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HALL, Stuart. Da Diáspora: Identidades e Mediações Culturais.

Belo Horizonte/Brasília: Ed.UFMG/UNESCO, 2003.

Codificação/Decodificação

Tradicionalmente, q pesquisa em comunicação de massa tem concebido o processo


comunicativo em termos de um circuito. Esse modelo tem sido criticado pela sua
linearidade — emissor/mensagem/receptor; por sua concentração no nível da troca de
mensagens; e pela ausência de uma concepção estruturada dos diferentes momentos
enquanto complexa estrutura de relações. (HALL, 2003, p. 391)

Mas é também possível (e útil) pensar esse processo em termos de uma estrutura-Produzida e
sustenta da através da articulação de momentos distintos, mas interligados — produção,
circulação, distribuição/consumo, reprodução. Isto seria pensar o processo como uma "complexa
estrutura em dominância", sustentada através da articulação de práticas conectadas, em que cada
qual, no entanto, mantém sua distinção e tem sua modalidade específica, suas próprias formas e
condições de existência. (HALL, 2003, p. 391)

Esta segunda abordagem, homóloga à que forma o esqueleto da produção de mercadorias


apresentada nos Grundrisse de Marx e em O capita/, tem a vantagem de destacar mais
claramente a forma na qual um contínuo circuito — produção- distribuição-produção —
pode ser sustentado através de uma "passagem de formas".' Ela destaca também a
especificidade das formas nas quais o produto do processo "aparece" em cada momento e,
portanto, o que distingue a "produção" discursiva de outros tipos de produção em nossa
sociedade e nos sistemas de meios de comunicação modernos. (HALL, 2003, p. 391)

O "objeto" de tais práticas é composto por significados e mensagens sob a forma de signos-
veículo de um tipo específico, organizados, como qualquer forma de comunicação ou
linguagem, pela operação de códigos dentro da corrente —sintagmática de um discurso.
(HALL, 2003, p. 391)

Os aparatos, relações e práticas de produção, aparecem, assim, num certo momento (o


momento da "produção/circulação"), sob a forma de veículos simbólicos-constituídos
dentro das regras de "linguagem". É nessa forma discursiva que a circulação do "produto"
se realiza. (HALL, 2003, p. 391)

Mas é sob a forma discursiva que a circulação do produto se realiza, bem como sua
distribuição para diferentes audiências. Uma vez concluído, d' discurso deve então ser
traduzido — transformado de novo — em práticas sociais, para que o circuito ao mesmo
tempo se complete e produza efeitos. (HALL, 2003, p. 392)

Se nenhum "sentido" é apreendido, não pode haver "consumo". Se o sentido não é


articulado em prática, ele não tem efeito. O valor dessa abordagem é que, enquanto cada
um dos momentos, em articulação, é necessário ao circuito como um todo, nenhum
momento consegue garantir inteiramente o próximo, com o qual está articulado. (HALL,
2003, p. 392)

(...) devemos reconhecer que a forma discursiva da mensagem tem uma posição,
privilegiada na troca comunicativa (do ponto de vista da circulação) e que os momentos de
"codificação" c "decodificação", embora apenas "relativamente, autônomos" em relação ao
processo comunicativo como um todo, são momentos determinador. (HALL, 2003, p. 392)
Um evento histórico "bruto" não pode, nessa forma, ser transmitido, digamos, por um
telejornal. Os acontecimentos só podem ser significados [be signified] dentro das formas
visuais e auditivas do discurso televisivo. No momento em que um evento histórico é posto
sob o signo do discurso, ele é sujeito a toda a complexidade das "regras" formais pelas
quais a linguagem significa. (HALL, 2003, p. 392)

For isso, paradoxalmente, o acontecimento deve se tornar uma "narrativa" antes que possa
se tomar um evento comunicativo. Naquele momento, as sub-regras formais do discurso
estão "em dominância", sem, é claro, subordinarem até seu apagamento o evento histórico
que está sendo significado, as relações sociais nas quais as regras são postas em
funcionamento ou as consequências políticas e sociais do evento terem sido significadas
dessa maneira. (HALL, 2003, p. 392)

Além disso, embora as estruturas de produção da televisão originem os discursos


televisivos, elas não constituem um sistema fechado. Elas tiram assuntos, tratamentos,
agendas, eventos, equipes, imagens da audiência, "definições da situação de outras fontes e
outras formações discursivas dentro da estrutura sociocultural e política mais ampla da
qual são uma parte diferenciada. (HALL, 2003, p. 393)

Assim — usando os termos de Marx — circulação é recepção são, de fato, "momentos" do


processo de produção na televisão e são reincorporados via um certo número de feedbacks
indiretos e estruturados no próprio processo de produção. (HALL, 2003, p. 394)

