferece
do marido. um texto acabado mas sim soluções, sugestões, cenas, frases,
características - e ele deve reunir tudo isso na apresentação
perfeita de um personagem vivendo uma história. Esse
4) A última solução foi apresentada por uma senhora gorda
turgo vive npma ou numa
e exuberante, e foi aceita pela unaniulidade do 'público pre- ou são os vtzmhos que se reunem na soctedade dos amigos do
sente, homens e mulheres. Disse a experiente senhora: "Você
bairro, ou os paroquianos de uma igreja, ou os camponeses
faz assim como eu te digo: deixa ele entrar, agarra um pau
de uma Liga Camponesa, ou os estudantes de uma escola. Os
bem e bem forte, e quando ele entrar, baixa a
lenha com toda tua força, bate bastante. Depois que tiver lhe atores têm a missão de interpretar os pensamentos destes gru-
dado uma boa surra, para que se arrependa, você joga fora o pos de homens e mulheres. O ator deixa. de inte.rpretar o indi-
pau, você serve o jantar a ele, com muito carinho, e depois você víduo e passa a interpretar o grupo ; detxa de mterpretar um
o perdoa ... " texto já escrito, acabado, e passa a interpretar uma dramatur-
A atriz representou essa versão ( dep0is de vencer as re- gia embrionária. Isto é mui.to o:ais difícil, não resta dúvida,
sistências naturais do ator que representava o marido e que não mas é igualmente muito mats cnadorl
queria apanhar) e, depois de lhe dar uma boa tunda, para
diversão do público presente, os dois se sentaram à mesa, co- Segundo Grau: Teatro-Ima gem- Neste segundo grau? espec-
meram, e discutiram amistosamente as últimas medidas do go- tadOJ; deve intervir muito mais diretamente. Pede-se que ele
verno, nacionalizandp companhias ianques •.• expresse sua opinião sobre um tema determinado, de interes-
Esta forma de teatro produz uma grande excitação entre se coinum que os participantes desejem discutir. Esse tema
os participantes: começa a demolir-se o muro que separa ato- pode ser aqstrato, como por exemplo "o imperialismo",
res de espectadores. Uns escrevem e outros ou pode mais concretamente referir-se a um problema local,
simultaneamente. Os espectadores sentem que podem mtervtr como a ausência de água encanada, coisa que costuma
na ação. A ação deixa de ser apresentada tecer em quase todas as favelas latino-americanas. Pede-se ao
como uma fatalidade, como o Destino. O Homem é o. Destmo participante que expresse sua opinião, mas sem falar: deve
do Homem! Pois então o Homem-Espectador é o cnador do apenas usar os corpos dos demais participantes pa.ra "esculpir''
Destino do Homem-Personagem. Tudo está sujeito à crítica, com eles um conjunto de estátuas, de tal maneira que suas
à retificação. Tudo é transformável, e tudo se pode transfor- opiniões e sensações resultei? evidentes. O participante deve-
rá usar os corpos dos demais como se ele fosse um escultor,
mar no mesmo instante: os atores devem estar sempre prontos
e como se os outros estivessem -feitos de barro. Deverá deter-
a aceitar qualquer proposta e não rechaçar d:vem minar a posição de cada corpo até os detallies mais sutis de
simplesmente representá-Ias, ao vivo, mostrando quats serao as

142 143
\
\
suas expressões fisionômicas. Não é permitido falar em enhu- agarrava por trás, tornando-o indefeso. Diante destes três ho-
ma hipótese. O máximo que pode fazer cada escultor é mos- mens, a moça colocou uma mulher ajoelhada, rezando, de um
trar com o seu próprio rosto a expressão que deseja ver no lado e do outro um grupo de cinco homens, igualmente ajoe-
rosto do participante-estátua. Depois de organizado este con- lhados, com as mãos atadas atrás das costas. Atrás do homem
junto de estátuas, deve-se discutir com os demais participantes, castrado, a moça p ôs outro participante em ostensiva atitude
se todos estão de acordo ou se propõem modificações. Todos de pode:r e violência e, atrás deste, doi's homens armados apon-
têm o direito de modificar o primeiro conjunto, no todo ou tando suas armas contra o prisioneiro caído.
em parte. O importante é chegar a um conjunto modelo que, era a imagem que a moça tinha do seu povoado.. Ima-
na opinião geral, seja a concreção escultural do tema dado, gem terrível, trágica, pessimista, derrotista, mas, ao mesmo
isto é: este modelo é a representação física peste tema! Quan- tempo, imagem de algo realmente acontecido. Quando se lhe
do finalmente se chega a uma figura aceita mais ou menos una- pediu que mostrasse como ela gostaria que fosse seu povoado,
nimemente, pede-se ao escultor que faça outra imagem mos- a jovem compôs outro conjunto de gente que se amava, que
trando como ele gqstaria que fosse o tema dado. Em outras trabalhava, enfim, um Otusco feliz e contente. Primeiro a ima-
palavras: o primeiro conjunto deve mostrar a imagem real, gem real, depois a imagem ideal. A partir daí, começava o tra-
enquanto que o segundo mostrará a imagem ideal. Tendo-se balho: como se poderia, a partir da imagem real, chegar à ima-
estas duas imagens, pede-se a qualquer participante que mostre gem ideal? Como produzir a modificação, a transformação, a
qual seria, a seu ver, a imagem de trânsito. Isto é: temos revÇ>lução? Esta discussão, feita através das imagens, se cons-
uma realidade que queremos -transformar; como transformá- titui ná parte mais importante desta forma teatral.
-Ia? Isto deve ser mostrado através de imagens formadas pelos Cada participante tinha o direito de, a partir da primeira
corpos dos participantes. Cada um terá o direito de, sempre imagem, reordenar o grupo para. mostrar de que maneira, na
sem falar, esculpir modificações na imagem real, mostrando sua opinião, a realidade poderia ser transformada, reordenando
como seria possível chegar-se à -imagem ideal, isto é, mos- as forças significadas pelas imagens. Cada um devia mostrar a
trará concretamente uma imagem de trânsito (visível, palpável, sua opinião feita de imagens. Havia discussões ferocíssimas,
concreta!) qual seria o melhor caminho para a transforma- sem palavras. Quando alguém exclamava:
ção, .a revolução, ou qualquer outra palavra que se · queira - "Eu acho que ... " era imediatamente interrompido:
utilizar. Todo o debate é feito pelos "escultores" que modiii- "Não diga o que pensa: venha e mostre!" O par:ticipante ia e
cam "esculturas": cada escultura terá inequivocamente um sig- mostrava, visualmente, o seu pensamento, e a dis-
nificado, e cada modificação, igualmente, terá um significado cussão prosseguia.
particular. Neste caso-particular, observaram-se especialmente as se-
Um exemplo concreto ajudará a esclarecer este processo. guintes variantes:
Uma jovem alfabetizadora que vivia num pueblo pequeno, cha-
mado Otusco, foi encarregada de mostrar como era seu po- 1) Quando se pedia a qualquer moça do interior do país que
voado natal aos demais participantes. Em Otusco, antes do ftZes.se a imagem de trânsito, essa moça jamais modificava a
atual governo houve uma revolta camponesa; imagem da mulher ajoelhada, significando claramente que não
os Iatifundistas (já não existem mais no Peru) prenderam o via na mulher nenhuma força transformadora, revolucionária.
lídef dessa rebelião, conduziram-no à praça central do povoa- Naturalmente, essas moças se identificavam com essa figura
do e, diante de todos, castraram-no. A moça de Otusco compôs feminina, e como não ·acreditavam em si mesmas como pro-
a imagem da castração, colocando um dos participantes no tagonistas possíveis da revolução, tampouco modificavam a
chão, enquanto que outro fazia o gesto de castrá-lo, e outro o imagem da mulher ajoelhada. Quando, ao contrário, pedia-se

