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CAPÍTULO 5

História dos conceitos e história social

De acordo com uma conhecida frase de Epiteto, não são os fatos que
abalam os homens, mas sim o que se escreve sobre eles. 1 A despeito do
ponto de vista estóico segundo o qual não devemos nos deixar irritar por
palavras, a oposição entre pragmata e dogmata é sem dúvida mais com-
plexa do que faz supor a sentença moral de Epiteto.
Ela nos faz lembrar a força peculiar às palavras, sem as quais o fazer e
o sofrer humanos não se experimentam nem tampouco se transmitem.
A frase de Epiteto faz parte de antiga tradição que se ocupa há muito
tempo da relação entre as palavras e as coisas, entre espírito e vida, entre
consciência e existência, linguagem e mundo. Mesmo aquele que admite
a relação entre a história dos conceitos e a história social não pode se
esquivar do peso da influência dessa tradição. Ela chega rapidamente ao
campo das premissas teóricas, que aqui devem ser focalizadas a partir da
prática de pesquisa. 2
Em um primeiro momento, a relação entre a história dos conceitos e
a história social parece frouxa e, no mínimo, difícil. A primeira dessas
disciplinas se ocupa, predominantemente, dos textos e vocábulos, ao pas-
so que a outra se serve dos textos apenas para deduzir, a partir deles, a
existência de fatos e dinâmicas que não estão presentes nos próprios tex-
tos. Constituem objeto da história social a investigação das formações
das sociedades ou as estruturas constitucionais, assim como as relações
entre grupos, camadas e classes; ela investiga as circunstâncias nas quais
ocorreram determinados eventos, focalizando as estruturas históricas de
médio e longo prazos, bem como suas alterações. A história social pode
ainda investigar teoremas econômicos, por força dos quais se pode ques-
tionar os eventos singulares e os desenvolvimentos políticos dos fatos. Os
textos, assim como as circunstâncias de origem, a eles associadas, têm
aqui apenas um caráter de referência. Os métodos da história dos con-
ceitos, por sua vez, provêm da história da terminologia filosófica, da gra-
mática e filologia históricas, da semasiologia e da onomasiologia. Seus
resultados podem ser comprovados pela retomada de exegese textual, re-
montando sempre de volta a ela.
Essa primeira confrontação entre a história dos conceitos e a história
Social não deixa de ser, certamente, algo superficial. As abordagens me-
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todológicas mostram que a relação da história dos conceitos e da história terminante, portanto, para o nascimento da sociologia e das questões
social é mais complexa do que a simples possibilidade de redução de problematizadas pela história social.
uma disciplina à outra. Isso pode ser comprovado pela própria nature- Em suas célebres memórias de setembro de 1807 Hardenberg esboçou
za do corpus das duas disciplinas. Sem conceitos comuns não pode haver as diretrizes para a reorganização do Estado prussiano. Segundo as ex-
uma sociedade e, sobretudo, não pode haver unidade de ação política. periências da Revolução Francesa, a Prússia deveria ser reestruturada,
Por outro lado, os conceitos fundamentam-se em sistemas político- tanto do ponto de vista econômico quanto social. Diz Hardenberg: "Aci-
sociais que são, de longe, mais complexos do que faz supor sua com- ma de tudo deve existir uma hierarquia racional que não favoreça uma
preensão como comunidades lingüísticas organizadas sob determinados ordem em prejuízo das outras, mas sim que indique aos cidadãos de to-
conceitos-chave. das as ordens o seu lugar, determinado conforme a hierarquia de classes
Uma "sociedade" e seus "conceitos" encontram-se em uma relação de e de acordo com as verdadeiras necessidades do Estado, de modo algum
polarização que caracteriza também as disciplinas históricas a eles as- considerando suas necessidades como supérfluas."4
sociados. Para entender os princípios programáticos da futura política refor-
É preciso tentar esclarecer a relação das duas disciplinas em três mista de Hardenberg, é necessária uma exegese baseada na crítica de fon-
níveis: tes que decifre, particularmente, os conceitos neles contidos. Não discu-
1. Até que ponto a história dos conceitos segue os métodos histórico- tiremos aqui o ponto de vista, corrente há quase meio século, segundo o
críticos clássicos, contribuindo, com elevada precisão, para tornar palpá- qual a tradicional distinção entre necessidades "verdadeiras" e neces-
veis os temas da história social? Neste caso a análise dos conceitos cola- sidades "supérfluas" foi transferida da ordem estamental para o Estado.
bora com a história social fornecendo-lhe subsídios. O que chama a atenção é o fato de Hardenberg opor à estratificação ver-
2. Até que ponto a história dos conceitos constitui uma disciplina au- tical de ordens ou estamentos uma estrutura horizontal baseada na hie-
tônoma, com métodos próprios, cujo conteúdo e alcance estão defini- rarquia de classes. Nesse caso, a sociedade estamental é qualificada pejo-
dos paralelamente à história social, mas podem eventualmente competir rativamente, pois implica o favorecimento de um estamento perante
com ela pelo mesmo espaço? outro, ao passo que todos os membros de um estamento deveriam ser
3· Até que ponto a história social pode ser praticada sem atender a considerados cidadãos do Estado e, portanto, iguais. Na formulação de
exigência textual teórica peculiar à história dos conceitos? Hardenberg, os cidadãos do Estado permanecem membros do estamen-
Delimitaremos as reflexões seguintes entre dois pressupostos: não se to; no entanto, suas funções não serão mais definidas a partir desses mes-
tratará aqui da história da língua, nem mesmo como parte da história mos estamentos, mas sim "conforme uma hierarquia de classes", daí re-
social, mas sim apenas da terminologia política e social considerada re- sultando o surgimento de uma hierarquia racional. Do ponto de vista
levante para o campo da experiência da história social. Além disso, con- puramente lingüístico, uma oração assim formulada e recheada de ex-
sideraremos preferencialmente conceitos cuja capacidade semântica se pressões de caráter político e social causa não pouca dificuldade de com-
estenda para além daquela peculiar às "meras" palavras utilizadas comu- preensão, ainda que o sentido político decorra justamente da ambigüi-
mente no campo político e social.J dade semântica. No lugar de uma sociedade estamental tradicional deve
en~rar uma sociedade de cidadãos do Estado (formalmente igualitária)
I. Métodos da história dos conceitos e da história social CUJa filiação a classes (a definir econômica e socialmente) possibilite uma
nova hierarquia (de Estado).