O consumo ou a recepção da mensagem da televisão é, assim, também ela mesma um


"momento" do processo de produção no seu sentido mais amplo, embora este último seja
"predominante" porque é "o ponto de partida para a concretização" da mensagem.
Produção e recepção da mensagem televisiva não são, portanto, idênticas, mas estão
relacionadas: são momentos diferenciados dentro da 'totalidade formada pelas relações
sociais do processo comunicativo como um todo. (HALL, 2003, p. 394)

Em um certo ponto, contudo, as estruturas de radiodifusão devem produzir mensagens codificadas


na forma de um discurso significativo. As relações de produção institucionais e sociais devem
passar sob as regras discursivas da linguagem para que seu produto seja "concretizado". (HALL,
2003, p. 394)

Isso inicia um outro momento diferenciado, no qual as regras formais do discurso e


linguagem estão em dominância. Antes que essa mensagem possa ter um "efeito" (qualquer
que seja sua definição), satisfaça uma "necessidade" ou tenha um "uso", deve primeiro ser
apropriada como um discurso significativo e ser significativamente decodificada. É esse
conjunto, de significados decodificados que "tem um efeito", influencia, entretém, instrui
ou persuade, com consequências perceptivas, cognitivas, emocionais, ideológicas ou
comportamentais muito complexas. (HALL, 2003, p. 394)

Em um momento "determinado", a estrutura emprega um código e produz uma


"mensagem"; em outro momento determinado, "mensagem" desemboca na estrutura das
práticas sociais pela via de sua decodificação. Estamos agora plenamente cientes de que
esse retorno às práticas de recepção e "uso" da audiência não pode ser entendido em
termos simplesmente comportamentais. (HALL, 2003, p. 394)

O signo televisivo, é um signo complexo. Ele é constituído pela combinação de dois tipos
de discurso, o visual e o auditivo. Além do mais é um signo icônico, na terminologia de
Peirce, porque "possui algumas das propriedades da coisa representada"/. Este é um ponto
que tem levado a grandes confusões e tem sido o terreno de uma intensa controvérsia no
estudo da linguagem visual. Uma vez que o discurso visual traduz um mundo
tridimensional em planos bidimensionais, ele não pode, é claro, ser o referente ou o
conceito que significa. (HALL, 2003, p. 396)

O cão, no filme, pode latir, mas não consegue morder!! g*A realidade existe fora da
linguagem, mas é constantemente mediada pela linguagem ou através dela: e o que nós
podemos saber e dizer tem de ser produzido no discurso e através dele. (HALL, 2003, p.
396)

O "conhecimento" discursivo é o produto não da transparente representação do "real" na


linguagem, mas da articulação da linguagem em condições e relações reais. Assim não, há
discurso inteligível sem a operação de um código. Os signos icônicos são, portanto, signos
codificados também — mesmo que aqui os códigos trabalhem de forma diferente daquela;
de outros signos. Não há grau zero em linguagem. Naturalismo e "realismo" — a aparente
fidelidade da representação 1 à coisa ou ao conceito representado — é o resultado, o efeito,
de uma certa articulação específica da linguagem sobre o “real”. É o resultado de uma
prática discursiva. (HALL, 2003, p. 396)

Certos códigos podem, é claro, ser tão amplamente distribuídos em uma cultura ou
comunidade de linguagem especifica, e serem aprendidos tão cedo, que aparentam não-
terem sido construídos — o efeito de uma articulação entre signo e referente — mas serem
dados "naturalmente". (HALL, 2003, p. 396)

A operação de códigos naturalizados revela não a transparência e "naturalidade" da


linguagem, mas a profundidade, o caráter habitual e a quase- universalidade dos códigos
em uso Eles-produzem reconhecimentos aparentemente "naturais". Isso produz o efeito
(ideológico) de encobrir as práticas de codificação presentes. (HALL, 2003, p. 397)

Mas não devemos deixar que as aparências nos enganem. Na verdade, o que os códigos
naturalizados demonstram é o grau de familiaridade que se produz quando há um
alinhamento fundamental e uma reciprocidade — a consecução de uma equivalência —
entre os lados codificador e decodificador de uma troca de significados. (HALL, 2003, p.
397)

Dessa maneira, Eco argumenta que os signos icônicos "parecem com objetos do mundo real
porque reproduzem as condições perceptivas (ou seja, os códigos) de quem os vê".
Contudo, essas "condições de percepção" são o resultado de um conjunto de operações
altamente codificadas, ainda que virtualmente inconscientes — são decodificações. Isto é
verdade para as imagens fotográficas ou televisivas, assim como para qualquer outro
signo. (HALL, 2003, p. 398)

