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41101 Textos e escritos: Etnografias

Tema 1: Etnografia e os/as antropólogos/as

Lúcio Sousa
Universidade Aberta
2019/2020
Apresentação da UC e dos Textos

Sinopse:

A unidade curricular, cuja designação reflete os vocábulos gregos éthnos, «povo» e


gráphein, «d/escrever», o que significa o processo de escrita e o objecto/ conhecimento
que surge da mesma, apresenta a etnografia simultaneamente como um produto e um
processo. Enquanto produto a etnografia corresponde aos textos elaborados pelos
antropólogos/as como resultado da sua investigação de terreno. Por seu turno,
enquanto processo, a etnografia corresponde ao método associado à fase de trabalho
de campo e observação participante, ao contacto e relação do antropólogo/a com os
seus sujeitos de estudo e colaboradores no terreno.
Esta unidade curricular pretende apresentar e analisar através de uma perspetiva
simultaneamente teórica e aplicada, obras etnográficas essenciais no desenvolvimento
da antropologia, em geral, mas dando igualmente destaque à antropologia portuguesa.
Para o efeito serão selecionadas algumas das etnografias mais ilustrativas, tendo por
referência a abrangência espacial e sociocultural da prática antropológica.

Competências:
• No final desta unidade curricular o/a estudante deverá ser capaz de:
• Compreender a especificidade do método e escrita etnográfica.
• Reconhecer obras etnográficas e autores fundamentais no domínio
antropológico.
• Aplicar a perspetiva etnográfica ao trabalho em ciências sociais.
• Desenvolver capacidade de reflexão crítica relativamente a temas de relevância
científica e de cidadania.

Organização dos Textos:

Os Textos e escritos: Etnografias estruturam-se da seguinte forma:


1. Apresentação do programa da unidade curricular sendo expostos os
pressupostos e objetivos gerais dos conteúdos temáticos.
2. Três capítulos relativos aos Temas 1- 3 do programa com o propósito de:
• Identificar os objetivos de aprendizagem;

1
• Apresentar textos de leitura fundamentais para trabalho de
construção de saberes1;
• Facultar elementos de exploração dos conteúdos trabalhados que
permitam recolher, selecionar e interpretar informação relevante.
• Refletir e ponderar a atuação por parâmetros éticos fundamentais.

3. Os Textos são, na essência, uma proposta metodológica de atividade de pesquisa


visando utilizar os conhecimentos e a compreensão dos temas adquiridos, de forma
a consolidarem os conteúdos trabalhados e os aplicar na área vocacional.
Para o efeito o trabalho deve ser desenvolvido com um “caderno de notas”, tal
como na prática etnográfica. A observação dos textos, a sua vivência, será aplicada
nos resumos orientados com base nos conteúdos a trabalhar (ficha disponível na sala
de aula). Estes conteúdos serão objeto de avaliação aquando dos momentos
específicos: e-fólios e provas finais.
Podem ainda usar um “diário de campo”, em que podem ir registando as dúvidas,
ansiedades, análises pessoais do que estão vivenciando, como esta experiência se
relaciona com outras aprendidas ou faz despoletar novas perspetivas sobre o mundo
envolvente, tão próximo quanto distante.

4. São efetuadas sugestões bibliográficas, de pesquisa online, de caráter


complementar, em língua portuguesa, espanhola, inglesa e francesa.

Disponibilização dos Textos:


Os Textos e escritos: etnografias serão disponibilizadas por temas de acordo com a
calendarização dos mesmos.
30 de setembro de 2019 Tema 1 Etnografia e os/as antropólogos/as
04 de novembro de 2019 Tema 2 Percursos: das etnografias clássicas às
abordagens contemporâneas
16 de dezembro de 2019 Tema 3 As etnografias portuguesas: encruzilhadas
coloniais e terrenos contemporâneos

1
Atendendo à dispersão geográfica dos estudantes e a eventuais limitações de requisição em bibliotecas
ou aquisição de obras de obras de referência, foi preocupação constante na elaboração deste trabalho
encontrar textos de qualidade disponíveis de forma legal na web, assim como colocar excertos de obras
salvaguardando os limites decorrentes dos direitos de autor. No caso dos textos do docente estes foram
usados de forma mais livre, porquanto pessoais.

2
Conteúdos letivos

1. Etnografia e os/as antropólogos/as............................................................5

1.1 O método, a escrita e a reflexibilidade.........................................11

1.2 Os/as antropólogos/as: testemunhos do terreno..........................49

2. Percursos: das etnografias clássicas às abordagens contemporâneas

2.1 O contexto e conceção de um terreno: do colonialismo ao


transnacionalismo

2.2 Críticas e novos cenários: o local e a voz em etnografia

2.3 (Re)descobrir objetos e terrenos: arquivos, corpos e ciberespaço

3. As etnografias portuguesas: encruzilhadas coloniais e terrenos


contemporâneos

3.1 Etnografias, usos e costumes, em Portugal e nas colónias

3.2 Etnografias contemporâneas

3
Objetivos gerais por tema

Conteúdos Conceitos/temas Objetivos gerais

• Etnografia
• Método • Explicar a emergência da etnografia;
• observação • Entender a sua especificidade enquanto
1. Etnografia e
participante método de investigação;
os/as • escrita • Explicitar as diferentes fases do trabalho
etnográfica etnográfico;
antropólogos/as
• reflexibilidade • Analisar o processo de escrita como parte
• integração do constituinte da experiência e saber
antropólogo antropológico

• autores clássicos • Conhecer e comentar algumas das principais


2.Percursos: das autores e obras clássicas;
• criticas pós-
etnografias modernistas • Compreender a emergência da crítica à
• etnografia multi- prática e escrita etnográfica;
clássicas às
situada • Reconhecer a presença de múltiplas vozes no
abordagens • multivocalidade discurso etnográfico
• ética • Analisar novas abordagens contemporâneas,
contemporâneas
• novos terrenos novos terrenos de investigação etnográfica

3. As etnografias
• tradição • Compreender o papel da etnografia em
portuguesas: portuguesa; Portugal
• ocupação cientifica • Analisar o papel da etnografia no espaço
encruzilhadas
das colonias; colonial português
coloniais e • ruralidades • Conhecer alguns dos trabalhos de
terrenos • etnografia autores clássicos
contemporânea • Conhecer a emergência da antropologia
contemporâneos contemporânea

4
1. Etnografia e os/as antropólogos/as

2
A institucionalização da antropologia como disciplina académica ocorre no século
XIX. Até à época, o conceito de antropologia (antropos, homem; e logos, discurso)
englobava a dimensão físico-biológica e pré-histórica, associada à história natural da
humanidade (com o contributo da arqueologia). A dimensão sociocultural da
antropologia só adquire relevância à medida que os autores evolucionistas exploram os
domínios da linguagem, da organização social, em particular do parentesco, do religioso,
do político e económico, usualmente disseminados nas diversas tradições nacionais da
altura à etnologia (etno, povo/etnia; logos, discurso) e etnografia (etno, povo/etnia;
grafia, descrição) 3.
Durante o século XIX, a etnografia assume-se como a atividade de recolha de dados
do terreno, passíveis de serem interpretados numa perspetiva comparativista com o
objetivo de elaborar leis científicas (a ambição da antropologia evolucionista, mas agora,
não de forma especulativa, mas assente em dados recolhidos em primeira mão). No
entanto, como refere Sanjek (2004), a etnografia pode ser interpretada
simultaneamente como um produto e como um processo. Como produto resulta nos
estudos elaborados pelos antropólogos, enquanto como processo se manifesta no
trabalho de campo e observação participante (os métodos tradicionais de investigação
antropológica)4.

2
Texto baseado em Sousa, Lúcio. 2014. “A Etnografia e o seu “alcance prático” no Timor “Português”:
1894-1917”. In Timor-Leste nos estudos Interdisciplinares. (org.) Vicente Paulino. Díli. Unidade de
Produção e Disseminação do Conhecimento. Programa de Pós-Graduação e Pesquisa da UNTL. pp. 29-
44.). Disponível em:
https://uab-pt.academia.edu/LúcioSousa ou https://www.researchgate.net/profile/Lucio_Sousa
3
A etnografia, etnologia e antropologia podem ser interpretadas como etapas da investigação
antropológica. Como refere Lévi-Strauss (1996) a etnografia corresponde à fase de investigação no
terreno, a etnologia a uma primeira fase de comparação e síntese dos dados num âmbito regional e a
antropologia, social ou cultural, a uma última fase de síntese global.
4
A investigação antropológica advém da articulação da etnografia, no tema concreto em estudo, com a
comparação, que se sustenta num determinado ângulo teórico, e a contextualização, elementos de
carácter sociogeográficos, políticos e económicos, que enquadram a temática. A triangulação destes polos
distingue o discurso antropológico de outros géneros de escrita, como a de viagens.

5
Todavia, em pleno século XIX subsiste usualmente uma disjunção no papel do
antropólogo na prossecução de cada uma das etapas enunciadas. De facto, são poucos5
os que se deslocam até junto dos povos distantes sobre os quais elaboram teorias para
fazer a componente etnográfica, pelo que dependem de terceiros, usualmente não
antropólogos: viajantes, militares, missionários. Esta etnografia feita por não
antropólogos é a fonte substancial da produção antropológica do século XIX (Pels e
Salemink 1999).
Para ajudar esta pesquisa
Pode consultar a edição de Notes and
desenvolveram-se instrumentos de
Queries on Anthropology de 1892 aqui:
recolha etnográfica. Um exemplo
paradigmático são as Notes and Queries https://archive.org/details/notesandqueries
00readgoog
on Anthropology, editadas pela primeira
vez em 1874, pela British Association for A 6ª edição, de 1951, pode ser consultada
aqui:
the Advancement of Science, e revistas
https://archive.org/details/NotesAndQuerie
por um comité da Royal Anthropological sOnAnthropology.SixthEdition
Institute of Great Britain and Ireland, no

qual participam, entre outros, Edward Tylor e James Frazer, expoentes da antropologia
inglesa da época. A expansão académica e profissional da antropologia faz com que a
edição de 1912 já seja principalmente vocacionada para antropólogos (Petch 2007).
Porém, há exemplos de investigadores que desenvolvem o seu próprio trabalho de
terreno como Cushing entre os índios zuni na década de 1880 (Sanjek 2004). Outro
exemplo é Alice Fletcher que desenvolve na mesma década um trabalho de campo
assinalável entre as mulheres Sioux no Dakota (Casares 2008). No Sudeste asiático tem
relevância o trabalho desenvolvido pela expedição às Torres Straits, em 1889. Tratou- se
de um empreendimento multidisciplinar coordenado por Alfred Haddon da
Universidade de Cambridge e onde participaram William Rivers e C.G. Seligman.
Apesar destes antecedentes o trabalho de campo e a observação participante estão
especialmente associados a Franz Boas (1852-1942) e Bronislaw Malinowski (1884-
1942). O primeiro nos EUA e o segundo na Inglaterra, vão fundar escolas teóricas que se
afastam dos pressupostos evolucionistas. Boas é considerado o “pai” da

5
Estes antropólogos eram designados “armchair anthropologists” (antropólogos de secretária/sofá) por
obterem as suas informações de forma indireta e trabalhá-las no recato dos seus gabinetes.

6
antropologia norte-americana. A sua abordagem, designada de particularismo histórico,
é uma forma de difusionismo moderado, assenta em trabalho de terreno.
Por sua vez, Malinowski, um dos mentores do funcionalismo, realiza o seu trabalho
de campo nas ilhas Trobriand, entre 1914 e 1918. Em 1922, publica o resultado do seu
trabalho: Os Argonautas do Pacifico Ocidental6, que se estabelece como o produto
paradigma do trabalho etnográfico na antropologia.
Com base nestes exemplos o protótipo do trabalho etnográfico passou a conjugar,
tradicionalmente, a estadia no terreno e a observação participante assente no
pressuposto de uma estadia prolongada no campo, junto de uma comunidade ou região,
com a concomitante aprendizagem da língua local e a obtenção de informações de
forma direta junto de informantes, os atores sociais, com os quais se interage,
observando e participando na vivência diária, de forma informal ou formal, com recurso
a entrevistas, usualmente abertas e semiestruturadas.

Como se reverte este saber na sociedade da época? Nos E.U.A. houve uma
preocupação dominante, desde cedo, na aplicabilidade dos conhecimentos
antropológicos na compreensão e resolução dos problemas consequentes da
incorporação da população nativa na agenda política americana. Todavia, foi uma área
de conflito entre os antropólogos e os políticos, cujos objetivos imediatos se
contrapunham à necessidade de tempo e às visões dos antropólogos.
No contexto europeu, a relação da antropologia com o colonialismo é incontornável.
No entanto, como refere Kuper (1996, 2005), no caso da antropologia social britânica
essa dimensão aplicada da antropologia resultou tanto de um comprometimento com o
projeto colonial inglês quanto com o interesse em legitimar a antropologia e sedimentar
a sua posição, na academia e na sociedade. Acresce que o alinhamento dos antropólogos
nem sempre foi concomitante com o das autoridades coloniais, promovendo a defesa
dos “nativos” que estudavam e sendo objeto de indiferença (em alguns casos mútua)
por parte de administradores coloniais.
Na Holanda. a posse das designadas Índias Orientais (futura república da Indonésia)
foi essencial para o desenvolvimento da sua antropologia. Segundo Bŏsković (2008), a

6
No original: Argonauts of the Western Pacific. URL:
https://archive.org/details/argonautsofthewe032976mbp

7
institucionalização da antropologia ocorre na Holanda em 1830, antecedendo as suas
congéneres europeias. Neste contexto, a etnografia desempenhou um papel de relevo,
quer na preparação de futuros funcionários coloniais quer como campo de pesquisa e
produção de etnografias que promoveram o desenvolvimento da antropologia na
Holanda.
No caso português, o desenvolvimento da antropologia metropolitana foi limitado e
a sua relevância colonial tardia. Leal (2000) e Schouten (1998 2001) caracterizaram a
antropologia portuguesa, na esteira da tradição filológica e etnológica romântica, como
“etnológica-folclorista” fazendo parte da chamada “antropologia de construção da
nação” (Stocking 1982). A antropologia colonial só se institui formalmente após o
Congresso de Antropologia Colonial de 1934, privilegiando a antropologia física e a
classificação das características somáticas das populações colonizadas (ver Roque 2001,
2006). Interesses que, como refere Schouten, seguiam “na esteira de teorias
antropológicas do séc. XIX” (1998, 2) e assumindo-se assim, nos termos de Stocking
(1982) como uma “antropologia de construção do império”.
A prática antropológica vai alterar-se substancialmente com o fim dos impérios,
recentrando-se nas sociedades de origem dos antropólogos, obrigando-os a olhar de
novo para o que lhes é familiar com novidade, ao mesmo tempo que se dão renovados
interesses pelos vestígios dos outros, nativos e antropólogos. Dos primeiros a sua
presença impõem-se num contexto museológico, ao mesmo tempo, sobre os segundos,
se abrem os arquivos que o tempo permitiu desvendar. Os “nativos” chegam igualmente
às ex-metrópoles no quadro de migrações de trabalho ou forçadas e passando a
constituir novos campos de investigação.
7
A escrita etnográfica vai ser objeto de acérrimos debates, questionando o
contexto e a forma da sua produção. O antropólogo passa a ser igualmente um objeto. Um
dos primeiros textos pós-modernistas é Writing Culture (Clifford e Marcus, 1986) que
reúne os textos resultantes de uma conferência realizada em 1984. As ideias centrais são:
a antropologia desloca-se do campo (ou devia-se deslocar) da etnografia científica para o
estudo dos próprios textos etnográficos (a sua desconstrução – no caso dos antigos – e a
sua elaboração), a contextualização e reflexibilidade face à

7
Parágrafos adaptados de Sousa, Lúcio. 2016. Textos de Antropologia Geral.

8
metanarrativa (a ideia da grande teoria), a tensão relativa ao papel do antropólogo
face às suas lealdades.
O antropólogo não é um observador neutro, pelo que a situação do tempo e lugar
da investigação tem de ser claramente identificada, sob condição de o método ser
inconsequente. A escrita antropológica é também objeto de crítica, pois se a forma de
recolha dos dados é subjetiva estes não podem ser analisados de forma objetiva. No
limite esta é considerada uma ficção, e como tal é analisada pelos pós-modernistas. A
validade da interpretação é também questionada pelo facto de, no terreno, o
antropólogo trabalhar com um conjunto limitado de informantes, colocando-se assim a
questão de saber até que ponto as suas ideias são representativas de toda a sociedade.
No entanto, não é somente a condição pessoal do antropólogo que está em causa. O
trabalho de campo revela uma relação assimétrica de poder que medeia antropólogo e
os seus sujeitos de, revelando igualmente as posições particulares das suas sociedades,
que em contexto colonial se posicionam como dominante e a dominada. Este contexto
não pode deixar de ser considerado pelo antropólogo.
Todos estes aspetos tornaram prementes a reflexibilidade da prática antropológica.
Uma consciencialização das condições e mutualidade existente entre antropólogo e
informantes, comunidades, as pessoas com quem trabalha, assim como uma reflexão
sobre as políticas, estatais, corporativas e académicas, em presença na produção de
material etnográfico.

Princípios de um método…
Descritas estas jornada da etnografia podemos questionar o que resulta desta
enquanto método, o que lhe é específico? Para debater este tema com os textos que
iremos trabalhar indico aqui, resumidos, os cinco princípios que caracterizam a pesquisa
etnográfica para Stewart (1998, 5-8):
Observação participante: a característica essencial resulta do facto de o
conhecimento etnográfico resultar de uma experiência pessoal do etnógrafo.
Holismo: o etnógrafo sintetiza observações díspares para elaborar um constructo
holístico da “sociedade” ou “cultura” em estudo.

9
Contextualização: a imersão num determinado local permite ao etnógrafo ligar os
diferentes dados de forma compreensiva (permitindo comparações).
Descrição sociocultural: a descrição detalhada e análise das relações sociais e
culturais.
Conexões teoréticas: o papel da teoria antropológica no trabalho etnográfico é objeto
de debate, há quem defenda que não é possível fazer etnografia sem uma orientação
teórica, mas também há quem considere o contrário.

10
1.1 O método, a escrita e a reflexibilidade

No final deste capítulo deverá ser capaz de:


- Explicar a emergência da etnografia;
- Entender a sua especificidade enquanto método de investigação;
- Explicitar as diferentes fases de trabalho
- Analisar o processo de escrita como parte constituinte da experiência e saber
antropológico.

O trabalho deste tema assenta na leitura de dois textos:


Texto 1:
Urpi Montoya Uriarte, « O que é fazer etnografia para os antropólogos », Ponto Urbe [Online],
11 | 2012, posto online no dia 14 Março 2014, consultado o 20 Agosto 2016. URL :
http://pontourbe.revues.org/300 ; DOI : 10.4000/pontourbe.300
Texto 2:
Cornelia Eckert, Ana Luiza Carvalho da Rocha, Etnografia: Saberes e Práticas. Iluminuras v. 9,
n. 21 (2008) http://seer.ufrgs.br/index.php/iluminuras/article/view/9301

Com base no texto introdutório e textos 1 e 2 deverá analisar e escrever:


Quando e como emerge a etnografia;
Qual a especificidade do método?
Quais as caraterísticas do método etnográfico? [momentos/passos]
Quem está envolvido no contexto etnográfico? Quem são os atores em presença e como
interagem?
Como se constitui o ato de escrita como parte do processo etnográfico?
Em que consiste a reflexibilidade, que lugar tem esta na pesquisa?

Outros recursos, outras leituras, outras escritas:


Mariza Peirano, « Etnografia, ou a teoria vivida », Ponto Urbe [Online], 2 | 2008, posto online
no dia 06 Agosto 2014, consultado o 25 Setembro 2016. URL :
http://pontourbe.revues.org/1890 ; DOI : 10.4000/pontourbe.1890
Jornadas de Antropologia: Antropologia, Etnografia, Antropografia: trajetórias de uma
experiência, 2013, UNICAMP : http://cameraweb.ccuec.unicamp.br/video/usywhnsad2kg/

11
Urpi Montoya Uriarte

O que é fazer etnografia para os antropólogos

1 É louvável o entusiasmo que a etnografia vem suscitando, nos últimos anos, em diversas
áreas de conhecimento: se fala muito em “fazer etnografia”, adotar a “perspectiva
etnográfica”, “etnografar” isto ou aquilo. Parece que todo mundo pode fazer etnografia.
Até uma antropóloga, Barbara Tedlock, afirma isso ao dizer que “no mundo multicultural
e rapidamente mutante de hoje, todos temos nos tornado etnógrafos” (apud CLIFFORD,
1995). Em artigo recente, Mariza Correia conta como se surpreendeu ao, num congresso
reunindo geógrafos, educadores, filósofos, sociólogos, perceber o quanto a etnografia
estava na moda e quão difundida estava a ideia segundo a qual “todos podem ‘fazer
etnografia’, e a todos é desejável uma ‘perspectiva etnográfica’” (PEIRANO, 2008, p. 3).
Com efeito, entendida apenas como método, ela estaria acessível a qualquer
pesquisador em busca de algum. Mas, precisamente o que Peirano defende é que ela
não é apenas uma metodologia ou uma prática de pesquisa, “mas a própria teoria vivida
/.../ No fazer etnográfico, a teoria está, assim, de maneira óbvia, em ação, emaranhada
nas evidências empíricas e nos nossos dados.” (2008: 3). A teoria e a prática são
inseparáveis: o fazer etnográfico é perpassado o tempo todo pela teoria. Antes de ir a
campo, para nos informarmos de todo o conhecimento produzido sobre a temática e o
grupo a ser pesquisado; no campo, ao ser o nosso olhar e nosso escutar guiado, moldado
e disciplinado pela teoria; ao voltar e escrever, pondo em ordem os fatos, isto é,
traduzindo os fatos e emoldurando-os numa teoria interpretativa.
2 Mas afirmar que o campo é perpassado pela teoria não significa dizer que ele está
submetido a ela. Por definição, a realidade superará sempre a teoria. Em outras
palavras, o campo irá sempre surpreender o pesquisador. Sem cair em contradição,
podemos afirmar que se um campo não nos surpreender, é porque não fomos o
suficientemente bem formados! Justamente porque a formação antropológica consiste
em nos abrirmos para a desestabilização:

“os discursos e práticas nativos devem servir, fundamentalmente, para


desestabilizar nosso pensamento (e, eventualmente, também nossos
sentimentos). Desestabilização que incide sobre nossas formas dominantes de

12
pensar, permitindo, ao mesmo tempo, novas conexões com as forças minoritárias
que pululam em nós mesmos.” (GOLDMAN, 2008, p.7).

3 Ou, em palavras de Favret-Saada (1990, apud GOLDMAN, 2008), o que caracterizaria


o antropólogo é essa formação para “ser afetado” por outras experiências. Por isso é que
vamos a campo munidos de teorias e voltamos retroalimentando-as, transformando-as:
“Agitar, fazer pulsar as teorias reconhecidas por meio de dados novos, essa é a tradição
da antropologia” (PEIRANO, 2008: p. 4).
4 Então, nem todos podem ser etnógrafos. Há de haver uma formação teórica em
antropologia, essa ciência que se dedica a “testemunhar outras humanidades” (DA
MATTA, 1992, p. 58) e “apregoar o anômalo”:

“Examinar dragões ; não domesticá-los ou abominá-los, nem afogá-los em barris


de teoria, é tudo em que consiste a antropologia /.../ Temos procurado, com
sucesso nada desprezível, manter o mundo em desequilíbrio, puxando tapetes,
virando mesas e soltando rojões. Tranquilizar é tarefa de outros; a nossa é
inquietar. Australopitecus, Malandros, Cliques Fonéticos, Megalitos: apregoamos
o anômalo, mascateamos o que é estranho, mercadores que somos do espanto.”
(GEERTZ, 2001, p. 65)

5 Em segundo lugar, nem todos podem ser etnógrafos porque para mergulhar é preciso
não apenas saber mergulhar, mas também gostar de mergulhar. É imprescindível uma
vocação pelo “desenraizamento crônico”, isto é, pelo “não se sentir em casa em lugar
nenhum”. Com efeito, no capítulo “Olhando para trás” do livro Tristes Trópicos, Lévi-
Strauss conta como a sua aproximação da etnografia não foi por meio de um curso, mas
pela vocação: “tal como acontece com as matemáticas ou com a música, a etnografia é
uma das raras vocações autênticas. Podemos descubri-la dentro de nós mesmos sem
nunca a termos aprendido.” (1979, p. 49). Assim, em palavras de Peirano, “a
personalidade do investigador e sua experiência pessoal não podem ser eliminadas do
trabalho etnográfico. Na verdade, elas estão engastadas, plantadas nos fatos
etnográficos que são selecionados e interpretados.” (2008, p. 3,4).
6 O prestígio da etnografia é tal que, até entre os antropólogos, ela se tornou a forma mais
simples de definir a nossa disciplina. Ou seja, o método se tornou mais conhecido do
que a própria disciplina que o engendrou! Esse método marcou tanto a disciplina que
até para os próprios antropólogos é mais fácil se definir por ele.

13
Quando perguntados que diferencia há entre a Antropologia e outras ciências como a
sociologia, a resposta imediata é o método. Como bem disse Geertz (2001), nos

definimos em termos de um estilo de pesquisa, não em termos daquilo que estudamos1.


7 Mas eu acredito, por definição, que temos de desconfiar de tudo, principalmente
das modas. Enquanto fora da Antropologia, a etnografia está na moda, dentro da
disciplina que a engendrou – a Antropologia – ela passa, há um certo tempo, por uma
série de revisões críticas, reflexões epistemológicas e hermenêuticas. A etnografia é o
método da Antropologia e é conhecendo o que é esta disciplina e pelo que tem passado
que podemos efetivamente entender em que ela consiste. O que estou dizendo é que
as propostas metodológicas estão sempre inseridas numa disciplina (por mais
indisciplinados que possamos ser), isto é, na forma como uma disciplina se desenvolveu.
O método etnográfico – suas virtudes e vicissitudes – se entende apenas conhecendo
como ele se desenvolveu dentro da Antropologia. O método cartográfico, dentro da
Geografia. Assim como a proposta do “urbanista errante” só se entende dentro das

limitações das formas tradicionais de enxergar a cidade por parte do Urbanismo2.

8 Então, para entender como a etnografia tem apreendido e narrado a cidade – que são
coisas bem diferentes –, vou começar falando sobre o que é a etnografia, como nasce,
quando, o que tem postulado inicialmente, o que se postula hoje. Vou fazer um
exercício extremo de síntese porque o que há a se dizer sobre ela corresponde, na matriz
curricular da grande maioria dos departamentos de Antropologia, ao conteúdo inteiro
de uma disciplina obrigatória de 68h.

A etnografia é um método próprio da Antropologia do século XX

9 A Antropologia do século XX é uma resposta crítica à Antropologia do século XIX: uma


ciência que se pretendia histórica, que queria reconstituir a história dos povos humanos
para explicar como alguns deles tinham chegado ao “estado de civilização” e muitos
outros não, ficando em “estágios” anteriores de “selvageria” ou “barbárie”. Para
reconstituir os diversos estágios, a Antropologia do século XIX se tornou a especialista
em “povos primitivos”, que imaginava e analisava mediante a leitura de relatos de
viajantes, expedições científicas, missionários ou informes das oficinas

14
coloniais, material que, no século XIX, se tornou bastante volumoso se comparado ao
existente nos séculos anteriores. Esses antropólogos trabalhavam em seus gabinetes,
lendo esse material, deduzindo e especulando, que eram os dois procedimentos
cognitivos próprios dessa fase da Antropologia. Falavam, assim, dos hotentotes da África
do sul, do “índio americano”, dos “índios canadenses”, sem nunca ter visto um “índio”
de “carne e osso”. Perguntando certa vez se ela tinha visto um, James Frazer, o
especialista em religião e magia nos ditos povos primitivos, respondeu: “Deus que me
livre!”. Nessas condições, não era de se estranhar que os textos antropológicos fossem
um acúmulo de afirmações e teorias etnocêntricas.
10 O panorama começa a mudar quando, no final do século XIX, os antropólogos passam a
integrar as expedições científicas que se tornaram freqüentes na segunda metade desse
século. Pela primeira vez, vêem os “índios”, nem que seja por pouco tempo, nas paradas
rápidas das expedições, e nem que seja sem poder falar com eles, devido ao
desconhecimento das línguas nativas. Foi numa dessas expedições, em 1914, que
Bronislaw Malinowski, um jovem polonês, fazendo o seu doutorado em Antropologia na
London School of Economics, foi parar nas ilhas Trobriand, onde ficou mais de três anos,
aprendeu a língua nativa, colocou sua tenda no meio da aldeia deles e conviveu dia após
dia entre os trobriandeses. Dessa experiência nasceu, em 1922, o livro os Argonautas do
Pacífico ocidental, e, com ele, a primeira formulação do que é o método etnográfico

(que apresenta em sua Introdução)3. O que o levou a romper com a forma de conhecer
própria da Antropologia anterior a ele? Na verdade, um acaso, para nós, um feliz acaso:
enquanto súdito austríaco, na primeira guerra mundial, ele não poderia integrar a
tripulação de um navio inglês, vendo-se obrigado a ficar quatro anos, até 1918, entre os
territórios das ilhas Tulon, Trobriand e Austrália.
11 Essa longa estadia fez Malinowski refletir sobre o método que vinha sendo usado
pela Antropologia. Tratava-se agora, ele propunha, do antropólogo conviver um longo
período entre os “primitivos” que queria entender até passar despercebido por entre
eles (ele acreditava que isso fosse possível). Somente essa experiência de trabalho de
campo lhe permitiria captar o que ele chamou de “o ponto de vista do nativo”, essencial
para conseguir uma visão completa do universo nativo. Com efeito, ele propôs que
este universo poderia ser compreendido captando três tipos de informação: a
numérica e genealógica, o cotidiano e as interpretações nativas. A estes três tipos de
informação denominou o esqueleto o corpo e a alma,

15
sendo as três fontes igualmente fundamentais. Podemos deduzir facilmente que, ao
conviver com os nativos e lhes conceder a palavra sobre si mesmos, a Antropologia do
século XX foi se tornando cada vez menos etnocêntrica, ou seja, o discurso sobre o
Outro – que é a Antropologia – deixou de ser centrado na sociedade do pesquisador e
passou a ser relativizado com a vivência entre os nativos e sua visão deles mesmos. A
Antropologia do século XX é, pois, o fruto de seu método, um método que surgiu de
forma não planejada, que não foi o resultado de uma crítica teórica, mas de um
descobrimento fortuito da importância de conviver e ouvir aqueles que pretendemos
entender. Com o novo método, o seu objeto mudou: de “tribos”, “índios”, “aborígenes”,
“bosquímanos”, “silvícolas”, “esquimós”, “primitivos” passamos a nos interessar nas
sociedades humanas, todas e qualquer uma delas (“atrasada” ou “adiantada”, ocidental
ou oriental, “moderna” ou “tradicional”, o bairro vizinho, a comunidade tal, a favela tal,
as torres tal). O quê nos interessa dessas sociedades? Sua Alteridade, sua singularidade,
a sua outredade, o que faz essas sociedades serem o que são. A Antropologia é o lugar,
dentro do espaço das ciências ocidentais, para pensar a diferença e o antropólogo é
aquele que se interessa pelo Outro: um sujeito bastante raro, é verdade, porque em
lugar de querer defender uma identidade, queremos ser atingidos pelo Outro, em vez
que nos enraizarmos num território de certezas, buscamos o desenraizamento crônico
que nos leva à busca pelo Outro. Somos como os Tupinambás descritos por Eduardo
Viveiros de Castro (2002b): de uma “radical incompletude” que nos deixa absolutamente
atraídos pela alteridade, com um “impulso centrífugo” que nos faz enxergar a alteridade
não como problema, mas como solução.
12 O método etnográfico, assim, se torna inseparável da própria Antropologia, definida
por Márcio Goldman como “o estudo das experiências humanas a partir de uma
experiência pessoal” (2006, p. 167).

O método etnográfico

13 Mas o que é exatamente um método? É uma forma de nos aproximarmos da realidade


que nos propomos estudar e entender. Se quisermos entender a vida urbana na cidade
de Salvador, por exemplo, as possibilidades metodológicas são várias: podemos
selecionar um grupo particular de nativos urbanos e estudá-los; estaremos usando o
método de estudo de caso. Podemos escolher a trajetória de uma família e contar a sua
história na cidade; estaremos usando o método biográfico. Podemos trabalhar

16
com vários estudos de caso e estaremos usando o método comparativo. Podemos
percorrer a cidade de forma lenta, corporificada e à deriva, estaremos usando o método
do urbanismo errante. Ou podemos nos “jogar de cabeça” na vida de uma rua e
estaremos usando o método etnográfico. O método etnográfico consiste num mergulho
profundo e prolongado na vida cotidiana desses Outros que queremos apreender e
compreender.

“o método etnográfico não se confunde nem se reduz a uma técnica; pode usar ou
servir-se de várias, conforme as circunstâncias de cada pesquisa; ele é antes um
modo de acercamento e apreensão do que um conjunto de procedimentos.”
(MAGNANI, 2002, p.17).

14 Esse “modo de acercamento” ou “mergulho” tem suas fases. A primeira delas é


um mergulho na teoria, informações e interpretações já feitas sobre a temática e a
população específica que queremos estudar. A segunda fase consiste num longo tempo
vivendo entre os “nativos” (rurais, urbanos, modernos ou tradicionais); esta fase se
conhece como “trabalho de campo”. A terceira fase consiste na escrita, que se faz de
volta para a casa. Nas linhas seguintes, falaremos sobre cada uma destas três fases.
15 Na linguagem corriqueira, confunde-se “trabalho de campo” com etnografia. Na
verdade, o trabalho de campo não é invenção da Antropologia nem muito menos
monopólio dela. Os geógrafos fazem trabalho de campo, assim como os geólogos
e os psicólogos. Vão “a campo” muitos pesquisadores, desde finais do século XIX, para
testar as teorias com materiais empíricos. Mas o “campo” antropológico supõe não
apenas ir e ver ou ir e pegar amostras, mas algo mais complexo: uma co-residência
extensa, uma observação sistemática, uma interlocução efetiva (língua nativa), uma
mistura de aliança, cumplicidade, amizade, respeito, coerção e tolerância irônica
(CLIFFORD, 1999, p. 94). Em uma palavra, o trabalho de campo antropológico consiste
em estabelecer relações com pessoas.
16 Então, o quesito pessoas se torna central. O nativo do antropólogo são pessoas e
não indivíduos abstratos, gente concreta, sujeitos nada genéricos:

“o que costumamos denominar ‘ponto de vista do nativo’, não deve jamais ser
pensado como atributo de um nativo genérico qualquer, negro, de classe popular,
ilheense, baiano, brasileiro ou uma mistura judiciosa de tudo isso. Trata- se sempre
de pessoas muito concretas , cada uma dotada de suas

17
particularidades, e sobretudo, agência e criatividade.” (GOLDMAN, 2003, p. 456).

17 A essas pessoas, damos voz, não por caridade, mas por convicção de que têm coisas a
dizer. E essa voz não é monológica, é dialógica. O pesquisador e o nativo conversam,
falam, dialogam. É nisso que consiste o cerne do método etnográfico: em trabalhar com
pessoas, dialogando pacientemente com elas.

“Entendo a etnografia antes de tudo como maneira específica de conhecer a vida


social. Sua peculiaridade: sua fundamentação existencial numa impregnação
profunda, no pesquisador (em seu corpo e sua alma, em sua inteligência e
sensibilidade), da imprescindibilidade da busca por aquilo que Eduardo Viveiros de
Castro denominou ‘diálogo para valer’ com o Outro sendo o conhecimento forjado
justamente a partir dos resultados desse diálogo.” (FREHSE, 2011, p. 35)

As fases do trabalho de campo

18 Para o antropólogo, o campo é, durante um bom tempo, uma incógnita, pelo simples
fato de os “fatos” não existirem.
“o trabalho de campo é sobretudo uma atividade construtiva ou criativa, pois os
fatos etnográficos ‘não existem’ e é preciso um ‘método para a descoberta de fatos
invisíveis por meio da inferência construtiva’ (Malinowski, 1935, vol.1, p.317)”.
(GOLDMAN, 2003, p. 456).

19 Como os fatos não existem para serem colhidos, fazer etnografia é uma tarefa difícil,
densa, pois tudo aparece aos nossos olhos como confuso, sem sentido:

“a etnografia é uma descrição densa. O que o etnógrafo enfrenta, de fato – a não


ser quando (como deve fazer, naturalmente) está seguindo as rotinas mais
automatizadas de coletar dados – é uma multiplicidade de estruturas conceptuais
complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas às outras, que são
simultaneamente estranhas, irregulares, inexplícitas, e que ele tem que, de
alguma forma, primeiro apreender e depois apresentar /.../ Fazer etnografia é
como tentar ler (no sentido de ‘construir uma leitura de’) um manuscrito estranho,
desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários
tendenciosos...” (GEERTZ, 1989, p.20)

18
20 O campo não fornece dados, mas informações que costumamos chamar de dados.
As informações se transformam em dados no processo reflexivo, posterior à sua coleta
(GUBER, 2005). Então, estamos falando de dois momentos em campo. No primeiro, o
antropólogo registra informações mediante o ver e o ouvir, tão bem apontados por
Cardoso de Oliveira como as “duas muletas que lhe permitem trafegar” (1998: 21).
Porém, não se trata de um ouvir qualquer. É um ouvir que dá a palavra, não para ouvir
o que queremos, mas para ouvir o que os nossos interlocutores têm a dizer. E falamos
aqui em interlocutores – não informantes ou entrevistados – porque a palavra cedida se
dá num contexto de diálogo, numa relação dialógica, e é nesse diálogo que os dados se
fazem para o pesquisador. A relação dialógica só é possível de ser estabelecida no meio
de uma posição do antropólogo entre os nativos: a de observador-participante, que cria
familiaridade e possibilita a “fusão de horizontes” da qual falam os hermenêutas,
condição indispensável para um verdadeiro diálogo.
21 Assim, no primeiro momento, o que fazemos é coletar em forma de descrições.
Descrevemos tudo, em detalhes. Transcrevemos longos depoimentos. Ficamos
“perseguindo pessoas sutis com perguntas obtusas”, anotando tudo porque não
sabemos o quê vai ser importante mesmo. Se os arqueólogos estão sempre com uma
corda e o urbanista sempre desenhando croquis, o antropólogo está sempre com um
caderno de campo, tomando nota de tudo.
22 Após um longo período de confusão e muitas anotações, vem a segunda fase do trabalho
de campo, o da “sacada”, isto é, quando começamos a enxergar certa ordem nas coisas,
quando certas informações se transformam em material significativo para a pesquisa.