A fim de comprovar que a história social não pode prescindir do auxílio Está claro que o sentido exato pode ser depreendido só a partir do
que lhe é prestado pelas implicações histórico-críticas da história dos contexto do diário [Memorandum] de Hardenberg, mas dever ser igual-
conceitos, daremos um exemplo. Ele provém da época da Revolução mente deduzido da situação do autor e dos destinatários. Além disso, é
Francesa e dos inícios da Revolução Industrial, de um âmbito que é de- preciso que se considere a situação política e social da Prússia naquela
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época, como também se deve entender o uso da língua pelo autor, por administrativo do que por critérios políticos ou de origem. Nesse con-
seus contemporâneos e pela geração que o precede, com os quais ele vi- texto, há de se considerar a tradição fisiocrata dentro da qual os antigos
veu em comunidade lingüística. Todas essas questões pertencem ao mé- estamentos foram originalmente definidos de acordo com critérios fun-
todo histórico-crítico tradicional, especialmente ao método da filologia cionais do ponto de vista econômico, concepção que Hardenberg com-
histórica, ainda que surjam questões que não possam ser respondidas partilhou, de acordo com os princípios do liberalismo econômico.
apenas com o auxílio dessa metodologia. Isso diz respeito principalmen- O uso do termo classe mostra que é colocado em jogo um modelo
te à estrutura social da Prússia de então, que não pode ser compreendi- social que sinaliza em direção ao futuro, ao passo que o conceito de es-
da de maneira satisfatória sem que se proceda a um questionamento de tamento está associado a uma tradição secular e a estruturas que o Có-
caráter econômico, político ou sociológico. digo Civil prussiano tinha acabado de legitimar mais uma vez, mas cujas
Nossa investigação se limita aos conceitos empregados especificamen- ambigüidades já prenunciavam fissuras na hierarquia dos Estados, ao
te naquela oração, mas nos proporciona um auxílio especialmente eficaz mesmo tempo em que prenunciavam a necessidade de reformas.
para que possamos compreender como propor e responder questões per- Portanto, a investigação do campo semântico de cada um dos con-
tinentes à história social. Se partirmos do sentido da oração em direção ceitos principais revela um ponto vista polêmico orientado para o pre-
à constelação histórica dos conceitos ali empregados, como "estamento" sente, assim como um componente de planejamento futuro, ao lado de
ou "ordem" (Stand), "classe" (Klasse) ou "cidadão", rapidamente perce- determinados elementos de longa duração da constituição social e origi-
beremos quantas diferentes camadas da "contabilidade social" de então nários do passado. O sentido da frase de Hardenberg só é de fato extraí-
encontram-se ali compreendidas. do a partir da organização de todos esses elementos. Na multiplicidade
Quando Hardenberg fala de cidadãos do Estado, ele usa um termo cronológica do aspecto semântico reside, portanto, a força expressiva da
técnico que tinha acabado de ser cunhado e que ainda não tinha sido história.
usado pelo Código Civil de Frederico II, o Allgemeines Landrecht, que Na exegese do texto, o interesse especial pelo emprego de conceitos
também polemizava contra a velha sociedade estamental. Trata-se, além político-sociais e a análise de suas significações ganham, portanto, uma
do mais, de um conceito engajado que se dirige contra a desigualdade importância de caráter social e histórico. Os momentos de duração, al-
de ordens, sem que existisse naquela época um direito civil que conferis- teração e futuridade contidos em uma situação política concreta são
se direitos políticos a um cidadão prussiano. A expressão era atual e com apreendidos por sua realização no nívellingüístico. Com isso, ainda fa-
apelo ao futuro, aludindo a um modelo constitucional que, a partir da- lando de modo geral, as situações sociais e respectivas alterações já são
quele momento, estava por se realizar. O conceito de estamento, na pas- problematizadas no próprio instante dessa realização lingüística.
sagem do século XVIII para o XIX, continha intermináveis nuances de Torna-se, portanto, igualmente relevante, tanto do ponto de vista da
significado, de natureza política, legal, econômica e social, de modo que história dos conceitos quanto da história social, saber a partir de quan-
não se podia deduzir desse termo nenhuma significação unívoca. Quan- do os conceitos passam a poder ser empregados de forma tão rigorosa
do Hardenberg pensou na conjunção entre estamento e privilégio, esta- c~mo indicadores de transformações políticas e sociais de profundidade
va examinando de forma crítica o tradicional direito de soberania das htstórica, como no presente exemplo. Nos países de língua alemã, pode-
camadas superiores, ao passo que o conceito antônimo, nesse contexto, se verificar desde aproximadamente 1770 a ocorrência freqüente de pro-
era o conceito de classe. cessos de ressignificação de termos, assim como a criação de neologis-
Da mesma forma, também o conceito "classe" possuía, naquele mo- mos que, com o uso freqüente, acabaram por transformar o campo de
mento, numerosos significados, que eventualmente se confundiam corn experiência política e social, definindo novos horizontes de expectativas.
o conceito de estamento ou ordem. Ainda assim, pode-se dizer que, para !em questionar a prioridade "pragmática" ou "conceituai" no processo
o uso alemão, especialmente para o uso prussiano da língua da burocra- as mudanças, o resultado permanece suficientemente elucidativo. A luta
cia, uma classe era antes definida por critérios econômicos e de direito Pelos conceitos "adequados" ganha relevância social e política.
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HISTÓRIA DOS CONCEITOS E HISTÓRIA SOCIAL
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de agrupamento e de dinâmica para ordenar e mobilizar as mas-


Hardenberg também valoriza as distin - . . estruturalmente desarticuladas. O leque semântico do emprego de
das normas lingüísticas introd "d çoes conceituais. Insiste no uso
uzr as nos neg' · .d. expressões vai - como ainda hoje é o caso - desde o clichê até o
es e a Revolução F ocros coti ranos da pol't"
d d rancesa. Desse modo 1 . . 1 rca
onc:eH:o definido academicamente. Basta lembrar termos como "conser-
terra da aristocracia como latr"f d" , . , e e se drnge aos senhores de ,
un ranos [ G tb · ] ,
... ~·--r•~"", "liberalismo" ou "socialismo".
·
nr-se (corretam ente) aos u esttzer e não receia reDe
representantes d d . - , Desde que a sociedade atingiu o desenvolvimento industrial, a semân-
putados dos estamentos. as or ens regronais como de-
tica política dos conceitos envolvidos no processo fornece uma chave de
Marwitz , seu 0 posrtor,
· mdrgnou-se
. . dize d . " . ,Çompreensão sem a qual os fenômenos do passado não poderiam ser
nomes, terminaremos por conf d" n o. Assrm confundidos os
C . . un rr também . entendidos hoje. É só pensar na mudança de significado e de função do
a onstitmção de Brandenbu , E b os concertos, enterrando
M · rgo. m ora cor t conceito de "revolução", que na origem apresentava uma fórmula mode-
arwrtz conscientemente der·xo d re o em sua conclusão lar do possível retorno dos acontecimentos. Entretanto, o sentido do ter-
f d u e notar qu H d b '
ato e novos conceitos in d e ar en erg servia-se de
- d , auguran o com isso 1 mo foi reformulado, passando a indicar um conceito teleológico de ca-
çao a nova estrutura social 1 t uma uta pela designa- ráter histórico-filosófico, a par de uma segunda e nova significação como
, u a que se estend
correspondência trocada entre o . e nos anos seguintes na conceito de ação política, tornando-se, segundo nosso ponto de vista, o
d, ·d s antrgos estam t b
uvr a, Marwitz reconheceu d c . en os e a urocracia. Sem indicador de uma alteração estrutural. 6 Neste caso, a história dos con-
t 1 1 e torma precrsa q
u o egal que tratava de defender de . ue. a manutenção do tí-
ceitos torna-se parte integrante da história social.