Signos icônicos são, entretanto, particularmente vulneráveis a serem "lidos" como naturais,
porque os códigos de percepção visual são amplamente distribuídos e porque esse tipo de
signo é menos arbitrário do que um signo linguístico. O signo linguístico "vaca" não possui
nenhuma das propriedades da coisa representada, ao passo que o signo visual parece
possuir algumas dessas propriedades. (HALL, 2003, p. 398)

Esses códigos são os meios pelos quais o poder e a ideologia são levados a significar em
discursos específicos. Eles remetem os signos aos “mapas de sentido” dentro dos quais
qualquer cultura é classificada; e esses “mapas da realidade social” contêm “inscritos” toda
uma série de significados sociais, práticas e usos, poder e interesse. (HALL, 2003, p. 398)
Segundo Barthes, os níveis conotativos dos significantes "têm uma estreita relação com a cultura, o
conhecimento, a história e é através deles, por assim dizer, que o meio ambiente invade o sistema
linguístico e semântico. Eles são, de alguma forma, os fragmentos da ideologia. (HALL, 2003, p. 400)

O chamado nível denotativo do signo televisivo é fixado por certos códigos (restritos ou
"fechados") bastante complexos. Mas o nível conotativo, apesar de também ser limitado, é mais
aberto, sendo objeto de transformações mais ativas, que exploram seus valores polissêmicos.
(HALL, 2003, p. 400)

Qualquer signo já constituído é potencialmente transformável em mais de uma configuração


conotativa. Polissemia, entretanto, não deve ser confundida com pluralismo. Os códigos
conotativos não são iguais entre si. Toda sociedade ou cultura tende, com diversos graus de
clausura, a impor suas classificações do mundo social, cultural e político. Essas classificações
constituem uma ordem cultural dominante, apesar de esta não ser nem unívoca nem
incontestável. (HALL, 2003, p. 400)

A primeira posição hipotética refere-se à posição hegemônica-dominante. Quando o


telespectador se apropria do sentido conotado de, digamos, um telejornal ou um programa
de atualidades, de forma direta e integral, e decodifica a mensagem nos termos do código
referencial no qual ela foi codificada, podemos dizer que o telespectador está operando
dentro do código dominante. Esse é o caso Ideal-típico de "comunicação perfeitamente
transparente" ou o caso mais próximo, para todos os efeitos. (HALL, 2003, p. 404)

Como os profissionais da televisão são capazes de operar com códigos próprios


"relativamente autônomos" e ao mesmo tempo agir de tal forma que reproduzem (não sem
contradições) a significação hegemônica dos acontecimentos é uma questão complexa, que
não pode ser melhor explicitada aqui. Basta dizer que os profissionais estão ligados às
elites decisórias não somente através da posição institucional das próprias emissoras
enquanto "aparelho ideológico", mas também pela estrutura de acesso (ou seja, o recurso
excessivo e sistemático a pessoas da elite e à sua "definição da situação" na televisão).
(HALL, 2003, p. 405)

A segunda posição que identificaríamos é a do código negociado. Provavelmente, a


maioria das audiências compreende bastante bem o que foi definido de maneira dominante
e recebeu um significado de forma profissional. Entretanto, as definições dominantes são
hegemônicas precisamente porque representam definições de situações e eventos que estão
"em dominância", (globais). (HALL, 2003, p. 405)

Decodificar, dentro da versão negociada, contém uma mistura de elementos de adaptação e de


oposição: reconhece a legitimidade das definições hegemônicas para produzir as grandes
significações (abstratas), ao passo que, em um nível mais restrito, situacional (localizado), faz suas
próprias regras — funciona com as exceções à regra. (HALL, 2003, p. 405)

Confere posição privilegiada às definições dominantes dos acontecimentos, enquanto se


reserva o direito de fazer uma aplicação mais negociada às "condições locais" e às suas
próprias posições mais corporativas. (HALL, 2003, p. 405)

Finalmente, é possível para um telespectador entender perfeitamente tanto a inflexão


conotativa quanto a literal conferida a um discurso, mas, ao mesmo tempo, decodificar a
mensagem de uma maneira globalmente contrária. Ele ou ela destotaliza a mensagem no
código preferencial para retotalizá-la dentro de algum referencial alternativo. Esse é o caso
do telespectador que ouve um debate sobre a necessidade de limitar os salários, mas "lê"
cada menção ao "interesse nacional" como "interesse de classe". Ele ou ela está operando
com o que chamamos de código de oposição. (HALL, 2003, p. 405)

Um dos momentos políticos mais significativos (eles também coincidem com os momentos
de crise dentro das próprias empresas de televisão, por razões óbvias) é aquele em que os
acontecimentos que são normalmente significados e decodificados de maneira negociada
começam a ter uma leitura contestatária. Aqui se trava a "política da significação" — a luta
no discurso. (HALL, 2003, p. 405)

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