144 ' 145

. '
o mesmo a uma moça de Lima, esta, mais "liberada", come-
çava por modificar justamente essa imagem, com a qual se 5) Outra jovem, no extremo oposto, fez todas as modifica-
identificava. Esta experiência foi feita repetidas vezes e sem- ções possíveis e imagináveis, deixando intocados unicamente
pre produziu o mesmo resultado, sem variações. Certamente os cinco homens de mãqs atadas. Esta jovem pertencia à
não se trata de uma ocorrência fortuita, mas sim de uma ex- classe média alta, e não se sabia porque estava aí nesse plano
pressão sincera e visual da ideologia e da psicologia das par- de alfabetização. Depois de várias tentativas, a jovem já esta-
ticipantes. As moças de Lima sempre modificavam a imagem va nervosa por não poder imaginar nenh\una outra transfor-
feminina, mas cada uma à sua maneira: umas faziam com que mação e por sentir que talvez algo mais houvesse, alguém lhe
a mulher se agarrasse à figura do homem castrado, outras que perguntou sobre a possibilidade de transformar primeiramente
se dispusesse a lutar contra o castrador, outras contra a po- as figuras atadas. A moça olhou espantada: "Que coisa . . • eu
derosa figura central, etc. Enquanto isso, as moças do interior não tinha reparado nesses ... " E era verdade. Era no povo que
do país não faziam mais do que permitir que a mulher levan- ela não tinha reparado nunca •. •
tasse as mãos em atitude de oração. . forma de teatro-imagem é, sem dúvida, uma das
mrus por ser tão fácil de praticar e por sua
2) Todos os participantes que acreditavam no Governo Re- extraordmária capactdade de tomar visível o pensamento. Isto
volucionário começavam por transformar as figuras armadas, ocorre. porque, se usa a linguagem idioma, cada pala-
no fundo do isto é, os dois homens apontando suas vra .possut uma denotação que é a mesma para todos,
armas contra o castrado: passavam a ap9ntar suas armas con- .mas possu1 uma conotação, que é a única para
tra a figurà central, ou contra os castradôres; quando, ao con- cada um. Se eu dtgo a palavra "revolução", evidentemente
trário, o participante não tinha a mesma fé em seu Governo, todos compreenderão que estou falando de uma transforma-
modificava todas as outras, menos essas figuras armadas. ção radical mas, ao mesmo tempo, cada um pensará na "sua"
em seu .conceito de revolução. Mas se, ao
3) As pessoas que acreditavam em soluções mágicas, ou em mves de falar, eu tiver que fazer um conjunto de estátuas que
transformações "<;le consciência" das classes exploradoras, co- signifique a "minha'' revolução, neste caso não existirá a di-
meçavam por modificar os castradores que se transformavam denotação-conotação. A imagem sintetiza ·a conotação
mdtvtdual e a denotação coletiva. No meu conjunto que sig-
de moto próprio, e a poderosa figura central também se rege- nifica " revo!ução"? Que fazem as "estátuas"? Têm armas na
nerava sozinha. Mas aqueles que não acreditam nessa modali- mão, ou simplesmente votos? As figuras do povo estão unifi-
dade de trânsito social, transformavam primeiramente os ho- atitude de luta contra as figuras que significam
mens ajoelhados, fazendo com que estes assumissem posições os mun tgos comuns a todos ou, pelo contrário, as figuras po-
de luta, atacando os seus dominadores. pulares estão dispersas, ou em atitude de discutir entre elas
enquanto se unificam as da opressão? Meu conceito de
4) Uma jovem, depois de fazer com que todas as transforma- volução" ficará perfeitamente claro se, ao invés de falar, mos-
ções fossem obra dos homens ajoelhados que se liberavam e tro com imagens o que penso.
atacavam seus verdugos, e os capturavam, fez também com Recordo em uma sessão de psicodrama uma jovem
que uma das figuras do "povo" se dirigisse a todos os demais comentava repetidamente os problemas que tinha com seu
participantes, indicando claramente que, em sua opinião, as noivo, e sempre começava mais ou menos com a mesma frase:
transformações sociais são feitas pelo povo em seu conjunto, veio e me abraçou e então • •• " Sempre o mesmo abraço
e não apenas por sua vanguarda. Jructando seus relatos, e todos nós entendíamos que eles se
abraçavam, isto é, entendíamos o que a palavra "abraço" de-
146 , 147
nota. Um dia foi-lhe pedido que mostrasse, representando, Terceiro Grau: Teatro-Debate - Este é o último grau desta
como eram esses encontros e esses abraços. Foi isto o que ela etapa e aqui o participante tem que intervir decididamente na
mostrou: o noivo se aproximando, ela cruzando os braços ação dramática e modificá-la. Este é o processo: inicialmente,
sobre o próprio peito, como se estivesse se defendendo, en- pede-se aos participantes que contem uma história com um
quanto o noivo a agarrava e a apertava, e ela mantinha sem- problema político ou social de difícil solução. Deve-se .a se-
pre as mãos fechadas, continuamente se defendendo. ·Essa era guir improvisar ou ensaiar um texto que se escreva baseado na
a sua conotação particular da palavra "abraço". Quando com:.. história contada, e se apresenta a cena de 1O ou 15 minutos,
preendemos qual era o "seu" abraço, pudemos afinal com- que inclua uma solução proposta para determinado problema,
preender os problemas que tinha com o noivo ... e que se deseja debater. Quando termina a apresentação, per-
gunta-se aos participantes se estão de acordo com a solução
No teatro-imagem pode-se também utilizar outras téc- apresentada. Como quase sempre se apresenta, para fins de
nicas: discussão, uma má solução, é evidente que os participantes-
-espectadores dirão que não estão de acordo. Explica-se então
1) permitir que cada participante transformado em estátua que a cena será representada uma vez mais, exatamente da
realize um movimento, um gesto, e apenas um, cada vez que mesma maneira que da primeira vez. Porém agora qualquer
o orientador bata palmas. Neste caso o conjunto de imagens pessoa terá o direito de substituir qualquer ator e conduzir a
ação na direção que lhe pareça mais adequada. O ator subs-
se transformará segundo o desejo individual de cada partici- tituído deve aguardar do lado de fora, pronto para reintegrar-
pante-estátua; · -se no momento em que o participante dê por termináda sua
intervenção. Os demais atores, que permanecem em cena, de-
2) pede-se aos participantes-estátuas que guardem de memó- vem enfrentar as novas situações criadas pelos espectadores,
ria a imagem ideal, que voltem à imagem real primitiva e examinando "a quente" todas as possibilidades que a nova pro-
depois, a um sinal do orientador, realizem os movimentos· ne- posta ofereça.
cessários para outra vez retomarem à imagem ideal, mostrando Os participantes que intervenham devem obrigatoriamente
assim o conjunto de imagens em movimento e permitindo ana- continuar as ações físicas dos atores que são substituídos, de
lisar a viabilidade ou não dos trânsitos propostos. Através modo a que ·a "marcação" continue mais ou menos a mesma.
deste processo, será possível observar se um conjunto se trans- Não é permitido entrar em cena e simplesmente ficar falando,
forma em outro (real em ideal) por obra graça do Espírito falando, falando: devem todos realizar os mesmos trabalhos
Santo, ou se a transformação se opera pelas forças em contra- ou as mesmas atividades dos atores que estavam em seus lu-
dição no seio mesmo do conjunto; gares. Em cena, a atividade teatral deve seguir a mesma.
Qualquer pessoa pode propor qualquer solução, mas para isso
3) pede-se ao participante-escultor que, uma vez terminada deverá ir à cena, aí trabalhar, fazer coisas, agir, e não sim-
sua obra, procure colocar-se ele mesmo dentro do conjunto plesmente falar. E ninguém pode propor nada na comodidade
de sua cadeira. Muitas vezes, em debates posteriores a espe-
que criou: assim, muitas pessoas percebem que às vezes pos-
táculos convencionais, tenho visto espectadores sempre discou-
suem uma visão c6smica da realidade, como se não estivesse formes que revelam ser extraordinários revolucionários . . . po-
também dentro dessa mesma realidade. rém sentados nas suas poltronas. Falar é muito fácil, é muito
O jogo com imagens oferece muitas outras possibilidades. fácil sugerir atos heróicos e maravilhosos. O mais difícil é
O importante é sempre analisar a viabilidade de transformação. realizá-los. Ec;ses mesmos espectadores se darão conta de que