“Também, a ‘sacada’ na pesquisa etnográfica, quando ocorre – em virtude


de algum acontecimento trivial ou não – só se produz porque precedida e
preparada por uma presença continuada em campo e uma atitude de atenção viva.
Não é a obsessão pelo acúmulo de detalhes que caracteriza a etnografia, mas a
atenção que se lhes dá: em algum momento os fragmentos podem arranjar-se num
todo que oferece a pista para um novo entendimento, voltando à citação de Lévi-
Strauss.” (MAGNANI, 2009, p.136).

23 Conforme bem salientado na citação acima, a “sacada” só pode advir depois de um


“certo” tempo. O trabalho de campo antropológico não pode ser de umas horas, alguns
dias, umas semanas ou finais de semana, quando sobra tempo dos

19
compromissos da universidade. A “sacada” advém do tempo em campo, pois só o tempo
é capaz de provocar um duplo processo no pesquisador: por um lado, conseguir
relativizar sua sociedade e, por outro, conseguir perceber a coerência da cultura
do Outro. Em palavras de Roberto Da Matta, o tempo possibilita que o antropólogo
torne exótico (distante, estranho) o que é familiar e familiar (conhecido, próximo) o que
é exótico (DA MATTA, 1981, p. 144)
24 É conveniente admitir que este tempo – este contato direto e prolongado com
o Outro – é um processo bastante sofrido. Por um lado, porque o pesquisador, longe de
casa, no meio de um outro mundo, sente na pele a marginalidade, a solidão, a saudade.
Mas, principalmente, porque não se estranha apenas o Outro: o processo de
estranhamento afeta o próprio Eu. Nos tornamos seres desenraizados – é isso, afinal,
que faz um antropólogo, segundo Lévi-Strauss – e que acaba se expressando no que
Roberto Da Matta chamou de anthropological blues: uma mistura de sofrimento e
paixão.

A formação teórica

25 Dissemos que a etnografia tem três momentos: a formação, o trabalho de campo e a


escrita. A formação teórica é a bagagem indispensável para ir a campo. Não adianta se
apressar para ir a campo sem ela, pois a capacidade de levantar problemas em campo
advém da familiaridade com a bibliografia do tema. A “sacada” etnográfica só virá do
tempo em campo e de nossa formação.
26 A nossa formação nos familiariza com as “sacadas” que tiveram todas as outras Gerações
de antropólogos prévias à nossa, com o qual aprendemos a ver. Ao cabo da
formação do antropólogo o nosso olhar se torna um “olhar devidamente
sensibilizado pela teoria disponível” e o nosso ouvido um “preparado para eliminar
todos os ruídos” (CARDOSO, 1998, p. 19, 21).
27 A nossa formação também consiste em, mediante a leitura de textos etnográficos
múltiplos, aprender a ver pessoas, não indivíduos, pessoas com nomes, com posições,
detentores de palavra, de saber. Somos igualmente ensinados a diferenciar a coisa do
significado, o feito do dito, o emic (categorias do pesquisador) do etic (categorias do
nativo). Enfim, aprendemos que

“o mundo não se divide em devotos e supersticiosos; que há esculturas nas


selvas e pinturas nos desertos; que a ordem política é possível sem o poder

20
centralizado /.../ que vemos a vida dos outros através das lentes que nós próprios
polimos e que os outros nos vêem através das deles” (GEERTZ, 2001, p.66).

A escrita

28 A terceira fase do fazer etnográfico advém após ter encontrado uma ordem das coisas
(em diálogo com o nativo) e consiste em pormos as coisas em ordem para possibilitar a

leitura por parte de um público que não esteve lá 4 e que nos lerá esperando que
façamos um correto casamento entre teoria e prática.
29 Se tivermos de dizer qual das três fases etnográficas é a mais difícil, diríamos
Certamente que é a da escrita, pois como converter tantos dados num texto? Em
quantos capítulos? De quê será cada um? A teoria irá em um capítulo e os dados em
outro? Por onde começar? São perguntas que ansiosamente todos nos perguntamos
quando nos vemos diante de uma escrivaninha abarrotada de depoimentos,
transcrições, fitas, cadernos de campo, fotos, diário de campo, lembranças, sensações,
etc. A dificuldade advém da etnografia e a escrita serem duas coisas radicalmente
diferentes: a etnografia é uma experiência, uma experiência do Outro para captar e
compreender, depois interpretar, a sua alteridade; a narrativa etnográfica é a
transformação dessas experiências totais em escrita, o que, necessariamente exige um
mínimo de coerência e linearidade que não são próprias da vivência. É essa diferença ou
distancia entre experiência e texto que nos ajuda a entender o fundo da pergunta que
Renato Rosaldo reproduz em seu texto Cultura y verdad: “como pessoas tão
interessantes, que fazem coisas tão interessantes podem escrever coisas tão chatas?”
(ROSALDO, 2000: 61)
30 Assim como a etnografia está ligada ao nome de Malinowski, a reflexão sobre
diferença/distância entre experiência e texto está igualmente ligada a este nome. Por
iniciativa da viúva e com uma introdução do antigo discípulo Raymond Firth, em
1967, se publica o Diário no sentido estrito do termo (1997), diário de
Malinowski nas ilhas Trobriand, no qual ele fala de seu sofrimento, mal-humor, sua
vontade de “dar o fora dali”, em que revela seu hipocondrismo, seu ódio dos mosquito
e pulgas, seu desconforto de conviver com porcos e crianças barulhentas, as
chantagens dos nativos para falar, seus desejos sexuais, o descompromisso dos
informantes (chamados de estúpidos, insolentes, atrevidos), a saudade da Europa, das
duas mulheres que amava, etc. No mesmo ano, Clifford Geertz escreve uma resenha
devastadora deste diário chamada “Under the mosquito net” em que vai se

21
perguntar como é que Malinowski conseguiu convencer todo mundo sobre o ponto de
vista do nativo sem nem sequer ter conseguido empatia alguma com os nativos? A
resposta seria: pela forma de narrar, o que importa é o modo como se narra a
experiência etnográfica, isto é, a narrativa, a escrita, o estilo. Na década de 1980, alguns
discípulos de Geertz retomam a reflexão inicial do mestre e se reúnem num seminário
em Santa Fé, cujas apresentações se publicam em 1984 no livro Writing Culture (editado
por James Clifford e George Marcus). Este movimento – chamado de pós-moderno em
Antropologia – vai refletir seriamente sobre como temos escrito sobre os Outros desde
os tempos de Malinowski até agora.
31 Além da distância entre experiência e escrita, outra dificuldade do terceiro momento do
fazer etnográfico radica no fato de não sermos apenas registradores de falas, tradutores
da palavra nativa, transcritores do Outro. Somos autores, pois pôr as coisas em ordem –
montar o quebra-cabeça – é um exercício criativo autoral. A criação faz dos textos
antropológicos, ficções:

“os textos antropológicos são eles mesmos interpretações e, na verdade, de


segunda e terceira mão. Trata-se, portanto, de ficções; ficções no sentido de que
são ‘algo construído’, ‘algo modelado’ – o sentido original de fictio – não que
sejam falsas, não-factuais ou apenas experimentos de pensamento.” (GEERTZ,
1989, p. 25, 26).

32 Entretanto, o quebra-cabeça montado pelo antropólogo (a ordem proposta) tem de


ser o suficientemente honesto para apresentar tanto as peças soltas quanto as peças
montadas. Em palavras de Sahlins (2003), a realidade etnográfica não pode ser
substituída pela compreensão dela. As peças soltas são a descrição densa, as peças
montadas a interpretação proposta. Muitas vezes, o que resta destes trabalhos é muito
mais a capacidade de apreender e descrever os dados, do que a ordem que construímos.
Conforme salienta Mariza Peirano, “Darcy Ribeiro também confessou, um dia, que seus
trabalhos teóricos pouco valiam, estavam inclusive ‘errados’. O conjunto de seus diários
de campo era, sim, o que de mais importante havia produzido” (PEIRANO, 2008, p. 5).
Mas, como “montar uma ordem” sem mexer nas “peças soltas”? A rigor, essas “peças
soltas” não são também uma “montagem”, na medida em que se transformaram de
informações em dados? Podemos dizer que por mais que não queiramos interferir nas
informações, a montagem é feita e, de novo, voltamos à questão da formação teórica:
se o campo se iniciou com um trabalho de

22
formação teórica, ele culmina, novamente, na teoria, pois é ela que ajuda a pôr as
coisas em ordem, por mais mínima que essa ordem seja:

“Quem realmente estudou a obra de Nimuendajú sabe como a monografia, The


Apinayé (publicada em 1939) apresenta uma narrativa com severos problemas
descritivos, onde se observa uma evidente ausência de ‘ordem’, sinal de que
Nimuendajú escreveu esse texto sem nenhuma teoria da sociedade a guiar seu
trabalho de campo. Que contraste, porém, quando cotejamos esse livro com o
volume sobre a sociedade Canela, publicado dez anos depois, sob a égide de Lowie
que editou o texto original de Nimuendajú (cf. Nimuendajú, 1946). Nele, temos
uma narrativa
– um texto no melhor sentido de Ricoeur (1971) – onde, em que pese os inúmeros
problemas etnográficos que o especialista é capaz de descobrir, o conjunto tem
uma certa consição e unidade, a meu ver, dois dos elementos críticos das modernas
etnografias.” (DA MATTA, 1992: 61)

33 A escrita é perpassada também pela questão do lugar desde onde fala o antropólogo.
Há um certo tempo existe um consenso: a fala do antropólogo não se confunde com a
do nativo porque ele, por mais perto que tenha chegado deste, simplesmente, não é um
nativo. O Eu não é o Outro. Mas o Eu do antropólogo, sua voz, o posição desde a qual ele
fala, não é tampouco daquele pesquisador que iniciou o trabalho de campo

“a natureza da explicação pela via etnográfica tem como base um insigth que
permite reorganizar dados percebidos como fragmentários, informações ainda
dispersas, indícios soltos, num novo arranjo que não é mais o arranjo nativo (mas
que parte dele, leva-o em conta, foi suscitado por ele) nem aquele com o qual o
pesquisador iniciou a pesquisa.” (MAGNANI, 2002: 17).

34 Esse novo lugar é, diríamos, um entre-lugar, nem cá nem lá:

“É preciso pensar em que espaço se move o etnólogo que está engajado numa
pesquisa de campo e refletir sobre as ambivalências de um estado existencial onde
não se está nem numa sociedade nem na outra, e no entanto está-se enfiado até
o pescoço em uma e outra.” (DA MATTA, 1981, p. 153,4)

35 Viveiros de Castro deu uma brilhante resposta à pergunta que aqui nos ocupa: a voz
do antropólogo não é a voz do nativo porque uma coisa é o que o nativo pensa e
outra, o que o antropólogo pensa que o nativo pensa. O ponto de vista do

23
antropólogo é, pois, o da sua relação com o ponto de vista do nativo (Viveiros de Castro,
2002). O seu é um discurso que advém de uma relação: mais uma vez, a experiência de
diálogo “para valer” é o que marca a narrativa etnográfica.
36 Então, é o antropólogo que fala, mas esta fala advém de uma relação, o que significa
dizer que há autoridade, mas esta convive com a fragilidade, e seria esta combinação,
precisamente, a característica do discurso antropológico:

“É precisamente esta mistura de autoridade e fragilidade que tipifica o discurso


antropológico. A autoridade decorre de ser você quem testemunha e produz o
relato. Mas a fragilidade advém da consciência aguda e dolorida de que o ‘presente
etnográfico’ é uma ilusão que dentro de alguns anos será corrigida por outro
etnólogo que, numa outra pesquisa, fará outras perguntas /.../ Daí a relação íntima
entre boa etnografia e confissão (percebida por Lévi-Strauss) e entre boa
etnografia e romance.” (DA MATTA, 1992: 59)

37 Finalmente, o estilo. A narrativa etnográfica tem se caracterizado, segundo Marcus e


Cushman (1998), pelo realismo etnográfico, isto é, pelo “modo de escrita que busca
representar a realidade de todo um mundo ou de uma forma de vida” (MARCUS,
CUSHMAN, 1998, p. 175). É o realismo etnográfico que explica essa importância da
descrição nos textos etnográficos, dos detalhes, do cotidiano e, principalmente, das
alusões ao “eu estive lá”: é a forma que temos de fazer aparecer, de certa forma, a
totalidade, uma totalidade experimentada e partilhada pelo pesquisador. O resultado
desta estratégia narrativa é a criação de um mundo, “que parece total e real para o
leitor” (1998: 176). Contudo, estes autores distinguem entre o realismo etnográfico
“clássico” e o “experimental”. Dentre outras características, no primeiro, encontra-se
um abuso da terceira pessoa (“eles fazem, eles pensam”), uma ausência de pessoas
concretas e um tratamento marginal das condições do trabalho de campo; já no
segundo, mais recente, o personagem do etnógrafo é introduzido no texto, é dada uma
voz direta aos nativos, é diferenciado o ponto de vista nativo e o ponto de vista do
pesquisador, as condições do trabalho de campo são amplamente informadas e as
descrições são contextualizadas, e não generalizadas como dentro do realismo
“clássico”.

24
Conclusão

38 A conclusão é simples: a rigor, fazer etnografia não consiste apenas em “ir a campo”,
ou “ceder a palavra aos nativos” ou ter um “espírito etnográfico”. Fazer etnografia supõe
uma vocação de desenraizamento, uma formação para ver o mundo de maneira
descentrada, uma preparação teórica para entender o “campo” que queremos
pesquisar, um “se jogar de cabeça” no mundo que pretendemos desvendar, um tempo
prolongado dialogando com as pessoas que pretendemos entender, um “levar a sério”
a sua palavra, um encontrar uma ordem nas coisas e, depois, um colocar as coisas em
ordem mediante uma escrita realista, polifônica e inter- subjetiva.
39 Finalizando, gostaria de frisar que dizer o que é a etnografia para um antropólogo não
significa dizer que ela é “propriedade” nossa; significa, apenas, afirmar o quanto ela é
complexa para nós. Como outras disciplinas podem se apropriar dela é uma outra
questão, que ultrapassa o objetivo deste artigo.

BIBLIOGRAFIA

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. A inconstância da alma selvagem - e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac
& Naify,2002 (b).

NOTAS
1 “O que fazemos que os outros não fazem, ou só fazem ocasionalmente, e
não tão bem feito, é (segundo essa visão) conversar com o homem do arrozal
ou a mulher do bazar, quase sempre em termos não convencionais, no estilo
‘uma coisa leva a outra e tudo leva a tudo o mais’ em língua

26
vernáculo e por longos períodos de tempo, sempre observando muito de
perto como eles se comportam.” (GEERTZ,
2001, p. 89,90). “A antropologia não se define por um objeto determinado:
mais do que uma disciplina voltada para o estudo dos povos primitivos ela é,
como afirma Merleau-Ponty, ‘a maneira de pensar quando o objeto é outro e
que exige nossa própria transformação.” (MAGNANI, 2002, p. 16).
2 O “urbanista errante” constitui uma proposta crítica que responde ao
método – planejado e de cima – predominante no Urbanismo. O que Jacques
(2006) propõe é uma postura de apreensão da cidade menos distante da
experiência urbana, uma que retome as formas de apreender própria dos
diversos errantes que existiram ao longo da história (andarilhos, flâneurs,
surrealistas, situacionistas, artistas como João do Rio e Oitica, entre outros).
Três seriam as características deste urbanista errante: se perder, ser lento e
corporizar. Após ser ensinado a se orientar, o urbanista deveria aprender a se
desorientar, se perder, para se reintegrar de uma outra forma, não-ensinada
previamente; após viver mergulhado na velocidade do mundo moderno, ele
teria de aprender o ritmo da lentidão; finalmente, no mundo da virtualidade
o num mundo asseptizado, onde tudo se descorporiza, ele teria de aprender
a corporizar novamente as coisas e as pessoas, isto é, usar, percorrer,
experimentar, tocar, sentir, cheirar.
3 Antes dele, nos Estados Unidos, o antropólogo Lewis Morgan visitou os
iroqueses nos anos de 1844 e 1846, e o antropólogo Franz Boas, entre 1883
e 1884, conviveu entre os nativos da Terra de Baffin, e, logo depois, entre os
Kwakiutl da ilha de Vancouver. Entretanto, o primeiro a formular a etnografia
como método foi Bronislaw Malinowski, bem mais tarde, na referida
introdução dos Argonautas (1922).
4 Retomo aqui expressões de Sahlins para se referir às antropologias de
Malinowski e Boas. Segundo Sahlins, o empirismo de Boas, em contraposição
à teoria funcionalista de Malinowski, o levava a “um compromisso em
encontrar ordem nos fatos, e não em colocar os fatos em ordem.” (SAHLINS,
2003, p. 80).

27
ETNOGRAFIA: SABERES E PRÁTICAS1

Ana Luiza Carvalho da Rocha


Cornelia Eckert

Passando de uma atividade exclusivamente literária a prática


da etnografia, eu pensava romper com os hábitos intelectuais que
tinham sido os meus até agora, através do contato com homens de
outra cultura e raça que não as minhas,
e com as muralhas que me
sufocavam, expandindo meu
horizonte para uma medida
verdadeiramente humana. (Michel Leiris, 1934)

Método etnográfico? Técnicas de pesquisa etnográfica?


É freqüente se afirmar que o método etnográfico é aquele que diferencia as formas de
construção de conhecimento em Antropologia em relação a outros campos de
conhecimento das ciências humanas. De fato o método etnográfico encontra sua
especificidade em ser desenvolvido no âmbito da disciplina antropológica, sendo composto de
técnicas e de procedimentos de coletas de dados associados a uma prática do trabalho de
campo a partir de uma convivência mais ou menos prolongada do(a) pesquisador(a) junto ao
grupo social a ser estudado. A prática da pesquisa de campo etnográfica responde, pois a uma
demanda científica de produção de dados de conhecimento antropológico a partir de uma
inter-relação entre o(a) pesquisador(a) e o(s) sujeito(s) pesquisados que interagem no
contexto recorrendo primordialmente as técnicas de pesquisa da observação direta, de
conversas informais e formais, as entrevistas não-diretivas, etc.
Desde já esclarecemos ao (à) aluno(a) de graduação que o método etnográfico é um
método específico da pesquisa antropológica. Outras ciências sociais recorrem não obstante a
determinadas técnicas de pesquisas que são singulares ao método de pesquisa qualitativa.
Mas neste caso trata-se de adotar alguns procedimentos técnicos próprios da pesquisa
etnográfica como a observação e as entrevistas, vinculadas agora a outros campos teóricos
1 Artigo publicado no livro organizado por Céli Regina Jardim Pinto e César Augusto Barcellos
Guazzelli Ciências Humanas: pesquisa e método. Porto Alegre: Editora da Universidade, 2008.

28
de interpretação da realidade social que não a teoria antropológica.
Já o método etnográfico é a base na qual se apoia o edifício da formação de um(a)
antropólogo(a). A pesquisa etnográfica constituindo-se no exercício do olhar (ver) e do escutar
(ouvir) impõe ao pesquisador ou a pesquisadora um deslocamento de sua própria cultura para
se situar no interior do fenômeno por ele ou por ela observado através da sua participação
efetiva nas formas de sociabilidade por meio das quais a realidade investigada se lhe apresenta.
Inicialmente, em Antropologia, a preparação para o trabalho de campo implica inúmeras
etapas, uma delas é a construção do próprio tema e objeto de pesquisa desde a adoção de
determinados recortes teórico-conceituais do próprio campo disciplinar e suas áreas de
conhecimento (Antropologia rural, Antropologia urbana, etc.). Não é usual este projeto
contemplar hipóteses iniciais de pesquisa uma vez que estas emergem na medida em que a
investigação avança com a aproximação ao universo a ser pesquisado.

A observação direta

Se o método etnográfico é composto por inúmeros procedimentos incluindo


levantamento de dados de pesquisa probabilística e quantitativa (demografia, morfologia,
geografia, genealogia, etc.), a observação direta é sem dúvida a técnica privilegiada para
investigar os saberes e as práticas na vida social e reconhecer as ações e as representações
coletivas na vida humana. É se engajar em uma experiência de percepção de contrastes sociais,
culturais, e históricos. As primeiras inserções no universo de pesquisa conhecidas como “saídas
exploratórias”, são norteadas pelo olhar atento ao contexto e a tudo que acontece no espaço
observado. A curiosidade é logo substituída por indagações sobre como a realidade social é
construída. Esta demanda é habitada por aspectos comparativos que nascem da inserção
densa do pesquisador no compromisso de refletir sobre a vida social, estando antes de mais
nada disposto a vivenciar a experiência de inter-subjetividade, sabendo que ele próprio passa
a ser objeto de observação (Lévi-Strauss, 1974, p. 1 à 36). O
(A) aprendiz a antropólogo(a) coteja os aspectos que percebe cada vez mais orientados por
questões teórico-conceituais apreendidas já nos primeiros anos do curso de ciências humanas.
Após a elaboração de um projeto com tema pertinente ao campo de conhecimento
antropológico e orientado por um(a) professor(a) que lhe iniciará na pesquisa etnográfica, a
primeira atitude do(da) jovem cientista é aproximar-se das pessoas, dos

29
grupos ou da instituição a ser estudada para conquistar a concordância de sua presença
para a observação sistemática das práticas sociais.
A interação é a condição da pesquisa. Não se trata de um encontro fortuito, mas de uma
relação que se prolonga no fluxo do tempo e na pluralidade dos espaços sociais vividos
cotidianamente por pessoas no contexto urbano, no mundo rural, nas terras indígenas, nos
territórios quilombolas, enfim, nas casas, nas ruas, na roça, etc, que abrangem o mundo
público e o mundo privado da sociedade em geral.
Logo após o pedido de consentimento por parte dos indivíduos ou das pessoas, ou da
concordância institucional, o(a) pesquisador(a)-observador(a), em sua atitude de estar
presente com regularidade, passa a participar das rotinas do grupo social estudado e sua
técnica consiste então na observação participante. A prática da etnografia se torna mais
profunda e se constitui como uma forma do(a) antropólogo(a) pesquisar, na vida social, os
valores éticos e morais, os códigos de emoções, as intenções e as motivações que orientam a
conformação de uma determinada sociedade.
É recorrente se afirmar que o(a) antropólogo(a) não pode se transformar em nativo(a),
submergindo integralmente ao seu ethos e visão de mundo, tanto quanto não pode aderir
irrestritamente aos valores de sua própria cultura para interpretar e descrever uma cultura
diferente da sua própria (o que consiste no etnocentrismo), sob pena de não mais ter as
condições epistemológicas necessárias à produção da etnografia. O(a) antropólogo(a)
brasileiro Roberto Da Matta (1978 e 1981), denomina este sentimento de estar lá e do estar
aqui como parte das tristezas do(a) antropólogo(a), um eterno desgarrado de sua própria
cultura, mas na eterna busca do seu encontro com outras culturas. Por isto podemos
caracterizar a antropologia como a ciência que trata da diversidade cultural.

O trabalho de conhecer

A pesquisa de campo etnográfico consiste em estudarmos o Outro, como uma


Alteridade, mas justamente para conhecer o Outro. A observação é então esta aprendizagem
de olhar o Outro para conhecê-lo, e ao fazermos isto, também buscamos nos conhecer melhor.
Esta busca de conhecimento é sempre orientada por questões conceituais aprendidas no
estudo das teorias sociais. Todo tempo estamos, portanto, desenvolvendo o que o sociólogo
francês Pierre Bourdieu definiu como uma teoria em ato (apud Thiollent, 1980). A cada
percepção que nos permite refletir conceitualmente operamos o que o filósofo francês
Gaston Bachelard ensinou em sua obra de iniciação “A formação do

30
espírito científico” sobre como vencer obstáculos epistemológicos imbuídos de uma cultura
científica. Fascinado pelas generalizações de primeira vista, logo somos mobilizados pela
motivação científica e superamos as armadilhas de explicar o que observamos pelo senso
comum. Ao recorrermos às idéias científicas podemos então ordenar nossas descobertas em
uma lógica inteligente que provoca o conhecimento intelectual sobre o observado, sobre a
situação pesquisada, sobre as dinâmicas sociais investigadas. Bachelard nos ensina aqui que
vivemos no campo científico uma ruptura epistemológica (Bachelard, 1996).
Esta descoberta sobre o Outro, é uma relação dialética que implica em uma sistemática
reciprocidade cognitiva entre o(a) pesquisador(a) e os sujeitos pesquisados.
A acuidade de observar as formas dos fenômenos sociais implica na disposição do(a)
pesquisador(a) a permitir-se experimentar uma sensibilidade emocional para penetrar nas
espessas camadas dos motivos e intenções que conformam as interações humanas,
ultrapassando a noção ingênua de que a realidade é mensurável ou visível, em uma atitude
individual. O observar na pesquisa de campo implica na interação com o Outro evocando uma
habilidade para participar das tramas da vida cotidiana, estando com o Outro no fluxo dos
acontecimentos. Isto implica em estar atento(a) as regularidades e variações de práticas e
atitudes, reconhecer as diversidades e singularidades dos fenômenos sociais para além das
suas formas institucionais e definições oficializadas por discursos legitimados por estruturas
de poder.
A pesquisa se inicia pela aprovação de um projeto que contenha as intenções teóricas e
categorias antropológicas que fundamentam as etapas do desenvolvimento do trabalho de
campo sob a orientação de um professor(a)/pesquisador(a) antropólogo(a). Existem múltiplas
maneiras da inserção em campo ser iniciada, mas em sua maioria, uma etnografia se estréia
com um processo de negociação do(a) antropólogo(a) com indivíduos e/ou grupos que
pretende estudar, transformando-os em parceiros de seus projetos de investigação,
compartilhando com eles e com elas suas idéias e intenções de pesquisa. O consentimento
implica em saber quando e onde ir, com quem e o que se pode ou não falar, como agir diante
de situações de conflito e risco, etc. Algumas vezes o(a) antropólogo(a) é “iniciado(a)” no seu
trabalho de campo por um dos membros do grupo que investiga. Em geral denominamos
este(a) personagem que nos apóia nos primeiros passos no contexto da pesquisa de
“interlocutor principal”, quando não pela carinhosa denominação de padrinho ou madrinha de
iniciação. Outras vezes se coloca em campo a partir do consentimento de uma determinada
instituição que avalia a pertinência da pesquisa para sua concordância ou ainda uma
organização que desenvolve ações junto ao grupo com o qual pretende trabalhar.

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O antropólogo americano William Foote Whyte (2005) fez sua entrada em campo nas
ruas da cidade. Buscava se aproximar dos moradores do quarteirão italiano de um bairro de
Boston, Cornerville. Esta aproximação é mediada por um trabalhador que lhe apresentará Doc,
chefe de um grupo de jovens que lhe colocará em contato com seus companheiros, através
dos quais irá conhecer uma rede densa de relações no bairro. Fica evidente que a expressão «
entrada em campo » possui uma rica ambigüidade. Para o(a) etnógrafo(a) “entrar em campo”
significa tanto a permissão formal do “nativo” para que ele disponha de seu sistema de crenças
e de práticas como objeto/tema de produção de conhecimento em antropologia, quanto o
momento propriamente dito em que o(a) antropólogo(a) adquire a confiança do(a) nativo(a)
e de seu grupo, os quais passam a aceitar se deixar observar pelo(a) etnógrafo(a) que passa,
por sua vez, a participar de suas vidas cotidianas.

A escuta atenta

A entrada em campo sempre transcorre desde uma rede de interações tecidas pelo(a)
antropólogo(a) no seu contato com um grupo determinado, sendo o trabalho de campo um
laborioso trabalho de entrada do(a) etnógrafo(a) desde uma situação periférica no interior da
vida coletiva deste grupo até seu deslocamento progressivo no coração dos dramas sociais
vividos por seus membros. Obviamente não todos, mas aqueles aos quais o(a) antropólogo(a)
aderiu em seu trabalho de campo. A experiência situada é aquela que orienta a prática da
pesquisa em antropologia que jamais pretende atingir um conhecimento do mundo social a
partir da posição que ele (ela) ocupa no seu interior. Todo o conhecimento produzido e
acumulado pelo pensamento antropológico está referido a experiência singular que o(a)
etnógrafo(a) desenvolve com a sociedade que investiga.
A inserção no contexto social objetivado pelo(a) pesquisador(a) para o desenvolvimento
do seu tema de pesquisa, o(a) aproxima cada vez mais dos indivíduos, dos grupos sociais que
circunscrevem seu universo de pesquisa. Junto a estas pessoas o(a) pesquisador(a) tece uma
comunicação densa orientada pelo seu projeto de intenções de pesquisa.
A presença se prolonga e o(a) antropólogo(a) participa da vida social que pesquisa,
interagindo com as pessoas no espaço cotidiano, compartilhando a experiência do tempo que
flui. Esta comunicação se densifica com a aprendizagem da língua do “nativo” para a
compreensão de suas falas quando necessário, com o reconhecimento dos sotaques ou das
gírias, com a aprendizagem dos significados dos gestos, das performances e das etiquetas
próprias ao grupo que revelam suas orientações simbólicas e traduzem seus sistemas de

32
valores para pensar o mundo. O antropólogo americano Clifford Geertz (1978) sugere aqui
que estaremos desvendando o tom e a qualidade da vida cultural, o ethos e o habitus do grupo,
ou seja, estaremos interpretando o sistema simbólico que orienta a vida e conforma os valores
éticos dos grupos sociais em suas ações e representações acerca de como viver em um sistema
social. Isto significa estar junto nas situações ordinárias vividas como possibilidade
interpretativa dos ditos e não ditos que se constituem como parte fundamental das
aprendizagens de seu métier.
A disposição de escutar o Outro, não é tarefa evidente. Exige um aprendizado a ser
conquistado a cada saída de campo, a cada visita para a entrevista, a cada experiência de
observação. Os constrangimentos enfrentados pelo desconhecimento vão sendo superados
pela definição cada vez mais concreta da linha temática a ser colocada como objetivo da
comunicação. Diz-se então que a prática etnográfica permite interpretar o mundo social
aproximando-se o pesquisador do Outro “estranho”, tornando-o “familiar” ou no
procedimento inverso, estranhando o familiar, superando o pesquisador suas representações
ingênuas agora substituídas por questões relacionais sobre o universo de pesquisa analisado
(Da Matta, 1978 e Velho, 1978).

O universo de pesquisa, o contexto estudado

Os Jogadores de futebol de várzea, os fiéis de uma determinada casa de religião, os


moradores de uma vila de invasão, os habitantes de um cortiço de esquina de um bairro
popular, os grupos de travestis e as prostitutas em seus territórios de batalha, os
freqüentadores de fast foods, os doadores de rins, os vendedores de artesanato no mercado
de pulgas, os voluntários em uma Ong ativista ambiental, os jovens de classe média que
“ficam” numa boate, etc, todas estas redes sociais tem sua forma própria de pertencer e
viver, construindo realidades culturais próprias.
A escolha do tema de pesquisa leva a opção pela inserção em um contexto social
específico que responde a demanda intelectual do(a) antropólogo(a). Questões iniciais de
dificuldades ou impedimentos são levadas em conta em torno das condições sociais concretas
para a reciprocidade almejada. Sobretudo as pessoas devem estar cientes da intenção do
pesquisador e somente na disponibilidade e cumplicidade, a pesquisa tem sua continuidade.
Este lugar não é neutro de sentidos. Cada acontecimento está vinculado ao contexto
social em que a ação humana é desenvolvida.

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O esforço de construir este cenário social é então fundamental em toda monografia para
que os futuros leitores possam compartilhar dos matizes que orientaram os procedimentos
sociais nos atos interativos, bem como ter o mínimo de dados sobre as disposições sociais que
estavam em jogo nas interações cotidianas. Este contexto é elaborado a partir de dados
observados, estudos históricos, revisão bibliográfica de pesquisas já desenvolvidas sobre o
tema, análise de discursos e de documentos históricos, estudo de imagens produzidas, etc,
enfim, uma gama de dados empíricos e conceituais coletados e interpretados nesta atitude
arqueológica de reconstruir o saber produzido sobre o universo social pesquisado.

O exercício da escrita e a ipseidade

A cada investida “em campo”, o(a) etnógrafo(a), segue o modelo clássico fundado pelos
primeiros antropólogos que se aventuravam em viagens para conhecer os povos nominados
na época de exóticos, simples e distantes. Trata-se do registro escrito em notas, diários ou
relatos das experiências observadas ou escutadas no cotidiano da investigação.
O que se escreve? Recorremos aqui ao famoso antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro
(2006) que responde de forma muito simples:

Meus diários são anotações que fiz dia a dia, lá nas aldeias,
do que via, do que me acontecia e do que os índios me diziam.

Este ato de escritura define a capacidade de recriar as formas culturais que tais
fenômenos adotam e permite exercitar a habilidade de lhes dar vida novamente, agora na
forma escrita, com base em uma estrutura narrativa. Eis alguns pontos em comum entre o
método etnográfico e o romance, e que aproxima a Antropologia da Literatura.
O antropólogo brasileiro Roberto Cardoso de Oliveira recorre a uma expressão em inglês
para definir esta experiência de escrever sobre a experiência de observar o Outro e escutar o
Outro: Semantical Gap. Isto quer dizer que o(a) antropólogo(a) vivencia seja na interação face
a face, seja no ato de refletir sobre esta experiência, o momento de descoberta do Outro, mas
onde o pesquisador faz sempre um retorno a si mesmo porque ele também se redescobre no
Outro. O(a) antropólogo(a) reconhece, ao se relacionar na pesquisa de campo, uma diferença,
uma separação de valor, um abismo entre valores que é definido desde a fundação da premissa
de estranhar o Outro como de relativismo cultural.

34
Este momento é uma experiência única e intransferível. Uma busca de conhecimento
orientada por conceitos de um campo semântico da teoria antropológica que nos estimula a
questões anti-etnocêntricas, quer dizer, de não fazer com que os juízos de valores da
sociedade do(a) próprio(a) pesquisador(a) persistam ao olhar o Outro evitando a armadilha de
ver o Outro com os valores de uma sociedade tão distante que gere e reproduza o preconceito.
Para muitos uma mescla entre arte e ciência, o método etnográfico se conforma num
processo lento, longo e trabalhoso de acesso as inúmeras camadas interpretativas da vida
social, e que conforma os fenômenos culturais tanto quanto num laborioso procedimento de
reapresentar as formas culturais na qual tal vida social se apresenta para seus protagonistas.
A antropóloga americana Margareth Mead (1979) em um artigo célebre já havia
pontuado entre seus colegas que uma das peculiaridades da antropologia, desde suas origens,
é a de ser uma disciplina de palavras. A autora ao desenvolver seu argumento revela que a
prática etnográfica se traduz na memorização de acontecimentos orais complexos
(cerimônias, conversas, relatos, comentários, interações verbais, etc.) que necessitam ser
registrados, classificados, correlacionados, comparados e, logo após, retomados pelo
etnógrafo na forma de estudos monográficos, através do uso de conceitos teóricos e
metodológicos do seu campo disciplinar e não do próprio “nativo”. Todo(a) o(a) etnógrafo(a)
é por assim dizer um(a) escriba.
Para muitos cientistas sociais a sua formação no oficio de etnógrafo passa pelo
espinhoso processo da escrita de uma monografia, ou seja, um estudo pontual e denso sobre
uma prática cultural qualquer analisada onde necessita transpor para a escrita sua experiência
com o grupo pesquisado. O sofrimento que a escrita traz para este aprendiz de etnógrafo(a) é
mais complexa quanto mais ele ou ela se dedicarem ao estudo de práticas cujos contextos
culturais são marcados pela forte presença da oralidade na sua forma de expressiva, caso dos
estudos de contos e de lendas do folclore popular, de cantos e mitos em sociedades indígenas
ou tribais.
A prática da etnografia traz para o campo do debate, hoje, as questões da restituição
etnológica, isto é, o retorno ao grupo pesquisado das informações e dados que o(a)
etnógrafo(a) deles retirou quando de sua estadia entre eles. Esta foi, sem dúvida, uma das
grandes contribuições dos antropólogos americanos que reivindicam uma antropologia pós-
moderna. Estes se preocuparam fortemente com estas questões da autoridade etnográfica
dos escritos dos antropólogos e do lugar de autor que este ocupa no momento de oferecer a
comunidade dos antropólogos suas interpretações da cultura do Outro. Produção de estudos
monográficos que apresentam dados, situações, acontecimentos da

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vida cotidiana do “nativo” cuja natureza é diversa daquela dos dados obtidos no trabalho de
campo.
Não cabe no computo deste artigo discutir, mas vale lembrar que a prática da escrita
em antropologia (e o trabalho de edição, revisão e editoração) representa um rito de
passagem importante para a formação de um antropólogo precisamente pela forma como a
linguagem escrita permite ao próprio pensamento antropológico dar conta da natureza do
construto intelectual que orienta a representação etnográfica.
Importante se ressaltar que o trabalho de escrita etnográfica tal qual aparece nos
estudos monográficos clássicos foi, obviamente, concebido a posteriori, geralmente com o
apoio de casas de edições interessadas na venda de tais monografias sob a forma de livros. A
leitura dos clássicos, tal qual se apresenta no espaço livresco não pode ignorar que a realização
de um trabalho etnográfico necessita a prática de um dispositivo de pensamento especulativo
preliminar onde a escrita exploratória e ensaística é fundamental para o seu processo de
pensar seu próprio pensamento. A organização do trabalho de campo em fases bem precisas,
totalmente esquemáticas (preparação, coleta de dados, análise dos dados e escrita final do
estudo monográfico, dissertação ou tese) é, neste sentido, uma ilusão criada pelo espaço
livresco por onde circulam as etnográficas clássicas do pensamento antropológico e do qual
todo(a) o(a) aprendiz de etnógrafo(a) precisa ter acesso.
A escrita etnográfica desde a contribuição de Clifford Geertz (O antropólogo como
autor), de James Clifford (A experiência etnográfica) e de Paul Rabinow (Antropologia da
razão) supõe atualmente a pesquisa com novas formas de escritas etnográficas como forma
de acomodar as questões da controversa da restituição etnológica da palavra do Outro.