estamental. Dessa forma ele b . pendra da desrgnação da hierarquia A isso se segue uma exigência metodológica mínima: a obrigação de
, orcotou uma · - d
tamento ao chanceler por·s I . h mrssao os seus pares de es- compreender os conflitos sociais e políticos do passado por meio das de-
. , e es tm am se · d
Emwohner] da comarca de B d b regrstra o como "habitantes" limitações conceituais e da interpretação dos usos da linguagem feitos
[. ran en urgo t
nam usar enquanto se falasse d " , ermo que certamente pode-
f 1 os aspectos e A . pelos contemporâneos de então.
se a asse em nossos direitos entã t conor:niCos; mas, assim que Desse modo, o esclarecimento conceituai dos termos "estamento" ou
destruiria o obJ"etivo da , ~o_ ermo co-habrtante [Miteinwohner] "ordem" (Stand}, "classe" (Klasse}, "proprietário" (Eigentümer}, "aspecto
d nossa mrssao" s Com .
ar o passo que seus pares J·ust . rsso, Marwitz recusa-se a económico" (vom Okonomischen}, "habitante" (Einwohner}, "latifundiá-
d· , amente por -
rspostos a dar: eles procurava razoes económicas, estavam rio" ( Gutbesitzer1 e "cidadão do Estado" (Staatsbürger} é pressuposto para
1' · m converter se d · ·
Jtrcos em vantagens económicas. us rrertos e privilégios po- poder interpretar o conflito entre o grupo de reformadores burocráticos
e os Junkers prussianos. Exatamente o fato de os pactários encontra-
A ·batalha
· semântica para defirmr, . manter ou · .
e sooars em virtude das defi . - , rmpor posrções políticas rem-se sobrepostos uns aos outros, do ponto de vista histórico-pessoal e
, mrçoes esta prese t d
as epocas de crise registradas e D n e, sem úvida, em todas sociográfico, torna ainda mais necessário esclarecer semanticamente as
cesa, essa batalha se intensr"fi m antes escritas. Desde a Revolução Fran- delimitações políticas e sociais no interior dessa camada, a fim de tornar
- rcou e sua estrut .
tos nao servem mais para apreende f ura se modrficou: os concei- palpáveis as intenções ou interesses ocultos por esse mesmo processo.
a r os atas de t 1 1 Portanto, a história dos conceitos é, em primeiro lugar, um método
pontam para o futuro Prr·v·l, . 1 a ou ta maneira eles
d · 1 egws po ítico · d ' especializado da crítica de fontes que atenta para o emprego de termos
os foram formulados prirn . 1. s am a por serem conquista-
d erro na mguage . relevantes do ponto de vista social e político e que analisa com particular
essem ser conquistado, . m, JUStamente para que pu-
s e para que fosse p , I d empenho expressões fundamentais de conteúdo social ou político. É evi-
esse procedimento dirn· . ossrve enominá-los Com
' mum o conteúdo e ' · · dente que uma análise histórica dos respectivos conceitos deve remeter
cada de muitos conceitos mpmco presente no signifi-
. A . , enquanto aument . não só à história da língua, mas também a dados da história social, pois
exrgencra de realização futura "d ava proporciOnalmente a
t 'd , . e o campo d conti a neles
eu o emprnco . . A co-mo
· "dAenoa. entre o con- toda semântica se relaciona a conteúdos que ultrapassam a dimensão lin-

__________........
· e expecta ti v d · · , güística. É a partir daí que se explica a posição marginal e precária da
cur-se aqui a criação dos I " . a rmmma cada vez mais. In-
1 1umerosos -rsmos" que servrram . como con-
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HISTÓRIA DOS CONCEITOS E HISTÓRIA SOCIAL 105

semântica nas ciências da linguagem/ mas também a sua generosa con-


Essa perspectiva metodológica, operacionalizada ao longo das épocas,
tribuição à história. Com o afunilamento da análise lingüística dos con-
acaba por se transformar, também no que diz respeito ao conteúdo, em
ceitos, antigas proposições tornam-se mais precisas, assim como os fatos
históricos e as relações entre eles, supostamente já compreendidos, tor- uma história do respectivo conceito ali abordado. Em uma segunda eta-
nam-se mais claros pelo estudo de sua constituição lingüística. pa da investigação os conceitos são separados de seu contexto.. ~itu~cional
e seus significados lexicais investigados ao longo de uma sequencia tem-
poral, para serem depois ordenados uns em relação aos outros, de mo~o
II. A história dos conceitos como disciplina e a história social que as análises históricas de cada conceito isolado agregam-se a uma his-
tória do conceito. Finalmente, nesse estágio da investigação, o método
O reconhecimento da contribuição das análises lingüísticas dos concei-
histórico-filológico se sobressai por seu caráter histórico-conceituai; é fi-
tos apenas em seu aspecto de crítica de fonte em relação a questões per-
tinentes à história social, desenvolvido até agora neste texto, não faz jus- nalmente nesse estágio que a história dos conceitos perde seu caráter
subsidiário em relação à história social.
tiça a todo proveito que se pode tirar de uma história dos conceitos.
De igual forma, aumenta o rendimento social e histórico da investiga-
Muito mais do que isso, suas exigências metodológicas delimitam um
ção. Exatamente quando se focaliza a duração ou a transformação dos
campo particular de estudos, que se encontra em estimulante e recípro-
conceitos sob uma perspectiva rigorosamente diacrônica, a relevância
ca relação de tensão frente à história social. Do ponto de vista historio-
histórica e social dos resultados cresce. Por quanto tempo permaneceu
gráfico, a especialização na história dos conceitos teve não pouca influên-
cia sobre as investigações conduzidas pela história social. Ela começou inalterado o conteúdo suposto de determinada forma lingüística, o quan-
to ele se alterou, de modo que, ao longo do tempo, também o significado
como crítica à tradução descontextualizada de expressões cronologica-
do conceito tenha sido submetido a uma alteração histórica? É apenas
mente relacionadas ao campo semântico constitucional; 8 em seguida,
essa especialização pretendeu uma crítica à história das idéias, com- por meio da perspectiva diacrônica que se pode avaliar a duração e o ~m­
pacto de um conceito social ou político, assim como das suas respectivas
preendida como um conjunto de grandezas constantes, capazes de se ar-
estruturas. As palavras que permaneceram as mesmas não são, por si só,
ticular em diferentes formas históricas sem qualquer alteração essencial.
um indício suficiente da permanência do mesmo conteúdo ou significa-
Ambos os impulsos conduziram a uma delimitação metodológica mais
precisa, pois, ao longo da investigação da história de um conceito, tor- do por elas designado. Assim, o homônimo "burguês" [Bürger] é vazio ~e
significado, se não for éxaminado pela perspectiva da mudança de senti-
nou-se possível investigar também o espaço da experiência e o horizon-
do do conceito: de cidadão ou habitante da cidade [ (Stadt- )Bürger] por
te de expectativa associados a um determinado período, ao mesmo tem-
volta de 1700, para cidadão do Estado [ (Staats- )Bürger] por volta de 18oo
po em que se investigava também a função política e social desse mesmo
e, por fim, para burguês [Bürger], no sentido de não-proletário, por volta
conceito. Em uma palavra, a precisão metodológica da história dos con-
de 1900.
