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SENTENÇA NA ÍNTEGRA

VISTOS. ANGELA MARIA MENDES DE ALMEIDA e REGINA MARIA


MERLINO DIAS DE ALMEIDA, com qualificação na inicial, propuseram AÇÃO
CONDENATÓRIA contra CARLOS ALBERTO BRILHANTE USTRA, também
qualificado, sob fundamento de que foram, respectivamente, companheira e irmã de
LUIZ EDUARDO DA ROCHA MERLINO, jornalista falecido em 19/7/1971, quando
estava preso no DOI-CODI (Destacamento de Operações e Informações – Centro de
Operações de Defesa Interna, órgão subordinado ao exército) em São Paulo, em
decorrência de espancamentos e atos outros de tortura comandados e praticados
diretamente pelo requerido. Fazem relato da participação da primeira autora e de Luiz
Eduardo no movimento estudantil no final da década de 60 e das atividades
desenvolvidas como integrantes do Partido Operário Comunista, clandestinos desde
1968, depois residentes por um tempo na França.

Em 15/7/1971, em visita a sua família em Santos, Luiz Eduardo foi levado a força, sob a
mira de pesado armamento, por agentes do DOI- CODI. Nos quatro dias subsequentes,
militares mantiveram a família, inclusive a coautora Regina, sob constante vigilância,
mas sem notícias sobre Luiz Eduardo, até que noticiado seu falecimento, por suicídio.
Foi possível, porém, constatar que ele fora vítima de tortura, tendo em conta as
condições em que se apresentava o corpo.

Diversa, porém, foi a versão apresentada pelos agentes do DOPS (Departamento de


Ordem Política e Social): quando era transportado para o Rio Grande do Sul, para lá
reconhecer colegas militantes, durante uma parada na proximidades de Jacupiranga,
Luiz Eduardo teria se jogado à frente de um carro que trafegava pela rodovia e fora
atropelado. Este o conteúdo lançado no atestado de óbito pelos técnicos no IML.
Tempos depois, outras pessoas que estiveram no DOI-CODI na mesma época
trouxeram relato de que Luiz Eduardo fora espancado durante 24 horas seguidas no
“pau-de-arara” e, como consequência, passou a apresentar dores nas pernas, que, depois,
se constatou ser sintoma de complicações circulatórias severas, que redundaram na
morte dele, por falta de atendimento médico adequado e excesso nos atos praticados
pelo réu.

A coautora Maria Helena estava na França quando recebeu a notícia da morte de seu
companheiro. Mesmo depois do fatídico evento, a família foi mantida sob constante
vigilância por agentes do exército. Os espancamentos de Luiz Eduardo se deram sob
supervisão, comando e, por vezes, por ato direto do requerido, que, então, era
comandante do DOI-CODI e da operação OBAN (Operação Bandeirante, como foi
denominado o centro de informações e investigações montado pelo exército em 1969,
voltado a coordenar e integrar as ações dos órgãos de combate às o rganizações armadas
de esquerda).

Sofreram danos morais como decorrência de referidos atos de tortura praticados pelo
réu e que resultaram na morte daquele que era, respectivamente, companheiro e irmão.
Tecem considerações acerca da imprescritibilidade das pretensões relacionadas a
afronta aos direitos da personalidade e aos direitos humanos. Pedem a procedência da
ação para o fim de ser o réu condenado ao pagamento de indenização por danos morais.
Veio a inicial instruída com os documentos de fls. 29/132, entre eles cópias de
depoimentos testemunhais, decisões judiciais e notícias jornalísticas. Em contestação
(fls. 141/159), invoca o requerido preliminares de falta de pressuposto processual,
incompetência absoluta, ilegitimidade passiva, falta de interesse de agir e
impossibilidade jurídica do pedido. No mérito, argumenta ter sido a pretensão atingida
pela prescrição e nega participação nos atos descritos, que não encontram substrato no
conteúdo do atestado de óbito do jornalista. Sustenta serem inverídicos os relatos feitos
por presos políticos. Pugna pela improcedência do pedido e junta documentos. Seguiu-
se manifestação das autoras (fls. 658/665) e, por decisão de fls. 670/671, afastadas as
preliminares, foi deferida a produção de prova oral. Contra referida decisão tirou o réu
agravo de instrumento (fls. 686/699), pendente de julgamento. Consistiu a instrução da
inquirição de sete testemunhas (fls. 756 e 789/848, 961). Encerrada referida fase
processual, apresentaram as partes alegações finais, sob a forma de memoriais. É o
relatório.