Conhecer a trajetória da antropologia como campo de idéias disciplinares

A prática do método etnográfico é seguida do estudo sistemático da construção do


campo da disciplina antropológica. Este procedimento permite a compreensão das disposições
intelectuais e ideológicas da trajetória do método antropológico em que o pesquisador se
engaja. Compõe-se, portanto, de um dos processos de formação pelos quais um aluno do
curso de ciências sociais necessita apreender para se formar na prática de investigação crítica
que delimita a produção de conhecimento em Antropologia na sua relação com os demais
campos das ditas “sociais”.
O encontro/confronto do cientista social com as sociedades não-européias foi
evidentemente que deu origem a este modo de conhecimento particular elaborado desde a

36
técnica da observação rigorosa contínua e regular da vida social a partir da localização do
investigado no interior das formas da vida social que pretendia estudar. Procurava impregnar-
se lenta e sistematicamente dos grupos humanos com os quais mantinha, então, estreita troca
e interação. Nas palavras do antropólogo alemão Franz Boas:

Qualquer um que tenha vivido entre as tribos primitivas,


compartilhado suas alegrias e seus sofrimentos, que tenha
conhecido com eles seus momentos de provação e abundância, e que
não os encarem como simples objetos de pesquisa examinados como
célula num microscópio, mas que os observe como seres humanos
sensíveis e inteligentes que são, admitiria que eles nada possuem
de um “espírito primitivo, de um “pensamento mágico” ou “pré-
lógico” e que cada individuo no interior de uma sociedade
“primitiva” é um homem, uma mulher ou uma criança da mesma
espécie possuindo uma mesma forma de pensar, sentir e agir que um
homem, uma mulher ou uma criança de nossa própria sociedade.
(Boas, 2003, p. 32).

Bronislaw Malinowski e Franz Boas foram os pais fundadores deste método ao


explorarem a distância que separava suas sociedades daquelas por eles investigadas. Suas
obras, Os argonautas do pacífico ocidental e A alma primitiva, respectivamente, são exemplos
da experiência de alteridade na elaboração da experiência etnográfica, tão necessária à
formação de um antropólogo, mesmo nos dias de hoje. Diz o antropólogo polonês e
posteriormente naturalizado inglês:

Se um homem embarca em uma expedição decidido a provar certas


hipóteses e se mostra incapaz de modificar sem cessar seus pontos de
vistas e de abandoná-los em razão de testemunhos, inútil de dizer que seu
trabalho não terá valor algum. (Malinowski, 1976, p. 65)

Estranhamento e relativização foram conceitos cunhados na tradição do pensamento


antropológico na sua tentativa de dar conta dos processos de transformação do olhar o outro,
o diferente, desde os deslocamentos necessários do olhar do(a) antropólogo(a) sobre si
mesmo e sua cultura, o igual.
A antropologia dos mestres fundadores foi assim responsável, no campo das ciências
sociais, por uma revolução epistemológica pela forma como a pesquisa etnográfica, tendo
como fundamento o trabalho de campo junto as sociedades ditas primitivas, provocaria nas
formas das ciências sociais: produzir conhecimento ao longo do século XX conquistando vigor
metodológico na investigação antropológica nas modernas sociedades complexas.

37
A etnografia como método de investigação das modernas sociedades complexas como
método de investigação, influenciou as formas de se fazer pesquisa entre os sociólogos da
Escola de Chicago. Este grupo de sociólogos americanos e europeus tinha por interesse comum
nos anos 30 do século XX, desenvolver um método e conceitos pertinentes para tratar do
fenômeno urbano e industrial. Suas descobertas para compreender a sociedade moderna
amplificaram seus efeitos nos questionamentos no campo da pesquisa em ciências sociais pela
forma como a etnometodologia encontrou nos estudos clássicos dos antropólogos sua fonte
de inspiração para o estudo microscópico das formas de vida social de nossas próprias
sociedades na cultura ocidental, urbano-industrial.
No inicio do séc. XX, principalmente após as crises dos anos 1930, eram inúmeros os
cientistas sociais que participavam de instituições públicas ou privadas que tinham por centro
de suas ações o trabalho com grupos e/ou indivíduos vivendo em situações de crise social.
Muitos destes cientistas fizeram destas experiências seu tema e objeto de teses em
universidades efetuando-se assim a passagem da participação para a observação das
situações vividas por tais indivíduos e/ou grupos, numa tentativa de reuni-los no interior de
um mesmo procedimento metodológico.
A etnometodologia foi neste caso fundamental para a pesquisa no campo das ciências
sociais migrarem de procedimentos e técnicas de pesquisa influenciadas por uma sociologia
funcionalista ou positivista para uma microsociologia com grande influência do método
etnográfico, em Antropologia. Um exemplo paradigmático é a Escola de Chicago que
influenciou grandemente os estudos antropológicos em sociedades complexas, em especial
orientando para a análise das práticas culturais no contexto da vida social nos grandes centros
urbanos. Reunindo esta experiência ao método etnográfico, a área de conhecimento da
Antropologia inovou em suas formas de pesquisar os fenômenos sociais nas modernas
sociedades urbano-industriais ao propor o conceito de relativização como inerente à pesquisa
em ciências sociais, resultado do jogo polêmico entre participação e distanciamento do
pesquisador em relação ao seu próprio território de pesquisa.
Outra forma de se produzir conhecimento em ciências sociais se expande desde aí tendo
como foco o tema das necessárias rupturas epistemológicas, conforme Pierre Bourdieu (1999).
Para o sociólogo francês tal pesquisa necessita contemplar o sentido reflexivo da trajetória dos
conceitos e teorias produzidos superando a força e a qualidade heurística das ditas ciências
duras. A apresentação do mundo subjetivo do pesquisador como parte integrante dos
procedimentos científicos de objetivação a pesquisa do mundo social e não como
impedimentos a sua realização encontram na história das técnicas de pesquisa em
antropologia uma fonte de inspiração.

38
Aprender a etnografia lendo etnografias

A pergunta do(a) aluno(a) ao professor(a) antropólogo(a) é freqüente: "como posso


aprender a fazer uma boa etnografia? Existe algum modelo que possas me sugerir? Tenho
pressa".
O(a) professor(a) antropólogo(a) sempre responde da mesma forma. Não existe
8
nenhuma "receita de bolo" pronta ou "cursinho Walita"2 a seguir. Você pode começar por
ler o Manual etnográfico de Marcel Mauss ou os vários livros que buscam sistematizar as
técnicas de pesquisa etnográfica. Mas somente lendo boas etnografias, os diários, as
crônicas de viajantes, uma boa literatura, os laudos de pesquisa, os relatos de campo,
somado ao estudo sistemático de abordagens teóricas, é que você conseguirá passar pelo
processo de formação epistemológica na experiência etnográfica.
O(a) aluno(a) conformado(a) de que a pressa não adiantará de nada, entenderá que a
prática da etnografia se baseia nesta disponibilidade de pesquisar a partir de um método que
o(a) coloque no encontro direto com os indivíduos e/ou grupos em situações de vida
ordinárias.
Lendo os chamados clássicos da etnografia, o(a) aprendiz configura o que significa a
experiência do(a) etnógrafo(a) misturar-se no seio do grupo social, colocando-se em
perspectiva a partir de conversas, diálogos que nascem das interações sempre na expectativa
de compreender as intenções e motivações que orientam as ações dos Outros e as suas.
Desvenda aos poucos os acontecimentos (rituais, cerimônias, eventos, conflitos,
solidariedades, etc.) particulares, interpretando os sentidos nele contidos. Pela leitura das
etnografias, o(a) pesquisador(a) vai participando cada vez mais de uma comunidade de
comunicação que compartilha de um estilo de produção do conhecimento, sempre
orientado(a) por interrogações e inquietações de seu tema e objeto de pesquisa: o que está
se passando naquele momento em que um determinado acontecimento esta
ocorrendo?

Quem faz o quê nestas situações? Quem é quem na ordem destes acontecimentos? Quais
as razões de tudo aquilo se passar da forma como está se passando? Quais as razões das coisas
serem como são?

8
2 Cursinho Walita resultou de uma publicidade da venda de liquidificadores Walita que sugeriam
receitas de culinária rapidamente elaboradas com o uso do aparelho.

39
Baseado no aprendizado da leitura etnográfica, o(a) pesquisador(a) perde este lugar de
“mal necessário” e se torna provocador de questões mais pontuais sobre a vida das pessoas e
dos grupos com as quais está dialogando, convidando-os a pensar sobre o sentido de suas
práticas cotidianas. No interior deste diálogo o(a) etnógrafo(a) transforma, assim, os
acontecimentos ordinários da vida dos indivíduos e/ou dos grupo com os quais interage em
evento extraordinário, promovendo entre eles o desafio de refletir conjuntamente sobre si
mesmos.

As implicações de ser um etnógrafo: a vigilância epistemológica

O método etnográfico se define pelas técnicas de entrevista e de observação


participante complementares aos procedimentos importantes para o cientista adequar suas
preocupações estritamente acadêmicas e academicistas à trama interior da vida social que
investiga. Uma das razões pela qual na etnografia a entrevista transcorre desde a elaboração
da estrutura de um roteiro de inquietações do(a) pesquisador(a) flexível o suficiente para
aderir as situações subjetivas que estão presentes no encontro etnográfico.
A preocupação desmedida do(a) pesquisador(a) com a estrutura de uma entrevista
dirigida, quase transformado em questionário, e sua insistência no afastamento do
entrevistado de uma reflexividade sobre suas situações de vida ordinária, em antropologia,
pode conduzir o etnógrafo muitas vezes ao desencontro etnográfico e, até mesmo, ao
desconforto do desinteresse por parte do grupo de investigação. Ao contrário, as relações de
reciprocidade, mesmo que oscilantes em dias de pesquisa ditos mais produtivos e outros
permeados de dificuldades de toda ordem (o informante que “deu bolo”, a desconfiança de
um entrevistado sobre a fidelidade de suas concepções, etc), são construídas em situações de
entrevistas livres, abertas, semi-guiadas, repletas de trocas mútuas de conhecimento.
Além destas duas técnicas associadas ao método etnográfico, existe outra, de extrema
importância para todo o(a) antropólogo(a), a técnica da escrita do diário de campo. Após cada
mergulho no trabalho de campo, retornando ao seu cotidiano de antropólogo, o etnógrafo
necessita proceder a escrita de seus diários de campo. Os diários íntimos dos antropólogos
trazem farta bibliografia sobre os medos, os receios, os preconceitos, as dúvidas e as
perturbações que o moveram no interior de uma cultura como forma de compreensão da
sociedade por ele investigada. Trata-se de anotações diárias do que o(a) antropólogo(a) vê e
ouve entre as pessoas com que ele compartilha um certo tempo de suas vidas cotidianas. Os
diários de campo, entretanto não servem apenas como um instrumento de “passar a limpo”
todas as situações, fatos e acontecimentos vividos durante o tempo

40
transcorrido de um dia compartilhado no interior de uma família moradora de uma vila popular,
com quem passou um tempo para pesquisar o tema da violência urbana. Ele é o espaço
fundamental para o(a) antropólogo(a) arranjar o encadeamento de suas ações futuras em
campo, desde uma avaliação das incorreções e imperfeições ocorridas no seu dia de trabalho
de campo, dúvidas conceituais e de procedimento ético. Um espaço para o(a) etnógrafo(a)
avaliar sua própria conduta em campo, seus deslizes e acertos junto as pessoas e/ou grupos
pesquisados, numa constante vigilância epistemológica.
Evidentemente que o diário de campo não é algo que possa ser escrito ao mesmo tempo
em que me encontro compartilhando com os outros suas vidas, no dia a dia! Ele resulta de
outro instrumento: o caderno de notas. É no caderno de notas de campo, onde o(a)
antropólogo(a) costuma registrar dados, gráficos, anotações que resultam do convívio
participante e da observação atenta do universo social onde está inserido e que pretende
investigar; é o espaço onde situa o aspecto pessoal e intransferível de sua experiência direta
em campo, os problemas de relações com o grupo pesquisado, as dificuldades de acesso a
determinados temas e assuntos nas entrevistas e conversas realizadas, ou ainda, as indicações
de formas de superação dos limites e dos conflitos por ele vividos.
O caderno de notas e o diário de campo são instrumento de transposição de relatos orais
e falas obtido desde a inserção direta do(a) pesquisador(a) no interior da vida social por ele
ou por ela observada. Muitos destes cadernos de notas e diários contendo dados brutos de
observações diretas em campo conduziram os antropólogos ao estudo e a pesquisa, por
exemplo, com as gramáticas e os vocabulários que constituem os diferentes dialetos de uma
mesma língua falados pelas sociedades por eles pesquisadas, com as genealogias de
parentesco que organizam seu corpo social; os mitos e os rituais que vivificam o sentido
coletivo de suas vidas, etc.

Nos termos de Roberto Cardoso de Oliveira (2000), ver, ouvir e escrever como parte
integrante da prática da etnografia não se limita a ações simples, mas giram em torno das
implicações do pesquisador com sua pesquisa uma vez que ela repousa sobre a qualidade e
densidade das trocas sociais do(a) antropólogo(a) com os grupos com os quais esta
compartilhando experiências. O resultado de um trabalho de campo se mede pela forma como
o(a) próprio(a) antropólogo(a) vai refletir sobre si mesmo na experiência de campo. A
confrontação pessoal com o desconhecido, o contraditório, o obscuro e o confuso no interior
de si-mesmo é uma das razões que conduzem inúmeros autores a considerar a etnografia
como uma das práticas de pesquisa mais intensas nas ciências sociais. Não raro, os diários são
hoje publicados ou revistos para publicação pelos(as) próprios(as)

41
antropólogos(as) como é o caso do “Os diários e suas margens, viagem aos territórios Terêna
e Tükúna” de Roberto Cardoso de Oliveira em uma clara intenção de devolução da obra escrita
e fotografada aos povos indígenas hoje em crescente índice de alfabetização e tomados agora
como leitores potenciais de sua própria história registrada e relatada pelo antropólogo
(Cardoso de Oliveira, 2002, p. 13).
Esta crescente circularidade das produções etnográficas elaboradas no âmbito
acadêmico para contextos além-muros universitários consiste numa perspectiva de
democratização e compartilhamento político do trabalho de pensar o mundo social. Como
esclarece o antropólogo americano Marshall Sahlins:

Agora, duzentos anos mais tarde, uma marcada consciência de


“cultura” está reaparecendo no mundo todo entre as vítimas atuais e
passadas da dominação ocidental – é como expressão de exigências
políticas e existenciais semelhantes. Esse culturalismo, tal como foi
chamado, está entre os mais surpreendentes, e talvez mais significativos
fenômenos da história do mundo moderno. (Sahlins, 2001, p. 28)

A tendência monográfica e a grafia da luz

A pesquisa elaborada no suporte escrito segue a tendência monográfica tendo por


projeto acadêmico divulgar e circular a descrição da experiência etnográfica.
A prática da escrita tem sido o espaço da produção intelectual do etnógrafo por
excelência. A escrita de artigos, de ensaios, de livros, de teses e dissertações ou de trabalhos
monográficos tem sido a forma adotada para a expressão final de um trabalho de campo com
base no método etnográfico, a ser reconhecido pelos pares do mundo acadêmico.
Entretanto, assiste-se ao longo do último século, uma reorientação desta tendência no
sentido de agregar a ela a produção de etnografias através do uso de recursos audiovisuais
como foi o caso da adoção da câmera fotográfica por Bronislaw Malinowski, entre os
trombriandeses e por Margaret Mead e Gregoire Bateson entre os balineses, para citarmos
apenas alguns entre outros antropólogos(as) que produziram imagens nas experiências de
campo nos primeiros cinqüenta anos do século XX.
O antropólogo visual australiano David MacDougall (2006), reflete sobre estas questões
que decorrem do uso do método etnográfico na pesquisa em ciências sociais. Ele afirma que a
produção textual de etnografias tem seus limites expressos no fato de que a linguagem escrita
reapresenta as diferenças culturais sob uma forma esquemática em

42
detrimento da concretude da experiência etnográfica traduzida, por exemplo, pela via da
fotografia e do filme. Na produção textual, segundo o autor, o “nativo” se deixa ver pela mão
do etnógrafo, desde um ponto de visa generalizante, abstrato e normativo da palavra escrita
em seu desespero de expressar as formas como os fenômenos foram vividos em campo pelo(a)
antropólogo(a). Outro fator determinante da escrita etnográfica é que na medida em que o
texto circula e é reinterpretado pelo ato da leitura, os dados etnográficos se depositam na
forma de uma produção textual e se tornam pouco a pouco independentes de seu contexto
original de enunciação, pois são reinterpretados desde outros lugares e contextos de leituras.
Estas questões sobre as modalidades de escrita do pensamento antropológico tecer
suas interpretações sobre a cultura “nativa” são aspectos fundamentais do avanço nos usos
dos procedimentos e técnicas dos recursos audiovisuais para a prática da pesquisa de campo
em Antropologia nos últimos 30 anos. Se antes a expressão figurativa do outro poderia ser
vista negativamente porque congelava a cultura do nativo e o próprio nativo numa imagem
determinada, alusiva apenas a um momento de sua vida compartilhada com o etnógrafo que
o fotografou e o filmou, durante seu trabalho de campo, hoje, este mesmo traço figurativo já
se coloca de outra forma: através do olhar de uma tradição interpretativa em antropologia
que, longe da ingenuidade positivista, não atribui a imagem técnica seu estatuto de duplo ou
cópia do real.
Acumulados ao longo dos anos nos acervos pessoais dos antropólogos ou nos arquivos
institucionais as imagens visuais e sonoras captadas e registradas do nativo e de sua cultura
durante os vários momentos do trabalho de campo permitem precisamente avaliar o grau
de impacto da presença do etnógrafo entre a população por ele estudada.
Para David MacDougalll (2006) o caráter figurativo da imagem fotográfica e filmica (hoje,
cada vez mais videográfica) ao mesmo tempo em que permite a quem as manipula pensar nas
semelhanças e diferenças entre ele e a cultura retratada na imagem, conduz a uma reflexão
sobre a passagem do tempo do qual estas imagens resultam. Precisamente por que é o seu
traço figurativo que podemos perceber quase como pistas, desvendando os gestos e
motivações simbólicas que orientaram o olhar etnográfico para a composição daquela
forma de representação do nativo e não de outra.

43
Etnografia e as novas tecnologias

Até recentemente, o leitor era orientado a ler na interface de um livro ou a olhar as


imagens ilustrativas anexas para conhecer e compartilhar da experiência etnográfica e do
potencial analítico conceitual do(a) antropólogo(a) em sua objetividade científica. Após os
aprendizados com a interface da fotografia e do cinema, é na era das textualidades eletrônicas
que se renova o desafio da metamorfose da escrita etnográfica. Neste contexto, o clique aqui
é o convite de um contrato de trocas complexas e efêmeras, que colocam autrement o ato
sempre possível da interatividade entre o pesquisador e os sujeitos da interpretação.
Vale ressaltar que uma das últimas fronteiras, hoje, é a produção de novas escritas
etnográficas com base no contexto enunciativo que constituem as novas textualidades
eletrônicas e digitais. Uma antropologia do cyberspace ou no cyberspace é hoje uma das
formas possíveis de expressão do trabalho de campo em Antropologia através do uso do
método etnográfico clássico em ambientes virtuais, o que tem gerado uma reflexão cada vez
maior em torno do processo de desterritoralização da representação etnográfica e a
desmaterialização do texto etnográfico no âmbito das ciências sociais.
O processo de desencaixe espaço-tempo que as novas tecnologias da informática têm
proposto para os lugares da memória no corpo da sociedade contemporânea, ao configurar as
relações entre homem e cosmos em redes mundiais de comunicação, tem provocado, nas
ciências humanas, a necessidade de se aprofundarem novas formas de entendimento das
estruturas espaço-temporais que conformam a magia dos mundos virtuais.
Para enfrentar esse e outros desafios, o que se coloca, cada vez mais, é a relevância não
apenas de refletir sobre as diferentes modalidades de tecnologias de pensamento (oralidade,
escrita, redes digitais) empregadas pelas sociedades humanas para liberar a memória de seu
suporte material (seguimos aqui Leroi-Gourhan, 1964) até atingir sua expressão recente em
redes eletrônicas e digitais, mas, principalmente, de indagar a respeito das operações e
proposições por meio das quais as ciências humanas têm enfrentado, até o momento, o
conhecimento da matéria do tempo e suas cadeias operatórias.
Importa, aqui, tratar da cultura da tela (Eckert e Rocha, 2005) e da civilização da imagem
(Durand, 1980) como novas formas de reorganização dos saberes que suportes mais
tradicionais disponibilizam, transfigurando seu sentido original e atribuindo-lhes uma
significação mais móvel, plural e instável pelo caráter granular que atribui a todos eles.
Pode-se supor a possibilidade de uma etnografia hipertextual (Eckert e Rocha, 2005),
com base numa retórica mais aberta, dinâmica, fluida de disponibilização dos dados

44
etnográficos em web tanto para o pesquisador quanto para sua comunidade lingüística, o que
contempla uma alteração na forma como até então as ciências sociais vinham produzindo
conhecimento.

Conclusões

Os fundamentos da prática etnográfica, portanto, apontam, assim, para o papel que


assume o pesquisador da área das ciências sociais na sua investigação da vida social no coração
dela, uma questão que se tornou central, principalmente nos anos 50 e 60 do século XX, mais
particularmente quando o objeto da Antropologia migra das sociedades ditas primitivas para
as sociedades dos próprios antropólogos. O papel do etnógrafo diante da coisa e das pessoas
por ele pesquisadas, seu grau de implicações com elas, sua forma de participar no transcurso
dos processos da vida social que se modifica e transforma no tempo e no espaço, configura-se
na própria delimitação do trabalho de campo segundo a situação que nela ocupa o pesquisador
em relação ao fenômeno etnografado.
Em antropologia, a dissimulação do(a) etnógrafo(a) (sua profissão, seus objetivos, suas
intenções, etc.) no interior do grupo a ser pesquisado desencadeia inconvenientes de ordem
ético-moral que tem sido debatido pela sua comunidade de pesquisadores que tendem a
rejeitar a situação em que o(a) antropólogo(a) esconde suas verdadeiras intenções em campo.
A figura do(a) antropólogo(a) travestido de nativo é, portanto, rara na prática do método
etnográfico colocando em risco precisamente o pacto de confiança e cumplicidade com o
grupo que investiga e desde aí comprometendo a natureza dos dados por ele obtidos.
O método etnográfico opera precisamente com esta distensão infinita do(a)
antropólogo(a) diante de si e do outro, sendo no interior deste vazio de sentido que brota sua
reflexão sobre as culturas e sociedades humanas.
Importante se frisar que duração de uma etnografia não é a mesma da duração da
temporalidade do próprio fenômeno social e cultural investigado. Desde suas origens, a
prática do trabalho de campo em Antropologia vem confrontando situações de extrema
complexidade, nem sequer imaginadas pelos seus pais fundadores. Cada vez mais
investigando os fenômenos de sua própria sociedade, o(a) antropólogo(a) ao usar o método
etnográfico se confronta com difíceis questões ético-morais no delineamento de suas relações
com as pessoas e/ou grupos sociais por ele pesquisados.
Neste sentido, a prática da etnografia no mundo pós-colonial desdobraram-se em
importantes debates sobre o lugar do(a) antropólogo(a) e das ciências sociais no âmbito, por

45
exemplo, das lutas pelos direitos humanos e dos direitos sexuais no mundo contemporâneo.
Esta complexidade decorre da interdependência que une hoje o oficio do(a) antropólogo(a) as
formas de vida dos interlocutores, onde muitas vezes se vê constrangido a participar das
atividades de lutas de defesa das suas culturas.
Se antes o ato de participar que configurava a técnica da observação participante não
trazia consigo o engajamento do(a) antropólogo(a) nas mudanças das formas de ser da cultura
nativa, hoje, o método etnográfico não pode ignorar que o próprio trabalho de campo do(a)
antropólogo(a) provoca nela intervenções, a ponto de ser um fator de transformação da
cultura do “nativo”.
Acusada inúmeras vezes de produzir um conhecimento insípido e inodoro das sociedades
humanas, pela forma inicial com que advogava a necessidade do(a) antropólogo(a) conservar em
campo uma certa distância do fenômeno observado, tendo em vista suas preocupações com o
rigor científico, a tradição etnográfica se transformou lentamente em expressão de uma
forma de produção de conhecimento engajada e, por vezes, até mesmo militante. Com o passar
das décadas, em fins do séc. XX, situados na defensiva diante de um modelo positivista ou da
radicalidade de um modelo militante nas formas de procederem às apropriações do método
etnográfico, alguns antropólogos inspirados numa tradição interpretativista re-orientam para as
tensões entre participação e distanciamento como inerentes à condição do tradicional ato de
“etnografar” as culturas nas mais diversas sociedades.
Mais ou menos participante, o debate em torno das tipologias da técnica da observação
participante que orienta o método etnográfico e seus graus variados de implicações do(a)
antropólogo(a) com o grupo pesquisado (até se chegar a controversa da pesquisa-ação ou
pesquisa participante) fez avançar a própria importância deste método para a formação de um
cientista social no campo da produção de conhecimento antropológico. O que coloca a
etnografia como uma forma fundamental de construção de conhecimento nas ciências sociais
é justamente esta sua abertura ao mundo das interações sociais e culturais que unem o
pesquisador às culturas e sociedades por ele investigadas e que reside em algumas perguntas
cruciais sem que por isto se tenha para elas uma resposta única: Como conciliar a necessidade
metodológica do pesquisador se implica na vida cotidiana de um grupo humano e a implicação
do(a) pesquisador(a) que desde aí decorre com a forma da vida humana que ele configura?
Como evitar nos tornarmos nós mesmos
« nativos » ou de transformar os “nativos” em nós?

46
A ruptura com o senso comum sem dúvida é hoje uma questão que provoca verdadeira
vertigem entre os cientistas sociais se pensarmos que neste “senso comum” estão as suas
próprias produções teóricas e conceituais. Na figuração de um tempo pós- colonial, o Outro, o
Diferente, é ameaçado de se tornar o Mesmo, o igual, e isto pelas mãos dos próprios etnógrafos
ou dos “nativos” transformados em antropólogos imbuídos da invenção ocidental da figura do
“nativo” universal.
Segundo Sahlins (2001) no desencaixe espaço-tempo do mundo pós-colonial, no
encurtamento das distâncias que colocam o pesquisador e sua produção no interior do “olho
do furacão” das guerras e disputas entre povos e culturas em busca de seus destinos, o apelo
moral da noção de nativo universal e da privação que ela impõe as possibilidades de
compreensão da experiência nativa, fora de suas particularidades ou pressupostos culturais,
como sugere a teoria perspectivista, se tornou hoje outro dos grandes desafios da
permanência do método etnográfico no campo das pesquisas sociais.
A prática etnográfica tem por desafio compreender e interpretar tais transformações
da realidade desde seu interior. Mas, sabemos também, que toda produção de conhecimento
circunscreve o trajeto humano. Assim o oficio de etnógrafo pela observação participante, pela
entrevista não-diretiva, pelo diário de campo, pela técnica da descrição etnográfica, entre
outros, coloca o(a) cientista social, o(a) antropólogo(a), mediante o compromisso de ampliar
as possibilidades de re-conhecimento das diversas formas de participação e construção da vida
social.

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48
1.2 Os/as antropólogos/as: testemunhos do terreno

No final deste capítulo deverá:

• Entender o processo pessoal de confronto com a alteridade


• Analisar como o trabalho de campo se constitui como fonte de produção etnográfica
• Perspetivar a postura reflexiva dos antropólogos

Texto 3:
Irene Rodrigues, « Ser laowai: o estrangeiro antropólogo e o estrangeiro para os migrantes
chineses entre Portugal e a China », Etnográfica [Online], vol. 16 (3) | 2012, Online desde 08
Outubro 2012, consultado em 26 Setembro 2016. URL : http://etnografica.revues.org/2118 ;
DOI : 10.4000/etnografica.2118

Neste texto deverá analisar e escrever:


Descortinar as condições pessoais de produção etnográfica
Identificar dificuldades e limitações, experiências face á imprevisibilidade do trabalho de
campo.
Analisar o processo de reflexibilidade do investigador perante o contexto da pesquisa e o seu
papel.

Outros recursos, outras leituras, outras escritas:


Dossiê: "Imprevistos e mutualidade: a produção do conhecimento etnográfico em
antropologia", Organização de Susana de Matos Viegas e José Mapril, Etnográfica [online], vol
16(3) 2012. http://cria.org.pt/site/revista-etnografica.html
Pires , Flávia Ferreira. 2001. Roteiro sentimental para o trabalho de campo. In Cadernos de
Campo. v. 20, n. 20 (2011). http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9133.v20i20p143-148

49
Irene Rodrigues,

« Ser laowai: o estrangeiro antropólogo e o estrangeiro para os migrantes chineses entre


Portugal e a China »

No terreno, o etnógrafo quase sempre tem de lidar com o facto de ser visto como um estranho
pelas pessoas com quem interage, mas, em contextos etnográficos chineses, um etnógrafo não
chinês pode experimentar uma forma particular da condição de estranho encerrada na ideia de
laowai, uma categoria nativa de estrangeiro. A partir de experiências etnográficas com chineses
na China e em Lisboa, este artigo reflete sobre as condições de produção de conhecimento
etnográfico em terrenos chineses, descrevendo e discutindo o modo como a categoria de
laowai, emergente num contexto social, político e histórico específico, envolve o etnógrafo
numa complexa teia de relações que o colocam de modo ambivalente e simultaneamente em
posições de distância e de proximidade.
Entradas no índice

Keywords :
ethnography, fieldwork, foreigner, unpredictability, China
Palavras-chave :
etnografia, trabalho de campo, estrangeiro, imprevisibilidade,China
Plano

O que é um laowai?
A emergência histórica do paradoxo fascínio/ aversão pelos laowai
Auto-orientalização e ocidentalismo
Waidiren e dangdiren: chineses distantes e chineses próximos
Etnografia para principiantes: ser estrangeira na própria terra
De estrangeiro distante a estrangeiro familiar
Conclusão

1Há alguns meses, estava eu em Pequim (China) em trabalho de campo, quando encontrei
casualmente, em casa de familiares seus, uma mulher chinesa que conheci há vários anos em
Lisboa. Durante o almoço, ela convidou-me a acompanhá-la à sua terra natal nessa noite. À tarde
dirigimo-nos a uma das estações ferroviárias mais movimentadas da cidade para comprar o meu
bilhete (ela já tinha o seu). Enquanto aguardávamos na fila de uma das bilheteiras, uma mulher
de aspeto rude, com uma criança de meses ao colo, abordou a minha amiga e questionou-a
sobre qual o seu destino. Perante a resposta, a mulher sussurrou-lhe que já não havia bilhetes à
venda, mas que ela ainda tinha alguns “lá atrás”. E, olhando para mim, acrescentou: “Se quiseres
vens lá atrás, mas só tu. Nós não vendemos a laowai”. As duas mulheres afastaram-se e
combinaram o preço. A minha amiga pediu-me 300 yuans e as duas desapareceram na multidão.
Cerca de dez minutos depois, a minha amiga regressou com o meu bilhete.1

50
2A atitude desta mulher ao identificar-me como laowai reflete, não uma ética especial do
mercado negro chinês de não vender bilhetes a estrangeiros, mas o reconhecimento da minha
pessoa como pertencente a uma categoria diferente de pessoas. A vendedora recusou-se a
negociar comigo porque a categoria de pessoas em que ela me classificou – os estrangeiros – é
para muitos chineses correspondente a pessoas toldadas por uma perspetiva não chinesa e
“ocidental” do mundo que implica, entre outros, uma incapacidade de compreensão do modo
de ser e de estar chinês. A vendedora procurou assim evitar entrar num processo de
comunicação que ela previa repleto de equívocos.

3Laowai é um termo que, para a minha interlocutora e de forma mais geral em muitos contextos
chineses, identifica um “estrangeiro”, “ocidental”. A categoria tornou-se para mim um elemento
crucial da minha identidade ao longo destes vários anos de trabalho de campo entre chineses.
Neste artigo, parto da condição de laowai – “estrangeira”, “ocidental” – para refletir sobre as
condições de produção de conhecimento etnográfico em contextos chineses, através da
descrição e discussão sobre a ambivalência e a complexidade da relação simultaneamente
distante e próxima que, enquanto etnógrafa, estabeleci com os meus interlocutores.

4Sentir-se como um estranho e ser tratado como um estranho no momento em que se inicia o
trabalho de campo é uma experiência frequentemente relatada na literatura etnográfica. Nos
seus trabalhos seminais, tanto Evans-Pritchard (1974) como Malinowski (1922) referem como
lhes foi difícil ultrapassar a barreira de stranger imposta pelos habitantes locais e como, para
conseguirem aproximar-se, tiveram de quebrar com o estereótipo do white man, comportando-
se de modo diferente dos outros “brancos” que por ali viviam. Contudo, não é apenas neste
sentido que pretendo explorar a problemática da condição de estrangeiro no terreno.
Recorrendo a vários recortes etnográficos registados em Lisboa, Pequim e Wenzhou, durante o
meu trabalho de campo com migrantes chineses, procuro demonstrar como, desde o início da
investigação, ao ser classificada como pertencente a uma determinada categoria de pessoas –
os laowai –, a minha posição no terreno ficou marcada pela perceção que os meus interlocutores
tinham dessa categoria de pessoas, passando a integrar de modo determinante a minha
etnografia.

5O peso constante desta categorização ao longo da investigação levou-me a procurar


compreendê-la em termos epistemológicos. Trata-se, portanto, de um exercício, não tanto
reflexivo, de compreensão do modo como a minha pessoa afetou a investigação, mas no sentido
de procurar compreender como é que este contexto etnográfico específico – social, político e
sobretudo histórico – entende e classifica pessoas na categoria de “estrangeiras”, na qual eu fui
incluída.

6No final do artigo, integro esta reflexão sobre a trama de sentidos envolvidos na categoria de
laowai nas ideias de “estrangeiro próximo” e de “estrangeiro distante” formuladas por Georg
Simmel (1979 [1908]). A condição de estrangeiro descrita por Simmel ajuda-nos a situar as
ambivalências inscritas na categoria de laowai, que tornarei explícitas a partir desta reflexão.
Perceber o que resultou da condição de estrangeira com que lidei com os meus interlocutores,
tanto na fase inicial de campo como em situações de maior proximidade, é aqui tomado como
desafio propriamente etnográfico. A relevância do argumento aqui apresentado

51
é dupla e alicerça-se em lacunas na literatura. Por um lado, a literatura etnográfica sobre a China
é parca em reflexões sobre a interferência do estatuto de estrangeiro na investigação, e menos
ainda sobre o que podemos aprender e resgatar como conhecimento etnográfico a partir do
confronto com essa classificação. A temática do etnógrafo estrangeiro na China tem sido
abordada, pontualmente, a propósito dos entraves políticos e formais à obtenção de autorização
para a realização da investigação, e das reorientações temáticas que daí advieram (Wolf 1985;
Yang 1994; Pieke 2000). Por outro lado, a condição de estrangeiro em contextos chineses tem
sido abordada através da problemática dos chineses enquanto estrangeiros – sojourner – a viver
em sociedades como os EUA e o Reino Unido (Chan 2005; Siu 1952).

7Argumento neste artigo que a ideia de estrangeiro difundida na China tem fortes continuidades
e nuances históricas, já que ela não reflete apenas o modo como são percecionados os
“ocidentais” na China, mas também o sentido de modernidade na China e a própria ideia de ser
chinês na atualidade.2 O argumento constrói-se a partir da reflexão sobre várias situações de
interação social, como a que descrevi no início do artigo, e que fui experienciando ao longo dos
anos da minha interlocução de campo e dos diversos modos de me posicionarem como
estrangeira (laowai). É a partir dessa diversidade de interlocuções e interpelações que exploro
aqui etnograficamente os sentidos da categoria de laowai (estrangeiro), e procuro
responder a perguntas que têm formatado o debate sobre a questão, tais como: Como é que se
pode compreender que o estrangeiro seja uma categoria tão definitiva e tão ameaçadora na
China? Como é que se entende este paradoxo do fascínio e da aversão dos chineses por pessoas
que eles próprios classificam como laowai?

O que é um laowai?

8A minha primeira experiência de terreno aconteceu com uma família luso-chinesa de Macau.
Estávamos em 1999. A família fora-me apresentada por uma amiga comum, que lhes explicou
que eu era uma estudante, e que queria fazer a história da família como trabalho final de curso
(era na realidade a investigação para a tese de licenciatura). Esta ideia de escrever sobre a
história de uma família surgiu quando li Cisnes Selvagens, de Jung Chang (1998). A minha
intenção era fazer a história de uma família luso-chinesa de Macau, através de três mulheres de
gerações diferentes (avó, filha e neta). A história desta família era muito cativante,
principalmente a da avó, uma senhora de 80 anos nascida na cidade portuária de Nagasaki, no
Japão, mas educada em Pequim, donde fugira aquando da invasão japonesa de 1937. Apesar da
riqueza do material e da afabilidade da família, ao longo dos meses que com ela interagi nunca
deixei de me sentir algo desconfortável, o que terá resultado das dúvidas e ansiedades próprias
do primeiro trabalho de terreno.

9A minha ideia inicial para essa primeira investigação foi a de realizar um trabalho sobre
migrantes chineses. Rapidamente compreendi, contudo, que, apesar de já frequentar um curso
de língua e cultura chinesas, e de ter estabelecido contactos esporádicos com alguns chineses,
as dificuldades de comunicação eram excessivas para que conseguisse levar a bom termo um
trabalho de investigação. Assim, optei por adiar esse projeto e, um ano mais tarde, fui estudar
língua chinesa para Pequim. Esse foi o meu primeiro contacto com a China. Nessa época, as
informações de que dispunha sobre a China atual eram escassas. Eu lera algumas etnografias
sobre contextos chineses fora da China continental e outras tantas obras de

52
história geral da China, mas, poucos dias depois de chegar, constatei que a ideia que eu
construíra sobre a China pós-maoista era confusa, muito contraditória e pouca relação tinha
com aquilo que eu observava. Os primeiros tempos foram dominados por uma admiração e
estranheza perante tudo o que testemunhava.