148 149
a fábrica, fazer uma greve, formar um sindicato, etc. Foi então
as coisas são um pouco mais difíceis do que pensam se tive- que se propôs ao público uma sessão de teatro-debate. A cena
rem que fazer eles mesmos os atos que preconizam. seria representada outra vez, de forma idêntica, porém agora
Um exemplo: um jovem de 18 anos trabalhava na cidade teriam todos o direito de ensaiar suas soluções e propostas,
de Chimbote, um dos ·portos pesqueiros mais importantes do intervindo diretamente na ação e modificando-a. O primeiro
mundo. Existe ali uma infinidade de fábricas de farinha de que interveio foi o da bomba: levantou-se, substituiu o ator que
p_:scada, principal produto de exportação do Peru. Algumas interpretava o jovem e propôs jogar uma bomba na máqui-
sao enormes e outras contam com apenas 8 ou 1O operários. na. _f: claro que os demais atores o dissuadiram, pois isso
Numa destas, trabalhava o nosso jovem. Tinha um patrão terri- significaria a destruição da fábrica, e portanto de uma fonte
velmente explorador, que obrigava seus operários a trabalhar de trabalho. Aonde iriam parar tantos operários se a fábrica
da 8 da manhã às 8 da noite, ou vice-versa, em dois turnos. fechava? Por quanto tempo teriam que viver sem salário?
Total: 12 horas de trabalho contínuo. Todos ·pensavam em Inconformado, o homem tentou jogar a bomba sozinho, mas
lutar contra essa exploração desumana. Cada um tinha uma logo percebeu que não sabia como fazê-lo, nem muito menos
uma como, por exemplo, realizar a "opera- como fabricá-la. Acontece que muita gente, em discussões teó-
çao tartaruga , Isto trabalhar bem devagarzinho, especial- ricas, é capaz de atirar muitas bombas, mas que na realidade
o patrao não está olhando. Mas este rapaz teve não saberia que·fazer com uma bomba verdadeir,a ·e seria capaz
te: trabalhar o mais rapidamente possível e I I
uma Idéia bnlhan de explodir com ela no bolso. Depois de experimentar a solu-
encher. a máquina. de peixe de tal maneira que, com o peso ção-bomba, o homem voltou ao seu lugar, e o ator retomou
excessivo, a máquma se quebrava e parava de funcionar. Para o seu papel, até que veio um segundo espectador experimentar
repará-la, eram necessárias duas ou três horas' e ' durante esse a solução da greve. Depois de muita discussão com os demais,
tempo, os operarias poderiam descansar tranqüilos. Esse era
,
conseguiu fazer com que· se interrompesse o trabalho, indo todos
o problema: a exploração patronal; e essa, uma solução, inven- embora e deixando a fábrica vazia. Neste caso, o patrão, o
tada pela esperteza nativa. Mas seria essa a melhor solução? capataz e o alcagüete, que haviam preferido ficar, foram até a
. . Preparou-se uma cena que foi apresentada a todos os par- praça (que ·era a platéia) buscar outros operários que se pres-
Alguns atores representaram os operários, outros 0 tassem a substituir os grevistas: no Chimbote existe um tre-
patrao, o capataz, o alcagüete. A cena se converteu numa mendo desemprego massivo.
fábrica de farinha de peixe: um operário descarregava o peixe, Esse espectador-praticipante' experimentou uma solução,
outro pesava sacos cheios de peixe, outro transportava os sacos a greve, e percebeu que, sozinha, era ineficaz: com tanto de-
até. a máquina, outro cuidava da máquina, enquanto outros semprego, os patrões encontram sempre operários suficiente-
faz1am outras tarefas pertinentes. Enquanto trabalhavam dialo- mente famintos e pouco politizados que substituirão os gre-
gav:un, propunham soluções e as discutiam, até que finalmente vistas. .
a proposta do. rapaz, arrebentavam a máquina de
que lhe metiam dentro, vinha o patrão com o A terceira tentativa foi a de formar um sindicato destina-
tanto pe1xe
do a lutar ·pelas reivindicações operárias, a politizar os operá-
engenheiro enquanto os operários dormiam. durante o tempo rios, ocupados e desocupados, a formar caixas de assistência
de conserto da máquina. Terminado o conserto, voltavam todos
ao trabalho. mútua, etc. Nesta sessão de teatro-debate, esta foi a solução
que pareceu melhor, a 'critério do público presente. No teatro-
. A_cena foi apresentada pela primeira vez e se propôs a -debate não se impõe nenhuma idéia: .o público (o povo) tem a
d1scussao. Estavam todos de acordo? Positivamente não! Pelo oportunidade de· experimentar todas as suas idéias, de ensaiar
contrário, o desacordo era total. Mas cada um tinha, pelo seu todas as possibilidades e de verificá-las na prática, isto é, na
lado, uma proposta diferente: atirar uma bomba e incendiar
151
150
prática teatral. Se a platéia tivesse chegado à conclusão de que / .erdade, ainda que seja igualmente verdadeiro que o teatro
seria necessário dinamitar todas as fábricas de farinha de peixe pode apresentar imagens de "trânsito".
do Chimbote, isto também seria certo do ponto de vista do (
funcionamento do teatro-debate, que é uma técnica teatral não- Em toda minha atividade, em tantos e tão diferentes paí-
-impositiva. Esta forma teatral não tem a finalidade de mos- ses da América Latina, pude observar esta verdade: os públi-
trar o caminho correto (correto de que ponto de vista?), mas cos populares estão sobretudo interessados em experimentar,
sim a de oferecer os meios para que todos os caminhos sejam ensaiar, e se chateiam com a apresentação de espetáculos fe-
estudados. chados. Nestes casos, tentam dialogar com os atores em ação,
Pode ser que o teatro não seja revolucionário em si mes- interromper a história, pedir explicações sem esperar "educada-
mo, mas estas formas teatrais são certamente um ensaio _da mente" que o espetáculo termine. Ao contrário da educação
A verdade é que o espectador-ator pratica um ato burguesa, a educação popular ajuda e estimula o espectador a
feãl;-mesmo que o faça na ficção de uma cena teatral. Enquan- fazer perguntas, a dialogar, a participar.
to ensaia jogar uma bomba no espço cênico, está concretamente
ensaiando como se joga uma bomba; quando tenta organizar
uma greve, está concretamente organizando uma greve. Dentro
Todas estas formas que expus até aqui são formas de
teatro-ensaio e não de teatro-espetáculo. São experiências que
se sabe como começam mas não como terminam, porque o
If
dos seus termos fictícios, a experiência é concreta. espectador está livre de suas correntes, e finalmente atua e se
Aqui não se produz de nenhuma maneira o efeito catár- converte em · protagonista. Porque respondem a necessidades
tico. Estamos acostumados a peças em que os personagens reais do público popular, são sempre praticadas com êxito e
fazem a revolução no palco, e os espectadores se sentem revo- com alegria.
lucionários triunfadores, sentados nas suas poltronas, e assim Mas nada disso impede qu'! um público popular possa
purgam seu ímpeto revolucionário: para que fazer a revolução igualmente praticar formas mais "acabadas" de teatro. Na ex-
na realidade, se já a fizemos no teatro? Mas isto não acontece periência peruana foram utilizadas igualmente muitas outras
neste caso: o "ensaio" estimula a praticar o ato na realidade. formas desenvolvidas antes em outros países, principalmente
O teatro-debate e estas outras formas de teatro popular, em \ \ Argentina e Brasil, e que, também ali, tiveram grande eficácia.
vez de tirar algo do espectador, pelo contrário, infundem no es-
pectador o desejo de praticar na realidade o ato ensaiado no Algumas destas formas foram:
teatro. A prática destas formas teatrais cria uma espécie de
insatisfação que necessita complementar-se através da ação 1) Teatro-Jornal - Foi desenvolvido inicialmente pelo gru-
real. po Núcleo do Teatro de Arena de São Paulo, do qual fui di-
retor artístico desde 1956 até 1971, quando tive que abando-
QuARTA ETAPA - O Teatro como Discurso nar o Brasil por motivo de força maior. Consiste em diversas
técnicas simples que permitem a transformação de notícias de
Jorgem lshizawa dizia que o teatro da burguesia é o espe- jornal ou de qualquer outro material não-dramático em cenas
_) áculo acabado. A burguesia já sabe como é o mundo, o seu teatrais. Exemplos:
mundo, e pode portanto apresentar imagens desse mundo com-
pleto, terminado. A burguesia apresenta o espetáculo. O pro- a) leitura simples- a notícia é lida destacando-se do
letariado e as classes exploradas, ao contrário, não sabem contexto do jornal, da diagramação, que a toma falsa ou
ainda como será o seu mundo; conseqüentemente, o seu teatro tendenciosa - isolado do resto do jornal readquire sua
será o ensaio e não o espetáculo acabado. Isto tem muito de verdade objetiva;