Fundamento e DECIDO.

I. É objetivo das autoras condenação ao pagamento de indenização por danos morais


decorrentes dos atos por ele praticados com excesso e abuso de poder, na qualidade de
membro do Exército, comandante do DOI-CODI e da operação OBAN, consistentes em
comandar tortura e, por vezes, dela participar diretamente, da qual resultou a morte de
Luiz Eduardo da Rocha Merlino, que foi, respectivamente, companheiro e irmão delas.
Resiste o réu a dita pretensão, forte quanto a estar prescrita a pretensão, de resto não
praticados os atos que lhe são imputados.

II. Superado, por decisão saneadora, o enfrentamento das questões processuais,


oportuno mencionar que o litígio em análise não sofre ingerência da anistia contemplada
na Lei nº 6.683/79, de âmbito exclusivamente penal, como de resto reconheceu o
Supremo Tribunal Federal ao apreciar a reclamação arguida pelo requerido por suposta
violação à decisão da Corte no ADPF 153, em razão de decisão proferida nestes autos:
“não há identidade entre o caso apresentado e o decidido por esta Casa de Justiça do
julgamento da APDF 153” no sentido da “integração da anistia da Lei de 1979 na nova
ordem constitucional. Lei de anistia, contudo, que não trata da responsabilidade civil
pelos atos praticados no chamado ‘período de exceção’.

E é certo que a anistia como causa de extinção da punibilidade e focada categoria de


direito penal não implica a imediata exclusão do ilícito civil e sua consequente
repercussão indenizatória.” (fls. 930/931). Não é de olvidar, porém, que até mesmo a
anistia assim referendada pela Corte Suprema não está infensa a discussões, tendo em
conta subsequente julgamento proferido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos
da Organização dos Estados Americanos (OEA), em que o Brasil foi condenado pelo
desaparecimento de militantes na guerrilha do Araguaia, enquadrados os fatos como
crimes contra a humanidade e declarados imprescritíveis. No ponto, ostenta especial
relevância considerar que a atual configuração inter-relacionada dos diversos países,
integrantes de organizações internacionais voltadas para fins políticos, econômicos e
sociais, e a intensa movimentação de pessoas entre as várias nações, faz com que a
regulamentação acerca do respeito a os direitos humanos e das consequências dos atos
praticados afronta deles transcenda largamente a posição soberana dos Estados para se
basear, isto sim, em cada pessoa, como titular de direitos essenciais, independentemente
da nacionalidade e do local em que esteja. Daí a relevância dos tratados internacionais
acerca de direitos humanos, vez que como direitos essenciais não podem sofrer
injunções ou considerações locais, com base no poder constituinte, quer originário, quer
derivado. Como ensina Marcio Sotelo Felippe (www.viomundo.com.br), “além do
fenômeno da convencionalidade sustentado pelo princípio da ‘pacta sunt servanda’, há
normas de Direito Internacional que têm a característica da cogência. Após Nuremberg
se reconhece que normas do Direito Internacional dos Direitos Humanos são cogentes.
Derivadas dos costumes e de outras fontes formais do Direito, independem, para sua
eficácia, da vontade dos sujeitos envolvidos numa relação jurídica. A racionalidade
disto é clara. Trata-se de um imperativo moral transformado em axioma jurídico: como
poderia a proteção da vida e dos direitos básicos da pessoa humana depender de um ato
de vontade, em qualquer plano do fenômeno jurídico?” (…) “A ideia de que somente
normas positivadas por meio de determinados procedimentos formais constituem o
Direito independentemente de juízo de valor deve ser considerada hoje uma etapa
primitiva do desenvolvimento do fenômeno jurídico. Isto porque a dignidade da pessoa
humana deixou de ser postulado filosófico para tornar-se axioma jurídico. Está na raiz
dos instrumentos internacionais de defesa dos Direitos Humanos que se seguiram à
barbárie nazista: a Declaração Universal de 1948, o Pacto de Direitos Civis e Políticos,
a Declaração de Direitos Econômicos e Sociais, a Convenção sobre a
Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e contra a Humanidade, de 1968, Convenção
contra a Tortura, etc.” Desde 1992, o Brasil ratificou a Convenção Internacional de
Direitos Humanos e, em 1998, reconheceu a competência da Corte Interamericana de
Direitos Humanos para o trato do tema. Em recente julgamento, referida Corte
reconheceu a invalidade da Lei da Anistia porque “afetou o dever internacional do
Estado de investigar e punir as graves violações de direitos humanos, ao impedir que os
familiares das vítimas no presente caso fossem ouvidos por um juiz, conforme
estabelece o artigo 8.1 da Convenção Americana, e violou o direito à proteção judicial
consagrado no artigo 25 do mesmo instrumento, precisamente pela falta de
investigação, persecução, captura, julgamento e punição dos responsáveis pelos fatos,
descumprindo também o art. 1.1 da Convenção.” Estes os termos em que há muito, sob
a ótica dos direitos humanos, está proclamada a imprescritibilidade dos crimes contra os
direitos de personalidade e de suas consequências, vez que devem ser tratados sem
conside ração a fronteiras e soberania nacionais. É farta a jurisprudência do Superior
Tribunal de Justiça no reconhecimento da imprescritibilidade da ação de reparação de
danos morais decorrentes de ofensas a direitos humanos, inclusive aquelas praticadas
durante o regime militar. Eis os exemplos: “Agravo Regimental no Agravo de
Instrumento. Processual civil. Administrativo. Ação de reparação de danos morais.
Prisão ilegal e tortura durante o período militar. Prescrição quinquenal prevista no art.
1º do Decreto 20.910/32. Não ocorrência. Imprescritibilidade de pretensão indenizatória
decorrente de violação de direitos humanos fundamentais durante o período da ditadura
militar. Recurso incapaz de infirmar os fundamentos da decisão agravada.