ceitos foi uma decorrência direta da possibilidade de se tratar conjunta-
mente espaço e tempo, com a perspectiva sincrônica de análise. "Stadtbürger" (cidadão ou habitante da cidade) era um conceito da
sociedade estamental no qual definições legais, políticas, econômicas e
Tal procedimento parte do princípio de traduzir significados lexicais
sociais encontravam-se indissoluvelmente unidas, definições que preen-
em uso no passado para a nossa compreensão atual. A partir da investi-
gação de significados passados, tanto a história dos termos quanto a dos chiam com outro conteúdo os mesmos conceitos dessa sociedade de
ordens.
conceitos conduz à fixação desses significados sob a nossa perspectiva
Por volta do fim do século XVIII, "Stadtbürger" deixou de ser definido
contemporânea. Enquanto esse procedimento da história dos conceitos é
no Código Civil com critérios positivos (como o fora a princípio), pas-
refletido metodologicamente, a análise sincrônica do passado é comple-
sando a ser definido por meio de critérios negativos, isto é, como não
tada de forma diacrônica. A redefinição científica de significados lexicais
anteriores é um dos mandamentos básicos dos estudos diacrônicos. pertencendo nem ao campesinato e nem à nobreza. Com isso, o concei-
to registra, por negação, a exigência de uma universalidade maior, que
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lhe foi trazida pela noção de" Staatsbürger'' (cidadão do Estado). A nega- objeto, ao contrário de "histórias" ["Geschichten" e "Historien"], que têm
ção da negação foi igualmente alcançada quando o "Staatsbürger", em por objeto pessoas e domínios concretos; ou então, pense-se ainda em
1848, passou a ter direitos políticos definidos de maneira positiva, direi- "classe", em oposição à "classis" romana. Há, por fim, os neologismos que
tos dos quais desfrutara antes apenas como "habitante" ["Einwohner"] e surgem em certos momentos e que reagem a determinadas situações so-
membro de uma sociedade de economia liberal. Por trás da igualdade ciais ou políticas cujo ineditismo eles procuram registrar ou até mesmo
formal e legal de uma sociedade de economia liberal protegida pelo Es- provocar. Como exemplo, citem-se "comunismo" e "fascismo".
tado tornou-se possível ordenar o "Bürger" (burguês) em uma classe do Nesse esquema temporal existem, naturalmente, intermináveis tran-
sições e sobreposições. Assim, a história do conceito "democracia" pode
ponto de vista puramente econômico, do qual funções políticas ou so-
ser considerada sob os três aspectos. A antiga democracia como forma
ciais foram derivadas apenas de maneira secundária. Sob o ponto de vis-
constitucional e possível da polis: ela conhece determinações, procedi-
ta dessa generalização, isso é válido tanto para o direito de voto de classe
mentos ou regularidades que são encontradas ainda hoje na democra-
como para a teoria de Marx.
cia. No século XVIII, o conceito de democracia foi atualizado para desig-
As alterações estruturais de longo prazo só podem ser abarcadas por
nar novas formas de organização dos grandes Estados modernos. No que
uma investigação diacrônica da estrutura profunda dos conceitos. Assim,
diz respeito ao governo das leis ou ao princípio de igualdade, os velhos
a lenta mudança de significado da societas civilis como sociedade políti-
significados são retomados e modificados. Mas, no que diz respeito às
ca e constitucional para "sociedade burguesa", sine imperio, consciente-
mudanças sociais em decorrência da Revolução Industrial, são acrescen-
mente concebida como uma sociedade apartada do Estado, é um conhe-
tadas novas valências ao conceito: ele se torna um conceito de expectati-
cimento relevante do ponto de vista social e histórico que só pode ser va que, sob a perspectiva histórico-filosófica- seja legislativa ou revo-
alcançado no nível de reflexão da história dos conceitos. 9 lucionária- precisa satisfazer necessidades até então desconhecidas, que
O princípio diacrônico faz da história dos conceitos um campo pró- despontam continuamente, para poder liberar seu verdadeiro sentido.
prio de pesquisa que deve, do ponto de vista metodológico, deixar de Finalmente, "democracia" se torna um arquilexema, um conceito gene-
considerar, em um primeiro momento, os conteúdos extralingüísticos- ralizante, que, daqui por diante, tomando o lugar de "república" (=poli-
entendidos como o campo específico da história social. Os processos de teia), impele todos os outros tipos de Constituição para a ilegalidade
permanência, alteração ou ineditismo dos significados lexicais devem ser como forma de governo. Por trás dessa generalidade global, que pode ser
compreendidos, antes que esses significados possam ser tomados como ocupada, do ponto de vista político, de modos completamente diversos,
indicadores dos conteúdos extralingüísticos que recobrem, antes que faz-se necessário moldar novamente o conceito por meio de definições
possam ser empregados na análise das estruturas sociais ou de situações adicionais. Somente assim é que ele pode ser funcional politicamente:
de conflito político. surgem a democracia popular representativa, a cristã, a social etc.
Sob o aspecto puramente temporal, os conceitos políticos e sociais en- Portanto, os processos de permanência, transformações e inovação
contram-se organizados em três grupos: no primeiro encontram-se os são compreendidos diacronicamente ao longo da série de significados e
conceitos tradicionais da doutrina constitucional aristotélica, cujos signi- dos usos de um termo determinado. No âmbito de uma possível história
ficados lexicais permaneceram em parte e cuja exigência pode também dos conceitos, a indagação fundamental a respeito dos processos de alte-
ser resgatada empiricamente nas relações de hoje. Por outro lado, há con- ração, transformação e inovação conduz a uma estrutura profunda de
ceitos cujo conteúdo se alterou de maneira tão decisiva que, a despeito da s~gnificados que se mantêm, recobrem-se e precipitam-se mutuamente,
mesma constituição lingüística, são dificilmente comparáveis; seu sig- Significados que só podem se tornar social e historicamente relevantes
nificado só pode ser recuperado historicamente. Pense-se, como exemplo, se a história dos conceitos for isolada e destacada como disciplina autô-
na moderna diversidade de sentido do conceito de "história" ["Geschich- ?oma. Ao seguir seus métodos próprios, a história dos conceitos fornece
te"], que parece ser ao mesmo tempo seu próprio sujeito e seu próprio l~dicadores para a história social.
