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Em 15/7/1971, em visita a sua família em Santos, Luiz Eduardo foi levado a força, sob a
mira de pesado armamento, por agentes do DOI- CODI. Nos quatro dias subsequentes,
militares mantiveram a família, inclusive a coautora Regina, sob constante vigilância,
mas sem notícias sobre Luiz Eduardo, até que noticiado seu falecimento, por suicídio.
Foi possível, porém, constatar que ele fora vítima de tortura, tendo em conta as
condições em que se apresentava o corpo.
A coautora Maria Helena estava na França quando recebeu a notícia da morte de seu
companheiro. Mesmo depois do fatídico evento, a família foi mantida sob constante
vigilância por agentes do exército. Os espancamentos de Luiz Eduardo se deram sob
supervisão, comando e, por vezes, por ato direto do requerido, que, então, era
comandante do DOI-CODI e da operação OBAN (Operação Bandeirante, como foi
denominado o centro de informações e investigações montado pelo exército em 1969,
voltado a coordenar e integrar as ações dos órgãos de combate às o rganizações armadas
de esquerda).
Sofreram danos morais como decorrência de referidos atos de tortura praticados pelo
réu e que resultaram na morte daquele que era, respectivamente, companheiro e irmão.
Tecem considerações acerca da imprescritibilidade das pretensões relacionadas a
afronta aos direitos da personalidade e aos direitos humanos. Pedem a procedência da
ação para o fim de ser o réu condenado ao pagamento de indenização por danos morais.
Veio a inicial instruída com os documentos de fls. 29/132, entre eles cópias de
depoimentos testemunhais, decisões judiciais e notícias jornalísticas. Em contestação
(fls. 141/159), invoca o requerido preliminares de falta de pressuposto processual,
incompetência absoluta, ilegitimidade passiva, falta de interesse de agir e
impossibilidade jurídica do pedido. No mérito, argumenta ter sido a pretensão atingida
pela prescrição e nega participação nos atos descritos, que não encontram substrato no
conteúdo do atestado de óbito do jornalista. Sustenta serem inverídicos os relatos feitos
por presos políticos. Pugna pela improcedência do pedido e junta documentos. Seguiu-
se manifestação das autoras (fls. 658/665) e, por decisão de fls. 670/671, afastadas as
preliminares, foi deferida a produção de prova oral. Contra referida decisão tirou o réu
agravo de instrumento (fls. 686/699), pendente de julgamento. Consistiu a instrução da
inquirição de sete testemunhas (fls. 756 e 789/848, 961). Encerrada referida fase
processual, apresentaram as partes alegações finais, sob a forma de memoriais. É o
relatório.
Fundamento e DECIDO.
Agravo desprovido.
3. No que diz respeito à prescrição, já pontuou esta Corte que a prescrição quinquenal
prevista no art. 1º do Decreto-lei 20.910/32 não se aplica aos danos morais decorrentes
de violação de direitos da personalidade, que são imprescritíveis, máxime quando se
fala da época do Regime Militar, quando os jurisdicionais não podiam buscar a contento
as suas pretensões. (REsp. 1.002.009/PE, 2ª Turma, rel. Min. Humberto Martins, DJ
21/2/2008).
III. A prova oral deu integral respaldo ao relato feito constante da inicial. Narraram as
testemunhas a dinâmica dos eventos, a elevada brutalidade dos espancamentos a que foi
submetido o companheiro e irmão das autoras, que o levaram a morte, ora sob comando,
ora sob atuação direta do requerido, na qualidade de comandante do DOI-CODI e da
operação OBAN, vinculadas a manutenção e proteção do regime militar. Narrou a
testemunha Laurindo Martins Junqueira Filho que: “Ustra era o Comandante da unidade
e assistiu minha tortura, assistiu a tortura do meu companheiro que estava comigo. Ele
não viu o Luiz Eduardo sendo torturado, mas ele era o Comandante da unidade de
tortura e orientava essa t ortura pessoalmente.” (…) “Após o contato com o Luiz
Eduardo, eu recebi informações de um soldado do exército, que prestava serviço na
Unidade da OBAN, de que o Luiz Eduardo tinha morrido, tinha sido torturado durante a
noite. E esse soldado, de suposto nome Washington, de cor negra, veio até mim e falou
que o Luiz Eduardo tinha morrido de gangrena nas pernas; tinha sido conduzido para
um passeio – foi a expressão que ele usou – na madrugada, e que tinha sido várias vezes
atropelado por um caminhão que prestava serviços para a unidade da OBAN. Isso teria
se repetido tantas vezes que os órgãos dele tinham sido decepados pelo caminhão.” (fl.