152 153
b) leitura cruzada - duas notícias são lidas de forma 2) Teatro Invisível- Consiste na representação de uma cena
cruzada, uma lançando nova luz sobre a outra, e dando- em um ambiente que não seja o teatro, e de pessoas
-lhe uma nova dimensão; que não sejam espectadores. O lugar pode ser um
uma fila, uma rua, um mercado, um trem, etc. As pessoas que
c) leitura complementar - à notícia do jornal acres- assistem à cena serão as pessoas que af se encontrem aciden-
centam-se dados e informações geralmente omitidos pelos talmente. Durante todo o "espetáculo", essas pessoas não de-
jornais das classes dominantes; vem sequer desconfiar de que se trata de um espetáculo, pois
d) leitura com ritmo - a notícia é cantada em vez de se assim fosse, imediatamente se transformariam em "especta-
lida, o ritmo mais indicado para s'e transmi- dores".
tir o conteúdo que se deseja: samba, tango, canto gre-
goriano, bolero, de tal forma que o ritmo funcione como Um espetáculo de teatro invisível deve ser minuciosamen-
verdadeiro filtro crítico da notícia, revélando seu verda- te preparado (com texto ou simples roteiro), não apenas no
deiro conteúdo, oculto nas páginas dos jornais; que se refere à cena em si mesma e às relações entre os atores,
e) ação paralela - paralelamente à leitura da notícia, como também no que diz respeito à provável participação dos
os atores mimam ações físicas, mostrando em que con- "espectadores": todos os atores devem estar preparados para
texto o fato descrito ocorreu verdadeiramente; ouve-se a incorporar nas suas interpretações todas as interferências pos-
notícia e, ao mesmo tempo, vêem-se imagens que a com- síveis dos espectadores: estas possíveis interferência.s deverão
plementam; ser previstas na medida do possível, durante os ensaios, e for-
f) improvisação - a notícia é improvisada cenicamen- marão uma espécie de texto optativo.
te, explorando-se todas as suas variantes e possibilidades; O teatro invisível deve "explodir" em um determinado
g) histórico - a notícia é representada juntamente com local de grande afluência de pessoas. Todas as pessoas próxi-
outras cenas ou dados, que mostrem o mesmo fato mas devem ser envolvidas pela explosão, e os efeitos desta
em outros ·momentos históricos ou em outros países, ou muitas vezes perduram até depois de muito tempo de termi-
em outros sistemas sociais; nada a cena.
h) reforço - a notícia é lida, ou cantada, ou bailada, Um pequeno exemplo mostra o funcionamento, em linhas
com a ajuda de slides, jingles, canções ou material de gerais, do teatro invisível: num enorme hotel de Chaclacayo,
publicidade; onde estavam hospedadas as brigadas de alfabetizadores, além
i) concreção da abstração- concreta-se cenicamente o de mais 400 pessoas, os atores se reuniam no restaurante, e
que a notícia às vezes esconde em sua informação ·pura- se sentavam em mesas separadas. Os garçons começaram a
mente abstrata: mostra-se concretamente a tortura, 'a servir. O protagonista, em voz mais ou menos para atrair
fome, o desemprego, etc., mostrando-se imagens gráficas; a atenção dos demais, mas não em forma óbvia, informa ao
reais ou simbólicas; garçom que não pode continuar comendo a comida que esse
hotel habitualmente oferece porque, na sua· opinião, é muito
j) texto fora do contexto - uma notícia é ·representada ruim. O garçom não gosta da observação mas diz que ele pode-
fora do contexto em que sai publicada: por exemplo, um rá escolher o que quiser do menu, algo que mais lhe agrade.
ator representa o discurso sobre austeridade pronunciado
O protagonista escolhe uma comida chamada "Churrasco de
por um ministro da economia enquanto devora um enor- Pobre". O garçom adverte que custa 70 "soles", mas o ·prota-
me jantar; a verdade do discurso fica assim desmistifi- gonista, com a voz sempre razoavelmente alta, diz que não
cada: quer austeridade para o povo, mas não para si tem problema. Minutos depois, o garçom traz o churrasco, o
mesmo.
155
154
protagonista come rapidamente e se prepara para ir embora posso jogar fora o lixo do hotel. Quanto ganha· o lixeiro que
do restaurante, quando o garçom traz a conta. O trabalha pra vocês?"
faz cara de preocupado, diz aos seus vizinhos de mesa que. o O maitre, como é lógico, não quer dar nenhuma informa- .
churrasco estava excelente, e que sem dúvida era muito me- ção sobre salários, por isso um segundo ator, sentado em outra
lhor do que a comida que eles estavam comendo, mas que mesa, já está preparado para essa eventualidade previsível, e
era uma pena que agora teria que pagar a conta. explica que ele é amigo do lixeiro e que este ganha nada
- "Mas não se preocupe não, que eu vou pagar. Comi o mais do que sete soles por hora. Os atores fazem as contas e o
Churrasco de Pobre e vou pagar. Só que tem um problema: . protagonista exclama:
eu não tenho dinheiro nenhum ... '' - "Não é possível! Quer dizer que, se eu trabalhar como
- "E como é que vai pagar se não tem dinheiro?" - lixeiro, vou ter que trabalhar 1O horas pra poder comer este
perguntou indignado .o garçom. - O senhor sabia muito bem Churrasco de Pobre?! Dez horas pra pagar um churrasco
qual era o preço antes de pedir o churrasco. Vai ter que pa- que comi em 10 minutos??? Não pode ser! Vocês vão ter que
gar de qualquer maneira .. . " aumentar o salário do lixeiro ou diminuir o preço do chur-
:e claro que os vizinhos seguiam atentamente esse diálo- rasco! ·Mas, no meu caso, talvez eu possa fazer uma coisa mais
especializada, como por exemplo, posso cuidar dos jardins do
go; muito mais atentamente do que se soubessem que era uma
cena de teatro e se estivessem sentados numa platéia. O pro- hotel, que são tão bonitos, que estão tão bem cuidados· o
tagonista continuou: jardineiro é uma pessoa com muito talento, não resta dÓvi-
- "Não se preocupe não, meu amigo, eu vou pagar, da. . . Quanto ganha o jardineiro deste hotel? Eu vou traba-
como não? Mas, como eu não tenho dinheiro, vou pagar em lhar de jardineiro. Quantas horas vou ter que trabalhar nesse
força de trabalho .. . " · jardim pra .Poder pagar o meu Churrasco de Pobre?"
- "Em força do .quê"? - perguntou o garçom atônito. Outro ator, noutra mesa, explica sua amizade com o jar-
dineiro, que é oriundo do mesmo povoado que ele; por isso,
- "Em força de trabalho, 'nada mais nada menos. Di- sabe que o jardineiro ganha 10 soles por hora. E outra vez o
nheiro eu não tenho, mas posso alugar a minha força de tra- protagonista não se conforma:
balho. Quer dizer: eu posso trabalhar pra vocês durante tantas
horas quantas sejam necessárias pra pagar o meu Churrasco - "Como é .possível uma coisa dessas??? O homem que
de Pobre que, prá dizer a verdade, estava uma delícia, estava cuida desses jardins tão lindos, que passa os dias aí fora expos-
muito melhor do que essa porcaria que vocês servem a todo to ao vento, ao sol e à chuva, tem que trabalhar 7 horas se-
mundo ... " guidas para poder comer um churrasco em 10 minutos? Não
Nesta altura, alguns dos comensais intervêm, fazem co- pode ser!!! Explique como é que é isso, seu Maítre?"
mentários entre eles mesmo em suas mesas, discutem o preço O Maítre já está desesperado; vai e volta, dá ordens em
da comida, a qualidade · dos serviços . do hotel, etc., e o gar- voz alta aos demais garçons para distrair a atenção dos co-
çom chama o rnaítre para decidir .a questão. O protagonista, mensais, ri e fica sério; enquanto que todo o restaurante se
uma vez mais, explica o assunto - esse de alugar a força de transforma em uma assembléia. O protagonista termina por per-
trabalho, e acrescenta: guntar ao próprio garçom ql;lanto é que ele ganha para servir
- disso tem outro problema: eu estou disposto a à mesa-7 e se oferece para substituí-lo o tempo que seja ne-
alugar a minha força de trabalho, mas, na verdade, eu não sei cessário. Um outro ator, proveniente de um pequeno povoado
fazer nada, ou quase nada. . . Por isso, vocês vão ter que me interiorano, informa que no seu povoado ninguém, absoluta-
dar um emprego bem humilde, bem modesto ... Por exemplo: mente ninguém, ganha o salário de 70 soles por dia, e, por-