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Foi preciso aprofundar a especialização da análise de conceitos a fim tudo, pode-se entender a polissemia de maneira diferente, dependendo
de evitar que a especificidade de seu método fosse identificada, de ma- da possibilidade de se compreender ou não uma palavra como conceito.
neira precipitada, com questões de caráter social e histórico, relacionadas Ainda que os significados abstratos e concretos estejam associados a seus
a conteúdos extralingüísticos. Certamente é possível desenvolver uma significantes (as palavras), eles se nutrem também do conteúdo suposto,
história da língua concebida como história social. No entanto, a história do contexto falado ou escrito e da situação social. Isso vale inicialmente
dos conceitos é delimitada de modo mais rigoroso. A especialização me- para ambos, palavras e conceitos. O sentido de uma palavra pode ser de-
todológica da história dos conceitos, os quais se expressam por palavras, terminado pelo seu uso. Um conceito, ao contrário, para poder ser um
requer um fundamento que possa diferenciar as expressões "conceito" e conceito, deve manter-se polissêmico. Embora o conceito também esteja
"palavra". Ainda que o triângulo lingüístico constituído por "significante" associado à palavra, ele é mais do que uma palavra: uma palavra se tor-
(designação), "significado" (conceito) e "coisa"* seja usado em suas mais na um conceito se a totalidade das circunstâncias político-sociais e em-
diferentes variantes, no campo das ciências históricas existe, do ponto de píricas, nas quais e para as quais essa palavra é usada, se agrega a ela.
vista pragmático, uma diferença sutil: a terminologia social e política da Que elementos estão incluídos na palavra "Estado" para que ela se
língua que se examina conhece uma série de expressões que, por causa torne um conceito? Dominação, território, burguesia, legislação, juris-
da exegese da crítica de fontes, podem ser caracterizadas como concei- dição, administração, impostos, Exército - citando aqui os mais re-
tos. Todo conceito se prende a uma palavra, mas nem toda palavra é um correntes. Esses conteúdos diversos, com sua terminologia própria, mas
conceito social e político. Conceitos sociais e políticos contêm uma exi- também com sua qualidade conceituai, estão integrados no conceito "Es-
gência concreta de generalização, ao mesmo tempo em que são sempre tado" e abrigam-se sob um conceito comum. Os conceitos são, portanto,
polissêmicos. A par disso, são entendidos pelas ciências históricas sem- vocábulos nos quais se concentra uma multiplicidade de significados.
pre como palavras, pura e simplesmente. O significado e o significante de uma palavra podem ser pensados sepa-
Assim, uma identidade de grupo pode ser articulada ou produzida, radamente. No conceito, significado e significante coincidem na mesma
do ponto de vista exclusivamente lingüístico, por meio do uso enfático medida em que a multiplicidade da realidade e da experiência histórica
da palavra 'nós'. Conceitualmente, esse procedimento pode ser apreendi- se agrega à capacidade de plurissignificação de uma palavra, de forma
do apenas quando a palavra 'nós' for usada em associação com os coleti- que seu significado só possa ser conservado e compreendido por meio
vos 'nação', 'classe', 'ami:i!ade', 'igreja' etc. A generalização do uso de 'nós' é dessa mesma palavra. Uma palavra contém possibilidades de significa-
concretizada pelas expressões citadas, mas no nível de uma generaliza- do, um conceito reúne em si diferentes totalidades de sentido. Um con-
ção conceituai. ceito pode ser claro, mas deve ser polissêmico. "Todos os conceitos nos
A transformação de uma palavra em conceito pode, também, ter um quais se concentra o desenrolar de um processo de estabelecimento de
caráter homogeneizante, conforme seu uso na língua examinada. Isso se sentido escapam às definições. Só é passível de definição aquilo que não
deve, primeiramente, à ocorrência de polissemia, da qual compartilham tem história" (Nietzsche). O conceito reúne em si a diversidade da expe-
tanto as palavras quanto os conceitos - quando entendidos "apenas" riência histórica assim como a soma das características objetivas teóri-
como palavras. Reside aí também sua qualidade histórica comum. Con- cas e práticas em uma única circunstância, a qual só pode ser dada como
tal e realmente experimentada por meio desse mesmo conceito.
* Signo lingüístico. Koselleck recorre aqui a um pressuposto básico da lingüística saussurea-
Assim, fica claro que, embora os conceitos compreendam conteúdos
na: "Chamamos signo a combinação do conceito e da imagem acústica. ( ... ) A ambigüida- sociais e políticos, a sua função semântica, sua economia não pode ser
de desapareceria se designássemos as três noções aqui pr~sentes por nomes que se relacio- derivada apenas desses mesmos dados sociais e políticos aos quais se re-
nem entre si, ao mesmo tempo em que se opõem. Propomos conservar o termo signo para
designar o total, e a substituir conceito e imagem acústica por significado e significante"
ferem. Um conceito não é somente o indicador dos conteúdos compre-
(Ferdinand de Saussure, Curso de língüística geral, org. Charles Bally e Albert Sechehaye, endidos por ele, é também seu fator. Um conceito abre determinados ho-
São Paulo, Cultrix, 1975, p. 80-81). [N.T.] rizontes, ao mesmo tempo em que atua como limitador das experiências
llO REINHART KOSELLECK • FUTURO PASSADO HISTÓRIA DOS CONCEITOS E HISTÓRIA SOCIAL 111

possíveis e das teorias. Por isso a história dos conceitos é capaz de inves- exclusivamente de seus próprios conceitos, como a identidade entre um
tigar determinados conteúdos não apreensíveis a partir da análise empí- 'Zeitgeist' lingüisticamente articulado e as circunstâncias nas quais se de-
rica. A linguagem conceituai é, em si, um meio consistente para proble- ram os fatos, causaria um curto-circuito irreversível do ponto de vista
matizar a capacidade de experiência e a dimensão teórica. É certo que teórico. Em vez disso, estabelece-se uma tensão entre conceito e fatos,
essa tarefa pode ser realizada com um propósito social e histórico; no tensão que ora se neutraliza, ora parece novamente irromper à superfí-
entanto, na execução dessa tarefa, o método da história dos conceitos cie, ora parece ser irremediavelmente insolúvel. É possível registrar con-
deve ser preservado. tinuamente a existência de um hiato entre fatos sociais e o uso lingüísti-
É claro que a preservação da autonomia da disciplina não deve levar co a ele associado. As alterações de sentido lingüístico e as alterações dos
à desconsideração dos conteúdos históricos empíricos - com base no fatos, as alterações das situações políticas e históricas e o impulso para a
fato de que, durante uma determinada etapa da investigação, eles são criação de neologismos que a elas correspondam relacionam-se entre si
postos de lado. Ao contrário, o redirecionamento do foco da investiga- das mais diversas maneiras.
ção, que se desloca das situações políticas e estruturas sociais e se con- Daí resultam conseqüências de ampliação do método da história dos
centra na constituição lingüística, acaba por dar voz a essas mesmas si- conceitos. A investigação de um conceito não deve ser conduzida exclu-
tuações políticas e estruturas sociais. sivamente do ponto de vista semasiológico, restringindo-se aos signifi-
A história dos conceitos como disciplina autónoma está sempre asso- cados das palavras e às suas modificações. Uma história dos conceitos
ciada a acontecimentos e situações políticas ou sociais, mas apenas àque- deve sempre considerar os resultados obtidos a partir da investigação
les que já tenham sido compreendidos e articulados conceitualmente na histórica do ponto de vista espiritual/intelectual e material; acima de
língua fonte. tudo, a história dos conceitos deve alternar entre a abordagem semasio-
Ela interpreta a história em um sentido particular, por meio dos con- lógica e a onomasiológica. Isso significa que ela deve registrar as diferen-
ceitos em uso no passado (mesmo que as palavras que os designem ain- tes designações para os fatos (idênticos?), de forma que lhe seja possível
da sejam empregadas) assim como também entende os conceitos histo- explicar o processo de cunhagem dessas designações em conceito. Exem-
ricamente (ainda que seu antigo emprego deva ser redefinido em nosso plo disso é o fenômeno da "secularização" [Siikularisation], o qual não
uso contemporâneo da língua). Até aqui, se nos for permitida uma defi- pode ser explicado exclusivamente a partir da análise desse único vocá-
nição algo exagerada, a história dos conceitos tem por tema a confluên- bulo.10 No contexto da história da língua alemã, deve-se recorrer para-
cia do conceito e da história. A história somente passaria a ser história à lelamente a termos como Verweltlichung (mundanização) ou Verzeitli-
medida que já tivesse sido compreendida como conceito. Do ponto de chung (temporalização); do ponto de vista da história empírica, é preciso
vista da teoria do conhecimento, nada que ainda não tivesse sido com- considerar os campos de atuação da Igreja e do direito constitucional,
preendido como conceito poderia realizar-se como história. Ao lado do assim como, do ponto de vista da história das mentalidades, deve-se le-
risco de supervalorização de fontes escritas, que não se deixam preservar var em conta as vertentes ideológicas que se cristalizaram ao redor dessa
nem teórica e nem empiricamente, essa tese conduz também ao risco de expressão lingüística. É preciso, portanto, proceder a essa investigação
se entender mal a história dos conceitos do ponto de vista ontológico. antes que se possa compreender, de forma cabal, o conceito de "seculari-
Nela se perde também o impulso crítico de se recuperar a história das zação" como fator e indicador da história assim designada.