802). A testemunha Leane Ferreira de Almeida, por sua vez, relatou que: “ouvi os gritos
do Luiz Eduardo durante três dias, durante o período que as equipes comandadas pelo
Major Ustra o torturaram.” Noticia também que, embora não tenha presenciado o
momento da tortura de Luiz Eduardo, o requerido estava no local dos fatos. “Estava o
Ustra. A coisa principal que ele estava fazendo naquele dia era torturar as pessoas que
poderiam levar a uma pessoa que ele procurava muito fortemente; (…) Ele gritava esse
nome pessoalmente enquanto ele era torturado no Pau-de-Arara. Parece um código, mas
era o nome de um militante. O objetivo dele era chegar aos militantes. Quando eu não
tive essa informação para dar, o Luiz Eduardo foi preso e passou a ser torturado na
mesma sequência e sala que eu, durante três dias consecutivos. Todos os presos
escutavam os gritos dele incessantemente, até sua retirada da Operação Bandeirantes,
desacordado e colocado no porta-malas de uma carro. Isso foi visto por mim, no pátio
do Presídio Bandeirantes, comandado pelo Major Ustra; colocado no porta-malas de um
carro por quatro outros policiais da mesma equipe. Foi colocado no porta-malas do
carro, desacordado. Parecia até que já morto.” (808). Coincidem os relatos da
testemunha Paulo de Tarso Vanucchi: “Retornei ao DOI-CODI da Rua Tutóia no mês
de julho. (…) respondi relatórios curtos e conheci o Merlino, que foi trazido para a porta
da minha cela, no xadrez três (…) onde foi a massagem, deitado numa escrivaninha, que
um enfermeiro – conhecido como Boliviano – fez durante uma hora na minha frente.
Pude conversar com o Merlino, eu era estudante de medicina e notei que ele tinha numa
das pernas a cor da cianose, que é um sintoma de isquemia, risco de gangrena. E nos
dias seguintes pergunte para carcereiros, sobretudo para um policial de nome Gabriel –
negro, atencioso – o que tinha acontecido com aquele moço e ele respondeu que ele
tinha sido levado para o hospital. Nos dias seguintes vi essa versão repetida e tinha
contato com o Major Tibiriçá, cheguei a perguntar sobre isso e ele nada respondeu. E
nesse sentido eu tenho a dizer que o Major Ustra era o comandante que determinava
tudo o que podia, o que devia ser feito e o que não tinha (fl. 818). É de Joel Rufino dos
Santos o seguinte relato: “Pela versão que meu esse torturador, ele (Ustra) estava
presente e comandou a tortura sobre o Merlino. E decidiu ao final se amputava ou não a
perna do Merlino. A versão que recebi foi essa, que o Merlino, depois de muito
torturado, foi levado ao hospital e de lá telefonaram, se comunicaram com o
Comandante pra saber o que fazer. Ele disse para deixar morrer.” (fl.844). As
testemunhas arroladas pelo requerido, por sua vez, nada souberam informar
especificamente acerca dos fatos, porque nada presenciaram, uma delas só o conheceu
depois da aposentadoria.
IV. Evidentes os excessos cometidos pelo requerido, diante dos depoimentos no sentido
de que, na maior parte das vezes, o requerido participava das sessões de tortura e,
inclusive, dirigia e calibrava intensidade e duração dos golpes e as várias opções de
instrumentos utilizados. Mesmo que assim não fosse, na qualidade de comandante
daquela unidade m ilitar, não é minimamente crível que o requerido não conhecesse a
dinâmica do trabalho e a brutalidade do tratamento dispensados aos presos políticos. É o
quanto basta para reconhecer a culpa do requerido pelos sofrimentos infligidos a Luiz
Eduardo e pela morte dele que se seguiu, segundo consta, por opção do próprio
demandado, fatos em razão dos quais, por via reflexa, experimentaram as autoras
expressivos danos morais. Oportuno mencionar que, a par de tipificada como crime, a
tortura é vedada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e constitui indevida
afronta à incolumidade daquele que está sob a responsabilidade do Estado e do agente
público no exercício do comando. Nem mesmo o eventual cumprimento de ordem de
superior hierárquico poderia afastar a culpa do requerido, porque se trataria de ordem
absolutamente ilegal, que, por isso mesmo, não poderia ser acatada, sem delinear culpa
própria. Permito-me transcrever recente julgado do Tribunal Regional Federal acerca do
mesmo tema: “Indenização por danos morais. Prisão. Tortura e morte do pai e marido
das autoras. Regime militar. Alegada prescrição. Inocorrência. Lei n. 9.140/95.
Reconhecimento oficial do falecimento pela comissão especial de desaparecidos
políticos. Dever de indenizar.
1. Não há que se falar em ausência de interesse de agir dado o fato de que a reparação
especial prevista na Lei 9.140/95, não impede que o interessado busque indenização sob
outro fundamento jurídico.
4. A morte do pai e marido das autoras em decorrência das torturas que lhe foram
infligidas quando esteve preso no conhecido e temido DOPS (Departamento de Ordem
Política e Social), no mês de abril de 1970, foi reconhecida pela Comissão Especial
instituída pelo artigo 4º da Lei 9.140/95.
5. A morte prematura do marido e pai privou as autoras de uma vida em comum com
alguém intelectualmente privilegiado, além de certamente ter reflexos financeiros na
vida de ambas a justificar a condenação da União a lhes pagar indenização por danos
morais.