10As minhas experiências de viagem até então tinham sido limitadas à Europa e, pela primeira
vez, deparou-se-me o facto de ser fisicamente diferente da maioria das pessoas que habitavam
o espaço social que me rodeava, e vista como “estrangeira”, “ocidental”, “europeia”. Esta
perceção da diferença começou por chegar de modo muito evidente pelas reações
comportamentais das pessoas à minha presença em locais de comércio e nos transportes
públicos. Estas reações alternavam entre a curiosidade e o tratamento diferenciado pela
negativa.

11Um episódio particularmente perturbador aconteceu quando visitava, na companhia de duas


amigas também portuguesas, as ruínas do Antigo Palácio de Verão destruído em 1860 por uma
invasão de forças anglo-francesas. Nos jardins que rodeiam as ruínas e o museu encontrámos
algumas jovens que, encantadas pela nossa presença, nos pediram para tirarmos fotografias ao
lado delas. Porém, no interior do museu, onde num acirrado tom nacionalista é narrada a
história da destruição do palácio, fomos intimidadas pelos olhares de desprezo e indignação
lançados por um grupo de chineses de meia-idade que, em surdina, comentava que deveríamos
ser inglesas, o mesmo país responsável por tamanha destruição.3

12Com o passar das semanas, e à medida que fazia progressos na língua local, comecei a
aperceber-me de que os olhares que me eram lançados na via pública eram frequentemente
acompanhados por um dedo indicador e um par de gritos exclamando “Laowai! Laowai!” Outras
vezes, as pessoas timidamente aventuravam-se a perguntar-me se eu era meiguoren
(americana). Laowaisignifica literalmente “velho (lao) de fora (wai)” e é utilizado pelos chineses
para se referirem aos ocidentais, caucasianos. Trata-se de uma expressão controversa porque,
por um lado, o carácter lao pode ser interpretado positivamente, como uma forma de
tratamento familiar, se pensarmos noutras expressões em que é utilizado, como em laopengyou
– velho amigo, oulaodifang – o lugar onde nos costumamos encontrar. Por outro lado,
laowaitende a ser usado nas situações em que se presume que a pessoa que está a ser alvo da
referência não o vai compreender – não é suposto que um laowaidomine a língua chinesa – e é
frequentemente acompanhado por risos e proferido num tom irónico. Se a expressão laowai é
usada para tratar os caucasianos ou indivíduos de aparência euro-americana, já os meus amigos
de origem africana eram referidos como heiren – pessoa preta. Deste modo, laowaioscila entre
uma expressão familiar e preconceituosa – mesmo racista em certas situações.4

13Durante uma visita a uma exposição dos melhores trabalhos de pintura do ano de 1999 numa
galeria de arte de Pequim, eu e uma amiga chinesa parámos diante de um dos quadros. A tela,
com cerca de dois metros por um, representava de forma mais ou menos realista o
bombardeamento das forças americanas à Embaixada Chinesa em Belgrado em Maio desse ano.
O episódio tinha ocorrido há poucos meses e fizera crescer entre a população um surto de furor
nacionalista, antiamericano e antiocidental. A minha amiga, uma dócil estudante de inglês de
17 anos, oriunda da província de Hebei, inesperadamente exclamou em inglês, num

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tom contundente: “I hate foreigners!” A rapariga ficou visivelmente embaraçada quando lhe
perguntei se me odiava também, uma vez que eu era uma foreigner, uma waiguoren,
umalaowai. Ela olhou para mim e atalhou que apenas se referia aos americanos. Claramente ela
não estava a falar de mim, eu era alguém que estava ali próximo, e ela referia-se a um inimigo
distante, diferente, e com o qual quase nada existe em comum. Naquele momento duas versões
de estrangeiro surgiram amalgamadas – distante e próximo – e geraram uma ambivalência sobre
o sentido das suas palavras. Ela encontrou uma saída na minha identidade não americana, mas
como seria se eu fosse americana?

A emergência histórica do paradoxo fascínio / aversão pelos laowai

14Consciente do sentido racista historicamente envolvido nesta categoria de laowai e querendo


intervir positivamente na imagem da China perante os estrangeiros, o governo chinês lançou há
alguns anos uma campanha de civilização (wenming)5 destinada a promover o bom uso da
expressão laowai, procurando retirar-lhe o tom negativo ou promovendo o uso do termo
waiguoren, expressão mais inócua que significa “pessoa de fora do país”.

15No célebre ensaio “The stranger”, Simmel (1979 [1908]) descreve um tipo de estrangeiro
especial, um “estrangeiro próximo” que encerra em si, simultaneamente, as qualidades opostas
de distância e de proximidade, que lhe asseguram uma forma específica de interação social. O
“estrangeiro próximo” de Simmel é elaborado a partir da condição do comerciante judeu na
Europa no século XIX, enquanto a condição de estrangeiro que aqui descrevo apresenta
configurações ligadas ao contexto chinês em particular, e que se consubstanciam na categoria
de laowai.

16Assim, ser laowai é uma forma particular de ser estrangeiro, constituída a partir de processos
históricos, políticos, sociais e culturais específicos. Tal como os gregos, mencionados por Simmel
(1979 [1908]), também os chineses consideravam bárbaros os povos que habitavam a periferia
do Império na antiguidade (Gernet 1974-1975; Fairbank 1992; Dikötter 1992; Fay 1997). Ao
longo dos séculos, a Grande Muralha funcionou como barreira que estabelecia os limites
culturais (e por vezes também políticos) entre a China interior (nei), a sul, e a China exterior
(wai), a norte (Gentelle 1994).6 Este forte sentido de diferença cultural / civilizacional dos
agricultores han em relação aos criadores de gado das estepes permaneceu, mesmo com a
entrada destes povos nos limites do império e a conquista do poder dinástico em importantes
períodos históricos (Dinastia Yuan ou Mongol, 1279-1368, e Dinastia Qing ou Manchu, 1644-
1911), permanecendo para a história como dinastias estrangeiras (não han).

17Ainda que as ligações às regiões ocidentais do continente eurasiático, primeiro pela Rota da
Seda e posteriormente pelas rotas marítimas, tivessem feito chegar estrangeiros ocidentais,
nomeadamente jesuítas, à corte imperial chinesa, pelo menos desde o século XVI, a gestão das
relações com os estrangeiros seguiu enquadrada no modelo de relações com os povos
“bárbaros” das estepes. O Império chinês entendia-se a si próprio como tian xia diyi – o primeiro
país debaixo do Céu –, e o Imperador, detentor do título de Filho do Céu, seria o seu
representante máximo na Terra. Todos os outros povos e reinos eram entendidos como
inferiores e seus tributários (Gernet 1974-1975).

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18A partir do século XIX, a pressão das potências ocidentais provocou transformações profundas
na conceção da China sobre si própria e na sua perceção dos estrangeiros. O sentido mais forte
do termo laowai deve ser procurado, principalmente, na relação dos chineses com a
modernidade ocidental e suas facetas de ambivalência, de fascínio e de aversão. De facto, se,
por um lado, a superioridade tecnológica e militar ocidental humilhou e vergou a China, por
outro lado, o pensamento iluminista e as sociedades ocidentais constituíam a principal fonte de
inspiração dos intelectuais chineses na busca de respostas para a transformação da China numa
nação moderna. No espectro das influências iluministas, o darwinismo social foi uma das teorias
mais influentes entre as elites intelectuais chinesas desse período (Schwarcz 1986; Dikötter
1992; Mitter 2004).

19Este rebaixamento político e diplomático teve consequências no quotidiano das relações


entre chineses e “ocidentais” e deixou marcas profundas na perceção dos estrangeiros na China.
Durante o período semicolonial, do início das Guerras do Ópio ao fim da invasão japonesa (1839-
1945), estrangeiros e chineses tinham direitos desiguais. Nas áreas de concessão das cidades
portuárias os estrangeiros eram soberanos (extraterritorialidade), e em muitos locais os
chineses não eram autorizados a entrar. Esta discriminação e atitude colonial tornou-se
incómoda, gerando a cólera dos intelectuais revolucionários (Fitzgerald 1996; Dikötter 1992). O
nacionalismo chinês fortaleceu-se pelo receio do “perigo branco” (Dikötter 1992).

20O encerramento da China ao exterior durante o maoísmo perpetuou uma imagem dos
estrangeiros como uma ameaça ao país, no âmbito da luta de classes e de colonizadores e
colonizados. Depois de 1978, o país foi aberto aos estrangeiros, mas de um modo muito
controlado. Até meados da década de 1990, muitas municipalidades e algumas províncias
estavam vedadas a visitas de estrangeiros. A Política de Abertura em 1978, apesar de procurar
tirar partido do interesse económico e financeiro dos estrangeiros pela China, inicialmente
baseou o seu modo de relacionamento nas anteriores práticas discriminatórias.

21Em suma, podemos dizer que a humilhação da China perante os poderes ocidentais no século
XIX constitui uma importante componente da aversão dos chineses em relação aos ocidentais,
mas, paradoxalmente, o sentimento de inferioridade infligido foi também catalisador de
fascínio. Como copiosamente demonstra Frank Dikötter em Exotic Commodities (2006), a
superioridade tecnológica ocidental corporificada na cultura material deslumbrou a China. A
apropriação de produtos estrangeiros começou por ocorrer nas classes altas, como símbolo de
prestígio, e perpassou às classes populares através das imitações de manufatura chinesa,
operando uma revolução na vida quotidiana (Dikötter 2006). Esta perceção dos produtos
“estrangeiros”, “ocidentais”, como “superiores” e dos produtos chineses como “inferiores”
impregnou-se e manteve-se muito para além do período da República da China. Na China pós-
Mao, a ideia de superioridade da cultura material ocidental continua a manifestar-se numa
cultura de consumo transversal à sociedade chinesa (Chao e Myers 1998; Latham 2006). Este
fascínio por produtos ocidentais é marcado pelo consumo de produtos de luxo, mas também
por um encantamento pelas indústrias culturais ocidentais, da moda ao cinema. Em conjunto,
estes produtos comunicam ideias de prestígio, modernidade e superioridade.

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Auto-orientalização e ocidentalismo

22Xiaomei Chen (1995) analisa a relação da China com o Ocidente como um processo de auto-
orientalização que terá conduzido a um ocidentalismo. O discurso do ocidentalismo, com origem
no início do século XX (Dikötter 1992), é ainda hoje evocado por vários grupos na sociedade
chinesa, com duas finalidades diferentes: por um lado, tem sido uma forma de o governo chinês
suportar o nacionalismo que tem como efeito a contenção interna; por outro lado, é também a
forma como a imaginação chinesa constrói um outro ocidental para disciplinar e dominar o self
chinês em casa. Este ocidentalismo popularizado pela propaganda nacionalista do governo é
dominante e continua a fazer parte de uma forma defensiva de estar da China. O ocidentalismo
de que fala Chen Xiaomei é reflexo de uma ideia do “ocidental” como estrangeiro distante, mas
aqui oscilando entre a ameaça e o ideal a alcançar.

23É neste contexto de ocidentalismo, de um forte sentimento de inferiorização e de


discriminação dos chineses pelos “ocidentais”, e de grande segregação entre estas duas
categorias de pessoas, que surge o termo laowai – uma categoria classificatória que ainda hoje
convoca a carga de uma história de perceções e práticas discriminatórias e desiguais entre
chineses e estrangeiros.

24A minha primeira experiência desta visão mais ampla da China e dos sentidos mais vastos da
expressão laowai aconteceu no fim da década de 1990, quando residi durante dois anos num
campus universitário chinês em Pequim. No interior da universidade, estudantes chineses e
estudantes estrangeiros viviam em edifícios separados, situados em extremos opostos do
campus, a uma distância que poderia ser de quase um quilómetro. O mesmo sucedia com as
residências de professores estrangeiros e professores chineses. Os professores chineses viviam
com as suas famílias num bairro modesto contíguo ao campus, enquanto os poucos professores
estrangeiros (leitores) eram colocados num edifício de pequenos apartamentos localizado na
área dos dormitórios dos estudantes estrangeiros e dos edifícios onde eram lecionados os cursos
de língua chinesa para estrangeiros.

25Os edifícios das aulas para estudantes chineses e estrangeiros eram diferentes e igualmente
localizados em áreas opostas do campus. Apenas a biblioteca se constituía como área comum,
sem divisões predeterminadas. Havia ainda cantinas para chineses e uma cantina para laowai.
Esta última era mais cara e tinha alguns pratos classificados como “estrangeiros”. O acesso às
cantinas, bares, cafés, casas de chá e campos de jogos do campus era livre, mas os preços dos
produtos e os serviços oferecidos determinavam uma segregação entre estudantes chineses e
estudantes estrangeiros.

26Quando eu queria que algum dos meus amigos chineses me fosse visitar ao dormitório, ele/
ela tinha de se identificar na shifu (a porteira). Se não o fizesse, era interpelado para o fazer, e
tinha um horário específico para fazer a visita. Ashifu tomava nota da sua identificação e do
horário de entrada e de saída. Tal não acontecia com os estrangeiros, que circulavam livremente
nos dormitórios dos estudantes estrangeiros. O mesmo se repetia quando eu ia visitar os meus
amigos chineses nos seus dormitórios, na mesma universidade ou noutra.

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27Neste campus os custos com a educação também eram diferenciados: um estrangeiro pagava
de propinas anuais dez vezes mais do que um estudante chinês. Era também inferior o valor
cobrado pelo alojamento aos estudantes chineses em relação ao alojamento mais barato
disponível para estrangeiros. Os dormitórios para estrangeiros eram aquecidos no Inverno (os
mais caros tinham inclusivamente ar condicionado), acomodavam no máximo duas pessoas (a
maioria era individual), tinham casa de banho e cozinha coletivas (os mais caros tinham casa de
banho individual), água quente corrente, máquina de lavar roupa e uma televisão com acesso a
canais estrangeiros.

28Os dormitórios para chineses acomodavam cerca de oito estudantes em vários beliches, num
espaço pouco maior do que os quartos dos estrangeiros. Também tinham aquecimento, mas
este era menos funcional. As roupas eram lavadas num tanque, e eram os próprios estudantes
que tinham de carregar a água quente para a sua higiene pessoal a partir de um local no campus,
mas fora do dormitório.

29Apesar de a diferença de condições corresponder também a uma diferença no preço do


alojamento, a desigualdade e a rigidez do sistema era uma condição de partida, já que um
estudante chinês, mesmo que pagasse a diferença, não poderia viver num edifício destinado a
estudantes estrangeiros, e vice-versa.

30O campus murado, com guardas e cancelas de alta segurança nos vários portões, funcionava
como uma pequena aldeia. Da janela do meu quarto, um primeiro andar do dormitório feminino
para estudantes estrangeiros, facilmente se ouviam, às primeiras horas da madrugada, os
treinos militares dos guardas da universidade e, diariamente, ao final da tarde, os altifalantes
espalhados por todo o campus ecoando as posições governamentais sobre acontecimentos da
atualidade.

31Fora do campus, na cidade de Pequim, havia bairros específicos onde os estrangeiros eram
obrigados a residir; não eram autorizados a fazê-lo fora desses bairros, a não ser em
campus universitários, em residências ou hotéis específicos. Estes bairros concentravam-se na
zona sudeste da cidade e neles não viviam chineses, que apenas ali trabalhavam como
empregados de limpeza, cozinheiros, motoristas e amas para a população estrangeira residente.
Os bairros, conhecidos por compounds, tinham vedações, cancelas e guardas à entrada, como
um condomínio privado. Se algum chinês quisesse entrar tinha de se identificar, dizer quem ia
visitar, o motivo da visita, e qual a sua ligação com essa pessoa. Com a liberalização do mercado
imobiliário em Pequim no início da década de 2000, esta segregação residencial esbateu-se. Nos
antigoscompounds e nos novos bairros residenciais da cidade coexistem chineses e estrangeiros.
A capacidade económica é agora “peneira” para a disposição residencial.

32Os locais de diversão na cidade estavam também muito segmentados; segundo os meus
amigos chineses, havia “locais para estrangeiros” e “locais para chineses”. Nestes locais, não
havia proibições ou necessidade de identificação por força de lei, mas nalguns locais de diversão
noturna frequentados por chineses só entravam estrangeiros quando acompanhados por outros
chineses.

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33A diferenciação entre chineses e estrangeiros ocorria, e ainda hoje continua a ocorrer, nas
relações comerciais em geral. Qualquer aquisição feita com base num preço que não esteja
afixado tem de ser regateada. Se o cliente for estrangeiro, o preço inicial será imediatamente
inflacionado, muitas vezes para o dobro ou triplo, dificilmente baixando de um determinado
valor. Os produtos em causa podem ir de algumas peças de fruta num mercado de rua a um
bilhete de autocarro nalgumas regiões do país.

34Quando questiono os meus interlocutores chineses sobre este facto, respondem-me quase
sempre da mesma forma: “Na China pensa-se sempre que os estrangeiros são ricos e que os
chineses são pobres, por isso pede-se sempre mais dinheiro a quem é estrangeiro”.

35Ainda hoje, mais de três décadas depois do início da Política de Abertura, e estando a China a
tornar-se a maior potência económica mundial, permanece a ideia de que o “estrangeiro” (neste
sentido identificado como o ocidental/ moderno) é necessariamente mais rico. Esta riqueza do
estrangeiro expressa muito mais do que ter dinheiro, significa ter poder por se encontrar numa
situação historicamente percepcionada como privilegiada. Esta noção de riqueza, ligada ao
poder e não apenas ao dinheiro, é transversal à sociedade chinesa. Ellen Hertz (1998), na sua
etnografia sobre a Bolsa de Valores de Xangai, confrontou-se com o facto de os seus
interlocutores, alguns deles homens de negócios chineses, se considerarem mais pobres do que
ela, uma estudante de doutoramento vinda dos Estados Unidos.

36Assim, tal como acima descrevo, o estrangeiro no sentido de laowai acaba por ter ainda mais
dimensões sociológicas do que as descritas por Simmel. A complexidade da relação da China
com o “ocidente” e a modernidade parece, pois, estar bastante presente nesta categoria.

Waidiren e dangdiren: chineses distantes e chineses próximos

37Apesar de me encontrar na capital de um dos últimos estados socialistas do mundo, quando


estive em Pequim fui-me apercebendo de que o modo de organização da vida quotidiana se
baseava numa forte estrutura de diferenciação entre pessoas, a qual não se restringia apenas às
relações entre chineses e estrangeiros. Havia também importantes distinções no interior da
categoria “chineses”, nomeadamente entre waidiren – pessoas de fora ou forasteiros –, e
dangdiren – pessoas locais – ou beijingren – pequineses. Um dia em conversa com um outro
amigo chinês, estudante de inglês oriundo da província de Jiangxi, ele avisou-me: “Agora tens
de ter muito cuidado a andar em Pequim. A cidade está cheia de waidiren [gente de fora]! Estes
waidiren sãohuai ren [gente má ou estragada] que rouba e mata! Esta semana saiu no jornal que
uma mulher foi violada aqui perto [em Haidian]. E tudo isto começou desde que chegou esta
onda de waidiren”. Estranhei um pouco o aviso, na medida em que também Yi era um forasteiro.
Foi então que ele me explicou que os waidiren de que falava não eram meramente pessoas de
fora, estudantes como ele, mas gente empobrecida que tinha vindo das áreas rurais para a
cidade trabalhar, mas também, segundo ele, para roubar e cometer outros crimes.

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38Em Pequim, estes migrantes internos eram classificados como waidiren(forasteiros), por
oposição aos beijingren (pequineses). Mas o termo não significava inocuamente forasteiro,
antes era usado num sentido extraordinariamente pejorativo, pressupondo tratar-se de pessoas
em situação ilegal e potencialmente criminosas. Estes migrantes internos, que o governo
designa por liurenkou (população flutuante), são tolerados por serem economicamente
necessários às grandes cidades chinesas como Pequim. Politicamente, eles são descritos como
ameaças latentes à paz, tranquilidade e segurança dos locais. Por toda a cidade era possível
observar um elevado número de trabalhadores humildes a fazer trabalhos, sobretudo físicos e
mal pagos, rejeitados pelos pequineses, principalmente na construção civil, que teve uma
enorme explosão nesse período. Esta população flutuante ocupava as áreas mais degradadas
da cidade, não tinha acesso a proteção social por terem um hukou (registo de residência) rural
e residirem ilegalmente na cidade.

39Na realidade, em 1999, os waidiren em Pequim não eram um fenómeno tão recente quanto
Yi parecia julgar. Já em 1995, o governo central e o município de Pequim haviam levado a cabo
uma campanha política contra a presença descontrolada de migrantes internos, nomeadamente
contra a Zhejiangcun(aldeia de Zhejiang), um dos maiores enclaves da capital, cujo poder e
autonomia crescentes eram vistos como uma potencial ameaça ao Estado socialista (Zhang
2000:173).

40As relações do Estado chinês com a população flutuante tem sido dúbia ao longo das duas
últimas décadas, alternando entre campanhas de “limpeza” com a sua expulsão das cidades em
determinados períodos, alegando razões de segurança, e uma maior flexibilização das regras do
hukou, permitindo às pessoas encontrarem trabalho fora das suas áreas de residência dentro do
limite da lei.7

41Waidiren e laowai têm em comum o facto de não pertencerem ao grupo interior e para ele
poderem constituir uma ameaça. Todavia, também podem ser benéficos. Os waidiren são
economicamente necessários, mas ao mesmo tempo são criminosos em potência. Os
laowai são benéficos pelo investimento e conhecimento sobre a economia e capitalismo global
que trouxeram e trazem à China, mas são percecionados como uma ameaça latente de
destabilização da integridade e unidade da nação. No passado foram as Guerras do Ópio, a
invasão de Pequim e a imposição de uma situação semicolonial à China, mais recentemente
apoiam causas como a soberania do Tibete, de Xinjiang ou de Taiwan e agitam a bandeira dos
direitos humanos. Na ótica de muitos chineses, estas atitudes revelam que os laowai não têm
capacidade, nem abertura, para compreender a China e os chineses, que não existe uma
gongtongdeyuyan – uma linguagem comum. É esta perceção da inexistência de uma linguagem
comum que torna os estrangeiros, nomeadamente os “ocidentais”, distantes. Este é o mesmo
motivo pelo qual a vendedora de bilhetes na estação de Pequim se recusou a negociar comigo
– a perceção e o preconceito de que “chineses” e “ocidentais”, em muitos domínios, possuem
visões do mundo incompatíveis.

Etnografia para principiantes: serestrangeira na própria terra

42Voltei a Lisboa, vinda de Pequim, em meados do ano de 2001. Foi então que me dediquei a
uma segunda investigação com chineses, desta vez sobre mulheres chinesas migrantes em

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Lisboa (Rodrigues 2009). Nesta segunda experiência de terreno, iria trabalhar com migrantes
chineses recém-chegados da República Popular da China, com muitos indivíduos em situação de
permanência irregular no país. A experiência em Pequim tornou-me consciente do modo como
os chineses me viam como uma estrangeira e de que esta barreira era inultrapassável, dada a
minha aparência não chinesa. Eu sabia agora que nunca conseguiria passar despercebida no
grupo e que teria necessariamente de lidar com a condição de estrangeira no terreno, mesmo
tendo um domínio razoável da língua. Falar mandarim (embora como uma estrangeira) e ter
vivido na China eram aspetos favoráveis, mas, como “estrangeira”, eu tinha de estar preparada
para lidar, e se possível desmistificar, os estereótipos subjacentes à categoria de laowai entre
os chineses. Ser laowai implicava não apenas que eu poderia ser uma potencial ameaça, mas
também ser considerada muito diferente no meu modo de vida, moralidade e visão do mundo.

43Numa fase inicial pensei ultrapassar as dificuldades mostrando, ingenuamente, que poderiam
confiar em mim por ser uma investigadora séria e profissional. A minha primeira entrevistada,
que conheci através de uma colega no meio universitário, era uma mulher licenciada que fazia
um MBA numa faculdade de economia em Lisboa. Nessa altura eu estava em início de carreira,
era monitora na universidade, e fui-lhe apresentada como uma antropóloga, docente na
universidade, interessada em fazer um trabalho de investigação sobre mulheres e migração
chinesa. Quando lhe falei do meu trabalho, ela acedeu a participar, e passei várias tardes em sua
casa a conversar.

44Ela interessou-se pelo meu trabalho e apresentou-me a dona de um restaurante chinês onde
costumava ir, perto de sua casa. Perante a amiga, a dona do restaurante concordou receber-me
e falar comigo dali a algumas semanas. Porém, quando voltei a contactá-la, fui interpelada pelo
marido, que me perguntou se eu era jornalista, uma vez que queria entrevistar a sua mulher.8
Sem conseguir convencê-lo totalmente das minhas intenções, ele lá acabou por me dizer que,
se a mulher quisesse, poderia falar comigo. Marquei encontro com ela ainda nesse dia à tarde,
quando a cozinha encerrasse no final dos almoços.

45Quando cheguei ao restaurante, uma empregada foi chamá-la, e ela apareceu na sala de
refeições pronta para sair com um casaco vestido e a carteira a tiracolo. Disse-me então que não
podia falar comigo porque estava doente e tinha de ir ao médico. Fiquei surpreendida por nada
me ter dito nessa manhã. Disse-lhe então que voltaria noutro dia e, desejando-lhe as melhoras,
saí do restaurante. Enquanto entrava no meu carro, do outro lado da rua, fiquei estupefacta
quando a vi voltar a entrar na área reservada do restaurante e regressar sem casaco nem carteira
para se juntar aos empregados que comiam numa das mesas. Apesar do compromisso assumido
perante a amiga, ela não queria falar comigo.

46Este episódio foi muito marcante no início do meu trabalho de campo. Se uma imagem de
seriedade profissional funcionava com pessoas com educação superior, que conseguiam confiar
na natureza do meu trabalho de investigação, esta estratégia não funcionava com migrantes
chineses com baixo nível educacional, o que correspondia à maioria dos migrantes chineses em
Lisboa.9Durante semanas refugiei-me na literatura à procura de uma estratégia milagrosa para
os convencer, pelo menos, a falar comigo. Ainda sem uma resposta para o problema, apercebi-
me da abertura revelada pelos donos do restaurante chinês perto da

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universidade, um casal oriundo de Zhejiang, vindo de Espanha há alguns anos, e que eu já
conhecia antes de ir para Pequim. Por falar mandarim, frequentemente eles solicitavam-me que
lhes ensinasse português ou que os ajudasse a resolver um ou outro problema relacionado com
o seu fraco domínio da língua portuguesa. Ao contrário da experiência com o outro casal, estes
não me afastavam e até pareciam ter interesse em relacionar-se comigo. O facto de a relação
ter começado com uma casual relação comercial, e já durar há alguns anos, gerou uma base de
confiança da parte deles, permitindo a minha aproximação.

47Aproveitando este interesse dos chineses pela minha capacidade de comunicação em


português e mandarim, numa fase de mudança para um novo edifício, a faculdade onde eu
trabalhava teve espaço nas instalações antigas e consegui autorização do diretor para lecionar
gratuitamente aulas de português a chineses. Fi-lo durante dois anos. As aulas decorriam no
intervalo do horário de trabalho, entre o almoço e o jantar dos restaurantes (das 15h30 às
17h30). Cheguei a ter 30 a 40 pessoas na sala de aula, embora à medida que os meses passavam
o número diminuísse, para depois voltar a aumentar no início do ano letivo seguinte. Eram
sobretudo recém-chegados, empregados de restaurantes e de lojas. Diziam trabalhar muito e
ceder ao cansaço quando à noite, finalmente, tinham algum tempo para dedicar ao estudo da
língua. Algumas pessoas vinham do Martim Moniz, mas a maioria vinha de Belém, Alcântara e
Algés.10 Apesar do horário previamente estabelecido, muitos chegavam depois da hora, quando
a aula já tinha começado, e saíam antes de terminar. Raramente se dirigiam a mim e evitavam
o preenchimento do número de identificação e do contacto na ficha de aluno, admito que por
estarem em situação legal irregular.

48Na prática, poucas ligações ou até interações consegui manter com eles fora do contexto da
aula. Contudo, no Natal enchiam-me a mesa com as lembranças mais diversas, acompanhadas
por um tímido e fugidio “Feliz Natal!” De entre todas aquelas pessoas, consegui estabelecer
relação com três famílias. Desde o início que me foi sempre mais fácil estabelecer relações com
pessoas com um nível de escolaridade mais elevado, mesmo que trabalhassem em Lisboa como
empregados de mesa ou ao balcão de lojas, e com mulheres. Foi através dos meus antigos alunos
chineses dessas aulas de português que comecei a frequentar restaurantes, lojas e casas de
migrantes chineses na cidade de Lisboa. Quando lhes aparecia em casa ou no trabalho, num
encontro previamente combinado, quase sempre me confrontava com pedidos de ajuda na
resolução de problemas. Os pedidos mais comuns eram explicar o conteúdo do correio, como
funcionam os seguros, como funciona o Sistema Nacional de Saúde, falar com os professores na
escola dos filhos, esclarecer sobre documentação pedida pelo Serviço de Estrangeiros e
Fronteiras (SEF), entre outros. Muitas vezes, pediam-me também que fosse lá ensinar-lhes um
pouco de português. Este foi o modo como lentamente entrei nas suas vidas.

49Logo a partir dessa altura passei a ser vista como professora e não tanto como antropóloga
ou investigadora (a maioria não compreendia o significado destes termos), não apenas por
lecionar na universidade, mas principalmente por ter ensinado português a chineses. A
classificação de professora foi-me muito útil na realização do trabalho de campo para mestrado
e doutoramento. Não é fácil explicar qual o trabalho de um antropólogo, ou que tipo de
investigação é que realiza, nomeadamente a chineses com baixo nível de instrução,
principalmente quando já existe uma forte resistência devido à minha identidade de estrangeira.
Aprendi a não usar a palavra entrevista, mas a designar estes eventos por

61
conversas – que na realidade eram. Acompanhar chineses pelo Martim Moniz permitiu-me fazer
observação participante e alargar a minha rede de interlocutores, o que foi largamente
compensatório, permitindo-me vivenciar de perto as suas experiências como migrantes. Como
referem Sarró e Lima (2006: 18), a partilha do quotidiano com as populações que se estuda é
um dos eixos definidores do trabalho de campo, tanto em terrenos metropolitanos como na
etnografia clássica. Assim, ao adaptar a minha forma de estar no terreno à forma de estar na
vida dos meus interlocutores, eu acabei por partilhar com eles o seu quotidiano, ter a
oportunidade de fazer observação participante e, com o tempo, de conversar com eles também
sobre assuntos que me interessavam. Em última instância, ao deixar que fossem os meus
interlocutores a encontrar o meu lugar nas suas vidas, consegui encontrar os pontos de contacto
de que falam Viegas e Mapril na introdução a este dossiê. Porém, a minha atitude por vezes mais
contemplativa de apenas “estar por lá” não deixou de causar uma certa estranheza aos meus
interlocutores, que me perguntavam: “Hoje tens tempo? Não tens de trabalhar?”Normalmente
respondia: “Quando converso contigo / com vocês eu estou a aprender coisas para o meu
trabalho, e por isso estou a trabalhar”. Geralmente reagiam a esta resposta com um sorriso.

De estrangeiro distante a estrangeiro familiar

50Um dia em 2003, quando visitava uma aluna na sua loja no Martim Moniz, ela apresentou-
me uma das suas duas filhas, recém-chegada da China. Três semanas mais tarde chegou o neto
de 10 anos, filho da filha, e ela perguntou-me se não me importava de dar aulas de português
ao neto duas vezes por semana, ali mesmo na loja. O filho desta mulher também estava em
Lisboa e, passado alguns anos, regressou à China para casar com uma rapariga da terra natal dos
pais. Depois do casamento, ela juntou-se ao marido em Lisboa. Cerca de um ano depois nasceu
o primeiro filho do casal e eu fui convidada a ser madrinha. Alguns meses mais tarde, os pais da
mulher vieram a Lisboa conhecer o neto. Quando me desloquei à China em 2010, visitei-os na
sua terra natal.

51Ao longo do trabalho de campo, nas minhas visitas e deambulações por lojas, armazéns
chineses e restaurantes chineses do Martim Moniz, testemunhei várias versões do diálogo que
me humanizava como “estrangeira distante” aos olhos dos chineses.

“— O que é que esta laowai está aqui a fazer?

— Ela fala putonghua [mandarim], é professora na universidade e foiliuxuesheng [estudante


estrangeira] em Pequim.

— Ah. [OK]”

52A esta descrição normalmente seguia-se um sorriso e uma curta conversa para confirmar se
eu falava mesmo mandarim. Nalgumas situações eu quase passei por chinesa. Numa véspera de
ano novo chinês, eu estava no estabelecimento de uma família no Martim Moniz, onde os donos
resolveram organizar uma pequena festa. Durante a tarde assistiu-se à gala anual de Ano Novo
transmitida pela CCTV, fizeram-se jiaozi (pequenos pastéis de massa recheada com carne e/ ou
vegetais), comeram-se amendoins, tangerinas e doces. Clientes, amigos e

62
conhecidos acorreram ao estabelecimento para espreitar o programa (transmitido via
parabólica) por alguns minutos, ou para deixar as crianças a assistir. A anfitriã divertiu-se
bastante com as conversas dessa tarde em reação à minha presença:

“— Ah, quando entrei pensava que ela era waiguoren.

— Mas ela é waiguoren!

— Ah?! [o quê?!]…”

53Em momentos de celebração como este, contagiados por uma intensa alegria e boa
disposição, os meus amigos chineses entusiasmados exclamavam: “Ta yiban shi zhongguoren!”
– Ela é metade chinesa! Em situação oposta a esse momento em que fui considerada (quase)
meia-chinesa, a minha presença em momentos de tensão social e familiar gerou situações
desconfortáveis e remeteu-me para a minha condição de ignorância, por ser laowai. Quando
perguntava o porquê da atitude de uma determinada pessoa perante uma situação difícil, ou
até quando me atrevia a aventar uma solução mais “à portuguesa”, a resposta que
invariavelmente eu ouvia era: “Tu não és chinesa. Não percebes”. Nestas ocasiões eu voltava a
ser a estrangeira distante e sem capacidade de compreensão da sua visão do mundo. Os
benefícios da minha presença iam além da resolução de problemas práticos do quotidiano e do
ensino de português. Nalgumas situações, aparecer com uma amiga “estrangeira” era
capitalizado pelos chineses que eu acompanhava, perante outros chineses, como uma forma de
promover a sua mobilidade social ascendente. Desta forma expressavam o seu sucesso em
Portugal.11

54Ao longo dos anos, a minha presença desafiou os meus interlocutores a encontrarem para
mim um lugar no seu mundo. Se em Lisboa eu sou professora, antiga estudante estrangeira em
Pequim, quando fui visitar Wenzhou, a terra natal de muitos dos meus interlocutores em Lisboa,
um casal (Zhou e Li) que conheci em Lisboa há vários anos resolveu adotar-me e apresentar-me
perante os seus vizinhos e amigos na aldeia como a sua quarta filha. Quando Zhou e Li diziam
aos vizinhos que eu era a sua quarta filha, eles olhavam muito atentamente para mim e
exclamavam: “Não pode ser! Ela éwaiguoren!” Mesmo no interior da família, onde fui
estimulada a chamar aos meus pais adotivos A-Ma (mamã) e A-Ba (papá), ou jiejie (irmã mais
velha) egege (irmão mais velho) aos meus irmãos de adoção, mantinha a condição de
estrangeira perante a geração mais nova.

55Quando eu tentava falar com os meus sobrinhos adotivos, crianças e adolescentes entre os
12 e os 17 anos, não havia da sua parte nenhuma reação corporal – não me olhavam sequer.
Apenas murmuravam qualquer resposta muito rápida e escapatória quando coagidos por algum
adulto para o fazerem: “Responde à Ayi! A Ayi está a falar contigo! Estás a ouvir?!” Apesar do
termoAyi ser de aparente proximidade, já que significa tia – um termo educado usado para
chamar as mulheres da geração da mãe –, eles viam-me como uma estranha, uma estrangeira.
Por isso não me falavam nem me olhavam diretamente. Mas havia uma exceção: a atitude de
uma das crianças, nascida e educada em Portugal, que estava apenas temporariamente na China
a passar férias em casa dos avós. Com esta criança eu interagia frequentemente e ela falava
comigo e olhava-me de frente. Uma noite os adultos tomaram

63
este contraste de atitudes das crianças para exporem verbalmente o que pensavam sobre a
minha posição ali e mais ainda sobre o que justificava essa diferença entre as crianças. Uma das
irmãs dizia que a reação dos filhos e sobrinhos chineses, por oposição ao sobrinho português, é
um reflexo do facto de as crianças chinesas serem ensinadas desde tenra idade a não
interagirem com estranhos de modo nenhum. Apesar de os pais e avós assegurarem às crianças
que eu era da família e que deveriam tratar-me como a xiaoyi – a tia mais nova –, elas nunca
conseguiram ultrapassar essa barreira. A sua relutância em se relacionarem comigo estaria
relacionada com o facto de eu não pertencer à sua rede de relações até ali, mas em parte
também devia-se à minha ausência de ancestralidade chinesa.

56Na China, a prole é considerada um bem valioso para a família, pois assegura a sua
continuidade, tanto nas gerações vindouras, como pelo sustento das gerações mais velhas em
vida e depois da morte. Por esse motivo, as crianças sempre foram protegidas das ameaças dos
estranhos. Na atualidade, as crianças chinesas vivem condicionadas por uma vivência muito
limitada no interior da família e da escola. À medida que vão crescendo, vão formando vários
círculos de segurança – a família, o grupo de pessoas da sua terra de origem, o grupo de pessoas
da mesma origem nacional, expressando receio em interagir com pessoas exteriores. Assim,
quando se encontram num país estrangeiro, como Portugal, os chineses tendem a reatualizar
esta forma de entender o mundo baseada na diferenciação entre pessoas de dentro (família,
terra de origem, nacionalidade) e pessoas de fora (estranhos, forasteiros, estrangeiros), e a
preferirem interagir com quem consideram que os compreende. Durante o trabalho de campo,
vários migrantes chineses me falaram sobre os seus sentimentos de solidão e de isolamento em
Lisboa, mesmo em relação a outros chineses, confessando-me a sua dificuldade em fazerem
amigos chineses (para não mencionar portugueses) em quem pudessem verdadeiramente
confiar, como se confia na família e nos amigos de longa data.