156 157

...
tanto, ninguém do seu povoado poderia comer e.sse ChurrasC? lhas e gastas. A energia teatral é completamente liberdade, e o
de Pobre. (A sinceridade desse ator, que além disso estava di- impacto que este teatro livre causa é muito mais violento e
zendo a verdade, comoveu todos que estavam perto de sua duradouro.
mesa.)
No Peru, fizeram-se espetáculos de teatro invisível em
Finalmente, concluindo a cena, um outro ator propõe: distintos lugares. Vale a pena narrar brevemente o sucedido
- "Companheiros, isso está dando a iml'ressão. de no Mercado del Carmen, no bairro de Comas, a uns 14 quilô-
nós estamos contra o garçom e contra o m(litre' e ISSO nao metros do centro de Lima. Duas atrizes protagonizavam uma
tem sentido, isso não é verdade. Eles são nossos, cena diante de um vendedor de verduras. Uma, que se fazia
trabalham como nós; e não têm culpa se os preços .sao altos. passar por analfabeta, insistia em que o vendedor estava rou-
Proponho fazer uma coleta: nós quatro, desta mesa, bando nos preços, aproveitando-se de que ela não sabia ler;
pedir que cada um contribua com o que pode, um s<;>l, a outra refazia as contas que estavam corrétas, e aconselhava
soles, cinco soles, com o que puderem. E com esse dinheLr?, a primeira a entrar para um dos cursos de ·alfabetização de
vamos pagar o churrasco. E sejam generosos, porque o di- ALFIN. Depois de muita discussão sobre qual era a melhor
nheiro que sobrar fica de gorjeta para o garçom, que b nosso idade para começar a estudar, da qual participaram todas as
companheiro e é um trabalhador." pessoas próximas, feirantes e compradores, depois de discutir
Ato contínuo, os que estão com ele na mesma mesa se como e com quem estudar, a primeira continuava insistindo
levantam e começam a coletar dinheiro para pagar a em que era demasiado velha para essas coisas. Foi aí que
Algumas pessoas dão um ou dois soles, outras comentam, rai- uma velhinha, dessas 'que já se apóiam em um.a bengalinha,
vosas: comentou indignada:
- "Ele disse que a ·comida que nós comemos aqui é uma - "Minha filha, isso não é verdade. Para aprender e para
porcaria, e agora quer que a gente o que fazer o amor, não há idade!"
ele comeu ... ? E essa porcaria, quem va.t comer? Eu? Nao,dou
um tostão, para que aprenda. Que vá lavar os pratos . . . :S c1 aro que. todos os que· presenciaram esta cena come-
çaram a rir da violência amorosa da velha dama, e as duas atri-
A arrecadação quase chegou aos 100 soles, e a discussão
zes não encontraram ambiente para continuar a cená.
continuou toda a noite.
:S importante insistir que, nesta fon:na de t.eatro
os atores não se podem revelar como tais: precisamente msto 3) [r eatro-F Em muitos países latino-america-
reside o caráter invistvel desta forma de teatro. E precisamente nos exi.ste uma verdâãeira epidemia de fotonovelas, que se
este caráter de invisibilidade fará com que o espectador atue utilizam do mais baixo que se possa imaginar em matéria de
livremente, totalmente, como se estives$e subliteratura, além· de servir sempre como veículo da ideolo-
uma situação gia das classes dominantes. O Teatro-Fotonovela objetiva a
real: afinal de contas, a situação é real! desmistificação da fotonovela e consiste em ler para os parti-
Deve-se insistir igualmente em que o teatro invisível não cipantes, em linhas gerais, o texto de uma fotonovela, pedin-
é o mesmo que o happening ou o guerrilla-theatre: fica do-lhes que representem a história que se vai contando. Os
bem claro que se trata de "teatro" e, portanto, surge participantes não devem saber aprioristicamente que se trata
mente o muro que separa atores de espectadores, e estes sao de fotonovela. Deve representar a história da maneira que
obviamente reduzidos à impotência: um 'eSP,ectador é sempr;__ lhes pareça mais correta. Quando terminem, compara-se a· his-
menos do que..uJ')1..../u»;neo teatrólnvisivel, os rituais teatrais tória tal como foi representada com a versão original da foto-
.....;_.::;.- - são abolidos: existe apenas o teatro, sem as suas formas ve- novela, e se discutem as diferenças.

