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como bruxaria1
Diego Rayck
O rabino modelou no barro um corpo humanóide. Animou‐o escrevendo na fronte Emeth, verdade, e a
criatura, um Golem, passou a servir e proteger a comunidade de acordo com as instruções que recebia.
Para que não trabalhasse no Sabbath, toda sexta‐feira à noite era apagada de seu corpo a letra Aleph,
deixando apenas a palavra Meth, morte, e o Golem ficava inerte. Em uma noite este procedimento foi
esquecido e no dia seguinte a criatura desgovernada liberou sua força de maneira destrutiva. Ela só foi
impedida quando o rabino apagou as letras, devolvendo‐a ao estado de um monte de terra.
Desenhar é como atiçar brasas.
Evocar pode significar trazer à memória e também a tentativa de atrair entidades
sobrenaturais. Todos os sentidos relacionados, chamar, nomear, intimar, desejar, pedir,
convidar ou chamar em auxílio, implicam voz e palavra (e‐voc‐ar). Desenhar é evocar, reunir
outras imagens, lembrar, fazer vir o que não se foi completamente, o que não existe, o que
existe contiguamente ao nosso tempo e espaço. Por seu parentesco com a escrita, pela sua
capacidade de jogo com as formas e aparências, desenhar é chamar e nomear as coisas. Em
uma abordagem de referência mítica, no nome reside uma espécie de verdade sobre as coisas,
algo como uma essência. Escrever e apagar, marcar e rasurar. אֱמֶת e מֶת.
Ainda que funcionando apenas como uma imagem, esta verdade mítica mobiliza a busca de
um sentido. O desenho, enquanto prática investigativa, ligado ao nome, aparência e estrutura
das coisas, pode igualmente ser visto como imagem desta busca. Assumindo o desenho como
um projeto positivo ou, de forma oposta, uma ambulação aventurosa, permanece em ambos
os casos o desejo de saber, de descobrir ou confirmar, ainda que seja casualmente, ainda que
seja disfarçado de humildade. Desta maneira, desenhar, este ato cujas qualidades são tão
destacadas nos discursos atuais, contém uma parcela de vaidade, de entrega a uma sedução.
Desenhar como bruxaria demanda uma espécie de pretensão, mesmo inconfessa, mesmo
inconsciente. Mas esta pretensão não diz respeito aos domínios da técnica e da representação,
não possui como meta o desenho virtuoso ou qualquer medida de excelência de suas
aplicações. Ela se refere a uma intencionalidade não claramente direcionada, a uma ambição
que existe desde o primeiro momento em que alguém se dispõe a desenhar, desde a aceitação
de uma capacidade mínima para tentar. Freqüentemente se destaca o elemento volitivo do
desenho, mas não se comenta muito sobre o descomedimento desta vontade, e sobre o
quanto ela faz presente o fracasso e a decepção. Uma vez que pretensão essencialmente quer
dizer desejo, ambição e presunção, o termo instaura no desenho a possibilidade da ruína.
Desenhar é quase sempre naufragar.
Sobre a palavra pretensão podemos pensar ainda no sentido de estender para diante, alongar.
A ação mais elementar do desenho: estender a linha adiante. Avançar, abrir ou dividir um
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Publicado originalmente em Dias, Aline (org). Cadernos de Desenho. Florianópolis: Corpo Editorial, 2011.
espaço ao se traçar uma linha. O termo traçar traz muitos sentidos pertinentes para pensar a
ação de desenhar: o traço é linha, vestígio e semelhança. Diz‐se traço da porta para designar
seu limiar, como se o traço definisse uma divisão entre duas realidades diferentes, a de dentro
e a de fora. Para este tipo de traço, diferente da linha descrita em uma trajetória, o espaço
traçado passa a ser dois, e entre eles a linha se torna um abismo ou a passagem sombria de
um não‐espaço. Desenhar como bruxaria permite evocar estes não‐espaços, partir mundos ao
meio, fazer saltos entre realidades pelo traço de uma porta.
Pretender, como traçar uma linha adiante, é uma forma de ocupação do espaço. Sendo ocupar
uma maneira de preencher um espaço, de alastrar‐se nele, podemos pensar também em uma
errância. E errar é outro verbo importante ao se desenhar como bruxaria. Movido pela
pretensão, este tipo de desenho conduz ao erro, seja como método e processo, seja como
paradeiro. Um desenho propenso ao desencontro, ao desvio, à deriva, à vadiagem, ao engano
e à ruína. Às vezes uma forte indolência aparece justificando esta errância e o ato de desenhar
parece realmente deixar o barco seguir a corrente. Mas ela ocasionalmente também é uma
compensação de humor: resultado de um esgotamento ou de uma dissimulada frustração,
ambos proporcionais à pretensão e à paixão por desenhar. Desenhar errante é algo urgente,
que despreza a excessiva relevância que o senso comum atribui ao "desenhar bem”, ao
"desenhar certo" ‐ juízos que só consideram possível desenhar com resolução e
esclarecimento. E a idéia de desenhar construtivamente com otimismo e nobreza já soa como
um erro.
O desenho como bruxaria concentra os sentidos de evocação, pretensão e erro. É uma
expressão de injúria, um insulto deliberado aos valores positivos. Mesmo o projeto mais
iluminista de desenho é conduzido por desenhistas que, em alguma camada reprimida de seus
processos, desenham cheios de erro, de pretensão e através de evocações.
Podemos facilmente identificar desenhos que são exorcismos, conjurações, imprecações,
portais, pequenos encantamentos, metamorfoses, profecias. Mas desenhar como bruxaria não
acontece simplesmente para que o desenho obtenha algo, para que realize milagres: o próprio
desenho é a bruxaria e seu resultado. Quem desenha como bruxaria não o faz para que o
desenho realize algo senão ele mesmo, uma evocação feita às escuras para se descobrir a
quem está evocando e na qual o evocado e evocação se confundem.
Desenhar como se cada desenho fosse uma fogueira acesa sobre os restos de outra. Fazer
arder de novo o resto do que se queimou, há pouco largado como destroços de um naufrágio.