Conclusão

57A minha situação de estrangeira entre chineses foi uma condicionante fundamental do
percurso etnográfico. Descrevi aqui o caminho que percorri, não tanto pelos seus meandros
reflexivistas sobre a experiência de campo como experiência pessoal, mas como parte do
processo de conhecimento etnográfico: neste caso, sobre ser laowai. Se a descoberta do terreno
foi para mim um percurso em direção à familiaridade com o espaço, que de longínquo passou a
próximo (Sarró 2008: 151), para os meus interlocutores foi um processo de humanização da
minha pessoa estrangeira, dotando-me, aos seus olhos, de alguma capacidade de compreensão
da sua forma de estar no mundo. Este processo só foi possível porque categorias de classificação
distantes e vastas como ocidental, americano, ou chinês foram deixadas para segundo plano, a
partir do momento em que foram encetadas relações sociais mais próximas, abrindo a
possibilidade de compreensão mútua.

58Os sentidos implicados nesta categoria poderiam ser então e por último pensados a partir do
que Simmel nos diz sobre a condição de estrangeiro em “The stranger” (1979 [1908]),
nomeadamente da tensão existente nesta relação, que é simultaneamente de distância e
proximidade. A minha descrição da categoria de laowai neste artigo pretendeu mostrar que a
compreensão mútua e até a proximidade também fazem parte dos significados de se serlaowai.
Para a compreendermos, temos de a situar na própria história de exclusão / inclusão

64
que mostrei estar inscrita na história chinesa e estar presente nos modos de relacionamento e
categorização de pessoas entre os chineses emigrados em Lisboa. Ao mesmo tempo, mostrei
que, mesmo quando essa proximidade parecia íntima e estabelecida, essa mesma condição de
serlaowai podia projetar-me de novo para a minha condição de estrangeira, e novamente ser
vista como uma laowai.

59Ao ser laowai, experimentei os limites que a categoria implica no acesso a determinados
níveis de proximidade e de interação. A abordagem epistemológica da condição de
laowai possibilitou alcançar um sentido mais analítico do modo como se desenvolveram os
processos de interação entre a etnógrafa e os interlocutores no terreno e proceder a uma
reconfiguração das categorias de conhecimento considerando laowai como uma categoria
nativa historicamente situada.

Bibliografia

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Notas

1 Parte da etnografia usada neste artigo foi financiada pela Fundação para a Ciência e a
Tecnologia (FCT), através de uma bolsa de doutoramento. Quero agradecer à Susana de Matos
Viegas e ao José Mapril os seus comentários e sugestões, que contribuíram de modo indelével
para refinar o argumento e tornar o texto mais escorreito. Ainda numa fase inicial foram muito
importantes os comentários do Ramon Sarró, da Madalena Patriarca e do Max Ramos. Por
último, quero agradecer a leitura, as sugestões e os comentários muito oportunos dos dois
pareceristas anónimos. Os erros que permanecem são obviamente da minha responsabilidade.

2 The Discourse of Race in Modern China (1992), de Frank Dikötter, é um dos poucos trabalhos
que lateralmente toca esta temática, ao realizar uma análise histórica do discurso de raça na
China moderna.

3 Atualmente existe um debate na opinião pública chinesa sobre se o Yuan Ming Yuan (nome
chinês do Antigo Palácio de Verão) deverá ou não ser alvo de recuperação. Por um lado,
recuperar as ruínas seria reerguer um monumento destruído num momento de fraqueza do país
e demonstrar metaforicamente como a China se reergueu. Por outro lado, os opositores à
reconstrução do palácio argumentam que reconstruí-lo seria apagar da memória coletiva a
humilhação e os atos vexatórios perpetrados pelos ocidentais.

4 Sobre as classificações de raça na China moderna e as suas ligações ao pensamento ocidental,


ver Dikötter (1992).

5 Esta campanha é semelhante a outras lançadas pelo governo, destinadas a elevar a qualidade
(suzhi) da população chinesa, tais como a campanha para banir as cuspidelas na via pública ou
o uso de pijama na rua.

6 Wai é aqui o mesmo carácter usado em laowai e significa fora, exterior.

7 Em 2010, em trabalho de campo no Município de Wenzhou, província de Zhejiang, um local


de forte emigração para grandes cidades chinesas e para todo o globo, confrontei-me com o
facto de os wenzhouneses (waidiren em Pequim) utilizarem igualmente o termo waidiren para
darem conta da massa de camponeses, provenientes de áreas rurais empobrecidas de toda a
China, que ali afluem para trabalharem na indústria ligeira que tem tornado esta cidade média
um dos grandes polos de desenvolvimento económico da China. Também aqui o termo
waidiren comporta uma carga de ilegalidade e potencial criminalidade, quando

67
mencionado pelos locais, apesar do modo como naturais de Wenzhou foram tratados em
Pequim por serem waidiren.

8 Os jornalistas são percecionados pelos chineses em Lisboa como personas non gratas, que
fazem perguntas incómodas e que têm uma “agenda” contra as posições chinesas.

9 Na sua investigação sobre famílias da elite financeira de Lisboa, Antónia Pedroso de Lima
(2003) também verificou que a erudição dos seus interlocutores facilitou a compreensão da
tarefa da investigadora, muito embora neste caso tal não impedisse que os interlocutores
tivessem imposto limites aos momentos e formas de interação, colocando um desafio
metodológico à etnografia no sentido mais clássico.

10 A praça do Martim Moniz, área adjacente ao bairro da Mouraria no centro da cidade de


Lisboa, é uma zona de grande concentração de negócios, serviços e também de residência de
migrantes chineses. Tem sido considerada pelo próprio município uma área “multicultural” por
nela conviverem migrantes não só da China, mas também provenientes de vários países
africanos, principalmente de expressão portuguesa, da Índia, Bangladeche e Paquistão,
misturados com uma população nativa portuguesa, na maioria envelhecida (Mapril 2010;
Menezes 2009; Bastos 2001).

11 Esta situação remete para o modo como a categoria de laowai, historicamente imbuída numa
relação de poder de tipo racial e colonial, se articula com a noção de guanxi (contactos sociais
privilegiados) e também de mianzi (face) (Yang 1994) entre os chineses, e que resultam em
formas de acumulação de prestígio social. Porém, a análise da importância das guanxi e da
mianzi no trabalho de campo está para além do âmbito deste artigo.

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70
rrar

41101 Textos e escritos: Etnografias

2. Percursos: das etnografias clássicas às abordagens


contemporâneas

Lúcio Sousa
Universidade Aberta
2019/2020

1
2.Percursos: das etnografias clássicas às abordagens
contemporâneas1

Introdução: sinopse do tema em estudo2 3

2.1 O contexto e conceção de um terreno: do colonialismo ao transnacionalismo 7


Texto 1: Bronislaw Malinowski. (1922) Argonautas do Pacífico Ocidental. Introdução 8

2.2 Críticas e novos cenários: o local e a voz em etnografia 30


Texto 2: Teresa Caldeira, Teresa (1988) A Presença do Autor e a Pós-modernidade em 31
Antropologia
Texto 3: Silvano, Filomena, 2002, “José e Jacinta nem sempre vivem nos mesmos lugares: 57
reflexões em torno de uma experiência de etnografia multi-situada”,
Texto 4: Salgado, Ricardo.(2015) A Performance da Etnografia como Método da 86
Antropologia.

2.3 (Re)descobrir objetos e terrenos: arquivos, corpos e ciberespaço 98


Texto 5: José Reginaldo Gonçalves (2007) Teorias Antropológicas e Objetos Materiais 99
Texto 6: Miguel Vale de Almeida (1996) Corpo presente – Antropologia do corpo e da 132
incorporação

Texto 7: Silva, Adelina (s.d.) Ciberantropologia. O estudo das comunidades virtuais 154

P.S.: sugestão de leitura livre: O etnógrafo, de Jorge Luis Borges:


https://ensaiosenotas.com/2012/08/11/o-etnografo/

1
© Este é trabalho em desenvolvimento pelo que as sugestões serão bem-vindas [lucio.sousa@uab.pt ]. O
uso deste recurso é limitado ao trabalho individual e colaborativo no âmbito estrito da unidade curricular
41101 Etnografias e não pode ser objeto de divulgação/disponibilização exterior à plataforma moodle.
2
Atendendo à dispersão geográfica dos estudantes e a eventuais limitações de requisição em bibliotecas ou
aquisição de obras de obras de referência, foi preocupação constante na elaboração deste trabalho encontrar
textos de qualidade disponíveis de forma legal na web, assim como colocar excertos de obras salvaguardando
os limites decorrentes dos direitos de autor. No caso dos textos do docente estes foram usados de forma
mais livre, porquanto pessoais.

2
Introdução: sinopse do tema em estudo

Neste tema iremos procurar compreender a evolução da produção etnográfica ao longo da


história da antropologia.

O subtema 2.1 O contexto e conceção de um terreno: do colonialismo ao transnacionalismo,


pretende apresentar um percurso da antropologia, marcada inicialmente pelo colonialismo vigente
na época em que se desenvolve. Não sendo possível trabalhar todos os textos clássicos elegemos
como central Os Argonautas do Pacífico Ocidental, de Bronislaw Malinowski, publicado em 1922, e
considerada como a obra que inaugura a prática etnográfica, instituindo um método de trabalho
que passa pela estadia prolongada do investigador no terreno e a observação participante.

Para complementar esta leitura devem ver o filme “fora da varanda”, dedicado a Bronislaw
Malinowslki. A leitura e visionamento permitiram ter uma visão dinâmica do que o autor concebeu
a empresa etnográfica e a influência da sua obra. Permitirá ainda analisar a dupla forma como a
obra pode mostrar e ocultar simultaneamente sentimentos diferentes perante esse mesmo
trabalho e a relação com os sujeitos em estudo, os “nativos”. A saída em 1967 do diário íntimo de
Bronislaw Malinowski3 vem colocar em causa a narrativa antropológica asséptica e isenta de
constrangimentos pessoais. Um bom texto para compreenderem o impacto desta obra é Clifford
Gertz "Do ponto de vista dos nativos": a natureza do entendimento antropológico4

O subtema 2.1 é completado pela proposta de visionamento de mais três filmes sobre autores
de referência clássica: Franz Boas, Margaret Mead e Evans-Pristchard. Nestes filmes poderá ter uma
perceção do trabalho realizado por estes antropólogos e a sua influência no desenvolvimento da
prática etnográfica.

O subtema 2.2 Críticas e novos cenários: o local e a voz em etnografia pretende apresentar a
evolução mais recente das práticas etnográficas, marcadas fortemente pelas críticas pós-
modernistas, analisando para isso o Texto 2: Caldeira, Teresa (1988) A Presença do Autor e a Pós-
modernidade em Antropologia.

No mesmo tema os textos 3 e 4, respetivamente: Silvano, Filomena, 2002, “José e Jacinta nem
sempre vivem nos mesmos lugares: reflexões em torno de uma experiência de etnografia multi-
situada”, e Salgado, Ricardo.(2015) A Performance da Etnografia como Método da Antropologia,
permitem examinar dois aspetos centrais do desenvolvimento da investigação etnográfica: a
dimensão multi-situada da pesquisa (no caso do artigo de Silvano, a dimensão transnacional da
pesquisa mostra a atualidade da etnografia e a voz dos seus interlocutores no terreno), não assente
agora somente num local, e a presença de outras vozes na narrativa etnográfica, a do Outro, e a do
autor em diálogo e a do seu sujeito de estudo, agora parceiro essencial na construção da narrativa.

O capitulo termina com o subtema 2.3 (Re)descobrir objetos e terrenos: arquivos, corpos e
ciberespaço, no qual se analisa de forma exploratória três terrenos de investigação: a
(re)descoberta dos objetos como meios de compreender as sociedades e os homens e mulheres
que os usam (Texto 5: José Reginaldo Gonçalves (2007) Teorias Antropológicas e Objetos Materiais).
Ao mesmo tempo, a questão da transação assimétrica de materialidades múltiplas em contexto
colonial, presentes nos museus e arquivos das ex-metrópoles, assumem-se como uma

3 Malinowski, Bronislaw :Um Diário no Sentido Estrito do Termo.


https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/1365 .
4 In: GEERTZ, Clifford (1997) O saber local. Petropólis: Vozes. Capítulo disponível aqui:
https://bibliotecadafilo.files.wordpress.com/2013/10/do-ponto-de-vista-dos-nativos-capc3adtulo-de-
livro.pdf

3
fonte de estudo, mas igualmente de disputa e de reclamação por parte das pessoas e grupos de
onde esses objetos foram retirados, que exigem o seu repatriamento5.

Passível de ser objetivado, o corpo, estudado outrora pela antropologia biológica,


nomeadamente a colonial, adquire novos contornos, torna-se um sujeito e plataforma de estudo e
argumentação, analisados na introdução de Miguel Vale de Almeida: Corpo presente – Antropologia
do corpo e da incorporação, de uma obra que está disponível integralmente na internet.

Por fim, considerando novos espaços e comunidades, passiveis de novas práticas culturais e
sociabilidades, a etnografia virtual do ciberespaço, assume-se cada vez mais como um campo de
estudo fértil, analisado aqui no texto de Adelina Silva: Ciberantropologia. O estudo das comunidades
virtuais.

1. Os princípios éticos6

Há um conceito que faz parte dos objetivos deste capítulo que não se encontra em nenhum dos
textos facultados: o conceito de ética na prática etnográfica. Esta preocupação assume-se na
antropologia como central, quer na académica quer na aplicada.
Quais são então os princípios essenciais da ética antropológica? Apesar de podermos distinguir
na antropologia a existência de princípios éticos que se delimitam à atividade académica e os que
se aplicam na antropologia aplicada, esta distinção não é exclusiva. De facto, pode dizer-se que
ambos se influenciaram tendo a prática antropológica aplicada incentivado uma maior
reflexibilidade no domínio académico. Segundo Ervin (2000,30), há quatro princípios essenciais:

1. Consentimento informado

2. O modelo “clínico” de consentimento na informação

3. A confidencialidade e direitos pessoais à privacidade

4. A disseminação do conhecimento

1. Consentimento informado

O princípio pressupõe que as comunidades, ou pessoas, em estudo devem estar conscientes


do trabalho em curso, os seus objetivos, quem o solicitou e porquê, bem como os riscos e benefícios
que dele poderão advir. Como afirma Ervin (2000, 30) “O trabalho antropológico não pode ser
clandestino” no domínio aplicado. Este princípio é dos mais controversos tanto na antropologia
académica como na aplicada. O princípio descarta imediatamente determinadas práticas de
investigação recorrentes na antropologia académica e na sociologia como a pesquisa encoberta do
investigador.

5
http://www.bbc.com/culture/story/20150421-who-should-own-indigenous-art ou Indigenous Peoples'
Cultural Property Claims: Repatriation and Beyond, por Karolina Kuprecht, de 2014, parcialmente disponível
em Google Books (coloque o título do livro em pesquisa Google).
6
Baseado em Sousa, Lúcio (2007) A prática da antropologia. Lisboa, Universidade Aberta e Sousa, Lúcio
(2014) Antropologia aplicada: desenvolvimento, modelos de trabalho e desafios éticos, In Revista VERITAS,
Díli: Programa de Pós-Graduação e Pesquisa da UNTL. Vol. 2, nº 4.. pp. 81-97
4
2. O modelo “clínico” de informação consentida

Há situações em que determinados estudos se realizam tendo por base um contrato legal
que vincule antropólogo e cliente face à comunidade em estudo, ou o individuo que providencia a
informação. O compromisso assenta em dois tipos de contrato: um explica os objetivos, métodos e
plano, o que é esperado dos participantes bem como os riscos e benefícios que estes poderão
correr. O segundo documento, muitas vezes elaborado como uma ficha, será preenchido pelo
participante que reconhece ter conhecimento dos objetivos, riscos e benefícios da sua participação.

3. Confidencialidade e direitos pessoais à privacidade

O antropólogo deve assegurar que os nomes verdadeiros dos participantes ou informantes


não devem ser usados nos relatórios ou publicações, e o mesmo se aplica à identificação da
comunidade ou organização estudada. Esta prática não isenta que a comunidade/organização não
seja reconhecida por terceiros, sobretudo se o caso obtiver muita exposição pública.

4. Disseminação de conhecimentos

Ao contrário do estudo académico o trabalho realizado pelo antropólogo destina-se a ser


devolvido não aos pares académicos mas às pessoas que serão as beneficiárias do seu estudo. Não
deve haver secretismo sobre os resultados da pesquisa e a comunidade deve ter acesso aos
resultados do estudo. O próprio antropólogo poderá participar em apresentações/discussões
públicas sobre o seu trabalho.
Os princípios propostos por Willigen (1986: 44) são: privacidade, consentimento, utilidade
e comunicação. Na prática ambos os princípios são aproximados, mas a noção de utilidade tem um
interesse e relevância ética pois coloca a ênfase na questão: quem lucra com o trabalho. Este
princípio enfatiza o facto de ser indispensável tornar claro quem é que beneficia com o estudo.
Como o autor afirma a questão substancial é que a informação pode ser usada para controlar
pessoas, isto é, conhecimento é poder. É necessário identificar claramente quem é o cliente e quais
são os seus representantes (a existência de subgrupos dentro da comunidade pode levar a uma
utilização abusiva de informação) e o que estes pretendem fazer com o estudo.

Algumas associações de antropologia criaram guias éticos. dois guias éticos redigidos por
associações representativas de antropólogos com trabalho aplicado.: National Association for the
Practice of Anthropology (NAPA) e Society for Applied Anthropology (SFAA).

NAPA SFAA

1 Respeitar os direitos humanos e o bem- Para com as pessoas que estudamos


estar dos grupos afetados por decisões, temos a obrigação de revelar os
programas ou pesquisas nas quais os objetivos, métodos e patrocínio da
antropólogos tomem parte. pesquisa.

2 A obrigação de informar Para com as comunidades afetadas pelas


atempadamente e cabalmente os nossas atividades devemos respeito pela
sujeitos de investigação dos objetivos, sua dignidade, integridade e valor.
métodos e patrocínios das atividades.

3 Para com os empregadores há a Para com os colegas temos a


obrigação de prover competência, responsabilidade de não empreender
eficiência, competências profissionais e ações que possam impedir as suas
técnicas, realizadas atempadamente e atividades profissionais.
comunicadas de uma forma
compreensível.
5
4 Na relação com estudantes ou Para com os nossos estudantes,
formandos manter uma atitude séria, estagiários ou formados, temos a
justa, não discriminatória e não obrigação de não discriminar o seu acesso
exploratória. aos nossos serviços.

5 Para com os colegas, antropólogos e Para com os nossos empregadores e


outros, há a responsabilidade de outros patrocinadores devemos
desenvolver o trabalho de forma a apresentar de forma correta as nossas
facilitar as suas atividades e não qualificações e desempenhar de forma
comprometer as suas possibilidades de competente, eficiente e
trabalho. atempadamente os trabalhos
solicitados.
6 Para com a disciplina há a Para com a sociedade temos a obrigação
responsabilidade de agir de forma a de providenciar o benefício dos nossos
apresentar a disciplina ao público e a conhecimentos e capacidades em
outros profissionais de uma perspetiva interpretar sistemas socioculturais.
favorável.

Fonte:http://www.practicinganthropology.org/about/?section=ethical_guidelines;
http://www.sfaa.net/sfaaethic.html

6
2.1 O contexto e conceção de um terreno: do colonialismo
ao transnacionalismo

No final deste capítulo deverá:


• Conhecer e comentar algumas das principais autores e obras clássicas;

Texto 1: Bronislaw Malinowski. Argonautas do Pacífico Ocidental. Introdução: objeto, método e


alcance desta investigação. In Ethnologia (1997) nº8, 6-8: 17-38

Série BBC Strangers Abroad (versões com legendas em português)


Filme 1: Fora da varanda - Bronislaw Malinowski:
https://www.youtube.com/watch?v=Qn_gLroH3bQ
Filme 2: As Correntes da Tradição - Franz Boas:https://www.youtube.com/watch?v=zK5lYPeAbDM
Filme 3: Maioridade - Margareth Mead: https://www.youtube.com/watch?v=fLKjTt63yjw
Filme 4: Estranhas crenças - Edward Evans-
Pritchard:https://www.youtube.com/watch?v=iVl3bscoN2k

Nestes recursos deverá analisar e descrever:


Alguns dos autores clássicos e as suas principais obras baseadas em trabalho de campo; Analisar a
apresentação do objeto e método antropológico proposto por Bronislaw Manilowski; Comparar a
Introdução com o que é mencionado no vídeo sobre o diário íntimo do autor.
A forma como Bronislaw Malinowski descreve a postura do etnógrafo face aos “nativos” na
Introdução e como descreve essa relação nos seus Diários Intimos (ver: Fora da varanda)

Outros recursos, outras leituras, outras escritas:

Les argonautes du Pacifique occidental. (1922):


http://classiques.uqac.ca/classiques/malinowsli/les_argonautes/les_argonautes.html
Franz Boas :
http://classiques.uqac.ca/classiques/boas_franz/scientifiques_espions/scientifiques_espions.html
Margaret Mead:
http://classiques.uqac.ca/classiques/mead_margaret/education_ng/education_ng.html
Edward Evans-Pritchard:
http://classiques.uqac.ca/classiques/Evans_pritchard/evans_pritchard.html

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2.2 Críticas e novos cenários: o local e a voz em etnografia

No final deste capítulo deverá:

• Compreender a emergência da crítica à prática e escrita etnográfica;


• Reconhecer a presença de múltiplas vozes no discurso etnográfico

Texto 2: Caldeira, Teresa (1988) A Presença do Autor e a Pós-modernidade em Antropologia . In


Novos Estudos CEBRAP, nº 21.
http://www.novosestudos.org.br/v1/files/uploads/contents/55/20080623_a_presenca_do_autor.
pdf
Texto 3: Silvano, Filomena (2002), “José e Jacinta nem sempre vivem nos mesmos lugares: reflexões
em torno de uma experiência de etnografia multi-situada”, In Ethnologia - Antropologia dos
processos identitários, Lisboa, Cosmos, (53,79).
https://run.unl.pt/handle/10362/3595
Texto 4: Salgado, Ricardo.(2015) A Performance da Etnografia como Método da Antropologia. In
Antropológicas 2015, nº 13
http://revistas.rcaap.pt/antropologicas/article/viewFile/1640/5109

Nestes três textos deverá analisar e descrever:


A crítica pós-moderna às etnografias clássicas e as suas consequências na prática etnográfica
[Caldeira, 1988);
O que é e como se efetua uma investigação multi-situada (Silvano, 2002)
Reconhecer a presença de múltiplas vozes em presença no texto etnográfico e o seu papel na
prática etnográfica (Salgado, 2015)

Outros recursos, outras leituras, outras escritas:

Santos-Fraile, Sandra e Guijarro, Ester Massó (2017) Introducción. Etnografias multisituadas y


transnacionales. In Antropologia Experimental. Monográfico. 2017. DOI:
https://dx.doi.org/10.17561/rae.v17i0

Rodman, Margaret C. (1992) Empowering Place: Multilocality and Multivocality. American


Anthropologist New Series, Vol. 94, No. 3 (Sep., 1992), pp. 640-656

30
Texto 2
A PRESENÇA DO AUTOR
E A PÓS-MODERNIDADE
EM ANTROPOLOGIA

Teresa Pires do Rio Caldeira

Já vai longe o tempo em que o antropólogo, depois de passar algum tempo junto a
um grupo estranho, escrevia textos em que retratava culturas como um todo e em que
tranqüilamente afirmava como os Trobriandeses vivem, o que os Nuer pensam, ou no que
os Arapeshi acreditam. O antropólogo contemporâneo tende a rejeitar as descrições
holísticas, se interroga sobre os limites da sua capacidade de conhecer o outro, procura
expor no texto as suas dúvidas, e o caminho que o levou à interpretação, sempre parcial.
As regras implícitas que regem a relação entre autor, objeto e leitor, e que permitem a
produção, a legibilidade e a legitimidade do texto etnográfico, estão mudando. Esta
mudança está associada ao processo de autocrítica por que passa a antropologia hoje, em
que os mais variados aspectos de sua prática vêm sendo questionados e desconstruídos.
Neste texto, pretendo abordar alguns aspectos da mudança nas condições de produção do
trabalho antropológico, e ver a que novas alternativas as críticas estão levando. E vou fazer
isso a partir de uma perspectiva específica: a do papel do autor no texto etnográfico.
133

Presença ambígua
Analisando a função do autor na modernidade, Foucault (1984) mostra que ela não
se dá sempre da mesma maneira em diferentes sociedades e em relação a distintos
discursos. Assim, desde o século XVIII, nas sociedades ocidentais,
os discursos científicos começaram a ser recebidos por eles mesmos, no
anonimato de uma verdade estabelecida ou sempre redemonstrável; era a sua
pertinência a um conjunto sistemático e não a referência ao indivíduo que os
produziu que estabelecia a sua garantia. (...) Da mesma maneira, discursos literários
passaram a ser aceitos apenas quando dotados da função de autor. (1984:109)17
Se tomarmos essa caracterização como a descrição do que ocorreu na definição do
papel do autor nos discursos científicos, fica evidente a posição peculiar ocupada pela
antropologia. Ao contrário do que acontece em outras ciências e mesmo nas outras ciências
sociais, em que o analista e pesquisador procura o mais possível estar ausente da análise e
da exposição dos dados, como meio de garantir uma posição neutra e objetiva

7
(1)Todas as traduções de citações são minhas.

31
legitimadora da cientificidade, o antropólogo nunca esteve ausente de seu texto e da
exposição de seus dados. Ao contrário: produtor ele mesmo de seus dados, instrumento
privilegiado de pesquisa, a presença do antropólogo profissional tanto no trabalho de
campo quanto no texto etnográfico foi essencial para a constituição do conhecimento
antropológico. Baseando a sua produção de conhecimento na experiência pessoal de uma
outra cultura, a antropologia legitimou seus enunciados na fórmula: "eu estive lá, vi e,
portanto, posso falar sobre o outro". Trabalhos como os de Clifford (1983) e Marcus e
Cushman (1982) mostram a importância dessa fórmula na construção da autoridade
etnográfica.
Mas que tipo de presença é essa? Seguramente não é o mesmo tipo de presença do
escritor que cria textos literários de ficção. A ficção antropológica (Geertz 1973:Cap.l) tem
algumas características peculiares: ela pretende, de uma maneira objetiva (científica,
diriam alguns) fazer a ponte entre dois mundos culturais, revelando para um deles uma
outra realidade que só o antropólogo, este sujeito que experimenta e traduz, conhece.
Presença ambígua, portanto, que precisa, ao mesmo tempo, mostrar-se (revelando a
experiência pessoal) e esconder-se (garantindo a objetividade). Esta ambigüidade é a marca
da presença do antropólogo nos textos28.
A crítica contemporânea desenvolvida nos Estados Unidos ao modelo etnográfico
analisa a maneira pela qual os antropólogos têm aparecido em seus textos desde
Malinowski até os anos 80. Ela vai dizer, por um lado, que se trata de uma presença
excessiva. Na verdade, seria a única presença real nos textos, ainda que ocultada. Ela
apagaria as vozes, as interpretações, os enunciados daqueles sobre quem fala. Na melhor
das hipóteses, seria uma presença que subsume tudo à sua própria voz. O outro só existe
pela voz do antropólogo que esteve lá, viu e reconstruiu a cultu-

134

ra nativa enquanto totalidade em seu texto. Mas essa presença excessiva do antropólogo
corresponderia a uma ausência: a do questionamento do antropólogo sobre a sua inserção
no campo, no texto e no contexto em que escreve.
Por isso, a mesma crítica vai acrescentar: presença insuficiente. Na verdade,
presença insuficientemente crítica a respeito de si mesma, a respeito de seu papel na
produção de representações; presença que tende a ignorar que o conhecimento
antropológico produz-se, de um lado, em um processo de comunicação, marcado por
relações de desigualdade e poder, e, de outro, em relação a um campo de forças que define
os tipos de enunciados que podem ser aceitos como verdadeiros.

8
(2) Afirmar que o tipo de presença é o mesmo não é afirmar, contudo, que os estilos pelos quais os
antropólogos a realizaram tenha sido sempre o mesmo. Isto fica extremamente claro na análise que Geertz
(1988), utilizando e criticando a leitura de Foucault sobre a função do autor, faz sobre quatro "fundadores de
discursividade" (a expressão é de Foucault) na antropologia. Para ele, a discursividade que Lévi-trauss, Evans-
Pritchard, Malinowski e Ruth Benedict inauguraram tem muito pouco em comum.

32
A crítica americana contemporânea, ao analisar e criticar o tipo de autoria e de texto
que marcaram a antropologia nos últimos sessenta anos, quebra as condições que
permitiam a produção de mais etnografias dentro do mesmo gênero, e a legibilidade das
antigas, a não ser de modo histórico e crítico. Ao mesmo tempo, propõe uma série de novas
alternativas. Antes de analisá-las, contudo, convém esclarecer o contexto em que a crítica
surgiu e vem se desenvolvendo, e quais serão em detalhe os seus argumentos.

A crítica americana pós-moderna

Embora as análises elaboradas nos Estados Unidos sobre a etnografia clássica não
esgotem todo o universo da crítica — e muito de sua inspiração teórica é de origem
européia (Barthes, Foucault, Bakhtin, entre outros) —, vou deter-me aqui na análise
elaborada por antropólogos americanos, ou melhor, por "meta-etnógrafos" (Rabinow
1986, Geertz 1988),aqueles que tomam como seu "outro" os textos etnográficos39. Essa
crítica realiza-se em um momento em que tanto o contexto em que se dá a pesquisa de
campo, quanto as referências teóricas mudaram.
Começo pelo contexto. O modelo clássico de etnografia — que se estabeleceu a
partir dos anos 20 — desenvolveu-se no âmbito do que tem sido chamado de encontro
colonial (Asad 1973). Os grupos estudados pelo antropólogo eram, de um modo geral,
povos coloniais. Sobre eles, o antropólogo escrevia para os membros de sua própria
sociedade (a metrópole), sem colocar em questão o caráter da relação de poder que se
estabelecia entre essas duas sociedades. Esse macrocontexto em que se dava o trabalho
antropológico obviamente mudou. O desmantelamento dos impérios coloniais, a
reestruturação das relações entre as nações dos chamados Primeiro e Terceiro Mundo, e a
atenção para as sociedades complexas — as dos antropólogos — mudaram as condições
em que se faz o trabalho de campo e o contexto em que se escreve sobre o outro. O
antropólogo não defronta mais membros de culturas isoladas ou semi-isoladas, mas
cidadãos de nações do Terceiro Mundo que se relacionam por complexos caminhos
culturais e políticos com a nação de onde vem o antropólogo. Ou então defronta membros
de sua própria sociedade.
135
Essas transformações no macrocontexto têm levado ainda a uma mudança nos
temas pesquisados e na maneira de encará-los. Os antropólogos contemporâneos se
preocupam com transformações, com história, com sincretismo e encontros, com práxis e

9
(3) As referências principais são: Boon 1982; Clifford 1981, 1983, 1986a e b; Clifford e Marcus 1986; Fabian
1983; Marcus e Cushman 1982; Marcus e Fischer 1986; Rabinow 1985 e 1986; Stocking 1983a, 1984, 1985,
1986; Strathern 1987a. As principais revistas onde se têm publicado essas críticas são cultural Anthropology,
Dialectical Anthropology e Representations. É freqüente nesses textos o uso dos termos etnografia e
antropologia de maneira intercambiável. Tentarei, no entanto, usá-los de acordo com seus significados
específicos, concebendo etnografia como o texto resultante da pesquisa de campo sobre uma cultura, e
antropologia como a disciplina mais ampla onde a etnografia se insere junto com outros tipos de estudo e de
análise.

33
comunicação, e principalmente com relações de poder410. Apesar dessas transformações,
contudo, é interessante observar que os antropólogos americanos estudam
predominantemente culturas estranhas à sua própria, e que nos artigos críticos de que
estou tratando "o outro" continua a ser pensado como alguém do Terceiro Mundo e
freqüentemente membro de uma cultura sem tradição escrita ou que não produz
conhecimentos sobre si mesma.
Mas, como já disse, a mudança foi também teórica. As discussões epistemológicas
se modificaram, e essa mudança não é apenas resultado da transformação do contexto em
que se dá a pesquisa de campo, mas se sobrepõe a ela: as dúvidas não são apenas sobre
como representar ex povos coloniais, mas sobre representação em si. As novas discussões
teóricas se definem no contexto intelectual das culturas de que fazem parte os
antropólogos e se expressam nos debates sobre modernidade e pósmodernidade. A "meta-
antropologia" não se explica simplesmente pela derrocada do colonialismo, mas é a
expressão de um estilo de crítica pósmoderna em antropologia (Rabinow 1986)511. Para
entender a crítica convém rever rapidamente como ela vem construindo em seus textos a
imagem do que seria a "etnografia clássica", ou seja, aquela que se firmou a partir dos anos
20.
O historiador James Clifford — para quem o termo meta-etnógrafo foi cunhado —
é seguramente uma das figuras centrais no processo de desconstrução da etnografia
clássica. Em um de seus mais importantes trabalhos (1983) ele tenta mostrar os dispositivos
através dos quais os antropólogos criaram em seus textos uma autoria legítima para falar
sobre os outros, uma "autoridade etnográfica". Antes de mais nada, segundo ele, foi
necessária a constituição da figura do antropólogo-cientista612. Era o profissional em
trabalho de campo, cuja imagem contrastava com a do antropólogo de gabinete, de um
lado, e com a do missionário e agente colonial, de outro. Ele realizava seu trabalho de
campo segundo regras específicas, e legitimava seu texto evocando a experiência que tinha
de uma outra cultura. O seu modo predominante de autoridade do trabalho de campo
moderno está marcado: "você está lá, porque eu estive lá" (Clifford 1983:118). A
legitimação da figura do antropólogo profissional, conseguida basicamente por Malinowski
(1976[1922]) veio junto com a legitimação de um método para o conhecimento de "outras
culturas": a observação participante. A idéia que legitima o método é a de que apenas
através da imersão no cotidiano de uma outra cultura o antropólogo pode chegar a
compreendê-la. O antropólogo profissional deve passar por um processo de transformação
pelo qual ele, idealmente, torna-se nativo. Mas se essa transformação é condição essencial
para o conhecimento, ela não é sufi

10
(4) Um apanhado geral de todos os novos temas e caminhos de pesquisa encontra-se em Marcus e Fischer
(1986), uma útil resenha do que eles chamam de "momento experimental nas ciências humanas".
11
(5) Para caracterizar a "meta-antropologia" — a discussão crítica que toma como seu objeto textos
antropológicos — como um estilo de crítica pós-moderna, Rabinow (1986) apoia-se na caracterização de
pósmodernismo elaborada por Jameson (1985). Os seus elementos essenciais seriam o uso do pastiche, a
importância de imagens e o achatamento da história. Como afirma Rabinow: "O achatamento da história
encontrado no pastiche dos filmes nostálgicos reaparece no achatamento metaetnográfico que faz todas as
culturas do mundo produtoras de textualidade. Os detalhes nessas narrativas são precisos, as imagens
evocativas, a neutralidade exemplar, e o gênero retrô "(1986:250).
12
(6) A este respeito ver também Stocking 1986b.

34
136

ciente. A experiência cotidiana não é sistemática, e até que a cultura apareça retratada
coerentemente no texto etnográfico, um longo caminho há que ser percorrido.
Naquele que pode ser considerado como o texto-fundador do método da
observação participante — a Introdução ao Argonautas do Pacífico Ocidental —,
Malinowski fala sobre isso ao se referir à "imensa distância entre a apresentação final dos
resultados da pesquisa e o material bruto das informações coletadas pelo pesquisador
através de suas próprias observações, das asserções dos nativos, do caleidoscópio da vida
tribal" (1976:23). A experiência é necessária para o conhecimento, mas não deve
permanecer em estado bruto. Do mesmo modo que o antropólogo tem que se transformar
ao entrar em uma outra cultura, ele tem que reelaborar a sua experiência ao sair dela, de
modo a transformá-la em uma descrição objetiva (científica) da cultura como um todo. Esta
reelaboração é inspirada por uma teoria da cultura específica.
Como mostra Clifford (1983), a legitimação do trabalho de campo como o método
de pesquisa antropológica associa-se à formulação de uma teoria que concebia as culturas
(ou sociedades) como unidades discretas, existentes sob forma unitária e acabada,
passíveis de ser observadas e conhecidas — desde que olhadas pelos olhos certos, os olhos
treinados do antropólogo profissional. Culturas eram totalidades que deveriam ser
recompostas pelo antropólogo e descritas como tais, embora não se apresentassem à
experiência dessa maneira. Além disso, sendo as culturas todos complexos difíceis de serem
apreendidos em um período relativamente curto de tempo, os antropólogos tenderam a
se fixar em temas ou em instituições. Assumiu-se, assim — como mostra Clifford (1983) —
, que partes eram microcosmos ou analogias do todo e que, consequentemente, através
do estudo de partes — o kula — chegava-se ao conhecimento do todo — a cultura
trobriandesa. Finalmente, a ênfase na observação participante como o método etnográfico
associou-se à idéia de que as culturas deveriam ser estudadas e representadas
sincronicamente: consagrou-se nos textos o uso do presente etnográfico713.
Os dados obtidos no trabalho de campo feito e reelaborado segundo a concepção
resumida acima foram expressos em um novo gênero literário, o realismo etnográfico, "um
modo de escrita que pretende representar a realidade de todo um mundo ou forma de
vida" (Marcus e Cushman 1982:29). Para que esse efeito de realidade holística fosse obtido,
as etnografias clássicas usaram uma série de convenções textuais. Marcus e Cushman
(1982) apontam nove delas. Primeiro, nas etnografias clássicas o texto está em geral
estruturado seqüencialmente, apresentando as unidades nas quais considerava-se que as
culturas (ou sociedades) estavam divididas. Segundo, o antropólogo, para garantir a
cientificidade e a neutralidade de seu texto, retirava-se do texto Simples observador,

13
(7) Vale lembrar que a ênfase nos estudos sincrônicos está também associada a uma crítica ao
evolucionismo e a sua construção de histórias conjecturais.