Agravo desprovido.

1. São imprescritíveis as ações de reparação de dano ajuizadas em decorrência de


perseguição, tortura e prisão, por motivos políticos, durante o Regime Militar,
afastando, por conseguinte, a prescrição quinquenal prevista no artigo 1º do Decreto
20.910/32. Isso porque as referidas ações referem-se a período em que a ordem jurídica
foi desconsiderada, com legislação de exceção, havendo, sem dúvida, incontáveis
abusos e violações de direitos fundamentais, mormente do direito à dignidade da pessoa
humana.

2. Não há falar em prescrição da pretensão de se implementar um dos pilares da


República, máxime porque a Constituição não estipulou lapso prescricional ao direito
de agir, correspondente ao direito inalienável à dignidade. (REsp. 816.209/RJ, 1ª
Turma, rel. Min. Luiz Fux, DJ, 3/9/2007).

3. No que diz respeito à prescrição, já pontuou esta Corte que a prescrição quinquenal
prevista no art. 1º do Decreto-lei 20.910/32 não se aplica aos danos morais decorrentes
de violação de direitos da personalidade, que são imprescritíveis, máxime quando se
fala da época do Regime Militar, quando os jurisdicionais não podiam buscar a contento
as suas pretensões. (REsp. 1.002.009/PE, 2ª Turma, rel. Min. Humberto Martins, DJ
21/2/2008).

4. Agravo regimental desprovido.” (STJ, AgRg no Ag 970753/MG, 1ª Turma, rel. Min.


Denise Arruda, DEJ 12/11/2008). “Agravo regimental. Administrativo.
Responsabilidade civil do Estado. Danos morais. Tortura. Regime militar.
Imprescritibilidade. 1. A Segunda Turma desta Corte Superior, em recente julgamento,
ratificou seu posicionamento no sentido da imprescritibilidade dos danos morais
advindos de tortura no regime militar, motivo pelo qual a jurisprudência neste órgão
fracionário considera-se pacífica. Não-ocorrência de violação ao art. 557 do CPC. Via
inadequada para fazer valer suposta divergência entre as Turmas que compõem a
Primeira Seção. (…)