idéias ou história das mentalidades sob o ponto de vista da história so- Para citar outro exemplo: a estrutura federativa do antigo Império é
cial, com o que vai a pique também o efeito de crítica ideológica que parte de um conjunto de fatos e circunstâncias políticas e jurídicas de
pode ser suscitado pela história dos conceitos. Diferente disso, o método longo prazo igualmente relevantes, que a partir da Baixa Idade Média até
da história dos conceitos é capaz de superar o círculo vicioso da palavra a fundação da República Federal Alemã foram capazes de estabelecer de-
em direção ao objeto e vice-versa. A compreensão da história a partir terminados modelos de comportamento político. Ora, somente a histó-
112 HISTÓRIA DOS CONCEITOS E HISTÓRIA SOCIAL 113
REINHART KOSELLECK • FUTURO PASSADO

ria da_palavra 'Bund '* não é suficiente para dar conta do esclarecimento no direito das nações. Somente com a dissolução da velha or-
con~eltual da estrutura federativa ao longo da história. Acompanhemos estamental do Império é que a expressão Bund reaparece, agora no
aqm um esboço rudimentar do conceito. O termo 'Bund' é na ling _ lano social, do Estado e do direito internacional. A expressão social
. 'd' 1 ,
gem JUn ica a emã, uma formação relativamente tardia do século XIII.
ua ~bündisch" (unionista) foi cunhada por Campe, a distinção jurídica en-
As Bundabmachungen (associações), embora não subordinadas a ex- tre "Bündnis" [aliança] e "Bund" [unidade da federação]- termos até
pressões latin~s como foedus, unia, liga, societas e outras, só podiam ser. então idênticos - pôde ser doravante articulada e, finalmente, com ?
e_xpressas na lm~uagem jurídica alemã de forma ligeira, no registro da fim do Império, chegou-se à expressão "Bundesstaat" (Estado federati-
hnguagem oral. E somente na soma das já consolidadas e então denomi- vo), na qual se encontram concentradas, pela primeira vez, as at~ ent~o
nadas Verbündnisse que se condensaria a expressão institucional Bund. insolúveis aporias constitucionais, ali condensadas em um conceito his-
Som~nte _co~ a .~;e~cente experiência federativa é que se alcançou a ge- tórico que remete ao futuro. 11 .

ne_rahzaçao lmgmstica que, por conseguinte, serviu para formar 0 con- As considerações acima seriam suficientes para mostrar que a etimo-
ceito Bund. Desde então, tornou-se possível refletir conceitualmente so- logia do termo "Bund" não basta para descrever a hi~tó:i~ do proc~s~o
bre _o comportamento ?e ~m Bund em relação a um Estado ou Império de conceituação da estrutura federativa ao longo da histona do Impeno
[Retch] e sobre a constitmção de um Reich como um Bund. Entretanto . alemão. É necessário ampliar a investigação dos campos semânticos, a
essa possibilidade teórica quase não foi usada na Idade Média tardia: relação entre" Einung" e "Bund", entre "Bund" e "Bündnis", assim como
Bund permaneceu essencialmente como um conceito do direito da so- a relação dessas expressões com os termos "união" [ Union], "liga" [Liga l
ciedade de ordens, designando em particular as uniões das cidades em ou "aliança" [Allianz] deve ser analisada a seu turno. Os antônimo~ ~e
op?s.ição às ligas e_ntre príncipes e às sociedades de cavaleiros. A carga cada termo devem ser também investigados, de modo que se possa evi-
rehg10sa do conceito de Bund na época da Reforma levou - na con- denciar os antagonismos do ponto de vista político, assim como os agru-
tracorrente do mundo calvinista-ao seu desgaste político. Para Lutero, pamentos religiosos ou sociais que se formaram no âmbito das possibi-
somente Deus poderia instituir uma aliança [Bund], o que explica por lidades do Estado federativo. É preciso ainda interpretar os neologismos;
q_ue o Conselho de Schmalkald [ Schmalkadischer Vorstand] nunca foi de- · deve-se perguntar, por exemplo, por que o termo federalismo, herdado
Sig~a~o como tal, o que acontece apenas no plano historiográfico. O uso do século XVIII, nunca se tornou um conceito central do direito consti-
enfatico, a um tempo religioso e político, que Müntzer e os camponeses tucional alemão no século XIX. Não é possível verificar o valor de um
aplicavam à expressão em 1525 conduziu a uma discriminação de seu termo como "conceito" válido para o complexo social ou para as con-
emprego, tornado tabu. Como termo técnico do direito constitucional frontações políticas sem incluir os conceitos paralelos ou contrári~s, sem
foi, por essa razão, suplantado por expressões intercambiáveis e neutras se reportar a uma ou outra noção geral ou particular e sem se registrar a
como "L'iga " e "Umao·- ", em torno das quais· se reagruparam os partidos intersecção entre as duas expressões. O fim último da história dos con-
c~nfessionais. No desenrolar-se dos confrontos sangrentos, essas expres- ceitos é, portanto, exatamente por meio do processo de alteração das
soes se tornaram conceitos religiosos de luta, os quais, por seu lado, se questões semasiológicas e onomasiológicas, a Sachgeschichte, a história
tornaram suspeitos ao longo da Guerra dos Trinta Anos. Expressões material.
fr~ncesas como "aliança" passaram a impregnar, desde 1648, o direito de O sentido cambiante da expressão Bund pode ser elucidativo, por
ahança dos Estados governados pelos príncipes alemães. Trata-se de uma exemplo, para as situações constitucionais que só puderam ser definid~s
alteração lenta e insidiosa, disseminada pela inclusão de critérios ori- sob esta expressão - ou não. A elucidação de trás-para-frente, a partir
da definição atual do uso anterior da palavra, abre perspectivas novas so-
bre a história constitucional: investigar se a expressão Bund foi usada
* Bwzd: .associação, liga ou unidade da Federação. No uso contemporâneo da língua alemã, como conceito jurídico da administração estamental, como conceito de
B~ll!d e o radzcal presente nas formações por justaposição Bundesland (estado da Federa-
çao) e Bwzdesrepublzk (república federativa). [N.T.] prognóstico religioso, como conceito de organização política ou como
REINHART KOSELLECK • FUTURO PASSADO HISTÓRIA DOS CONCEITOS E HISTÓRIA SOCIAL
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meta final do direito das nações (por exemplo na expressão" Volkerbund'' pode-se ainda verificar que certos fatos transparecem em um conceito
[liga das nações], termo criado por Kant) significa encontrar as distin- po~ obra,de um significado que permanece inconsciente ao usuário pa-
ções que articulam a história também "na sua materialidade". . drao da lmgua. A retrospectiva diacrônica pode dar acesso a camadas de
Dito de outra forma, a história dos conceitos não é um fim em SI mes- significado que permanecem encobertas no uso espontâneo da língua.