158 159
Por exemplo, conto uma história de Corin Tellado, talvez A jovem esposa não deixa por menos: faz de conta que
o mais horrível autor deste gênero embrutecedor. B uma histó- está doente para obrigar o marido a ficar ao seu lado e para
ria bastante imbecill, que começa assim: que, através dessa artimanha, finalmente se apaixone por ela.
"Uma senhora está esperando que o seu marido retome Que ideologia! O mais putrefato happy-ending coroa esta his-
tória de amor.
à casa; está em companhia de uma outra senhora que a ajuda
nos trabalhos de casa." É evidente que essa história, sem os diálogos de Corin
Tellado, e contada por gente do povo, toma características
Na favela, os participantes representavam essas indica- completamente diferentes. Quando, no final da representação
ções da maneira como estavam habituados, segundo seus cos- os participantes são informados da origem da história que
tumes: uma mulher que está esperando o regresso do marido,
naturalmente estará preparando o jantar; se uma mulher a aju- bam. representa_r, sofrem um choque. Por quê? Bem, se os
poem a ler Corin Tellado sabendo de quem
da, naturalmente trata-se de uma vizinha que vem conversar e
bate-papo enquanto dá uma mãozinha; o marido volta .can- se trata, Imediatamente assumem o papel passivo de especta-
sado depois de um intenso dia de trabalho; a "casa" é uma dores. Mas se, ao contrário, eles mesmos têm que representar
choça de uma só habitação, etc., etc. Em Corin Tellado, é tudo história cuja origem ignoram e, depois, lêem a versão de
ao contrário: a mulher está com um vestido de noite e cola- Conn Tellado, já agora terão uma atitude crítica, comparativa,
res de pérolas, a mulher que a ajuda é uma empregada negra olhando a casa da jovem senhora e comparando-a com a sua
que não diz mais que "sim, senhora", "pois não, senhora", própria choça, lendo as atitudes do marido e comparando-as
"o jantar está servido, senhora"; \'aí vem o senlior, senhora"; com as suas próprias atitudes, etc. Em resumo, estarão já
a casa é um palácio cheio de mármores; o marido regressa de- preparados para detectar o veneno que se infiltra através des-
pois de uma jornada de trabalho em "sua" fábrica, onde havia sas fotos, como também através de historietas cômicas, tele-
discutido com os operários porque estes, "não compreenden- novelas e formas de dominação cultural e ideológica.
do a crise em que vivemos todos, queriam aumento de salá- Tive uma grande alegria qúando, meses depois de reali-
rios ... " e por aí .afora. a experiência com os alfabetizadores, de regresso a Lima,
Esta história, particularmente, era uma porcaria, mas ser- fw informado de que em várias favelas muitas pessoas estavam
via como excelente ·exemplo de penetração ideológica. A jovem utilizando a mesma técnica para analisar as telenovelas fonte
senhora recebia uma carta de uma desconhecida, ia visitá-la e inesgotável de veneno contra o povo. Representavam mes-
descobria que se tratava de uma ex-amante de seu marido; a mos as histórias da TV e depois comparavam as duas histórias
amante lhe contava que o marido a havia abandonado porque os dois elencos de personagens, os dois conteúdos. Esta é
se queria casar com a filha do dono da fábrica, ou seja, a jo- forma poderosa de desmistificação dos meios massivos de co-
vem senhora. Num rompante, a "outra" exclamava: municação.
- "Sim, ele me traiu casando-se com você. Mas eu o
perdôo porque, afinal de contas, ele sempre foi muito ambi- 4) Quebra da Repressão - As classes dominantes dominam
cioso e sabia muito bem que comigo não podia subir demasia- as dominadas através da repressão; os velhos dominam os jo-
do alto. Mas com você, sim, pode." vens, através da repressão; certas raças a certas outras, os
Quer dizer: a ex-amante perdoava o rapaz porque ele homens às mulheres, sempre através da repressão. Evidente-
possuía no mais alto grau a ânsia capitalista de tudo possuir! mente nunca através do entendimento cordial, da honesta troca
A vontade de ser proprietário de fábricas, de subir na vida a de idéias, da crítica e da autocrítica. Não. As classes dominan-
qualquer preço, está apresentada como sendo algo tão nobre tes, os velhos, as raças "superiores", o sexo masculino, pos-
que até se perdoam algumas traições pelo caminho. suem os seus quadros de valores e, pela força, os impõem às