5. Agravo regimental não-provido.” (STJ, AgRg no REsp 970697/MG, 2ª Turma, rel.


Min. Mauro Campbell Marques, DJE 5/11/2008). Cai como luva ao caso em análise o
trecho do acórdão de que foi relatora a Ministra Eliana Calmon (REsp. 602.237): “Sob a
égide da Constituição de 88, inaugurou-se no Brasil uma nova visão do fenômeno
jurídica dando-se primazia aos princípios constitucionais, de forma a estar o magistrado
autorizado a afastar a lei ordinária, se esta colidir com algum princípio da Lei Maior.
Como a Carta da República tem como um dos seus princípios fundamentais a
preservação da dignidade da pessoa humana, tem-se sustentado a imprescritibilidade do
direito à recomposição material ou moral, quando a lesão é causada por ato político, o
qual deixa a vítima inteiramente à mercê do Estado. Daí o reconhecimento da
imprescritibilidade da ação de indenização dos que sofreram tortura ou outro dano
qualquer por ato praticado durante o governo revolucionário de 1964, diante da
fragilidade da vítima para se insurgir contra o Estado.” (…) “Não interfere na análise o
fato de figurar no polo passivo o agente estatal, porque não há fundament o jurídico,
doutrinário ou jurisprudencial, que autorize traçar, no tema discutido, uma linha
divisória entre a ação condenatória ou declaratória proposta contra o Estado e a ação
condenatória ou declaratória ajuizada contra seu agente.” (sem destaque no original).

III. A prova oral deu integral respaldo ao relato feito constante da inicial. Narraram as
testemunhas a dinâmica dos eventos, a elevada brutalidade dos espancamentos a que foi
submetido o companheiro e irmão das autoras, que o levaram a morte, ora sob comando,
ora sob atuação direta do requerido, na qualidade de comandante do DOI-CODI e da
operação OBAN, vinculadas a manutenção e proteção do regime militar. Narrou a
testemunha Laurindo Martins Junqueira Filho que: “Ustra era o Comandante da unidade
e assistiu minha tortura, assistiu a tortura do meu companheiro que estava comigo. Ele
não viu o Luiz Eduardo sendo torturado, mas ele era o Comandante da unidade de
tortura e orientava essa t ortura pessoalmente.” (…) “Após o contato com o Luiz
Eduardo, eu recebi informações de um soldado do exército, que prestava serviço na
Unidade da OBAN, de que o Luiz Eduardo tinha morrido, tinha sido torturado durante a
noite. E esse soldado, de suposto nome Washington, de cor negra, veio até mim e falou
que o Luiz Eduardo tinha morrido de gangrena nas pernas; tinha sido conduzido para
um passeio – foi a expressão que ele usou – na madrugada, e que tinha sido várias vezes
atropelado por um caminhão que prestava serviços para a unidade da OBAN. Isso teria
se repetido tantas vezes que os órgãos dele tinham sido decepados pelo caminhão.” (fl.
802). A testemunha Leane Ferreira de Almeida, por sua vez, relatou que: “ouvi os gritos
do Luiz Eduardo durante três dias, durante o período que as equipes comandadas pelo
Major Ustra o torturaram.” Noticia também que, embora não tenha presenciado o
momento da tortura de Luiz Eduardo, o requerido estava no local dos fatos. “Estava o
Ustra. A coisa principal que ele estava fazendo naquele dia era torturar as pessoas que
poderiam levar a uma pessoa que ele procurava muito fortemente; (…) Ele gritava esse
nome pessoalmente enquanto ele era torturado no Pau-de-Arara. Parece um código, mas
era o nome de um militante. O objetivo dele era chegar aos militantes. Quando eu não
tive essa informação para dar, o Luiz Eduardo foi preso e passou a ser torturado na
mesma sequência e sala que eu, durante três dias consecutivos. Todos os presos
escutavam os gritos dele incessantemente, até sua retirada da Operação Bandeirantes,
desacordado e colocado no porta-malas de uma carro. Isso foi visto por mim, no pátio
do Presídio Bandeirantes, comandado pelo Major Ustra; colocado no porta-malas de um
carro por quatro outros policiais da mesma equipe. Foi colocado no porta-malas do
carro, desacordado. Parecia até que já morto.” (808). Coincidem os relatos da
testemunha Paulo de Tarso Vanucchi: “Retornei ao DOI-CODI da Rua Tutóia no mês
de julho. (…) respondi relatórios curtos e conheci o Merlino, que foi trazido para a porta
da minha cela, no xadrez três (…) onde foi a massagem, deitado numa escrivaninha, que
um enfermeiro – conhecido como Boliviano – fez durante uma hora na minha frente.
Pude conversar com o Merlino, eu era estudante de medicina e notei que ele tinha numa
das pernas a cor da cianose, que é um sintoma de isquemia, risco de gangrena. E nos
dias seguintes pergunte para carcereiros, sobretudo para um policial de nome Gabriel –
negro, atencioso – o que tinha acontecido com aquele moço e ele respondeu que ele
tinha sido levado para o hospital. Nos dias seguintes vi essa versão repetida e tinha
contato com o Major Tibiriçá, cheguei a perguntar sobre isso e ele nada respondeu. E
nesse sentido eu tenho a dizer que o Major Ustra era o comandante que determinava
tudo o que podia, o que devia ser feito e o que não tinha (fl. 818). É de Joel Rufino dos
Santos o seguinte relato: “Pela versão que meu esse torturador, ele (Ustra) estava
presente e comandou a tortura sobre o Merlino. E decidiu ao final se amputava ou não a
perna do Merlino. A versão que recebi foi essa, que o Merlino, depois de muito
torturado, foi levado ao hospital e de lá telefonaram, se comunicaram com o
Comandante pra saber o que fazer. Ele disse para deixar morrer.” (fl.844). As
testemunhas arroladas pelo requerido, por sua vez, nada souberam informar
especificamente acerca dos fatos, porque nada presenciaram, uma delas só o conheceu
depois da aposentadoria.