35
não usa a primeira pessoa (eu observei que eles fazem isso ou aquilo... 14.), mas expressa
sua
137

autoridade em uma terceira pessoa coletiva (eles são isso, eles fazem aquilo)8. O resultado
desse seu afastamento do texto — para o qual eu voltarei adiante — é paradoxal, já que a
legitimação da autoridade depende também da exposição da experiência do antropólogo.
Essa exposição — a terceira convenção — é relegada a posições marginais no texto, como
apêndices, prefácios, notas de rodapé etc., e é acompanhada da publicação de fotos, mapas
e desenhos, que reafirmam o sentido de realidade e a presen ça do antropólogo no lugar
pesquisado. Quarto, o indivíduo não tem lugar na etnografia realista: fala-se do povo em
geral, ou de indivíduos típicos. Quinto, para enfatizar o caráter de realidade das vidas
retratadas, acumulam-se detalhes da vida cotidiana. Sexto, pretende-se apresentar não o
ponto de vista do antropólogo, mas o ponto de vista nativo, idéia que se assenta no
pressuposto de que esse ponto de vista existe pronto lá para ser representado aqui (no
texto). Sétimo, apesar de cada trabalho de campo ser muito específico, nas etnografias
tendeu-se a generalizações; o que era particular rapidamente vira típico, e assim se
distancia a experiência de campo (sempre particular) do texto. Oitavo, usa-se o jargão,
exigência científica. Nono, faz-se a exegese de termos e conceitos nativos — e reafirma-se
a competência lingüística do antropólogo.
Os críticos pós-modernos argumentam que através do uso das convenções
mencionadas acima, inspiradas pela teoria que concebia as culturas como totalidades e
pelos requisitos de cientificidade que obrigavam à reelaboração da experiência de campo,
o que se acabou produzindo nos textos foi uma visão deformada tanto das culturas, quanto
da experiência do antropólogo junto a outras culturas. Muito estaria sendo perdido ou
sendo substancialmente modificado na transformação que ocorre entre a pesquisa de
campo e o texto. O que era uma experiência de campo fragmentada e diversa acaba sendo
retratado como um todo coerente e integrado. O que era um processo de comunicação, de
troca, de negociação entre o antropólogo e seus informantes, vira algo autônomo (diários
de campo, gráficos de parentesco, mitos etc.). O que era um diálogo, vira um monólogo
encenado pelo etnógrafo, voz única que subsume todas as outras e sua diversidade à sua
própria elaboração. O que era interação vira descrição, como se as culturas fossem algo
pronto para ser observado e descrito (e por isso nos textos as imagens são sobretudo
visuais, em detrimento de imagens que enfatizem a fala ou a audição (Fabian 1983)).
Apagam se as relações inter-pessoais e generaliza-se o nativo. Para usar uma expressão de
Clifford (1983), o que era discursivo vira puramente textual.
Em suma, nesse processo de transformações o caráter da experiência cultural é
completamente modificado 915. Apesar de ela ser usada como retórica legitimadora do

14
(8) Para uma análise do uso da terceira pessoa do presente como modo dominante dos textos
etnográficos, ver Fabian 1983:cap. 3.
15
(9) A crítica pós-moderna produziu uma série de reanálises da experiência de trabalho de campo que não
estou considerando aqui uma vez que meu foco são as etnografias. Ver, por exemplo, Dumont 1978 e
Rabinow 1977.

36
conhecimento do antropólogo, nos textos ela é negada enquanto tal. A experiência que
aparece mencionada nos textos só pode ser uma evocação legitimadora: o que conta como
sendo a cultura é a descrição final, obtida através da reelaboração da experiência inspirada
pela reflexão teórica. Assim, a disjunção entre experiência e texto, o
138

requisito da experiência e da transformação da experiência de campo em descrição da


cultura como um todo estão associados à ambigüidade da presença do antropólogo nos
textos que mencionei anteriormente. A experiência pessoal é evocada para legitimar os
dados, mas é afastada para legitimar a análise.
Todas essas transformações que separam a experiência de campo do texto e todas as
convenções usadas para escrever a etnografia realista acabam tendo um efeito geral: o de
estabelecer uma distância entre o antropólogo (e sua cultura) e a cultura do grupo
estudado16. Mas esse distanciamento não é conseqüência completamente desavisada ou
aleatória do processo de construção do conhecimento antropológico. É parte do que se
pretendia conseguir com esse conhecimento a partir dos anos 20. Segundo Marilyn
Strathern (1987a), a separação e o distanciamento entre observador e observado (e suas
culturas) marca a introdução do modernismo na antropologia.
A divisão entre observador e observado foi sempre consciente. O que caracterizou o
modernismo na antropologia foi a adoção dessa divisão como um exercício teórico
através do fenômeno do trabalho decampo. Quando o(a) antropólogo(a) "entrava"
em uma outra cultura, ele ou ela levava consigo essa consciência. Isto é o que foi
inventado pelos pesquisadores de campo da época de Malinowski. Qualquer que seja
a natureza de suas experiências de campo, isso foi visivelmente reinventado na
maneira pela qual as suas monografias se organizaram. (Strathern 1987a:258)
O antropólogo no campo tinha que idealmente tornar-se um nativo, mas essa
transformação era sempre provisória. A reelaboração da experiência reintroduzia a
distância entre as duas culturas. Segundo Strathern (1987a), esse distanciamento está na
base da criação de um novo contexto (diferente do do evolucionismo) para a circulação do
conhecimento antropológico, que se fez pelo estabelecimento de uma relação específica
não só entre escritor e objeto, mas também entre estes e o leitor. Para explicitar a novidade
deste contexto criado por Malinowski, Strathern (1987a) contrasta seus procedimentos
com os de Frazer. No texto de Frazer, a linguagem era familiar — e não científica —, o
contexto a que se referia, o mesmo de seus leitores. Não lhe ocorria representar o ponto
de vista nativo: as diferenças culturais eram tiradas de seu contexto original e trazidas para
dentro do mundo do antropólogo e de seus leitores. Não custa

16
(10) Os mecanismos textuais que produzem essa distância são os mais variados. Fabian (1983), por exemplo,
analisa o que ele chama de "uso esquizogênico do tempo" em etnografias, ou seja, o fato de os conceitos de
tempo usados no trabalho de campo nunca coincidirem com aqueles das etnografias. Nas etnografias, os
conceitos de tempo sempre acabam produzindo distanciamento entre o antropólogo e seus objetos. Apesar
de sua variedade, "os dispositivos de distanciamento que nós podemos identificar produzem um resultado
global. Eu vou chamá-lo negação de contemporaneidade (denial of coevalness). Por isso eu entendo uma
tendência persistente e sistemática de colocar os referentes da antropologia num tempo outro do que aquele
do presente do produtor de discurso antropológico".(1983:31)

37
lembrar: o paradigma de Frazer era o evolucionismo; os outros, apenas diferentes estágios
do eu. A novidade de Malinowski e dos antropólogos que lhe seguiram foi justamente a de
criar um novo contexto para descrever os outros. Nesse novo contexto, o outro e a sua
cultura eram distanciados e definitivamente apresentados como diferentes. A diferença
não era mais de estágios de evolução, mas de perspectiva. O ponto de vis
139

ta nativo, ao se reproduzir o seu contexto específico, não poderia mais ser incorporado ao
da cultura do antropólogo e de seus leitores. No máximo, os pontos de vista poderiam ser
justapostos pelo antropólogo, este ser privilegiado que se movimenta entre dois mundos,
que conhece o estranho, descobre seu caráter corriqueiro, e traduz essa perspectiva
diferente para os leitores de sua própria cultura. A partir de Malinowski, os antropólogos
têm que criar em seus textos uma consciência sobre a diversidade do mundo. Eles têm que
criar uma "ficção persuasiva" (Strathern 1987a:257) sobre um outro que é radicalmente
diverso.
O relativismo cultural é uma das conseqüências centrais da criação desse novo
contexto e, nesse sentido, marca do modernismo em antropologia. Entretanto, o
relativismo cultural, ao marcar a diferença entre as culturas, ao enfatizar a unidade de cada
uma delas e a impossibilidade de que uma fosse avaliada em função dos valores e da visão
da outra, acabou paradoxalmente dificultando que os antropólogos trabalhassem com o
fato da diferença de uma maneira que não fosse para acentuar a distância entre as culturas.
As diferenças acabaram sendo tão marcadas que ficou cada vez mais difícil fazer com que
uma cultura falasse a outras em termos críticos. A denúncia do etnocentrismo que
caracterizou a antropologia modernista e que veio junto com o relativismo cultural também
teve o mesmo efeito. Desse modo, a possibilidade de crítica cultural, uma das bases em
que se assentou a antropologia clássica e que foi de fato exercida nos seus primeiros anos
(por exemplo, na crítica ao racismo) acabou perdendo intensidade. Ela sempre continuou
no horizonte da antropologia, mas foi muito pouco praticada — a ênfase no entendimento
das culturas nos seus próprios termos e o distanciamento dos contextos culturais acabaram
brecando suas possibilidades.

Alternativas pós-modernas

Tentando resumir as críticas elaboradas pelos antropólogos pósmodernos


americanos, podemos dizer que elas incidem basicamente sobre dois aspectos. De um lado,
tentam revelar os dispositivos pelos quaisos etnógrafos clássicos construíram seus textos
de modo a criar uma descrição que, se se legitimava no fato de que os antropólogos tinham
a experiência de uma outra cultura, na verdade negava essa experiência enquanto tal nos
textos, apresentando apenas sua reelaboração: as culturas descritas como totalidades
autônomas e integradas. De outro lado, apontam a produção do distanciamento entre as
culturas e criticam a ausência de uma perspectiva crítica em relação não apenas às culturas
estudadas, mas à relação dessas culturas com as culturas

38
dos antropólogos, e à cultura dos antropólogos em si. As alternativas propostas pelos pós-
modernos tentarão reinventar esses dois aspectos: os textos e a crítica cultural.
Entretanto, esses dois aspectos não recebem a mesma ênfase nos artigos críticos. A
maioria das alternativas pós-modernas à antropologia não se refere a discussões sobre o
contexto político em que ela ocorre, ou às
140
possibilidades críticas da antropologia em relação às culturas das sociedades do
antropólogo ou às culturas do Terceiro Mundo que ela continua a estudar. As alternativas
são basicamente textuais: referem-se a como encontrar uma nova maneira de escrever
sobre culturas, uma maneira que incorpore no texto um pensamento e uma consciência
sobre seus procedimentos.
A reflexão sobre esses procedimentos e a sua incorporação aos textos não surgiu
obviamente com os pós-modernos, mas está presente em seus antecessores, os
antropólogos hermeneutas representados por Clifford Geertz. A antropologia
interpretativa, concebendo as culturas como textos, e a análise antropológica como
interpretação sempre provisória, seguramente contribuiu para o estranhamento da
autoridade etnográfica clássica. No entanto, segundo os críticos pós-modernos (Clifford
1983, Marcus e Cushman 1982, por exemplo) seu rompimento com o modelo anterior é
parcial: ela questiona o processo da produção de interpretações, mas não rompe com a
separação radical entre observador e observado e suas culturas. A interpretação seria ainda
sobre uma outra cultura entendida como entidade autônoma e separada do antropólogo,
e uma atividade que reelabora a experiência e recria a totalidade. Os pós- modernos vão
tentar romper tanto o caráter de separação das culturas, quanto o de recriação da
totalidade. Para eles a etnografia não deve ser uma interpretação sobre, mas uma
negociação com, um diálogo, a expressão das trocas entre uma multiplicidade de vozes.
Quem melhor resumiu esta alternativa foi James Clifford.
Um modelo discursivo da prática etnográfica dá preeminência à intersubjetividade de
toda fala, e ao seu contexto performativo imediato. ...As palavras da escrita
etnográfica... não podem ser construídas monologicamente, como uma afirmação de
autoridade sobre, ou interpretação de uma realidade abstrata, textualizada. A
linguagem da etnografia é impregnada de outras subjetividades e de tonalidades
contextualmente específicas. Porque toda linguagem, na visão de Bakhtin, é "uma
concreta concepção heteróglota do mundo". (Clifford 1983:133)
A proposta é, então, escrever etnografias tendo como modelo o diálogo ou, melhor
ainda, a polifonia. Ter como modelo não significa necessariamente transcrever diálogos,
embora alguns autores tenham interpretado isso literalmente (Dwyer 1977, 1982). A idéia
é representar muitas vozes, muitas perspectivas, produzir no texto uma plurivocalidade,
uma "heteroglossa", e para isso todos os meios podem ser tentados: citações
dedepoimentos, autoria coletiva, "dar voz ao povo" ou o que mais se possaimaginar. O
objetivo final, no que diz respeito ao autor, seria fazer comque ele agora se diluísse no
texto, minimizando em muito a sua presença, dando espaço aos outros, que antes só
apareciam através dele. "Autoria dis

39
141
persa (Marcus e Cushman 1982, Clifford 1983) e a expressão que se usa para descrever
este processo que corrigiria o excesso da presença do antropólogo nos textos.
Esse processo vem junto com uma mudança no conceito de cultura e do que é
possível representar nas etnografias.
(O princípio da produção textual dialógica) situa as interpretações culturais em
diferentes contextos intercambiáveis e obriga os escritoresa encontrar diversas
maneiras de apresentar realidades, que são de fato negociadas, como inter-
subjetivas, cheias de poder e incongruentes. Nesta visão, "cultura" é sempre algo
relacional, uma inscrição de processos comunicativos que existem, historicamente,
entre sujeitos em relações de poder. ...Assim que o dialogismo e a polifonia são
reconhecidos como modos de produção textual, a autoridade monofônica é
questionada, aparecendo como uma característica de uma ciência que pretendeu
representar culturas. (Clifford 1986a:15)
A discussão chega, assim, ao seu limite. O antropólogo não se encontra mais numa
situação privilegiada em relação à produção de conhecimentos sobre o outro. Ele não é
mais aquele que reelabora uma experiência para explicitar a realidade de uma cultura com
uma abrangência e uma coerência impossível para aqueles que a vivem no cotidiano. O
antropólogo não é mais um sujeito cognoscente privilegiado. Perdendo o status de sujeito
cognoscente privilegiado, o antropólogo é igualado ao nativo e tem que falar sobre o que
os iguala: suas experiências cotidianas. É por isso que se requer que o etnógrafo reproduza
o mais possível em seus textos a sua experiência tal qual vivida no campo, e não tal qual foi
reelaborada depois dele. Essas experiências de campo são basicamente diversificadas. Se
os etnógrafos clássicos sabiam disso, acreditavam que no processo de reelaboração
poderiam ir além dessa diversidade de modo a reconstruir a totalidade. Os antropólogos
pós-modernos, contudo, dão valor de objetividade à diversidade, pressupõem sua
irredutibilidade e negam a possibilidade de reconstruir uma totalidade que dê sentido a
todas as posições diversas. A diversidade irredutível de experiências é, então, o dado com
que o antropólogo pós-moderno tem que trabalhar e achar meios de representar.
Nesta situação, tudo o que o antropólogo pode fazer em seus textos é inscrever
processos de comunicação em que ele é apenas uma das muitas vozes. As vozes são todas
equiparadas: o que se representa são sujeitos individuais e não papéis sociais — dos quais
um poderia ser o do antropólogo. Assim, o etnógrafo pode evocar, sugerir, provocar,
ironizar, mas não descrever culturas17. Finalmente chega-se ao lado oposto da etnografia
clássica: o autor não se esconde para afirmar sua autoridade científica, mas se mostra para
dispersar sua autoridade; não analisa, apenas sugere e provoca. Com isto, a concepção do
leitor muda radicalmente: ele
142

17
(11) Sobre o papel da ironia nos textos pós-modernos, ver Strathern 1987a e b.

40
não é mais aquele que se informa, mas deve ser agora participante ativo na construção
do sentido do texto, que apenas sugere conexões de sentido.
Antes de mais nada, é preciso que se diga que não são todos os crí ticos pós-
modernos que reiteram este modelo. Uma crítica a ele pode ser encontrada em Rabinow
(1985 e 1986). Ela é importante porque permite nos trazer de volta à segunda dimensão da
crítica pós-moderna que mencionei anteriormente: a dimensão política e de crítica cultural
que deveria estar presente na antropologia.
É uma constante nos textos de autores pós-modernos a menção à perspectiva
política. Não deixa de ser significativo, neste sentido, o título da coletânea que reúne os
mais importantes teóricos desta tendência: Writing Culture — The Poetics and Politics of
Ethnography (Clifford e Marcus 1986). A impressão que se tem da leitura da maioria dos
textos, contudo, é a de que política no caso é basicamente uma política do texto. Discute
se sobre o estilo e opções textuais em detalhes, às vezes obsessivos, mas as questões
políticas são apenas sugeridas. Na verdade, talvez elas sejam assumidas como dadas, e pós-
modernisticamente invocadas no texto através de menções à crítica ao colonialismo, ou às
relações de poder entre pesquisador e informantes. Mas não se vai além de evocações e
de menções genéricas em que se assume indiretamente que uma autoridade dispersa seria
melhor porque mais verdadeira e superior politicamente (Rabinow 1985:7). Seguramente
a etnografia é sempre escrita e é textualmente que ela tem que enfrentar seus problemas
políticos. No entanto, a questão é saber se é através da forma que ela pode enfrentar
problemas políticos. Mais ainda, se é através de uma forma que dispersa a autoria e,
portanto, o peso da visão do autor, que ela pode tanto conseguir formular uma crítica
cultural, quanto expressar uma posição política. Pode-se mesmo chegar a perguntar se a
mudança na concepção do autor e a produção de um novo tipo de conhecimento são
apenas ou basicamente um efeito textual, ou se a produção de um novo tipo de texto em
etnografia seria suficiente para produzir um novo enquadramento do autor e de seu
conhecimento.
Rabinow (1985) não acha que seja possível passar sem uma discussão específica da
dimensão política. Para ele, "política, experimentação formal e epistemologia podem ser
variáveis independentes, ...(e) a associação de experimentos formais de vanguarda com
uma política progressista continua questionável" (1985:6). Experimentos textuais podem
abrir novas possibilidades mas, como diz Rabinow, não garantem nada (p. 8).
Teoricamente, os autores podem escolher qualquer estilo, qualquer modo de organização
de texto, porque em si mesmos "eles não nos oferecem nenhuma garantia, não contêm
nenhum poder secreto, não fornecem nenhuma senha (password) textual para a verdade
ou a política" (1985:8).
Para Rabinow, a discussão textual nunca vai se sustentar por si só. Ela deveria estar
aliada a uma análise como a que é feita por Bourdieu (1983), e que tenta localizar autores
em instituições, autores, textos e instituições
143

41
num campo epistemológico e de poder, com estratégias próprias e marcado
historicamente. Deveria estar também associada a uma análise inspirada em Foucault, que
tentasse analisar as relações de poder que definem quais enunciados podem ser aceitos
como verdadeiros em cada momento. A discussão textual seria ainda insuficiente, da
perspectiva de Rabinow, por não incorporar uma análise sociológica que estabeleça as
mediações entre, por exemplo, as críticas ao colonialismo realizadas em um nível macro e
os experimentos textuais. O que estaria faltando, em suma, seria questionar a academia
americana nos anos 80 e seus jogos de poder. Até hoje, contudo, os pós-modernos parecem
não terem se atrevido a isso.
Mas a dimensão política da crítica antropológica não se limita a uma apreciação das
condições de produção do conhecimento. Como já mencionei anteriormente, discute- se a
possibilidade da antropologia vir a realizar uma crítica cultural das sociedades que estuda
ou das sociedades dos antropólogos.
Esta perspectiva esteve presente na antropologia modernista de um modo peculiar,
se se compara com o que aconteceu no modernismo nas artes. O modernismo em
antropologia, como foi dito, caracterizou-se pelo estabelecimento de uma distância entre
as culturas e pela criação de um contexto para se falar sobre a diversidade. O modernismo
nas artes também usava o efeito de distanciamento, ao pretender desfamiliarizar a cultura
e a sociedade do próprio artista. A distância e o estranhamento tinham por objetivo chocar
— postura que o surrealismo levou às últimas conseqüências18. A antropologia, contudo,
tinha como um dos seus objetivos básicos tomar o distante e estranho e torná-lo familiar
— sem aproximá-lo. O que ela buscava era revelar o cotidiano no bizarro, desmanchar o
exótico revelando seu sentido próprio.
Pode-se dizer, no entanto, que a postura modernista do choque e da crítica à
sociedade burguesa também estava no horizonte da antropologia. Ao criar um novo
contexto para falar de culturas estranhas e ao insistir que as culturas fossem entendidas
em seus próprios termos, ao revelar o sentido familiar do bizarro, a antropologia criticou o
etnocentrismo e o racismo. Além disso, através da desfamiliarização da sociedade
burguesa, conseguida pela justaposição de suas características com as das sociedades
primitivas, a antropologia poderia realizar uma crítica cultural à sociedade ocidental —
afinal, o mito do bom selvagem está nas bases da antropologia. No entanto, se esta postura
foi tentada algumas vezes, e Margaret Mead e Ruth Benedict são exemplos claros nessa
direção, não se pode dizer que a crítica cultural tenha ido além de uma promessa (Marcus
e Fisher 1986:caps. 5 e 6), que provavelmente o relativismo cultural ajudou a frustrar.
Neste ponto é importante introduzir uma relativização. A frustração das
possibilidades de crítica cultural é característica sobretudo da antropologia realizada nas
metrópoles — e que são o objeto de análise dos críticos pós-modernos americanos.
Antropologias "nativas" como a nossa, que sempre estudaram a sua própria sociedade, são
claramente um caso

18
(12) Sobre as relações da antropologia com o surrealismo, ver Clifford 1981. Sobre as relações de
modernismo na arte e antropologia, ver Holston (no prelo: cap.1). Sobre asrelações da antropologia,do culto
ao primitivo e daarte modernista, ver Rubin 1984.

42
144

à parte: o processo de entender um outro que faz parte da nossa própria cultura conduz
quase que inevitavelmente a pensar criticamente sobre a nossa relação com ele e sobre o
seu lugar na nossa sociedade13. Constituíram também um caso à parte as antropologias
feitas por grupos minoritários, de que talvez a antropologia feminista seja o melhor
exemplo. Ser crítica a respeito da situação da mulher era parte constitutiva dos objetivos
dessa antropologia. Mas excetuando-se esses casos específicos — e marginais em relação
à antropologia produzida nas metrópoles — a crítica cultural continuou a ser uma promessa
não cumprida. A antropologia pósmoderna tenta resgatar esta postura, apresentando-a
como um dos caminhos por onde a antropologia contemporânea deveria seguir. Vários
autores têm insistido nessa perspectiva, mas ainda são poucas as tentativas de levá-la a
efeito. O pós-modernismo em antropologia tem se caracterizado mais por um trabalho de
desconstrução de textos etnográficos clássicos e de proposição de alternativas textuais do
que pela produção de etnografias que levem em conta as novas regras, não só em relação
ao texto, mas também à crítica cultural. Algumas experiências, contudo, já foram feitas.
Passo a analisar agora três delas, selecionadas por se referirem a ambos os aspectos: são
experiências textuais e enfrentam de diferentes maneiras problemas políticos e de crítica
cultural. Reinventando a etnografia First-Time (1983) de Richard Price, Waiting (1985) de
Vincent Crapanzano, e Shamanism, Colonialism and the Wild Man (1987) de Michael
Taussig são experiências textuais e, nos três casos, a posição do antropólogo como autor
do texto é foco de questionamento e redefinição. Taussig nega explicitamente a
possibilidade de o antropólogo dizer o que os outros são: seu texto é basicamente sua
construção, concebida enquanto crítica cultural de sua própria sociedade e da cultura que
lhe é específica. É a sua perspectiva construída a partir da análise dos outros que aparece
no primeiro plano. Já Price e Crapanzano são, segundo ambos explicitam, uma voz entre
várias no texto; suas autorias se dispersam, como se diluem as suas análises, a ponto de
desaparecer, no caso de Crapanzano. Em suma, se é através de experiências textuais
que os três autores se expressam, seus objetivos e seus resultados são bastante
diferentes. Apesar disso, nenhum dos três pretende retratar holisticamente uma cultura: o
que é possível representar são sempre aspectos parciais. Em First-Time Price está
preocupado em estudar o conhecimento que os Saramakas, descendentes de escravos que
vivem no Suriname, têm sobre um período crucial de sua história. Este é o First-Time, ou
seja, o período que compreende a fuga em massa desses escravos das plantations em que
viviam, sua contínua resistência a tentativas de reescravização, e finalmente a "Grande Paz"
que selou a sua libertação em 1762. Primeiro
145

problema: memória oral sobre um evento que ocorreu há mais de dois séculos e cujas
informações só se mantêm de modo fragmentário. Mas a maior dificuldade está em que,
no caso dos Saramakas, o conhecimento do passado está explicitamente articulado a
questões de poder.

43
Entre os Saramakas, o conhecimento sobre o passado, e especialmente sobre o
First-Time, é privilégio de alguns velhos, e é algo que não deve ser contado
indiscriminadamente. As histórias mais importantes não podem ser reveladas porque são
perigosas. São histórias de fugas e lutas por liberdade e há sempre o risco de que, ao se
contar a história, ao entregá- la para outros, eles entreguem também a sua liberdade. Eles
acreditam que têm que proteger o que sabem, ou o seu conhecimento vai ser usado por
outros, especialmente os brancos, contra eles. A força principal subjacente à sua maneira
de relembrar o passado é uma idéia de "nunca mais", uma preocupação de impedir que a
escravidão possa ocorrer de novo. Além disso, memória e história sobre o First-Time são
importantes em termos da preservação da identidade do grupo e de seu senso de auto-
respeito: elas contêm as raízes do que realmente significa ser Saramaka. Assim sendo, só
se contam fragmentos, e as pessoas interessadas em história, sobretudo na história do
First-Time, têm que juntar fragmentos dispersos oferecidos em diferentes momentos pelos
velhos. Foi através desta proteção do conhecimento sobre o passado que as histórias sobre
o First-Time foram preservadas com uma considerável riqueza de detalhes por dois séculos.
Ao escrever First-Time Price teve, então, que enfrentar uma série de questões
impostas pelo próprio objeto de análise. Ele teve que descobrir a forma cultural específica
— canções, lendas, histórias, encantamentos ditos eventual e ritualisticamente — pela
qual o conhecimento sobre o passado é transmitido. Ele teve que lidar com a memória dos
Saramakas e com documentos sobre a sua história, com diferentes versões sobre o passado
e a impossibilidade de dizer o que ele realmente foi; e teve que enfrentar a questão sobre
a melhor maneira de expressar as diferentes versões. Mas ao escrever Price teve que
encarar outros problemas, e o mais importante deles se refere ao agrupamento de um
conhecimento que supostamente deveria ser mantido em fragmentos, e à revelação de
algo que é considerado perigoso e supostamente deve ser mantido em segredo. Price só
foi informado sobre o First-Time após nove anos de trabalho de campo e quando os velhos
o consideraram pronto para isso. Nessa consideração interveio o fato de que Price por
vários anos estudou a história dos Saramakas nos arquivos coloniais holandeses e tinha em
seu poder algumas informações ignoradas pelos velhos para oferecer-lhes. E ele estava
consciente da relação de poder a ser então estabelecida, e de quanto ele ia, assim, interferir
no próprio caráter do conhecimento sobre o First-Time. De outro lado, quando Price obteve
as informações dos Saramakas e foi solicitado pelos velhos para ser uma espécie de
cronista, a sociedade dos Saramakas estava sofrendo, mudanças irreversíveis, a tradição
estava morrendo e os velhos decidiram que o pouco de conhecimento que eles tinham
deveria
146

ser preservado. Mas ao deixarem o seu conhecimento ser agrupado e escrito, eles mesmo
mudaram irreversivelmente o caráter do seu conhecimento.
Numa situação como esta, em que o antropólogo se transforma com toda clareza
em um agente de interferência na sociedade estudada e qualquer coisa que faça representa
uma opção ética e política, não é de se estranhar que Price tenha refletido

44
sobre o seu próprio poder e o papel de seu trabalho enquanto antropólogo. Suas dúvidas
e as decisões que tomou fazem parte do livro.
A primeira questão era a de identificar ou não os informantes. Price decidiu
identificá-los publicando uma foto de cada um dos velhos que lhe falaram sobre o First-
Time, seguidas de seus nomes e uma pequena biografia. A decisão, que Price diz de sua
total responsabilidade, tem por trás a idéia de incorporar os Saramakas como co-autores
em sua tentativa de contar a sua história. Eles, afinal, é que detinham a maior parte do
conhecimento.
Uma segunda questão era a do possível impacto do livro no sistema de
conhecimento dos Saramakas. Ele sabia que o que escrevia era parcial, uma seleção da
história, mas que corria o risco de, ao ser publicada, se transformar em cânone, em uma
versão com mais autoridade. Por isso ele insiste o tempo todo no caráter incompleto e
parcial de sua versão, publicada como uma celebração da tradição historiográfica
Saramaka, que guardou coletivamente e por tanto tempo verdades sobre o First-Time, e
como "um tributo à dignidade (dos Saramakas) em face da opressão, e à sua contínua
recusa em deixar que fossem definidos como objetos" (1983:24).
Cada detalhe do livro foi, assim, decidido considerando-se seus possíveis efeitos e
as relações de força em que o conhecimento estava sendo gerado. Uma das decisões mais
importantes referiu-se ao estilo do texto propriamente dito. Price concebeu seu livro como
uma experiência textual. A página é separada em duas partes. Na parte superior
encontram-se as histórias tais como reveladas pelos Saramakas: são fragmentos, frases,
canções, lendas, encantamentos etc., agrupados por temas, obviamente de acordo com a
seleção feita por Price. Na parte de baixo, estão os resultados das pesquisas em arquivos
revelando a visão do colonizador da mesma história, e a interpretação de Price. Cada parte
representa uma versão (ou mais de uma), e Price convida o leitor a fazer a sua própria
interpretação e a ir e voltar na leitura, relendo os fragmentos depois de ler a interpretação.
Temos em First-Time o que se poderia chamar de uma perspectiva local: as relações de
poder são aquelas definidas na relação com os informantes e sua cultura. Não há uma
tentativa de inserir as discussões sobre os Saramakas em um contexto mais amplo. Só de
um modo muito indireto — e que caberia aos leitores deduzir — a análise da memória dos
Saramakas se constituiria em elemento para pensar as sociedades ocidentais. A crítica
cultural não faz parte dos horizontes do texto. O que fica óbvio em tudo isso é o caráter
seletivo e parcial da "ver-
147

dade" histórica ou antropológica, o caráter social da memória e o caráter político das


interpretações do passado. O que se tenta conseguir no texto é transformar o
antropólogo/autor em apenas um entre vários produtores de interpretações, e um que a
produz em determinadas condições de for ça, sobre as quais ele tenta estar consciente e
interferir. Price diluiu a sua própria voz ao representar da maneira que o faz as outras vozes
que contam a mesma história. Diluição, contudo, não indica desaparecimento. Na

45
verdade, se a voz de Price é diluída, o fato é que de uma certa perspectiva ela se ouve
muito mais claramente, reservando para si um espaço específico na página.
No caso de First-Time o estilo do texto e a sua organização são indissociáveis do
objeto estudado e de como Price percebe sua relação com ele. Em boa medida, mas não
completamente, foi o caráter da memória social dos Saramakas que ditou a Price a maneira
de expressá-la. O estilo "pós-moderno" do texto não se impôs, então, aprioristicamente; se
o objeto fosse outro, a forma poderia ser outra.
Em Waiting, Vincent Crapanzano tem um projeto até certo ponto semelhante ao de
Price. Ele quer que seu livro seja um experimento em termos de texto e em termos da
representação do outro: ele quer explicitamente escrever uma etnografia pós-moderna.
No seu caso o estilo vem de fora e, a meu ver, essa imposição cria impasses sérios para a
análise, a ponto de comprometê-la.
No caso de Crapanzano, os outros estudados são um grupo dominante: os brancos
da África do Sul. Waiting é descrito por Crapanzano como enfocando "efeitos da dominação
na vida cotidiana — não na vida cotidiana de pessoas que sofrem a dominação, mas de
pessoas que dominam... É sobre o discurso de pessoas que são privilegiadas por aquele
poder e, paradoxalmente, no seu privilégio vítimas dele" (1985:XIII). No caso dos brancos
sul-africanos, o apartheid domina todas as dimensões de suas vidas, e eles são tão
aterrorizados por ele quanto as pessoas de cor. Não se trata apenas de um sistema de
dominação social e político: o apartheid tem dimensões lingüísticas, morais, psicológicas.
Ser branco na África do Sul significa não reconhecer a existência de nenhum outro grupo.
Os dois grupos brancos — africânderes e ingleses — constituem sua identidade um em
relação ao outro e ignoram completamente os outros grupos. Tomar os negros, asiáticos e
coloureds como "outros significantes" a partir dos quais os brancos pudessem construir o
discurso de sua identidade, seria conceder-lhes uma existência que os brancos insistem em
lhes negar. As conseqüências desse total não- reconhecimento dos outros são, para
Crapanzano, o mutilamento moral dos brancos e a visão estática que eles têm da realidade.
Os brancos são, assim, "aprisionados no tempo particular e paralisado da espera (waiting)"
(1985:42).
Esperar por alguma coisa, qualquer coisa acontecer era uma preocupação constante
nas histórias que eu estava ouvindo. ...Eu acho que a experiência de esperar fornece
uma unidade temática para o que
148

ouvi, observei e li. ... Freqüentemente tive a impressão de que, recuperando o


passado, o africânder e em menor medida o inglês da África do Sul tinham a
esperança de, meio como que por mágica, afirmar um presente e proclamar um
futuro que foi como que perdido no esperar. (1985:43-44)
Referindo-se a toda crítica pós-moderna que ele mesmo vem ajudando a formular
nos Estados Unidos, Crapanzano não concebe os brancos sul-africanos como objetos a
serem observados e analisados pelo antropólogo: eles são sujeitos que devem falar por si

46
mesmos. Nesse sentido, o objetivo de Crapanzano é semelhante ao de Price: transformar
seus informantes em uma espécie de co-autores, através da reprodução de suas vozes.
O livro constitui-se basicamente da citação de testemunhos entremeados de
pequenos comentários contextualizadores. O objetivo é claro: "eu tentei" — diz
Crapanzano — "re-criar alguma coisa da cacofonia da minha-sul-africana experiência. Na
estrutura, Waiting me pareceu com um romance — romances, como observou o crítico
literário russo Mikhail Bakhtine, são essencialmente plurivocais" (1985:XIII). Através da
plurivocalidade, ele quer reproduzir a "qualidade barroca da vida cotidiana" (1985:XIV),
segundo ele geralmente perdida nas análises sociológicas. Seguramente Crapanzano
conseguiu em seu texto recriar uma cacofonia pela justaposição de depoimentos de
informantes. Mas nessa plurivocalidade há algo insuficiente: a voz do autor quase que não
é ouvida. Ao contrário de Price, que representou várias vozes mas guardou no texto o
espaço para a sua própria voz e interpretação, Crapanzano preferiu quase não falar.
Como notou Strathern (1987b) em uma resenha do livro, se os outros personagens
são claramente individualizados (não são típicos, não representam posições gerais), em
Waiting o autor não se objetiva: ele não determina o lugar a partir do qual fala, a
perspectiva de sua fala — ou de seu silêncio; ele aparece como um interlocutor nos diálogos
reproduzidos, ou como alguém que emite julgamentos sobre diferentes aspectos, mas não
como antropólogo, como intelectual, como escritor, analista ou crítico
— no máximo, aparece como um americano que se sentiu incômodo na África do Sul. Ele
não especifica que tipo de fala e de interpreta ção pode ter e que lhe sejam específicas. Ele
simplesmente se omite, desaparece, se recusa a interpretar, a fornecer de forma direta
qualquer análise. No entanto, esse desaparecimento é obviamente relativo: ele está lá
selecionando citações, reproduzindo diálogos; introduzindo capítulos, observando,
apresentando material, escrevendo. Sendo mais clara: o que está ausente é a objetivação
do autor e de seu papel — como mostra Strathern — , é a contextualização da sua
intervenção sobre a realidade estudada e sobre aquela a que o livro se dirige. Não existe
plurivocalidade só dos outros; o papel do autor tem que ser claro nessa plurivocalidade. Ao
se negar a contextualizar sua própria voz e a falar de uma perspectiva própria no
149

texto, Crapanzano, ironicamente, acabou definindo para si uma posição semelhante à que
ele descreve para os ingleses brancos na África do Sul.
A "vaga comunhão", maneira pela qual um sul-africano descreveu a identidade dos
ingleses, não se compara com o nacionalismo monolítico dos africânderes. O inglês
não tem uma tradição, uma visão do mundo segura e uma ideologia articulada. Eles
não têm nem mesmo uma linguagem com raízes sul-africanas... Eles não têm
interpretação da história. A eles só resta o comentário. (1985:35)
Após a leitura de Waiting a questão que me instigou foi a seguinte: por que
Crapanzano, tão consciente sobre a necessidade de desautorizar a voz única do autor,
acabou sendo incapaz de encontrar o lugar dessa voz? Talvez uma das razões para isso
esteja na sua relação com o objeto: os brancos da África do Sul não eram um grupo com o

47
qual pudesse se identificar ou pelo qual pudesse ter simpatia — pelo contrário, política e
eticamente Crapanzano se opunha a eles. A sua experiência de campo foi difícil.
Eu experimentei uma claustrofobia moral durante toda minha estada na África do
Sul. Tentei colocar entre parênteses meu ultraje, minha pretensão cínica e a minha
tristeza para ser o mais "objetivo" possível. ...Aprendi que é possível ter alguma
simpatia mesmo por pessoas cujos valores achamos repreensíveis. Estive, e ainda
estou, confuso com isso. (1985:24-25)
Talvez a confusão de Crapanzano venha da estranha maneira pósmoderna pela qual
ele resolveu ser "objetivo" (neutro?). Ele preferiu que os brancos sul-africanos falassem
apenas por si mesmos; não quis falar nem por eles, nem sobre eles. Ele interpretou a idéia
de que os outros não devem ser transformados em objeto e devem se fazer ouvir no texto
etnográfico de uma maneira literal, e não soube ir além disso. Ele teve que dar ao discurso
dos brancos sul-africanos o centro da cena, e não foi capaz de deslocá-los de lá. No campo,
a sua relação com eles foi marcada por um distanciamento moral e político, mas no texto
ele não foi capaz de estranhá-los, de construir uma distância crítica e política que permitisse
analisar seus discursos e — por que não? —, criticá-los. No texto de Crapanzano a
preocupação de incorporar o outro (entendido sempre como indivíduo) como co-autor
acabou impedindo que ele procurasse mecanismos de distanciamento crítico e de choque
que talvez fossem tentados em um ensaio modernista.
Crapanzano queria produzir uma etnografia pós-moderna, e provavelmente ele foi
bem-sucedido. Afinal, o que mais caracteriza o pósmodernismo senão o pastiche dos
comentários, o jogo de imagens, o achatamento da história, a descontextualização, a
neutralidade, a textualidade
150