ma, ainda que tenha um aparato metodológico próprio. A história dos Por e~sa razão, o sentido religioso de "Bund'' (como aliança ou liga) nun-
conceitos também pode ser definida como parte metodologicamente au- ca f~I totalmente descar~ado depois que a expressão passou a designar,
tônoma da pesquisa social e histórica. Dessa autonomia decorre uma no seculo XIX, um conceito social e político. Marx e Engels sabiam disso
premissa metodológica específica, que aponta para a existência das pre- quando fizeram do "credo" da Liga dos Comunistas o Manifesto do Par-
missas teóricas comuns à história dos conceitos e à história social. tido Comunista.
A .his~ória dos conceitos põe em evidência, portanto, a estratificação
dos sigmficados de um mesmo conceito em épocas diferentes. Com isso
III. Teoria da história dos conceitos e teoria da história social
ela ultrapassa~ alter~~t~va estreita entre diacronia ou sincronia, passan-
Todos os exemplos mencionados até aqui, ou seja, a história do conceito do a remeter a possibilidade de simultaneidade da não-simultaneidade
"burguês", do conceito "democracia" ou do conceito "federação", compar- que po~e estar contida em um conceito. Dito de outra maneira, ela pro-
tilham uma característica formal comum: abordam estados, do ponto de blematiza algo que faz parte das premissas teóricas da história social ao
vista sincrônico, e suas alterações ao longo do eixo diacrônico. Dessa for- avaliar as diferenças de curto, médio ou longo prazos, ao sopesar as d~fe­
ma, buscam aquilo que, no domínio da história social, é caracterizado renças entre acontecimentos e estruturas. A profundidade histórica de
como as estruturas e suas alterações. Ainda que não se possa depreender, um conceito, que ~ão é idêntica à seqüência cronológica de seus signifi-
imediata e diretamente, a realidade a partir do conceito, a história dos c:dos, ganha com Isso uma exigência sistemática, a qual toda investiga-
conceitos tem como premissa refletir essa co-incidência. Decorre daí çao de cunho social e histórico deve ter em conta.
uma tensão produtiva, rica em ensinamentos para a história social. ~ hist~ria dos conceitos trabalha, portanto, sob a premissa teórica da
Não é necessário que a permanência e a alteração dos significados das obngatonedade de confrontar e medir permanência e alteração, tendo
palavras correspondam à permanência e alteração das estruturas por elas esta como referência daquela. Enquanto seus procedimentos tiverem co-
designadas. O método da história dos conceitos é uma condição sine qua mo, mediu.m a linguagem (a das fontes e a científica) esse pressuposto es-
non para as questões da história social exatamente porque os termos que tara refletmdo premissas teóricas que devem ser consideradas também
mantiveram significado estável não são, por si mesmos, um indício sufi- por uma história social relacionada ao "conteúdo material da história".
ciente da manutenção do mesmo estado de coisas do ponto de vista da Os estudos lingüísticos têm por fundamento universal a constatação
história dos fatos; por outro lado, fatos cuja alteração se dá lentamente, de qu.e cada significado lexical tem um alcance que ultrapassa aquela sin-
a longo prazo, podem ser compreendidos por meio de expressões bas- gulandade que, por sua vez, pode ser atribuída ao acontecimento histó-
tante variadas. A história dos conceitos prioriza a decifração, pela alter- rico. C~da yal~vra, mesmo cada substantivo, comprova as suas possibili-
nância das análises sincrônica e diacrônica, do período de duração de dades hngmsticas para além do fenômeno particular que ela caracteriza
experiências passadas, assim como da capacidade de resistência das teo- e/ou ~e~o.mina ~m certo momento. Isso vale igualmente para os concei-
rias do passado. No câmbio das perspectivas sincrônica e diacrônic~ P?- tos. histonc.os, amda que eles sirvam, em um primeiro momento, para
dem se tornar visíveis as disjunções entre antigos significados lexiCaiS, umr conceltualmente, em sua singularidade, experiências complexas.
referentes a um fato ou circunstância não mais existentes, assim como Uma vez cunhado, um conceito passa a conter em si, do ponto de vista
podem surgir novos significados da mesma palavra. Por meio desse mé- exclusi~amente lingüístico, a possibilidade de ser empregado de maneira
todo também é possível detectar a existência de significados sobressalen- gener:hzante, de construir tipos ou permitir ângulos de vista para com-
tes, que não correspondem mais a nenhuma realidade factual; por firn, paraçao. Quem trata de determinado partido, de determinado Estado ou
REINHART KOSELLECK • FUTURO PASSADO HISTÓRIA DOS CONCEITOS E HISTÓRIA SOCIAL ll7
n6

de determinado Exército tem que fazer escolhas lingüísticas ao longo de tos abrange aquela zona de convergência na qual o passado, com todos
um eixo que pressupõe todos os partidos, todos os Estados e todo~ os os seus conceitos, adentra os conceitos atuais. Ela necessita, portanto, de
Exércitos em sua materialidade lingüística. Uma história dos conceltos uma teoria sem a qual seja impossível compreender, no mesmo tempo,
correspondentes induz, portanto, questões estruturais que a história so- convergências e divergências.