IV. Evidentes os excessos cometidos pelo requerido, diante dos depoimentos no sentido
de que, na maior parte das vezes, o requerido participava das sessões de tortura e,
inclusive, dirigia e calibrava intensidade e duração dos golpes e as várias opções de
instrumentos utilizados. Mesmo que assim não fosse, na qualidade de comandante
daquela unidade m ilitar, não é minimamente crível que o requerido não conhecesse a
dinâmica do trabalho e a brutalidade do tratamento dispensados aos presos políticos. É o
quanto basta para reconhecer a culpa do requerido pelos sofrimentos infligidos a Luiz
Eduardo e pela morte dele que se seguiu, segundo consta, por opção do próprio
demandado, fatos em razão dos quais, por via reflexa, experimentaram as autoras
expressivos danos morais. Oportuno mencionar que, a par de tipificada como crime, a
tortura é vedada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e constitui indevida
afronta à incolumidade daquele que está sob a responsabilidade do Estado e do agente
público no exercício do comando. Nem mesmo o eventual cumprimento de ordem de
superior hierárquico poderia afastar a culpa do requerido, porque se trataria de ordem
absolutamente ilegal, que, por isso mesmo, não poderia ser acatada, sem delinear culpa
própria. Permito-me transcrever recente julgado do Tribunal Regional Federal acerca do
mesmo tema: “Indenização por danos morais. Prisão. Tortura e morte do pai e marido
das autoras. Regime militar. Alegada prescrição. Inocorrência. Lei n. 9.140/95.
Reconhecimento oficial do falecimento pela comissão especial de desaparecidos
políticos. Dever de indenizar.

1. Não há que se falar em ausência de interesse de agir dado o fato de que a reparação
especial prevista na Lei 9.140/95, não impede que o interessado busque indenização sob
outro fundamento jurídico.

2. Também deve ser afastada a alegação de prescrição da ação, visto que a


jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça consolidou-se no sentido da
imprescritibilidade da ação para reparação por danos morais decorrentes de ofensa aos
direitos humanos, incluindo aqueles perpetrados durante o ciclo do Regime Militar.

3. A documentação nos autos comprova que o falecido, em razão de sua militância


política, foi perseguido, preso e torturado, o que resultou em seu óbito.