160 161
classes dominadas, aos jovens, às raças que eles consideram às vezes tem de resistir e não resiste, ajuda a medir a ver-
inferiores, e às mulheres. dadeira força do inimigo. Igualmente permite ao protagonista
O capitalista não pergunta ao operário se ele está de ter a oportunidade de tentar outra vez, e de realizar, na ficção
acordo com que o capital seja de um e o trabalho de outro: o que não pôde realizar na realidade passada,
simplesmente põe um policial armado à . porta da. fábrica e para, talvez, realizar na realidade futura. Já vimos que estes !
acabou o assunto. Fica decretada a propnedade pnvada. processos não . são catárticos: o fato de haver ensaiado resistir
A raça, classe, sexo ou idade dominada sofrem- a mais à opressão preparará o protagonista para .resistir efetiv.a m
. ente à
constante diária e onipresente repressão. A ideologia se torna repressão futura, quando a mesma volte · a se apresentar.
concreta pessoa do dominado. O proletariado é Por outro lado, é necessário fazer com que se entenda
através da dominação que se exerce sobre todos os proletários. sempre o caráter genérico do caso particular apresentado. Neste
A sociologia e a política se tomam psicologia. Não a de experiê?cia teatral, é necessário sempre partir do par-
opressão do sexo masculino "em geral" contra o ticular, mas é Igualmente necessário chegar sempre ao geral.
"em geral". Existe a opressão concreta de homens ( mdividuos) Durante a própria cena ou depois, durante o debate deve:se
contra mulheres (indivíduos). realizar a ascese desde o fenômeno até a lei. Desde 'os fenô-
A técnica da quebra de repressão consiste em pedir a um menos que são apresentados na trama até as leis sociais que
participante que se recorde de algum momento em que se sen- regem esses fenômeno.s. Os espectadores-participantes devem
tiu particularmente reprimido, e em que aceitou essa repres- sair da experiência enriquecidos com o conhecimento dessas
são, passando a agir ·de uma maneira contrária aos seus interes- leis, obtido através da análise dos fenômenos.
ses ou aos seus desejos. Esse momento tem que ter um pro-
significado pessoal; eu, proletário, sou 5) Teatro-Mito- Trata-se simplesmente de descobrir o óbvio
proletários, estamos oprimidos! portanto, o é opn- atrás do mito: contar uma história (um mito conhecido) de
mido! Deve-se partir do particular para o geral e nao VICe- uma forma lógica, revelando as verdades, evidenciando as ver-
-versa· deve-se escolher alguma coisa que aconteceu a alguém dades escondidas.
mas que, ao I?esmo tempo, seja típico ?o que
Numa localidade chamada Motupe existia um pequeno
acontece com todas as demais pessoas nas mesmas Circuns-
morro, com um caminho muito estreito através das árvores
tâncias. que o e denso. matagal que o cobria até o topo.
A pessoa que conta a história escolhe entre -os demais No meto do camtnho havta uma cruz: até aí se podia su-
participantes todos os que intervirão na reconstrução da cena. bir, porém ultrapassar a cruz era perigoso e mesmo fatal. As
Em seguida, depois de receber as insf:ruções dadas pel? pro- poucas pessoas que o haviam tentado jamais retornaram. Exis-
tagonista (o que conta o fato), e obedientes a essas mstru- na região o mito de certos fantasmas sanguinários que ha-
ções, os participantes e o protagonista representam a cena tal bttavam o topo da montanha. Mas também se conta a histó-
como ocorreu na realidade, tentando recriar a mesma cena, ria de um jovem corajoso que subiu até o cimo, armado, e ali
as mesmas circunstâncias e as mesmas emoções originais. encontrou os "fantasmas", que nada mais eram do que ianques,
Uma vez terminada a "reprodução" dos fatos aconteci- proprietários de uma mina de ouro situada precisamente no
dos, pede-se que o protagonista repita a cena, mas desta vez topo daquele cerro.
sem aceitar a repressão, lutando para impor sua vontade, suas Conta-se também a hist6ria da lagoa de Cheken: antiga-
idéias e seus desejos. Os demais participantes são instados a mente (assim diz a lenda) aí não havia água e todos os cam-
tentar manter a mesma repressão da primeira vez. O choque poneses morriam de sede e tinham que viajar quilômetros para
que se produz ajuda a medir a possibilidade que uma pessoa conseguir um copo de água. Hoje existe uma lagoa que, antes

162 163
da Reforma Agrária, foi propriedade de um latifundista do desconfie em meu coração da sua verdadeira identidade e dos
lugar. Como surgiu essa lagoa, e como em pro- lugares aonde me leva ... "
priedade de um só homem? A lefl:da o explica: quando Dito e feito: feliz e contente (e também, é claro, com
ainda não existia água, em um dta de mtenso cal.or, quando algumas lagrimazinhas) foi o bondoso pai contar tudo ao ho-
todo 0 povo chorava pedindo aos céus que pelo mem de negro, enquanto a filha maior, antes de ir embora, e
menos um mísero riachuelo,.- e os céus lmJ?tedosos nao res- para adiantar o trabalho, escrevia o preço do litro dágua em
pondiam nem com .um - um dia esse, ou uns cartõezinhos muito bonitinhos. O senhor de negro desnu-
melhor, à meia-n01te desse d1a, surgtu no honzonte um se- dou a jovem, pois que nada queria levar dessa casa mais do
nhor com um comprido poncho negro, montado em cavalo que a jovem em si, e montou com ela, em seu cavalo, que
negro e assim falou com o latifundista (que Il:essa época era partiu a galope em direção a um vale. Ouviu-se então uma
ainda um pobre camponês, como todos os demats): enorme explosão, e apareceram chamas e fumaça no lugar
- "Eu te darei uma lagoa, roas tu me tens que dar o por onde iam cavalo e cavaleiro, que desapareceram no mes-
que de mais precioso possuas!" mo instante, juntamente com a jovem desnudada! Produziu-se
no solo uni buracão enorme e, enquanto a fumaça se dissipava,
O pobre homem, muito aflito, gemeu:
começou aí a brotar uma fonte que formou a lagoa de Cbeken,
- "Eu nada tenho de meu, sou tão pobre e miserável. a de água mais fresca de todo o Peru ...
Aqui sofremos muito pela falta vivemos todos. em Este mito esconde por certo uma verdade: o latifundista
seráveis choças, padecemos a fome mats cruel. De prec10so nao se apropriou daquilo que não lhe pertencia. Se antes os nobres
temos nada, nem as nossas vidas, que tão pouco valem. E eu, atribuíam a Deus (nada menos!) a outorga de suas proprie-
particularmente, de precioso tenho minhas três filhas, e nada dades e direitos, ainda hoje se usam explicações não menos má-
ma1s. ... "
gicas. Neste caso, a propriedade da lagoa era explicada pela
- "E das três a mais bela é a maior! - assegurou o es- perda da filha mais velha, que era o que de mais precioso pos-
tranho personagem vestido de negro, montado em negro cavalo. suía o latifundista: houve, portanto, uma transação! E para
E te darei uma lagoa cheia da água mais fresca de todo o que todos se lembrassem disso muito bem, dizia a lenda que,
Peru mas em troca tu me darás tua filha, a maiorzínha, para em noite de lua cheia, podiam-se ouvir os cânticos da jovem
que eu' me case com eI a ... " .
desnuda no fundo da lagoa, chorando de saudade de seu pai e
O futuro latifundiário pensou muito ·e muito chorou, e de suas irmãs, penteando seus longos cabelos com um pente de
perguntou à sua aterrorizada filha mais velha que deviam fa- ouro. . . E na · verdade, para aquele latifundiário, aquela la-
zer, se aceitar ou não tão insólita proposta de casamento. A goa era de ouro ...
filha obediente assim se expressou:
- "Se é para a salvação de todos e para que se termine 6) Teatro-Julgamento - Um dos participantes conta uma
a sede e a fome de todos os camponeses, se é para que tenhas história e em seguida os atores improvisam. Depois se decom-
a lagoa com a água mais fresca de todo o Peru, se é para que põe cada personagem em todos os seus papéis sociais, e pede-se
essa lagoa te pertença a ti e só a ti, e que faça a sua pros- que os participantes escolham um objeto físico, cenográfico,
peridade pessoal e a tua riqueza, pois .que poderás vender es:a para simbolizar cada papel. Por exemplo: um policial matou
água tão maravilhosa a todos os demais camponeses, que serao um ladrão de galinhas. E o policial pode ser assim
teus fregueses, pois para eles será muito mais barato comprar
a água aqui tão perto sem ter que viajar para tão longe, se é a) é um operário, porque aluga sua força de trabalho;
para que tudo isso aconteça, vai dizer ao senhor de negro símbolo: um macacão;
poncho, montado em negro cavalo, que vou com ele, embora
165
164