(Jameson 1985)? O problema é que reproduzir pós-modernisticamente falas e mais falas


não permite criar uma perspectiva na qual a relação do antropólogo com essas falas seja
clara. Só restou, então, a Crapanzano a "objetividade" traduzida em afastamento. Este
desaparecimento de cena não guarda nenhum parentesco com um distanciamento crítico
a partir do qual se poderia elaborar uma interpretação.
Numa situação como a criada por Crapanzano, resta ainda indagar sobre o que
acontece com o leitor. Price já tinha convidado o leitor a ir e a voltar no texto, e a pensar
sobre as suas responsabilidades ao ler a história dos Saramakas. No livro de Crapanzano o
leitor tem um papel ainda mais crucial na formação da interpretação: na ausência de outras
interpretações especificadas, fica quase exclusivamente a cargo do leitor formular a
interpretação, construir o sentido daquela experiência sul-africana.
A essa altura podemos perguntar: é esse afastamento da cena etnográfica o papel do
autor que uma antropologia crítica deveria procurar? Se a presença do analista é excessiva
na antropologia clássica, no caso de Crapanzano ela parece ser claramente insuficiente. Se
num caso o antropólogo não explicita e questiona seu próprio papel e o estatuto da
interpretação que ele efetivamente faz, no outro temos a total relatividade

48
da voz do autor, mas ausência de análise. É nesta recusa que queremos transformar a
antropologia? A mim parece claramente que não. Da maneira que eu a vejo, a crítica pós-
moderna à antropologia terá sentido se, ao questionar a autoridade monológica do
antropólogo, ao quebrar a sua condição de única voz ou voz totalmente dominante, criar
condições para que sua presença se transforme em uma outra coisa, mas sem desaparecer.
E essa outra coisa é, a meu ver, uma presença crítica, que não se furte a considerar a sua
relatividade, a sua existência entre outras, mas que também não se furte a entrar rio jogo
de forças em que a pesquisa antropológica se faz para fornecer uma interpretação que se
define em termos críticos e políticos. Essa parece ser também a opinião de Michael Taussig.
Afirmei anteriormente que Taussig nega a possibilidade de dizer o que os outros são.
Essa sua perspectiva fica clara em um texto que escreveu como resposta a críticas ao seu
primeiro livro, The Devil and Commodity Fetishism in South America (1980). Ele fala sobre
o caráter da análise aí desenvolvida:
A ênfase, se não todo o objetivo dessa interpretação, está no que essas histórias têm
a dizer para nós, em oposição ao que nós temos a dizer para elas. ...Explicação e
interpretação — do significado da história do pacto com o diabo, por exemplo —
tornam-se, então, crucialmente e da maneira mais radical algo distinto do que está
envolvido nos esforços de estrangeiros, como os antropólogos, em localizar a história
em uma suposta rede de funções estritamente locais. A história por necessidade é
também para nós — e é a tarefa do antropólogo, nessa era de persistente
imperialismo, lê-la enquanto tal.
151

Não pode existir outra maneira, porque o antropólogo nunca é confrontado


diretamente pelo Outro, mas pelo contato do eu com o Outro. Isso significa que o
texto antropológico é na sua essência um texto mediando diferença — as sombras na
página em branco formadas pelo Outro a partir do modo como é iluminado pela luz
ocidental (profissional de classe média). (1987b:12-13)
Esse posicionamento marca uma concepção totalmente diferente não só do papel do autor,
mas da antropologia. Ela deixa de ser a representa ção do outro e sua preocupação não é
mais com o aprimoramento desta representação. Para Taussig a questão do diálogo do
trabalho de campo e da sua representação não se coloca. O diálogo que interessa é aquele
elaborado internamente pelo antropólogo e que marca o seu processo de conhecimento e
de crítica. Em Taussig o autor não vai para segundo plano, não dispersa a sua autoria, não
a compartilha com outros: o autor vai para o centro da cena e domina a produção de
enunciados. Mas não nos enganemos: não há nada aqui semelhante ao autor que ocupa o
centro da cena para revelar o que os outros são. É apenas sobre o reflexo dos outros no
antropólogo e em seu processo de crítica à sua própria sociedade que Taussig fala.
Interessado em fazer uma crítica cultural, e uma crítica da sua sociedade, Taussig impõe
ao autor a responsabilidade de assumir uma posição política explícita, que deve deixar claro
como o tema que está tratando fala à sua própria

49
sociedade. A crítica de Taussig, contudo, à diferença por exemplo da crítica marxista, apesar
de também querer chegar a novos significados, só quer sugerir e provocar. Ele não tem
uma resposta definitiva, uma explicação sistemática sobre os significados da experiência
do outro, mas só quer provocar reações. Sua interpretação e seu texto são, assim,
construídos de maneiras radicalmente diferentes. O livro Shamanism, Colonialism and the
Wild Man foi concebido para ser um experimento formal e um contradiscurso em dois
níveis: um contradiscurso à antropologia e à maneira acadêmica ocidental de pensar e
escrever; e um contradiscurso à violência e ao terror. Nesse sentido, o contradiscurso não
é apenas o objeto de análise, mas é a análise mesma, ou o resultado almejado da análise.
Assim, é extremamente interessante contrapô-lo a Waiting. Como Crapanzano, Taussig
analisa um tema do qual ética e politicamente se distancia — a violência e o terror. Só que
sua análise e seu texto são construídos para produzir um distanciamento crítico em relação
a ele. No seu caso, não existe "objetividade" possível, se por ela for entendida uma atitude
de pretensa neutralidade em relação aos discursos em que o tema se circunscreve. O livro
de Taussig é construído como um ensaio modernista — e não pós- modernista19 — que
deve provocar distanciamento e estranhamento em relação ao seu objeto — o terror — e,
através disso, criar uma visão crítica de procedimentos "naturais" em sociedades
ocidentais. As
152

idéias de Taussig sobre a produção de distanciamento e de choque são tiradas das teorias
de Walter Benjamin e Bertold Brecht. A técnica textual básica usada no livro é a montagem.
Não existe um objeto único a ser representado. O que existe são vários discursos diferentes
justapostos lado a lado, um aludindo ao outro e ao terror, mas as possíveis associações e
ligações entre eles não são expressas; no máximo, são sugeridas. Nesse sentido, trata-se
de um texto aberto. Marcus resumiu algumas características do ensaio modernista que
servem para descrever o texto de Taussig.
Em vez de tentar representar o sistema de eventos principais através do cômputo
ordenado desses eventos, para o que o realismo é parcial, o ensaio moderno permite,
ou melhor sanciona, o supremo subterfúgio (hedge) — ele legitima a fragmentação,
limites toscos, e o objetivo consciente de atingir um efeito que perturbe o leitor. ...A
etnografia enquanto ensaio modernista rompe profundamente o compromisso com o
holismo que está na base da maioria das etnografias realistas e que vem se tornando
crescentemente problemático. ...Ela não promete que os seus objetos fazem parte de
uma ordem maior. Ao contrário, pela abertura de sua forma, ela evoca um mundo
mais amplo de ordem incerta — essa é a postura que o ensaio modernista cultiva ao
extremo. (Marcus 1986:191-2)
Em seu texto Taussig justapõe relatórios coloniais sobre o terror durante o período
do boom da borracha na Amazônia colombiana, o testemunho de um argentino que foi
submetido a tortura, sessões de xamanismo, imagens populares de santos católicos, suas

19
(14) As classificações de modernista e pósmodernista no caso de Taussig são ambíguas. Seu texto é
modernista, mas a concepção de seu livro pode ser considerada pósmoderna, por representar uma crítica à
etnografia clássica feita em diálogo com a crítica americana contemporânea.

50
próprias visões sob o efeito da droga alucinógena yagé etc., etc. A racionalização para isso,
contudo, não se vincula apenas a preocupações com representação textual em
antropologia. Taussig está interessado em achar por esse meio um efetivo contradiscurso
ao terror na Colômbia e em qualquer outro lugar.
Que espécie de compreensão — que espécie de fala, de escrita ou de construção de
sentido, seja de que modo for — pode lidar com isso e subverter isso? Contrapor ao
eros e à catarse da violência meios igualmente místicos é mais que contra- produtivo.
Mas oferecer as explicações racionais padronizadas sobre a tortura em geral ou sobre
essa ou aquela situação específica é igualmente sem sentido. Porque atrás do
interesse consciente que motiva o terror e a tortura — desde as altas esferas da busca
de lucro das corporações e a necessidade de controlar a força de trabalho, até
equações mais estritamente pessoais de interesse — existem formações culturais —
modos de sentir — intrincadamente construídas, duradouras, inconscientes, cuja rede
social de convenções tácitas e imaginárias repousa num mundo simbólico e não
naquela débil ficção "pré-kantiana" representada pelo racionalismo ou pelo
racionalismo utilitário. Talvez não haja explica-
153

ção, palavras disponíveis, e disso nós temos estado inconfortavelmente conscientes.


A compreensão aqui se move muito rápido ou muito devagar, absorvendo a si
mesma na faticidade dos mais brutos dos fatos, tais como os eletrodos e o corpo
mutilado, ou na incerteza enlouquecedora daquele menos fictício dos fatos, a
experiência de ser torturado. (1987:9)
Em suma, a política da forma envolvida aqui é mais complicada. Não é só uma
questão de quebrar com o realismo e desconstruir modos tradicionais de autoridade. É uma
questão de lidar com aquilo que talvez não tenha explicação, com um conjunto de discursos
e práticas que não podem ser apreendidos — para não falar em compreendidos
— racionalmente. Essas são boas razões para que Taussig não tente explicar e construa seu
texto de uma maneira que não classifica, não estabelece causalidades, não indica razões,
mas apenas sugere possíveis conexões de sentido. Como em Price, o estilo não é ditado
aprioristicamente, mas sim pelo objeto de análise e pela maneira política de concebê-la.
Em todo o livro, Taussig associa os mais variados temas de uma maneira não-
realista. Seu texto é basicamente literário, e sua intenção é a de colocá-lo a serviço de uma
concepção epistemológica resumida em uma frase: "penetrar o véu mantendo sua
qualidade alucinatória". Esta fórmula
evoca e combina um duplo movimento de interpretação numa ação combinada de
redução e revelação — uma hermenêutica de suspeição e revelação num ato de
subversão mítica inspirado pela própria mitologia do imperialismo. ...Mas talvez
essa seja a questão: a subversão mítica do mito, nesse caso o mito do imperialismo
moderno, requer que se deixem intactas as ambigüidades. ...Aqui o mito não é
explicado de modo a que ele possa ser minimizado pela explicação, como nas

51
tentativas desoladas das ciências sociais. Em vez disso, ele é oferecido como alguma
coisa que você tem que tentar por você mesmo, sentindo seu caminho cada vez mais
fundo no coração das trevas até que você sente do que se trata, a loucura da paixão.
Isso é muito diferente de moralizar a partir de posições à margem, ou estabelecer as
contradições envolvidas, como se o tipo de conhecimento com o qual nós estamos
preocupados fosse de algum modo não poder e conhecimento em unidade e
portanto imune a esses procedimentos. O talento político envolvido na subversão
mítica do mito tem que envolver uma imersão profunda no naturalismo mítico do
inconsciente político da época. (198:10-11).
O livro de Taussig é, sob muitos aspectos, uma imagem especular do seu objeto.
Logo no começo ele afirma que se vale da montagem, e acrescenta que esse é um princípio
que ele aprendeu com o modernismo, mas também com o terror e com "o xamanismo
Putumaio e o seu uso sa
154

gaz, embora inconsciente, da mágica da história e seu poder de curar" (1987: XIX).
De fato, a concepção de Taussig da subversão mítica do mito espelha a sua descrição do
que ocorre numa sessão xamanística. Da mesma maneira que Taussig em seu livro, o xamã
orquestra uma montagem, e as pessoas seguem o seu curso até que elas "sentem" algo.
Nada é explicado, apesar das coisas serem, em um certo sentido, "trabalhadas". Mas essa
talvez seja a principal e crucial diferença entre a sessão xamanística e o texto de Taussig. O
xamã Putumaio atua, intervém no corpo, provoca vômitos, faz as pessoas terem fantasias,
alucinações, "pinturas" e as faz colocarem essas imagens em palavras, exteriorizarem-nas.
Através dessa intervenção, através da atuação das pessoas, o xamã, um índio, um espírito
da selva, lida com mau-olhado, age, e cura. O livro de Taussig, no entanto, é uma
intervenção, mas não uma ação. Ele quer provocar reações no leitor, talvez náuseas, mas
só tem palavras impressas para fazer isso. Essa é uma das razões pelas quais o xamã é muito
mais poderoso do que Taussig pode ser para se contrapor ao terror e à violência. Se ele
pode construir um poderoso contratexto à antropologia, a sua efetividade em construir um
contradiscurso ao terror e à violência não é muito clara. Isso porque não pode haver
contraposição ao terror e à violência apenas através de discursos. A sua lógica é imune às
palavras, mesmo àquelas elegante e poderosamente escritas.
Além disso, cabe perguntar se, ao manter intactas as ambiguidades e ao reproduzir
em seus textos (Taussig 1987 e 1988) o mesmo clima fragmentário, de sentido incerto,
angustiante e oscilante do terror e da violência, Taussig não estará, ao invés de construindo
um contradiscurso, apenas se mantendo preso dentro do mesmo círculo, e ajudando a
reproduzi-lo. Não estará fazendo isso se conseguir produzir em nós, seus leitores, o
estranhamento, o distanciamento crítico em relação ao terror e à violência — mas que seja
esse o efeito de seus textos, é pelo menos discutível.
O que me interessa aqui, contudo, não é apenas ver até que ponto Taussig terá sido
bem-sucedido em sua tentativa de construir um contradiscurso, mas é basicamente

52
reter a sua intenção de construir esse contradiscurso. Pois é ela que nos fala sobre o
papel do autor na antropologia contemporânea.

Dispersão ou responsabilidade?

Um antropólogo que se sente insatisfeito com as propostas de muitos pós-


modemos é Clifford Geertz. Ele acaba de publicar um livro (Geertz 1988) analisando a crítica
pós-moderna da perspectiva do papel do autor. De um modo geral, ele não discorda do
diagnóstico, nem da crítica feita à antropologia clássica. Mas discorda da solução, e vê com
impaciência o clima de discussões pós-modernas sobre a possibilidade de escrever so
155
bre outras culturas, caracterizado por ele como um "nervosismo generalizado"
(1988:130).
Geertz ainda acredita que é possível conhecer e interpretar outras culturas, produzir
inscrições. Acredita também que as condições em que isso se faz mudaram, inclusive por
influência da crítica pós-modema. Só que, para ele, essa crítica leva, da perspectiva do
autor, a uma posição oposta àquela assumida por muitos pós-modernos (seguramente não
por Rabinow e por Taussig). Ao contrário de dispersão da autoridade e da autoria, o que
ele sugere é a necessidade de o autor assumir maior responsabilidade por seu texto e pelas
interpretações que produz.
O problema básico não é nem a incerteza moral envolvida em contar histórias sobre
como outros povos vivem, nem a questão epistemológica envolvida, em enquadrar
essas histórias em gêneros acadêmicos — ambas são suficientemente reais, estão
sempre lá, são inerentes à profissão. O problema é que agora que essas questões
estão sendo discutidas abertamente, em vez de serem acobertadas por uma mística
profissional, a carga da autoria (burden of authorship) parece subitamente mais
pesada. Uma vez que os textos etnográficos começaram a ser olhados diretamente,
ao invés de se olhar apenas através deles, uma vez que eles são vistos como sendo
produzidos, e produzidos para persuadir, aqueles que os produzem têm muito mais
sobre o que dar conta. (Geertz 1988:138)
Mas Geertz não leva às últimas conseqüências a discussão do aumento da
responsabilidade do autor. Ele continua ignorando a problematica indicada por Rabinow
(1986), ou seja, o fato de que as interpretações se formulam em um campo intelectual
específico, marcado por relações de poder, e dentro das quais se definem as condições para
a formulação de enunciados de verdade. Além disso, a sua caracterização do que seja a
nova responsabilidade do autor deixa de fora considerações sobre o posicionamento
político do autor e sobre a sua possibilidade de formular crítica cultural. Ele não considera,
por exemplo, como parte do "burden of authorship" o fato de o autor

53
definir como ele quer que a sua voz seja ouvida politicamente — Taussig está fora de sua
bibliografia.
Na descrição do papel que Geertz antevê para a antropologia no mundo moderno
fica claro o abandono dessas questões. Para ele, no futuro a antropologia poderia ser usada
para "permitir conversas através de linhas societais — de etnicidade, classe, gênero,
linguagem, raça — que se tornaram progressivamente nuançadas, mais imediatas e mais
irregulares" (1988:147). A antropologia deveria permitir discursos e conversas entre
pessoas que se diferenciam entre si pelos mais diferentes critérios, mas que compartilham
o mesmo mundo e estão sempre e necessariamente em contato.
156
Claramente Geertz não está mais pensando em sociedades tribais nem
necessariamente em sociedades do Terceiro Mundo — a referência onipresente dos
críticos pós-modernos — mas em sociedades complexas contemporâneas, em qualquer
lugar. Mas será que a sua proposta para a antropologia e seus autores é essencialmente
diferente da da antropologia clássica, que via o antropólogo como mediador, inscritor e
tradutor, só que agora transpondo esses papéis para o mundo moderno? Não me parece
haver muita diferença. E essa visão peca por ingenuidade política. Como é possível
promover conversas entre pessoas que se separam por diferentes linhas societais no
mundo moderno sem pensar no caráter político dessas divisões? Donde vem a neutralidade
possível para mediar as diferenças que são sociais e políticas? Pelo menos desde a II Guerra
a questão da diferença cultural é claramente uma questão política: como é possível mediá-
las a não ser a partir de uma posição específica, que só pode ser uma perspectiva política?
Se Geertz soube reconhecer as responsabilidades do autor contemporâneo de
textos antropológicos, ele, tanto quanto muitos dos críticos pós-modernos, foi incapaz de
enquadrar a antropologia numa perspectiva mais política, como foi incapaz de pensá-la do
ponto de vista da produção de uma crítica cultural, uma perspectiva que parece insistir em
continuar como a promessa nunca realizada da antropologia feita nos países do Primeiro
Mundo.
Do meu ponto de vista, para se repensar, como quer Geertz, o aumento da
responsabilidade do antropólogo/autor no mundo contemporâneo é impossível restringir
as referências ao processo de produção de textos, como tende a fazer a maioria dos pós-
modernos. É necessário incorporar questões como as que Taussig enfrenta, ou seja, não
apenas pensar que tipo de representação é possível criar sobre os outros e quais os nossos
procedimentos ao construir interpretações, mas que tipo de crítica e de política nós
queremos fazer. E essas questões obviamente não se decidem de um modo genérico. Não
consigo imaginar o antropólogo crítico se referindo a um paradigma textual apenas, seja
ele dialógico, monológico, polifônico ou qualquer outro, do mesmo modo que não é
possível pensar em um modelo único de relação com os objetos ou em um único modelo
de crítica. O estilo do texto se define em função do objeto e do tipo de análise que se
pretende — e talvez seja da consciência dessa flexibilidade mais do que de receitas textuais
que nós precisemos. Segundo eu o vejo, faz parte do novo papel do

54
antropólogo/autor a busca do estilo que melhor se adapte aos seus objetivos, a definição
crítica desses objetivos, e a responsabilidade pelas suas escolhas.
157

Teresa Pires do Rio Caldeira é pesquisadora do Cebrap e professora de Antropologia da Unicamp. Já publicou
nesta revista, em co-autoria com Danielle Ardaillon,"Mulher: Indivíduo ou Família" (vol. 2, Nº 4). Novos
Estudos CEBRAP Nº 21, julho de 1988 pp. 133-157-

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56
Texto 3

JOSÉ E JACINTA NEM SEMPRE VIVEM NOS MESMOS LUGARES: REFLEXÕES EM


TORNO DE UMA EXPERIÊNCIA DE ETNOGRAFIA MULTI-SITUADA
Filomena Silvano
Departamento da Antropologia da FCSH/UNL
Centro de Estudos de Migrações e Minorias Étnicas da FCSH/UNL

1. Os lugares da cultura

Num contexto de produção intelectual que pensou a cultura no interior de uma relação

indissociável com o espaço, a viagem impôs-se como uma prática obrigatória para quem

queria observar outras culturas. O etnógrafo foi, por isso, concebido pela antropologia

clássica como um viajante que, para conhecer outras culturas, tinha uma experiência de

residência em lugares geográfica e culturalmente distantes. Assim concebida, a figura do

etnógrafo não teria existido sem uma outra que lhe está intimamente associada. A do nativo

localizado, ou, nas palavras de Appadurai (1988a,1988b), encarcerado. A associação entre

nativo e lugar foi central para a organização da prática e do pensamento antropológico,

mas conduziu a uma discutível representação da figura do nativo.

O que isso significa não é apenas que os nativos são pessoas que são de certos
lugares e que pertencem a esses lugares, mas também que eles são aqueles que
estão de algum modo encarcerados, ou confinados, nos seus lugares. O que
precisamos de examinar é essa atribuição, ou suposição, de encarceramento,
aprisionamento ou confinamento. Porque é que há pessoas que são vistas como
confinadas a, e pelos, seus lugares? (Appadurai 1988b : 37).
Esse encarceramento discursivo determinou uma concepção específica das

dimensões morais e intelectuais dos nativos. Segundo Appadurai, a antropologia pensou-

os como seres confinados pelo que sabem, sentem e acreditam. Dito de outra forma, como

seres aprisionados pelos seus modos de pensar. Ao contrário dos nativos, o antropólogo -

tal como o explorador, o administrador ou o missionário - foi visto como uma personagem

dotada de mobilidade, portanto não confinada a um lugar e não aprisionada por uma

cultura.

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Deste modo a etnografia reflecte o encontro circunstancial entre a deslocação
voluntária do antropólogo e o "outro" involuntariamente localizado (Appadurai 1988a
:16).

É claro que tudo isso teve, e tem, implicações cívicas. Enquanto as elites ocidentais
são concebidas como viajantes, e a palavra viagem sempre foi acompanhada de alguma

aura, as outras pessoas que viajam são concebidos como imigrantes, e, nessa qualidade,

são sempre associados a uma cultura de origem, localizada num lugar diferente do lugar
onde residem.

No interior de um esforço de marcação, necessário à institucionalização de uma


disciplina metodologicamente credível, face às práticas e discursos de outros viajantes
interculturais, o etnógrafo distanciou-se, sem no entanto a abandonar, da figura do viajante,
para se fixar, a partir de Malinowski, na figura do residente. Ou, para sermos mais precisos,
do co-residente : aquele que reside com o nativo no lugar do nativo.

Depois de Malinowski, o trabalho de campo entre nativos tendeu a ser construído


mais como uma prática de co-residência do que de viagem, ou mesmo de visita
(Clifford 1997 : 21).

A observação participante surgiu, neste contexto de produção conceptual do objecto


da antropologia, como uma técnica apropriada: o antropólogo residia num lugar específico,
onde conhecia uma cultura específica, e fazia-o através do relacionamento directo com as
pessoas que habitavam esse lugar e que, por isso, representavam essa, e só essa, cultura.

É nesse sentido que se pode falar do lugar como sendo uma construção conceptual

intimamente associada a uma prática de investigação. Como demonstrou Augé (1992), o

trabalho de terreno tradicional pressupôs a existência, ao mesmo tempo que lhe deu forma,

do lugar antropológico, uma figura que, segundo o mesmo autor, tem origem na concepção

de Mauss da cultura como algo localizado no tempo e no espaço. Só essa associação -

que Augé faz questão de relativizar, afirmando que, até certo ponto, corresponde à ilusão

do etnólogo e ao semi-fantasma do indígena - permitiu que o lugar antropológico fosse

concebido como identitário, relacional e histórico. Fazer equivaler uma cultura a um lugar

correspondeu a fazer a economia de todos os mecanismos de produção de cultura

associados à deslocação das pessoas, tal como conceber pessoas como nativos equivaleu

a ignorar o facto de elas se

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movimentarem. Daí resultaram textos que mostram as culturas mais como realidades
monolíticas e abstractas do que como realidades diversas e indissociáveis das
representações, das emoções e das práticas das pessoas concretas que as produzem

e transformam.

A desmontagem das condições de produção do discurso antropológico coloca


em causa, de forma evidente, a clássica relação entre cultura e lugar, mas essa crítica
não chega para justificar a crise actual da noção de lugar. Há ainda que acrescentar-
lhe o facto de a realidade social se ter transformado num sentido que também
favoreceu a sua problematização.

Claro que o capital intelectual do tão falado pós-modernismo forneceu ideias e


conceitos para a emergência de uma etnografia multi-situada, mas mais
importante do que isso, é o facto de esta ter surgido como resposta às
transformações empíricas que se deram no mundo e, consequentemente, às
localizações transformadas da produção cultural. Seguir empiricamente o
caminho do próprio processo cultural impele o movimento para uma etnografia
multi-situada (Marcus 1995a : 97).

De facto, nas últimas décadas, a globalização da economia e da cultura esteve


associada a um aumento significativo da mobilidade, não só da informação mas
também das pessoas, e o laço que une a cultura ao espaço já não é do mesmo tipo

(Featherstone 1990; Hannerz 1996). Daí que os antropólogos tenham sentido a


necessidade de rever as suas técnicas de investigação de forma a adaptá-las às novas
configurações espaciais da cultura. É nesse contexto que surgem propostas de
realização de etnografias multi-situadas (Appadurai 1997; Cardeira da Silva (org.)
1997; Clifford 1997; Gupta e Ferguson 1992, 1997a, 1997b; Marcus 1995a, 1995b,
1997 ), ou seja, de etnografias que dêem conta do facto de a cultura ser hoje produzida
no interior de espaços multilocais.

Como James Clifford (1997) comenta, a situação actual está ainda sobretudo
atravessada por interrogações -

O que é que permanece das práticas antropológicas clássicas nestas novas


situações? Como é que, na antropologia contemporânea, as noções de
viagem, de fronteira, de co-residência, de interacção, de interior e de exterior,
que têm definido o campo e o próprio trabalho de campo, têm sido desafiadas
e retrabalhadas? (Supra : 58).

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- mas não deixam de surgir algumas propostas bem sucedidas de etnografias de um novo

tipo. No essencial, as alterações parece focalizarem-se na forma de conceber a prática dos

dois personagens centrais do trabalho etnográfico. Do etnógrafo, que passa a não poder

centrar a sua observação num só lugar, e do "informante", que passa a não poder ser

observado enquanto pessoa artificialmente confinada a um lugar. A figura do antropólogo

viajante - mas que agora viaja para acompanhar os “informantes” viajantes - reaparece assim

como uma possibilidade metodológica. Como propõe Marcus (1995a), “seguir as pessoas”

é talvez a forma mais óbvia de materializar uma etnografia multi-situada, tanto mais que se

filia na tradição etnográfica inaugurada por Malinowski quando, em “Os Argonautas do

Pacífico Ocidental”, segue os movimentos dos objectos e, consequentemente, das pessoas,

nos percursos do Kula. A técnica da observação participante pode, nessas circunstâncias,

manter-se, na medida em que o etnógrafo continua a manter relações duradouras com os


“informantes”, mas a concepção do espaço tem de alterar-se, visto que os informantes são

observados numa situação de mobilidade espacial. A oposição simples entre o “aqui” da


cultura em estudo e o “além” dos outros, deixa definitivamente de fazer sentido.

A primeira dificuldade de uma etnologia do "aqui" é o facto de ela ter sempre que se
confrontar com o "além", sem que o estatuto desse "além" possa ser constituído em
objecto singular e distinto (exótico) (Augé 1992 : 137).

Neste contexto, é necessário encontrar respostas adaptadas às transformações do

espaço, e é preciso fazê-lo não só ao nível da observação etnográfica como também da


abordagem conceptual. O facto de a viagem surgir como um atributo de todas as pessoas
envolvidas faz com que a relação com o espaço passe a depender de múltiplos pontos de
vista, resultantes de diferentes formas de aproximação e afastamento dos lugares.

É evidente que hoje todos os lugares se encontram em relação directa ou


mediatizada com o exterior, e que, por isso, a produção de cultura implica sempre a relação
com outros lugares. Para dar conta dessa realidade, a concepção do espaço tem de se
socorrer de noções que integrem múltiplos lugares - como é o caso da noção de rede ou da
noção de sistema de lugares (Rodman 1992) -, mas a questão do lugar não deixa no entanto
de se colocar. Pelo contrário, a sociedade contemporânea parece ter desenvolvido e
sofisticado os mecanismos da sua produção.

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A organização do espaço e a constituição de lugares são, no interior de um
mesmo grupo social, um dos enjeux e uma das modalidades das práticas
colectivas e individuais. As colectividades (ou aqueles que as dirigem), tal como
os indivíduos que a elas se ligam, têm necessidade de pensar simultaneamente
a identidade e a relação, e, para o fazer, de simbolizar os componentes da
identidade partilhada (pelo conjunto do grupo), da identidade particular (de tal
grupo ou de tal indivíduo em relação aos outros) e da identidade singular (do
indivíduo ou do grupo de indivíduos enquanto não semelhantes a nenhum
outro). O tratamento do espaço é um dos meios desse empreendimento (...)
(Augé 1992 : 67).

A figura cultural do "nativo", no sentido de alguém que é representado no interior


de uma relação com um lugar específico (a “terra natal”), também está longe de ter
desaparecido. Tal como a figura do "lugar", ela apresenta-se hoje como uma das
construções culturais capazes de mobilizar mais energias, sendo que esse facto se pode
verificar tanto em casos de populações fixadas num espaço como de populações em
1
diáspora (Brah 1988). Penso por isso que, tal como propõe James Clifford , não se trata

de substituir a figura do "nativo" pela do "viajante" intercultural, mas de estudar as múltiplas


articulações que se estabelecem entre elas, bem como os contextos precisos em que
essas articulações se desenvolvem. É necessário continuar a estudar o lugar, mas agora
sem fazer a economia das suas interacções com as outras escalas de pertinência espacial
(Neves 1988, 1994; Pellegrino 1983a, 1983b, 1986a, 1986b; Silvano 1987, 1988, 1990a,
1990b, 1993, 1994a, 1994b, 1994c, 1995, 1997a, 1997b, 1998).
Constatar essas mudanças equivale, no essencial, a propor uma alteração na
escala da abordagem antropológica, que da escala exclusivamente local - associada
justamente à noção de lugar antropológico - tem de se alargar, enfrentando as
dificuldades de operacionalização que daí decorrem, a outras escalas - regional,
nacional, global - que manifestam pertinências culturais específicas.

Podemos também ser levados a interrogar-nos se a localidade não funciona,


na prática, como um logro científico introduzido pelo facto de a noção de
escala, sobre a qual insistem as leituras "arquitecturais" do espaço social, não
ser tomada em linha de conta na construção do objecto (Bromberger,
Centlivres e Collomb 1989 : 144).

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Essa alteração de escala passa, necessariamente, pela constante introdução
no trabalho etnográfico dos efeitos da mobilidade; tanto do ponto de vista das práticas
e das representações do observador como do ponto de vista das práticas e das
representações das pessoas observadas.

2. Um projecto de etnografia multi-situada

Na Primavera de 1997 parti para Paris para acompanhar o João Pedro


Rodrigues, cineasta, e o João Rui Guerra da Mata, assistente de realização, nas
filmagens de um documentário - Esta é a minha casa - sobre a família de José do
Fundo e de Jacinta da Graça Félix, um casal de emigrantes portugueses radicados em
França. Na base do nosso projecto estiveram questões relacionadas com a
deslocalização da cultura e com as formas de a dar a ver.

Que fazer, se a descrição etnográfica já não pode permanecer circunscrita ao


local ou à comunidade situada, o lugar onde o processo cultural se manifesta e
pode ser captado pelo presente etnográfico? Como apresentar uma descrição
de um processo cultural que ocorre em espaço transcultural, em mundos
paralelos, separados mas simultâneos? (Marcus 1995b : 38).

Queríamos mostrar como é que os membros de uma família, de origem


portuguesa mas em viagem constante entre duas aldeias de Trás-os-Montes e a

cidade de Paris, constróem os seus próprios universos culturais e, consequentemente,

as suas identidades. Nesse ano acompanhámos e filmámos o quotidiano da família

nos percursos entre as suas duas casas de Paris e as casas dos pais de ambos, em

Trás-os-Montes. Entretanto foi-se desenhando, face ao desejo da família visitar a Expo

98, um segundo projecto de filme, a rodar em Lisboa durante o Verão de 98. Na altura,

fazer mais um filme correspondia, para mim, a criar condições de trabalho para

desenvolver algumas das questões que tinha colocado durante as primeiras filmagens.

Estas tinham-me permitido acompanhar os percursos habituais da família e observar


como é que o cinema podia dar a ver os mecanismos de construção das identidades

e de produção da cultura associados e esse movimento. Para continuar a trabalhar a

questão do lugar da viagem na pesquisa etnográfica interessava-me, num segundo


momento, poder

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deslocar a família para o meu próprio terreno, alterando assim o sentido do movimento:
deslocar os "informantes" e localizar o etnógrafo. Interessava-me também observar os
efeitos, em pessoas com identidades fortemente marcadas pela diáspora, de uma
visita à capital do País - tinham-nos perguntado como era Lisboa, se era uma cidade
tão grande como Paris - no momento em que aí se realizava uma exposição com
visibilidade internacional, assim como observar os mecanismos de construção de uma
nova componente das identidades pessoais, a identidade de turista. A vinda da família
à Expo conjugava dois tipos diversos de viagem: a do emigrante que retorna à pátria
e, visto que não conheciam Lisboa, a do turista que visita uma cidade desconhecida.
A ideia de fazer um novo documentário - Viagem à Expo - acabou por agradar
a todos e começámos, cineastas, "actores" e antropóloga, a prepará-lo a partir do
Outono de 1998. Entretanto foi terminada a montagem do primeiro filme, que a família
teve oportunidade de ver, em casa primeiro e, depois, na televisão, durante as férias
do Verão de 98, já com a rodagem do segundo acabada. Na Primavera de 99,

terminou-se a montagem do segundo, que a família também viu antes de ser mostrado
pela primeira vez na televisão, no dia em que se comemorou a passagem de um ano
sobre a abertura da Expo.

O trabalho de acompanhamento da realização dos dois filmes referidos

resultou na construção de um interessante conjunto de dados, que, para ser

sistemática, arrumo em quatro grupos : 1. observações recolhidas através da técnica


tradicional da escrita de um diário de campo; 2. imagens vídeo de situações que

presenciei; 3. dois filmes feitos a partir da selecção e montagem de algumas das

imagens registadas; 4. reacções da família aos filmes realizados. As notas do diário


de campo, que incluem os momentos de visionamento dos filmes em conjunto com a

família, cruzam descrições com apontamentos interpretativos e integram já referências

teóricas e conceptuais. Por contraponto, as imagens filmadas reproduzem, através de


um enquadramento muito preciso, que é o do olhar do João Pedro, as situações

vividas. O texto que aqui apresento resulta da minha relação com esses dois tipos de

materiais etnográficos, que concebo como materializações da minha memória do

terreno. De forma a poder conceber um texto que se adaptasse ao espaço de uma

revista, fixei-me essencialmente em alguns momentos das filmagens

relativas ao primeiro documentário.


7

63
3. “Residindo-viajando” e “Viajando-residindo”

José e Jacinta passam a semana em Paris num pequeno apartamento de porteira.


Até há pouco tempo, os dois filhos dormiam no apartamento, mas agora Johnny, que já é
quase um adolescente, passou a dormir num quarto cedido pelo condomínio do prédio e só
Léa ficou a dormir em casa. Jacinta passa a maior parte do seu tempo no prédio onde vive,
visto que é aí que exerce a sua profissão de porteira. José parte de manhã cedo para a
oficina de sapateiro de que é proprietário e que fica a cinco minutos de casa. Vem a casa
almoçar e depois volta para lá até ao fim da tarde. As crianças, quando não estão na escola,
vêm para casa onde encontram quase sempre a mãe. Ao fim de semana vão para a moradia
que têm na periferia de Paris, perto da casa dos pais de José. Aí têm espaço para tudo :
quarto para as crianças, sala de jantar para receber convidados, jardim para cultivar flores e
legumes, sítio para fazer grelhados e garagem para o carro. Ao domingo de manhã vêm de
carro até Paris, vão à missa à igreja da paróquia de St. Josephe, que fica perto do
apartamento, e retornam à moradia. À noite voltam de metro para Paris e deixam o carro na
garagem da casa da campanha. Quando chegam as férias de Verão, Léa e Johnny partem
para Portugal numa carrinha com outros portugueses e passam um mês em casa dos avós
maternos. Os pais chegam mais tarde e durante a estada deles a família vai andando entre
Argoselo e Espadanedo, as aldeias dos avós.

No essencial, as práticas espaciais da família Fundo correspondem à descrição que


ficou feita. Conjugam situações muito diversas, facto que torna a família culturalmente
interessante. As três gerações vivem entre Paris e Trás-os-Montes, mas fazem-no de uma
forma diferente. Os pais de José foram emigrantes de primeira geração e construíram em
Trás-os-Montes a primeira "casa de emigrante" da aldeia de onde são originários - Argoselo.
Hoje estão reformados e vivem nos arredores de Paris, numa moradia unifamiliar, mas no
Verão vão todos os anos à aldeia de onde são originários. José e a mulher vivem em Paris,
numa zona relativamente central, Av. de la République, num apartamento de porteira e são
proprietários de uma moradia unifamiliar na periferia. Os pais de Jacinta vivem em Trás-os-
Montes - Espadanedo - numa casa que pertence à família há várias gerações e que, apesar
de modernizada, mantém a estrutura tradicional. O pai emigrou algum tempo, mas a mãe
não saiu da aldeia. As terras que possuem deram- lhes um rendimento suficiente para
sustentar a casa, mas os filhos já optaram, uns de forma definitiva, outros provisoriamente,
pela emigração. Num quadro destes, em que as práticas espaciais da família se
desenvolvem entre dois países ou, para sermos mais precisos, entre uma cidade e duas
aldeias, situadas em países

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diferentes, é impossível pensar a relação entre cultura e espaço de um ponto de vista
estável. A família apresenta condições para tentar responder à proposta de trabalho
formulada por James Clifford (1997):

(...) aquilo que está em causa é uma abordagem comparativa por parte dos
estudos culturais de histórias, tácticas e práticas quotidianas específicas de
residir e viajar: viajando-residindo, residindo-viajando (Supra : 36).