4. A morte do pai e marido das autoras em decorrência das torturas que lhe foram
infligidas quando esteve preso no conhecido e temido DOPS (Departamento de Ordem
Política e Social), no mês de abril de 1970, foi reconhecida pela Comissão Especial
instituída pelo artigo 4º da Lei 9.140/95.

5. A morte prematura do marido e pai privou as autoras de uma vida em comum com
alguém intelectualmente privilegiado, além de certamente ter reflexos financeiros na
vida de ambas a justificar a condenação da União a lhes pagar indenização por danos
morais.

6. Considerando o princípio da razoabilidade e tendo como parâmetro decisão proferida


pelo Superior Tribunal de Justiça (REsp 41614/SP, rel. Min. Aldir Passarinho, 4ª
Turma, j. 21/10/1999), entendo razoáveis os valores fixados na sentença de primeiro
grau a título de danos morais. (…)” (TRF 3ª Região, 3ª Turma, rel. DEs. Rubens
Calixto, j. 1/3/2012).

V. A ilicitude no comportamento do réu teve o condão de causar ofensa a bem


juridicamente tutelado das autoras, de caráter extrapatrimonial. Trata-se de dano
reflexo, vez que conduta ilícita se dirigiu a ente próximo e muito querido delas,
integrante do círculo familiar de relacionamento mais relevante. A brutal violência com
que o requerido pautou sua conduta fez ainda mais gravoso o resultado final morte, dada
a crueldade que, impingida a ente querido, acabou por atingir a esfera de dignidade das
próprias autoras. A morte prematura por motivo político e com requintes de crueldade
privou as autoras do convívio com seu companheiro e irmão, respectivamente. Por
certo, a indenização almejada não será capaz de sanar a dor suportada pelas autoras,
nem suprir-lhes a ausência do ente querido. Destina-se a minorar o intenso sofrimento.
Muito se assemelham em seus objetivos a indenização aqui almejada e o trabalho da
Comissão da Verdade, cujos integrantes foram recentemente empossados pela União.
Como escr eveu Flávia Piovesan em recente artigo publicado no jornal “O Estado de
São Paulo”, edição de 6/5/2012: “Para a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos, ‘toda sociedade tem o direito irrenunciável de conhecer a verdade do
ocorrido, assim como as razões e circunstâncias em que aberrantes delitos foram
cometidos, a fim de evitar que esses atos voltem a ocorrer no futuro’. O direito à
verdade apresenta uma dupla dimensão: individual e coletiva. Individual ao conferir aos
familiares de vítimas de graves violações o direito à informação sobre o ocorrido,
permitindo-lhes o direito a honrar seus entes queridos, celebrando o direito ao luto.
Coletivo, ao assegurar à sociedade em geral o direito à construção da memória e
identidade coletivas, cumprindo um papel preventivo, ao confiar às gerações futuras a
responsabilidade de prevenir a ocorrência de tais práticas. Como sustenta um
parlamentar chileno: ‘A consciência moral de uma nação dema nda a verdade porque
apenas com base na verdade é possível satisfazer demandas essenciais de justiça e criar
condições necessárias para alcançar a efetiva reconciliação nacional’.” Com tais
parâmetros, fixo a indenização devida pelo requerido às autoras no valor de R$
50.000,00 para cada uma.

VI. Por todo o exposto, JULGO PROCEDENTE o pedido e condeno o requerido a


pagar a cada uma das autoras indenização por danos morais no valor de R$ 50.000,00
(cinquenta mil reais), válido para esta data, a ser acrescido, até final pagamento de
correção monetária computada segundo os critérios fixados pelo Tribunal de Justiça
deste estado para atualização de débitos judiciais. Juros de mora incidirão desde o
evento danoso, nos moldes da súmula 54 do STJ, sendo de 0,5% ao mês até 10/01/2003
e de 1% ao mês a partir de 11/1/2003. Arcará o requerido com o pagamento de custas e
despesas processuais, bem como de honorários advocatícios que fixo em 10% do val or
da condenação. Publique-se. Registre-se. Intimem-se. São Paulo, 25 de junho de 2012.

CLAUDIA DE LIMA MENGE Juíza de Direito

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