cial tem de responder. ~ reconhecidamente pequeno o alcance de uma investigação que, re-
Os conceitos não nos instruem apenas sobre o caráter singular de sig- petmdo um exemplo conhecido, derive do emprego da palavra "Estado"
nificados passados; a par disso, eles contêm possibilidades estruturais, (status, état) o fenômeno do Estado moderno, como foi feito recente-
tratam simultaneidades como não-simultaneidades, as quais não podem mente em uma obra fundamental. 12 Ora, uma questão à qual sempre
ser depreendidas por meio da seqüência dos acontecimentos na história. vale a pena recorrer é a seguinte: por que somente em determinada épo-
Conceitos que abarcam fatos, circunstâncias e processos do passado tor- ca ce~t~s fenôm~nos são reunidos em um conceito comum? A linguagem
nam-se, para o historiador social que deles se serve em seqüência, cate- do drrerto prussrano, a despeito de uma burocracia administrativa e de
gorias formais, estabelecidas como condição de existência de uma histó- u~ Exército há muito tempo estabelecidos, somente em 1848 legalizou a
ria possível. Apenas por meio dos conceitos providos de capacidade de umão dos Es~ados prussianos em um só Estado: numa época, portanto,
duração, de uma economia de repetição de seu uso e, ao mesmo tempo, em que a ~ocredade de economia liberal tinha relativizado as diferenças
dotados de referencial empírico, ou seja, conceitos providos de uma ca- en~re os drversos estamentos ao mesmo tempo em que criara um prole-
pacidade estrutural, é que são capazes de deixar o caminho livre para que tanado presente em todas as províncias. O Estado prussiano foi batiza-
uma história antes tida como "real" possa hoje manifestar-se como pos- do, na linguagem jurídica, primeiramente como um Estado constitucio-
it
nal burguês. Tais constatações isoladas não puderam impedir a história
i sível, logrando assim também ser representada. Isso se torna ainda mais
nítido quando a relação da língua-fonte com a linguagem científica é de definir cientificamente conceitos da vida histórica e de estendê-los a
!\Ir
:I. ,. analisada sob a perspectiva da história dos conceitos. outras épocas ou domínios do conhecimento. Dessa forma, é possível fa-
Toda historiografia se movimenta em dois níveis: ou ela examina fa- lar de um Estado na Alta Idade Média, desde que as ampliações do es-
tos já articulados lingüisticamente ou ela reconstrói fatos não ~rticulad~s p~ctro semântico recoberto pelo termo sejam asseguradas do ponto de
lingüisticamente no passado, mas que, com a ajuda de determmados me- vrsta conceituai e histórico. Com isso, a história dos conceitos coloca a
todos e a coleta de indícios, podem ser de alguma maneira recuperados. história social em xeque. Com a extensão de conceitos criados posterior-
No primeiro caso, os conceitos recebidos da tradição servem de aces- mente a épocas anteriores ou vice-versa, com a extensão (como hoje é
so heurístico para compreender a realidade passada. No segundo caso, a comum com o uso de "feudalismo") de conceitos criados anteriormente
história [Historie] se serve ex post de categorias acabadas e definidas, que a fenômenos posteriores, elementos minimamente comuns podem ser
são aplicadas sem que possam ser identificadas nas fontes. Dess~ m.odo, colocados - ao menos hipoteticamente- em campos opostos.
estabelecem-se premissas teórico-económicas para analisar o capitalrs~o A tensão dinâmica entre realidade e conceito aparece, portanto, tanto
nascente com categorias que, na época, eram desconhecidas. Ou entao no nível da língua-fonte como no da linguagem científica. Assim, a his-
desenvolvem-se teoremas políticos que são aplicados a situações co~s­ tória social não pode deixar de considerar as premissas teóricas da his-
titucionais passadas, sem que por isso tenha-se que convocar uma hi~­ tória dos conceitos, desde que se proponha a investigar estruturas de lon-
tória alternativa. Nos dois casos a história dos conceitos evidencia a dr- go prazo. A identificação do nível de generalização sobre o qual se está
ferença que predomina entre um núcleo conceituai do passad? e uiTl trabalhando - e isso diz respeito a toda história social que investigue
núcleo conceituai contemporâneo, seja porque ela traduz o antigo uso duração, tendências e prazos - só pode ser conseguida com a reflexão
lingüístico, ligado às fontes, de modo a defini-lo para a investigação con- sobre os conceitos ali empregados, que por sua vez auxiliam a identifi-
. . d d d. das de- car, do ponto de vista teórico, a relação cronológica entre o acontecimen-
temporânea, seja porque ela venfica a capacrda e e ren rmento .
finições contemporâneas de conceitos científicos. A história dos concer- to e a estrutura, ou a justaposição de permanência e alteração.
us REINHART KOSELLECK • FUTURO PASSADO

É esse, p~r exeii_Jplo, o caso do termo "legitimidade': primeiramente CAPÍTULO 6


~~a expre_ss_ao d~ li~~uagem jurídica, "a qual se atribuiu um sentido po-
litico tradiCIOnalista , sendo então introduzida na luta partidária. p História, histórias
fi t " , or
1m, o ermo revo 1ução ganhou também a sua "legitimidade". COm lSSO, · e estruturas temporais formais
o t~r~o ent,ra:a na perspectiva da filosofia da história, adquirindo colo-
r~çao ldeologiCa~ dependendo da situação política daqueles que se ser-
Viam da expre~:ao .. T~dos esses níveis de significado, que se justapõem A dupla ambigüidade do uso moderno de "história" [ Geschichte] e "his-
~ut~~~ente, ,!a ex1st1am, quando Max Weber neutralizou a expressão tória" [Historie], ou seja, o fato de que ambas as expressõs podem desig-
leg~t1m1dade para poder descrever tipos de dominação. Com isso, a nar tanto as circunstâncias nas quais se deu um evento quanto sua re-
partir de um reservatór~o en:pírico preexistente de significados possíveis, presentação, desperta questões que já procuramos desenvolver aqui de
ele el~borou um conce1to c1entífico, suficientemente formalizado e ge- maneira mais ampla. 1 Essas questões têm caráter histórico e caráter sis-
nerali:ante para po,der descre~er alternativas constitucionais de longa temático. O significado peculiar de "história", que lhe permite, ao mes-
duraçao, mas tambem alternativas cambiantes e entrecruzadas entre si mo tempo, ser e saber-se como tal, pode ser entendido como uma fór-
cap~zes de esclarecer as "singularidades" históricas a partir das estrutu~ mula geral para um dado movimento circular de caráter antropológico,
ras mternas a elas peculiares. que remete à relação recíproca entre a história e o conhecimento desta.
~ hi~tória s_oc~a~ que queira proceder de maneira precisa não pode Por 0utro lado, a convergência dos dois significados é um fenômeno
abr~r mao da h1stona dos conceitos, cujas premissas teóricas exigem pro- histórico único que só teve lugar no século XVIII. Pode-se notar que a
posições de caráter estrutural. formação do coletivo singular "história" [ Geschichte] * é um fenômeno
semântico que abrange a nossa experiência histórica moderna. Com o
surgimento do conceito "história absoluta" ["Geschichte schlechthin"]
Tradu!ão de Wilma Patrícia Maas e Fabiana Angélica do Nascimento
Rev1sao de Marcos Valéria Murad abriu-se espaço para a filosofia da história, na qual o significado trans-
cendental de história é contaminado pela noção de história como cons-
ciência e como espaço de ação.
Entretanto, seria bastante atrevimento afirmar que, por meio da for-
mação do conceito da "história absoluta" ou de "história em geral" ["Ge-
schichte überhaupt"], que, de mais a mais, do ponto de vista lingüístico,
é uma criação específica da língua alemã, todos os acontecimentos ante-
riores ao século XVIII deveriam empalidecer em pré-história. Deve-se
aqui remeter a Santo Agostinho, que constatou 2 que, sem dúvida, o tema
da história são as coisas humanas, mas que, no entanto, a historia ipsa
[história em si] não é uma instituição dos homens. A história em si vem
de Deus e nada mais é do que o ardo temporum [ordem dos tempos] an-
terior a todos os eventos e segundo o qual todos os eventos seriam arti-
culados. O significado meta-histórico - e também o significado tem-
poral - da historia ipsa não é, portanto, uma constatação exclusiva dos
tempos modernos, mas sim algo que já fora elaborado teologicamente.

*Sobre a distinção entre Geschichte e Historie veja o capítulo anterior. [N.T.]

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