'
b) é burguês, porque defende a propriedade privada e 7) Rituais e - As relações de produção (infra-
a valoriza mais do que a própria vida humana; sím- -estrutura) determmam a cultura de uma sociedade (superes-
bolo: uma gravata, um chapéu, etc. trutura). As vezes, modifica-se a infra-estrutura, mas a super-
c) é repressor, porque é policial; símbolo: um revólver. permanece, por algum tempo, a mesma. No Brasil
os latifundiários não permitiam que os camponeses
para eles cara a cara, ollio no olho, porque isso seria consi-
E assim sucessivamente até que os participantes tenham derado falta de respeito. Os camponeses se haviam acostuma-
analisado todos os seus papéis possíveis: pai de família (sím- do a falar com os senhores da terra com os olhos pregados no
bolo: a carteira de dinheiro? ; ou uma cadeira maior do que chão: "Sim senhor, sim senhor, sim senhor!" Quando ( evi-
as outras?) , companheiro de uma sociedade de amigos de bair- dentemente antes de 1964) o governo decretou a Reforma
ro, etc. g importante que os símbolos sejam escolhidos pelos os funcionários iam ao campo comu-
participantes presentes e que não venham "de cima". Para mcar aos camponeses a nova le1, segundo a qual se poderiam
determinada comunidade, a carteira de dinheiro pode ser o converter em proprietários da terra que cultivavam, os cam-
símbolo de um pai de família, por ser a pessoa que controla poneses, olhando o chão, murmuravam: "Sim companheiro sim
as finanças da casa e que, . através disso, controla a família. companheiro, sim companheiro ... " A cultura feudal to-
Para outra comunidade, pode este símbolo não simbolizar nada, taAlmente suas vidas. . . As do campo-
isto é, pode ser que não seja símbolo. nes com o latifundiáno e com o companheiro do Instituto de
Reforma. Agrária eram completamente diferentes, :'porém o ri-
Depois de decomposto o personagem, ou os personagens tual co.ntmuava o mesmo. A razão talvez resida no fato de que,
(é conveniente que esta operação se. faça apenas com o perso- nos do1s casos, o camponês era o espectador passivo: no primei-
nagem ou com os personagens centrais, para maior simplici- ro caso lhe tiravam a terra, no segundo lhe outorgavam. Cer-
dade e eficácia), tenta-se contar outra vez a mesma história, tamente não aconteceu o mesmo em Cuba: aí os camponeses
mas agqra retirando-se alguns símbolos a cada personagem, c fnram protagonistas da reforma agrária!
conseqüentemente alguns papéis sociais.
· Esta particular técnica de teatro popular (Rituais e Más-
Seria a história exatamente a mesma se:
caras) consiste precisamente em revelar as superestruturas os
rituais que coisificam t?das as relações humanas, e as
1 - o policial não tivessCf a gravata (ou chapéu)?;
de comportamento soctal que esses rituais impõem sobre cada
2 - se o ladrão tivesse uma gravata (ou chapéu)?; pessoa, segundo os papéis que ela desempenha na sociedade
3 - se o ladrão tivesse um revólver?; e os rituais que deve representar.
4 - se o policial e o ladrão tivessem a.mbos o símbo-
lo de uma sociedade de amigos do bairro? Um exemplo muito simples: um homem vai ao confessor
confessar seus pecados. Como o fará? Claro que se âjoelha,
seus pecados, ouve a penitência, faz o sinal da cruz
Pede-se aos participantes que_façam combinações, propos-
e vai embora. Mas todos os homens se confessarão sempre da
tas que devem depois ser ensaiadas pelos atores e criticadas
mesma maneira diante de todos os padres? Quem é o homem
pot todos os presentes. Assim se poderá perceber, graficamen· e quem é o padre? Isto importa muito.
te, que as ações humanas não são fruto exclusivo nem primor-
dial da psicologia individual: quase sempre, através do indi- Neste caso são necessários atores versáteis para represen-
víduo, fala a sua classe! tar 4 vezes a mesma cena da confissão:
.._

166 167
1 - o padre e o fiel são latifundiários; trágica - isto é, de algo capaz de transformar a sociedade.
2 - o padre é latifundiário e o fiel é camponês; Produz-se a catarse do ímpeto revolucionário! A ação dramáti-
3 - o padre é camponês e o fiel é latifundiário; ca substitui a ação real.
4 - o padre e o fiel são camponeses. A poética de Brecht é a Poética da Conscientização: o}
mundo se revela transformável e a transformação começa no
teatro mesmo, pois o espectador já não delega poderes ao per-
O ritual é aqui sempre o mesmo, porém as máscaras so- sonagem para que pense em seu lugar, embora continue dele I
ciais são diferentes e farão com que as quatro cenas sejam poderes para que atue em seu lugar. A experiênci ]
igualmente diferentes. e reveladora ao nível da consciência, mas não globalmente ao
Esta técnica é extraordinariamente rica e possui inúmeras nível da ação. A ação dramática esclarece a ação real. O espe-
variantes: o mesmo ritual mudando de máscaras; o mesmo ri- táculo é uma preparação para a ação.
tual feito por pessoas de uma classe social e depois de outra; A poética do oprimido é essencialmente ·uma Poética da
intercâmbio de máscaras dentro do mesmo ritual, etc., etc., etc. Liberação: o espectador já nãd delega poderes aos persona-
gens nem para que penseni nem para que atuem em seu lugar.
O espectador se libera.: pensa e age por si mesmo! Teatro é
I ação!
CONCLUSÃO: "ESPECT ADOR", QUE PALAVRA FEIA!
Pode ser que o teatro não seja revolucionário em si mes-
mo, mas não tenham dúvidas: é um ensaio da revolução!
Sim, esta é, sem dúvida, a conclusão: Espectador, que pa-
lavra feia! O espectador, ser passivo, é menos que um homem
e é necessário re-humanizá-lo, restituir-lhe sua capacidade de Buenos Aires, dezembro de 1973
ação em toda sua plenitude. Ele deve ser também o
um ator, em igualdade de condições com os atores, que devem
por sua vez ser também espectadores. Todas estas experiências
de teatro popular perseguem o mesmo objetivo:_Jl liber:tação_do
espectador, sobre quem o teatro se habituou a impor visões
acabadas do mundo. E considerando · que quem faz teatro, em
geral, são pessoas direta ou indiretamente ligadas às classes do-
minantes, é lógico que essas imagens acabadas sejam as ima-
gens da classe dominante. O espectador do teatro popular (o
povo) não pode continuar sendo vítima passiva dessas imagens.

Como vimos no primeiro ensaio deste livro, a poética de


Aristóteles é a Poética da Opressão: o mundo é dado como
conhecido, perfeito ou a caminho da perfeição, e todos os seus
valores são impostos aos espectadores. Estes passivamente de-
legam poderes aos personagens para que atuem e pensem em
seu lugar. Ao fazê-lo, os espectadores se purificam de sua falha

168 169

Você também pode gostar