Foi o que tentei fazer durante o primeiro ano de filmagens, em que acompanhei
o quotidiano e os percursos da família. Queria perceber como é que os seus membros
construíam as suas identidades pessoais e como é que cada um representava a sua
condição de pessoa em constante movimento entre a ruralidade de um país
semiperiférico (Sousa Santos 1993) e a urbanidade de um país central. Nesse sentido,
procurei sempre interpretar os dados etnográficos colocando-os no interior da
conjuntura específica que é a vida de uma família de emigrantes e, no seguimento das
propostas sintetizadas por Hall (1992, 1996), conceber as identidades dos seus
membros no interior das dinâmicas processuais que vão orientando o movimento das
suas vidas.

Ainda que pareça invocarem uma origem a partir de um passado histórico com
o qual continuam em correspondência, as identidades, de facto, referem-se a
questões de como usar os recursos da história, da linguagem e da cultura no
processo de nos tornarmos em vez de sermos: não é tanto o «quem somos nós»
ou «de onde viemos», como aquilo em que nos podemos tornar, como é que
temos sido representados e como é que isso tem algo a ver com o como é que
nos poderemos representar a nós próprios (Hall 1996 : 4).

Foi fácil percepcionar, desde o início, que a emigração colocou os vários

elementos da família em situações diversas e que a construção das identidades

pessoais se joga no interior de negociações internas que implicam a manipulação de

discursos, imagens, valores e capitais diferentes. A viagem cultural a que todos foram

sujeitos não foi vivida da mesma forma, tornando-se claro, talvez porque a observação

se centrou na família nuclear, que as opções são particularmente marcadas pela

clivagem de género. Tentarei aqui traduzir algumas das componentes dos discursos e

das emoções, assim como descrever algumas das práticas

65
quotidianas, de José e Jacinta, porque me parece serem ilustrativas, enquanto
manifestações individuais e subjectivas, das negociações mais gerais que se desenvolvem
no interior de um campo social preciso, que é o da emigração de portugueses de origem
rural para países centrais europeus.

Precisamente porque as identidades são construídas dentro, e não fora, do discurso,


precisamos de as entender como sendo produzidas em lugares históricos e
institucionais específicos, no seio de formações discursivas e práticas específicas,
através de estratégias enunciativas específicas. Mais ainda, estas emergem no
interior do jogo de modalidades específicas de poder e, assim sendo, são mais o
produto da marcação da diferença e da exclusão do que o sinal de uma unidade
idêntica e naturalmente constituída – uma «identidade» no seu sentido tradicional (ou
seja, uma constante que a todos inclui, lisa, sem diferenciação interna) (Supra : 4).

2
4. Actores de um filme sobre emigrantes

Uma observação atenta dos discursos e das práticas de José permite desenhar os
contornos daquilo que parece ser, para ele, a imagem ideal do “emigrante português”. Essa
imagem revela-se com um forte poder identificador e como um elemento central do
processo de construção das suas identidades pessoal e familiar. De início, quando o
contactámos para fazer o primeiro filme, justificou a sua aceitação dizendo que achava
importante que as próximas gerações soubessem o que foi a vida dos pais; a vida dos
emigrantes. Sem que isso lhe fosse pedido - a nossa vontade ia justamente no sentido
contrário, visto que queríamos mostrar as singularidades das pessoas, distanciando-nos
assim de uma abordagem de carácter mais estrutural, onde os sujeitos surgissem apenas
3
como representantes de categorias sociológicas - José chamou a si a função de
representar o papel do emigrante português. Colocou-se assim, desde o início, a
problemática do diálogo entre categorias “emic” e “etic”, que um trabalho etnográfico
sempre comporta. Ao fazermos uma proposta de documentário que continha a palavra
“emigrante”, empurrámos a família para o interior de uma categoria problemática, porque
construída no interior de negociações culturais difíceis. A resposta de José é reveladora da
sua vontade de intervir, activamente, nesse contexto negocial : aceitou que a família fosse
filmada porque achou que isso corresponderia a uma fixação de uma

10

66
imagem e de um discurso que integram os valores que ele próprio quer atribuir à referida
categoria. Se a sua vida e a da sua família são adequadas para encarnar a memória da
comunidade emigrante portuguesa (mostrar às próximas gerações o que foi a vida dos pais),
isso significa que, segundo ele, ambas são pautadas pelos valores que devem representar,
4
publicamente, essa comunidade. Foi a crença numa concepção realista do documentário
que o levou a conceber o filme como uma possibilidade de fixar publicamente aquilo que
pensa ser a concepção “emic” da categoria “emigrante português”. Ao longo das filmagens,
foi-se tornando claro que, a partir do momento em que foi testemunhada por uma câmara, a
opção, feita anteriormente, de se identificar, de forma a encontrar nela uma narrativa que dá
sentido à sua própria vida, com a figura do “emigrante português”, se reforçou. Essa opção
identitária conduziu-o a uma atitude performativa (Turner 1982) que se traduziu numa
postura de grande confiança face às câmaras : José esteve sempre a representar o papel
do personagem que escolheu como referente para a construção da sua identidade pessoal.
A rigidez da sua atitude, que quase lhe permitiu elidir as contradições e os conflitos inerentes
aos processos de construção das identidades, tornou-se tanto mais evidente quanto
contrastava com a da mulher, muito mais flexível e, por isso, mais hesitante.
A diversidade das posturas face à câmara, e a importância etnográfica dessa
observação, coloca algumas questões relacionadas com o facto de um filme documental se
rodar no interior de processos de comunicação intersubjectiva (Crawford 1995). O facto de
a vida quotidiana de uma pessoa ser registada por uma câmara manipulada por uma outra
pessoa coloca a primeira, inevitavelmente, numa situação de auto-reflexão. Primeiro porque,
como acabámos de ver, a aceitação de fazer um filme passa por uma reflexão prévia que
implica a definição das suas próprias motivações. Segundo, porque a presença da câmara
significa a presença de pessoas com valores culturais diferentes e consequentemente
implica a interacção com esses mesmos valores 5. Terceiro, porque o facto de a câmara
registar o quotidiano das pessoas as coloca numa posição de exterioridade face a si próprias,
na medida em que as leva a ter consciência de que se estão a transformar numa imagem
que vai ser vista e interpretada por outros 6.
Face ao processo descrito, José manteve uma voz "pública", no sentido de ser uma

voz dirigida ao exterior, marcada pela firmeza de quem se identifica com o papel que está a

representar. Jacinta, pelo seu lado, nunca revelou as razões que a levaram a participar no

filme. A rodagem tornou no entanto evidente que as suas motivações não eram as mesmas

de José. Para Jacinta não se tratou de se representar (e de se apresentar) enquanto membro

de

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uma família de emigrantes - a palavra emigrante raramente surge no seu discurso e, quando
aparece, não é para ser utilizada como uma forma de classificação aplicável a si própria -
mas antes enquanto pessoa que vive de forma única o seu percurso de vida7. A sua postura
esteve sempre mais próxima de alguém cuja identidade está marcada pela construção do
self (Giddens1994) e que, por esse motivo, se sente desconfortável quando a colocam no
interior de uma categoria identificadora de um grupo. Mas, e apesar da diferença de postura
face à câmara que os dois membros do casal revelaram, Jacinta “manipulou”, tal como o
marido, a nossa presença desde as primeiras filmagens. Envolta num universo social que
reserva muito pouco espaço para o seu discurso, utilizou a presença da câmara sobretudo
para se fazer ouvir, consciente de que esta era um importante instrumento de fixação das
suas palavras 8. Os membros da equipa de filmagens transformaram-se assim, num contexto
de negociação de uma identidade pessoal que procura fazer a difícil articulação entre os
valores do mundo rural português e os da classe média urbana francesa, em interlocutores
privilegiados. A câmara registou uma voz envolta num universo privado - muito mais
hesitante do que a de José e, por isso, destituída do poder de construção e fixação da
"verdade" que a voz deste pretende ter - e reveladora de um personagem marcado pela
curiosidade pelo desconhecido, pela abertura à diversidade cultural e pela disponibilidade
para colocar a experiência das filmagens no interior de um processo reflexivo de constante
recriação da identidade pessoal.
As filmagens deram-me acesso às vozes subjectivas dos “informantes” e,
consequentemente, aos seus pontos de vista, mas, mais do que isso, permitiram-me, tal
como preconiza MacDougall (1995), ver a cultura como um processo constante de
negociação, interpretação e reinvenção de diferentes práticas e valores.

5. Diáspora e representação dos lugares de origem

José passa a maior parte do seu dia a trabalhar na oficina de sapateiro de que é

proprietário. É conhecido no bairro pelas suas qualidades profissionais e pela sua simpatia,

e por isso possui uma sólida carteira de clientes. De algum modo, encarna a atitude positiva

de uma segunda geração de emigrantes que conseguiu integrar-se, depois de uma

escolarização feita em França, na economia do país de acolhimento. A sua integração e o

seu êxito profissional são uma evidência reconhecida tanto pelos franceses como pelos

emigrantes do bairro, facto que o coloca numa posição privilegiada para assumir o duplo

papel do imigrante/emigrante ideal. As identidades profissional e social de José parece

estarem

12

68
fortemente marcadas pelo facto de ter assimilado com êxito os valores da sociedade francesa,
que se apresenta assim, a este nível, como a sua comunidade de referência. O investimento
na escolarização dos filhos, que acompanha com visível interesse, revela um projecto de
educação que se pauta pelos mesmos objectivos de integração económica e social que
orientaram a sua própria vida. Mas, e apesar disso, a comunidade de origem - constituída
primeiro pelos parentes em primeiro grau, depois pelos considerados próximos (ou por serem
familiares ou por serem vizinhos em Trás-os-Montes) e, por fim, por todos os emigrantes
portugueses em França - parece ser para ele o único espaço social possível para um
emigrante desenvolver as suas relações interpessoais9. À excepção de um amigo argelino,
proprietário de uma loja perto da sua oficina, não lhe conhecemos qualquer relação exterior
ao trabalho que não se situasse no espaço social referido. Esse universo cultural também
parece conter todas as orientações necessárias à construção de um estilo de vida, porque é
nele que se encontram as pessoas que servem tanto de modelos como de interlocutores e,
consequentemente, de avaliadores.
Um pequeno episódio que se passou durante a viagem de Paris para Lisboa, em que quase
não parámos e em que frequentemente viajámos a 170 Km por hora, pode servir aqui de
exemplo. A certa altura, preocupados com o facto de estarmos a pôr as nossas vidas em risco,
perguntámos: Porque é que não páram? Isto assim é perigoso. José teve dificuldade em
justificar racionalmente um comportamento que se revelava claramente imprudente e
refugiou-se no interior da única comunidade que reconhece enquanto avaliadora dos seus
comportamentos. Respondeu-nos: Porque é assim a vida do emigrante. É uma vida de
sacrifício. E como a resposta era pouco convincente, ainda acrescentou: Até os árabes fazem
assim. Vão até Marrocos sem dormir. A comunidade de referência pode por isso, em casos
de extrema necessidade, incluir emigrantes do Norte de África. O mesmo exemplo pode
ilustrar a diversidade das posturas dos dois membros do casal. Enquanto José e a mãe
fizeram sempre questão de não parar durante a viagem, Jacinta mostrou-se incomodada com
aquilo que sabia ser, aos nossos olhos, um comportamento civicamente condenável10. Por
isso aproveitou a nossa presença para tentar argumentar contra as opções do marido e da
sogra, dizendo que ela não gostava de viajar assim, que era perigoso e enervante e que era
por isso que muitos emigrantes nunca chegavam a chegar à terra. O nosso papel de

testemunhas parece aliás ter jogado a seu favor. No ano seguinte fomos esperar a família à
fronteira de Quintanilha e, logo à chegada, quando perguntámos se tudo tinha corrido bem,
responderam-nos que sim, que a viagem tinha sido boa e que daquela vez tinham parado
mais vezes. Jacinta manifestou ainda
13

69
o seu agrado pelo facto de a partir dali sermos nós a marcar o ritmo, dizendo que sabia que

assim ia haver tempo para ver tudo sem pressas ("ver tudo" é uma expressão de Jacinta que
caracteriza bem a sua forma de estar na "viagem cultural" a que a emigração a sujeitou).

Mas voltemos ao quotidiano parisiense da família. Os tempos de lazer resumem-se,


em Paris, ao convívio com os pais e irmãos de José durante os fins de semana passados na
casa da periferia, a uma ou outra visita a familiares também emigrados e à participação nas
cerimónias religiosas que a paróquia de St. Josephe dirige à comunidade portuguesa. Em
Paris, a vida pública da família desenvolve-se em torno da Igreja. Todos os domingos José se
apresenta na missa da comunidade portuguesa do bairro acompanhado da sua família, numa
postura pública compenetrada e convicta. As primeiras imagens de Esta é a minha casa,

filmadas durante uma missa na Primavera de 1997, ilustram essa postura, embora o contexto
em que foram filmadas justifique uma parte da compostura, algo nervosa, que o casal exibe:
na presença do padre e da comunidade portuguesa do bairro, José e Jacinta assumiam
naquele domingo o papel de actores principais de um filme sobre emigrantes. Ou seja,
apresentavam-se publicamente como os representantes da comunidade presente. A
possibilidade de assumir essa postura reflecte a posição de prestígio que conseguiram
construir no interior da comunidade, manifesta nos comentários da professora de português,
uma figura detentora de alguma autoridade no meio e que considerou que tínhamos escolhido
uma família exemplar: gente honesta e de trabalho. Muito bem escolhida.

O investimento na manutenção e reprodução da comunidade portuguesa revela-se na participação


de José nas actividades de uma associação - “Association communauté portugaise de Paris XIe”-
ligada à paróquia, que se responsabiliza pela manutenção de um curso de português para os filhos
dos emigrantes, frequentado pelos dois filhos do casal11. O investimento de José na referida
associação, onde mantém um cargo de direcção, prende-se com a questão mais geral dos quadros
institucionais que dão suporte às políticas de identificação desenvolvidas pela comunidade
portuguesa em França. As situações observadas ao longo do trabalho de campo podem ser
comentadas se inserirmos os dados etnográficos no contexto mais global da reprodução da ideia
de nação e, nesse sentido, a importância dada pelos “informantes” ao ensino da língua pode ser
entendida se a confrontarmos com o papel que Benedict Anderson (1991) atribuiu à partilha
linguística - reforçada pela possibilidade de difusão e fixação de uma língua que resultou do
desenvolvimento das técnicas de impressão – no processo de construção das “comunidades
imaginadas”12. Neste caso, o único envolvimento de carácter institucional que José mantém com
a comunidade está associado ao
14

70
projecto de manter, no ciclo geracional, o ensino da língua portuguesa. A associação desse
projecto à paróquia que acolhe os portugueses do bairro indicia o importante papel da
religiosidade, e da instituição Igreja Católica Apostólica Romana, no processo de construção
de mecanismos de identificação simbólica da comunidade13: a perpetuação da herança que
sustenta a “comunidade imaginada” passa pela partilha, na língua nativa, de um discurso
religioso.
Antes de filmarmos a missa destinada à comunidade portuguesa, dirigimo-nos ao
pároco responsável, que nos recebeu, revelando grande disponibilidade para apoiar o nosso
projecto. Foi ele quem mais tarde nos conduziu junto de um grupo de portugueses que
ensaiava os cânticos relativos à missa que iríamos filmar, e foi também ele que nos
apresentou, no fim da referida missa, explicando que estávamos ali a realizar um filme sobre
emigrantes portugueses. Trata-se de um pároco francês, consciente das dificuldades que
decorrem do facto de trabalhar numa paróquia que recebe comunidades de imigrantes de
diferentes nacionalidades (a missa de sábado à tarde destina-se à comunidade tâmil e a
paróquia integra também uma comunidade espanhola). A recente partida do pároco português
torna as coisas ainda mais complicadas, porque a comunidade portuguesa insiste no seu
desejo de manter a missa na língua nativa. Face a isso, o pároco aprendeu a dizer algumas
partes do texto religioso em português e optou pela utilização das duas línguas. Explicitou,
primeiro numa conversa com a equipa de realização e, depois, em frente aos portugueses
que preparavam os cânticos, as razões dessa sua opção: a comunidade portuguesa não pode
ficar fechada sobre si própria e a missa tem de poder ser acessível aos outros membros da
paróquia. Mas essa opção, que se prende com o carácter universalista da religião católica,
não é recebida de bom grado pelos portugueses14: aos argumentos do pároco, contrapõem o
seu desejo de comunicar, na única altura em que a comunidade se reúne, na sua língua natal.
As filmagens foram percepcionadas como um momento de produção de uma imagem

pública da comunidade e, por isso, acabaram por revelar alguns dos investimentos colectivos

desenvolvidos pelos seus membros. Primeiro, a preparação dos cânticos para a missa que

filmámos implicou uma dura negociação, em que um grupo de emigrantes se bateu por cantar o

máximo possível em português, e depois, uma vez definida a coreografia da cerimónia, a angústia

em torno da imagem da comunidade que o filme iria construir levou-os a lamentar o facto de

estarmos a filmar numa altura em que haveria pouca gente: as férias já tinham começado, e por

isso as aulas de catequese e de português tinham acabado, o que faria com que muitos

emigrantes, libertos da obrigação de trazerem os seus filhos, não estivessem

15

71
presentes. O pároco descansou-os dizendo que nós queríamos filmar as coisas tal como

são, ao que eles responderam que então era preciso voltar em Outubro, porque nessa altura

é que se via como a igreja enchia. Face à impossibilidade de manter na sua paróquia a

exclusividade da língua portuguesa, o mesmo grupo de emigrantes referiu-se com orgulho à

Igreja da Srª de Fátima, essa sim, grande, com missa em português e gerida por

portugueses. No dia das filmagens, depois da missa da paróquia de St. Josephe, que se

inicia às nove horas da manhã, a família Fundo, acompanhada por um casal de amigos,

levou-nos à referida igreja, onde assistimos a uma parte de uma cerimónia que se desenrola

debaixo de uma notável organização - quando chegámos fomos recebidos por hospedeiras

que nos orientaram para um lugar vago no interior - e onde, segundo José, todos os

emigrantes de Paris vão pelo menos alguns domingos por ano. A dimensão da Igreja, a

quantidade de pessoas presentes e o orgulho com que os emigrantes nos afirmavam que a

igreja é propriedade da comunidade portuguesa, transcrevem a importância que a


religiosidade também parece ter para a afirmação pública da sua existência. Nesse dia fomos

almoçar à casa da campanha e, apesar de a família já ter assistido à missa dominical, o rádio

manteve-se sintonizado na emissora que transmite, a partir da Igreja da Srª de Fátima, a


missa dos portugueses, até esta terminar.

6. Diáspora e recomposição dos espaços domésticos

Jacinta participa de todas as actividades sociais descritas, mas mantém uma postura

mais discreta e menos entusiasta que José. A sua posição no interior da comunidade

portuguesa - que, como vimos, é de algum prestígio - é subsidiária da do marido, e a sua


prática social revela a vontade de a manter inalterada. No entanto, em paralelo vai criando

uma pequena teia de relações sociais exterior à comunidade portuguesa, e é nela que vai

procurar os modelos para o estilo de vida que tenta construir para ela e para a sua família.

Na impossibilidade de construir, como o marido, uma identidade profissional que lhe atribua

um lugar no exterior das teias de relacionamento privado, dando assim forma a uma vida

pública mais marcada por padrões urbanos, Jacinta investe na vida privada, que tenta

integrar nos modelos culturais da sociedade parisiense. A sua profissão, porteira do prédio

onde a família vive e empregada na casa de uma médica francesa, coloca-a no interior da

vida doméstica da classe média francesa e permite-lhe observar outros estilos de vida,

baseados em outros valores e noutras práticas sociais. A tentativa de reproduzir alguns

desses valores e algumas


16

72
dessas práticas está sujeita a constantes negociações, que colocam em confronto os
diferentes projectos de vida dos membros da família. A compreensão das opções territoriais
relacionadas com a definição do sistema residencial da família nuclear depende, a meu ver,
do entendimento dos pontos de vista que integram essas negociações15.
Para José, não parece ser muito importante ter uma casa que permita reproduzir o modelo de vida
urbano francês. Por isso privilegia a proximidade do trabalho e a manutenção dos laços familiares.
Viver num espaço minúsculo em Paris e passar os fins de semana numa pequena moradia ao pé
dos pais parece-lhe um modelo de vida aceitável. Além disso, corresponde à situação de muitos
emigrantes, que prescindem do conforto quotidiano para poderem ter uma residência secundária
na periferia16. Pelo contrário, para Jacinta o investimento no espaço doméstico quotidiano da
família parece ser prioritário. O estilo de vida que enquadra o seu desejo - baseado numa
concepção moderna das relações matrimoniais, em que a ligação emocional entre o homem e a
mulher se desenvolve num quadro íntimo (Giddens 1995) - conforma-se dificilmente com a
promiscuidade a que um apartamento de porteira obriga. Uma longa sequência filmada (que
aparece, embora cortada, no filme Esta é a minha casa) ilustra o que acabei de referir. Encostada
a uma parede do pequeno apartamento de porteira, Jacinta confessa-se desconfortável naquela
casa e revela o seu desejo de ir viver para a casa da campanha17 : Mas é mais conforto. E tem
aquela janela. Abro as janelas e bebo o cafézinho ao sol e tudo ... Lá parece que estamos mesmo
em nossa casa, aqui parece que estamos na casa dos outros. Ao contrário do apartamento de

porteira, a moradia é suficientemente grande para permitir que o casal e os filhos tenham os
seus próprios espaços, o que corresponde a uma condição necessária tanto para o
desenvolvimento de uma “relação íntima” com o marido, como para a construção dos selves
dos membros da família. Os brinquedos de Léa, por exemplo, estão no quarto da moradia,
porque os carros de Johnny já enchem o espaço livre do apartamento de Paris. Além disso,
tudo o que permite a existência, no interior do espaço doméstico, de uma vida social virada
para pessoas exteriores ao círculo mais restrito da família - uma grande mesa de jantar,
talheres, louças - está também na moradia. Nas refeições que nos foram oferecidas pelo
casal, Jacinta mostrou o seu perfeito domínio das normas burguesas de hospitalidade que
determinam, numa situação em que se recebem pessoas desconhecidas, o comportamento
de uma dona de casa. O prazer com que o fez revela que as relações com grupos sociais
diferentes da comunidade emigrante fazem também parte do estilo de vida que deseja
desenvolver. Esse estilo de vida implica um tipo de espaço doméstico e um tipo de consumo
incompatíveis com a dimensão e a falta de
17

73
privacidade de uma casa de porteira. A presença de um espaço de representação como
uma sala de jantar com dimensões razoáveis seria, nesse quadro, indispensável.
Pelo seu lado, José sabe que o estilo de vida que Jacinta deseja poria em causa a sua
concepção de família e, por isso, resiste, na medida em que o seu poder lhe permite fazê-

lo. Essa resistência passa, em termos espaciais, pela fixação simbólica e material no lugar
de origem, neste caso na aldeia e na casa dos pais em Trás-os-Montes, e pela
subvalorização do quotidiano parisiense. Numa sequência filmada na casa dos sogros de
Trás-os-Montes no dia a seguir à chegada de Paris, Jacinta aparece no quarto do casal,
sentada numa cama, ao lado de um enorme caixote de papel. Vai mostrando o seu
conteúdo – um serviço de mesa Vista Alegre, que depressa percebemos que fez parte dos
presentes de casamento - e vai dizendo que o marido não quer que se tirem dali aqueles

objectos, nem para os usar, nem para os levar para casa da mãe dela nem, deduz-se, para
os levar para Paris. É uma cena forte, porque deixa o espectador desarmado face ao
absurdo da situação: uma mulher casada e mãe de família desembrulha as suas prendas
de casamento e diz-nos, numa voz em que transparece a tranquilidade da resignação, que
aqueles objectos estão ali, confiscados, à espera de um futuro que nem ela própria
consegue adivinhar.

Para lá da fixação no lugar de origem, coloca-se aqui a questão da presença,


no seio da família, de formas diversas de valorizar os objectos. Tal como alguns autores
defendem, no seguimento das propostas de Appadurai (1986) e Miller (1987, 1997),18 o
consumo de objectos transcreve-se em formas diversas de apropriação, que
correspondem a diversos estilos de vida19 e que, consequentemente, configuram diferentes
identidades (Clarke e Miller 1999; Falk e Campbell (orgs.) 1997; Featherstone 1991; Lury
1997). O entendimento dos processos de valorização dos objectos tem por isso de ser feito
no interior das negociações sociais que os determinam. Neste caso, estamos perante dois
tipos de valorização: um fixado na posse e outro na posse e no valor de uso. Em termos
de estilo de vida, o primeiro sistema valorativo não implica a reprodução das práticas
sociais associadas aos objectos que se possuem, enquanto o segundo implica a
reprodução dessas mesmas práticas. Uma outra sequência filmada ilustra os mesmos dois
tipos de envolvimento com os objectos domésticos : ainda na casa de Trás-os-Montes,
Jacinta mostra, com algum orgulho, os objectos bonitos que a sogra possui, mas que,
comenta, estão sempre fechados, dentro dos armários de uma casa desabitada. Mais
tarde, a proprietária dos referidos objectos manifestou o seu desinteresse pelo seu uso e
a sua preferência por viver assim, sem essas coisas
18

74
Depois de ver as duas sequências, percebe-se que o modelo de fixação na terra de

origem, que preside aos comportamentos habitacionais da família de José, corresponde

também a uma opção de estilo de vida que, apesar de investir na posse de objectos domésticos

de origem urbana – o que, por si só, produz um efeito de distinção (Bourdieu 1979) face a

alguns habitantes da aldeia menos dotados economicamente - prescinde do seu valor de uso

e, consequentemente, dos modelos de sociabilidade que esses mesmos objectos convocam.

O facto de o habitus que envolve os referidos objectos não ter estado presente conduziu a essa

fractura entre objectos e práticas sociais. Quando foi possível comprar os objectos já era

demasiado tarde para integrar práticas que não faziam parte do habitus da família e a táctica

desenvolvida restringiu-se, por isso, aos efeitos sociais que resultam da simples posse de

objectos socialmente valorizados.

Face a essa situação, Jacinta tenta introduzir na vida do casal, quando as situações o
permitem, alguns elementos do estilo de vida que gostaria que fosse o seu. Depois de filmada a
cena da caixa dos presentes de casamento, referiu o seu projecto de tentar convencer José a
levar o serviço de mesa para casa da sua mãe, para o utilizar na festa da 1ª comunhão de Léa,
que se iria realizar durante essas férias de Verão. Jacinta pretendia desse modo utilizar uma
circunstância que iria convocar os valores simbólicos e as práticas sociais em que José investe,
para pôr em prática as suas próprias opções de estilo de vida. As relações que a família
estabelece com os espaços e objectos domésticos revelam assim a presença de uma
negociação entre dois estilos de vida diferenciados : enquanto o homem preconiza a
reprodução de um estilo de vida rural que acentua a relação com a terra de origem e com a
família alargada (segundo uma regra virilocal), a mulher projecta um estilo de vida que privilegia
o quotidiano citadino, a autonomia da família nuclear e as relações sociais com o exterior.
O modelo “do circuito da cultura” apresentado por Paul du Gay e Stuart Hall (1997) coloca

as identidades numa relação constante com outras dimensões, a saber, a representação, a

regulação, o consumo e a produção. Tem a vantagem de nos orientar para as diversas

dimensões que podemos observar quando procuramos ler a vida dos nossos informantes como

manifestações individuais de processos colectivos de produção e reprodução de cultura. Aquilo

que tentei apresentar até agora como sendo uma dinâmica identitária pode, de facto, ser lido

de um ponto de vista que, ao integrar outras dimensões, nos conduza à questão da cultura que,

em simultâneo com as identidades, vai sendo produzida. Os exemplos apresentados

conduzem-nos à hipótese de os mecanismos de produção de cultura, observados


19

75
em contexto de emigração, integrarem uma diferenciação de género. No caso observado, a

identidade masculina encontra-se associada à reprodução de práticas e valores que circulam,

e são regulados, no interior das teias de relações familiares e de vizinhança que se organizam

a partir dos lugares de origem. A reprodução, numa cidade como Paris, do modelo de

masculinidade que parece estar presente - marcado pela exposição pública de uma

autoridade absoluta e indiscutível sobre a família nuclear e pela efectivação dessa autoridade

em privado - só seria possível no interior de comunidades fechadas aos efeitos do

cosmopolitismo. O investimento dos homens emigrantes portugueses nas comunidades de

origem pode ser associado à necessidade de estes defenderem os modelos de que se

socorreram para construir as suas identidades masculinas e, consequentemente, à

necessidade de defenderem o tipo de poder que os mesmos modelos lhes conferem.

Confrontados com os modelos identitários femininos urbanos, que não reconhecem o tipo de
autoridade que estão habituados a representar, temem pela estabilidade das suas identidades

e desenvolvem tácticas para as manter.

Uma situação vivida antes do início das filmagens revela a transcrição pública que
essas tácticas, que se desenrolam sobretudo na esfera privada, podem assumir. Alguns dias
depois de chegarmos a Paris, eu e o João Rui esperávamos na loja de José por um momento
livre para falarmos um pouco sobre o nosso projecto de filme quando entrou uma rapariga
com uns sapatos para arranjar. Dirigiu-se em francês a José, que na altura conversava com
outros homens emigrantes, e este, antes de iniciar um diálogo em torno do arranjo dos
sapatos, disse-lhe que ali se falava português. A rapariga não se demoveu da sua posição
inicial e respondeu, em francês, que estavam em França e que por isso a língua que se falava
era o francês. Face à firmeza da posição da rapariga, José formalizou- se e disse que, se ela
não lhe falasse em português, ele não lhe arranjaria os sapatos. Ao mesmo tempo pôs a tocar
uma música da brasileira Roberta Miranda e afirmou que era para provar que ali era Portugal.
A rapariga não cedeu. Partiu com os sapatos na mão enquanto nós, as duas pessoas que
tinham acabado de chegar e que estavam ali porque queriam fazer um filme sobre emigrantes
portugueses, ficámos a olhar, perplexos com a cena mas convencidos da convicção com que
José vive a sua identidade de português emigrante20.
A importância que a língua portuguesa, que como vimos também pode estar presente na

sua versão brasileira, assume no processo de constituição da “comunidade imaginada”, reaparece

aqui claramente. Ao mesmo tempo, o episódio relatado permite introduzir uma nova problemática,

relacionada com a complexidade das implicações políticas do referido processo:

20

76
quando observamos as práticas e os discursos que integram as negociações internas que
conduzem à construção cultural da denominada “comunidade portuguesa”, verificamos que elas
revelam conflitos e lutas de poder que se transcrevem em tentativas da apropriação, por parte
de alguns agentes, dos símbolos que lhe estão associados, no sentido de os utilizarem num
processo de resistência à modernidade21. Quando a luta de poder se assume no interior de um
confronto de géneros, como aconteceu no caso descrito, essa estratégia parece ser sobretudo
desenvolvida pelos homens. A firmeza que a jovem mulher de origem portuguesa manifestou,
face ao grupo de homens emigrantes portugueses, ao recusar-se a partilhar a língua da
comunidade, corresponde à afirmação de um distanciamento face às opções culturais
conservadoras que essa partilha pode implicar e, paralelamente, à afirmação de uma
proximidade com os valores modernos que a língua do país onde vive pode veicular.
Um outro exemplo, relativo a uma família residente em França, mas muito ligada aos valores
tradicionais da comunidade portuguesa, permite-nos perceber como é que as tácticas de
afirmação da identidade masculina atrás referidas se apoiam na transmissão, feita no interior da
sociabilidade intergeracional, de modelos de práticas ritualizadas de exercício de poder. Quando
começámos as filmagens, o filho mais novo de um casal já reformado tinha iniciado uma relação
com uma jovem de origem francesa. Em conformidade com as práticas parisienses, os dois
jovens começaram, por vezes, a dormir juntos nas casas dos respectivos pais. Tudo parecia
decorrer num relativo entendimento até que, alguns meses depois, um conflito revelou, segundo
o discurso das mulheres mais novas da comunidade, a má influência do pai do rapaz no
comportamento deste. Face à passividade que o velho emigrante via no comportamento do filho,
aquele começou a pressionar o jovem no sentido de bater na namorada, argumentando que, se
não o fizesse naquele momento, nunca mais teria mão nela.

Pelo seu lado, as mulheres, sobretudo quando as suas vidas profissionais se desenrolam

no interior das vidas domésticas das classes médias francesas, concebem os modelos

identitários femininos urbanos como repertórios de valores e de comportamentos disponíveis

para serem utilizados nas suas próprias tácticas identitárias. É óbvio que também os utilizam

para negociarem com os homens das suas famílias o exercício da autoridade masculina. Nesse

jogo surgem situações de conflito que, como vimos no exemplo anterior, podem conduzir a

situações de ruptura e de violência. Na zona de Paris em que decorreu o trabalho de campo,

uma parte significativa das porteiras é portuguesa. Conhecem-se umas às outras e desenvolvem

entre elas mecanismos de controlo e protecção que passam pela partilha das suas histórias de

vida. Ouvi algumas dessas histórias e apercebi-me de que quase todas

21

77
viveram um longo, e por vezes doloroso, quando não violento, processo negocial com
os maridos. As mais velhas parecem, no fim de uma vida em Paris, ter chegado a
situações relativamente estáveis que, numa parte significativa dos casos, dependeu
fortemente dos filhos. Ao fomentarem a integração dos filhos (rapazes e raparigas) na
sociedade francesa elas produzem aliados que, quando adultos, se manifestam
frequentemente a seu favor, contrabalançando assim o poder dos pais. Maria-
Engracia Leandro, no seu estudo sobre a emigração portuguesa em Paris, refere, num
capítulo dedicado à personagem da porteira, o mesmo tipo de dinâmica
intergeracional. Depois de apresentar alguns extractos de entrevistas ilustrativos, a
autora comenta :

Ressalta destes comentários que o contacto com um novo meio social vai
provocar uma ruptura social entre pai e filhos. Ora, a profissão de porteira
conduz ao estabelecimento de relações que têm uma grande influência no
futuro das crianças. Se é verdade que o apartamento de porteira forma uma
unidade à parte e dita a conduta dos seus habitantes - as relações com os
vizinhos, com os diferentes grupos sociais - ele abre também a via ao contacto
e à observação de outros modelos de comportamento sociocultural que podem
ter efeitos sobre a ascensão social (Leandro 1995 : 90).

Neste contexto, podemos ler as vidas de José e de Jacinta como duas formas

distintas, mas absolutamente entrosadas, de viver a "viagem cultural" a que ambos

resolveram aventurar-se. Para José, essa viagem parece significar antes de mais a
possibilidade de terminar com êxito um processo de integração económica em França

que se traduzirá pela efectivação de uma mobilidade social ascendente. Mas esse

processo de integração, que implica a construção de uma identidade profissional que


integra valores da sociedade urbana francesa, parece comportar, a outros níveis,

alguns riscos de desestabilização identitária, que José previne ao investir na

construção de uma "comunidade portuguesa imaginada", através de mecanismos de


produção e partilha de memórias do passado, perpetuação da herança e realização

do desejo de estar junto (Hall 1992). Esta atitude, que é reproduzida por outros

membros da comunidade emigrante, resulta na produção de uma cultura de diáspora

que se sustenta na evocação do lugar de origem. É claro que Jacinta participa, como

todos os emigrantes com que mantém relações próximas, nesse processo colectivo

de produção de cultura. Mas para ela a viagem comporta, mais do que para o marido,

a possibilidade de
22

78
construir uma identidade pessoal com referências exteriores ao lugar de origem. Para lá de a

conduzir, numa atitude de partilha com a comunidade emigrante, à utilização de mecanismos de

transformação da cultura de origem por via da sua exaltação e da sua objectificação, a viagem

colocou-a ainda numa situação de abertura a outras culturas, o que a leva a um tipo de acção

mais marcada por mecanismos de articulação com valores exteriores.

1.“Na história da Antropologia do século XX, os “informantes” primeiro apareceram como nativos;
emergem como viajantes. De facto, como irei sugerir, são misturas específicas de ambos” (Clifford
1997: 19).
“Na minha problemática actual, o objectivo não consiste em substituir a figura cultural do “nativo” pela
figura intercultural do “viajante”. Mais especificamente, a tarefa é focalizar as mediações concretas entre
os dois, em casos específicos de tensão e relação históricas. Em diferentes graus, ambos constituem
aquilo que irá ser determinante como experiência cultural. Eu recomendo, não que façamos da margem
um novo centro (“nós” somos todos viajantes), mas que dinâmicas específicas de residindo/viajando
sejam comparativamente compreendidas” (Supra: 24).
2. Escrevo aqui emigrantes (e não imigrantes ou migrantes) porque, como se verá ao longo do texto, a
condição de emigrante foi colocada por José (e, por arrastamento, mas não de forma passiva, pelo resto
da família) no centro da representação que fez de si próprio. Além disso, o facto de a equipa de
filmagem ser constituída exclusivamente por portugueses convocou, desde o princípio, para o interior da
interacção que estabelecemos com a família, essa mesma categoria.
3. Como comentei noutro lugar (Silvano 1997b), a metodologia de trabalho que presidiu às filmagens
privilegiou a autonomia dos trabalhos respectivos do cineasta e da antropóloga : o cineasta recolheu as
imagens em função dos seus critérios pessoais de selecção, não tendo havido interferência de critérios,
de carácter conceptual ou analítico, previamente estabelecidos pela antropóloga. Essa metodologia
permitiu que as imagens recolhidas obedecessem sobretudo a uma vontade, neste caso do cineasta, de
ver e de dar a ver, a partir de um ponto de vista pessoal, as pessoas nos seus percursos subjectivos. O
trabalho com um cineasta permitiu-me assim algum distanciamento relativo às técnicas de observação
etnográfica mais clássicas, necessariamente formatadas por uma concepção do social que coloca as
pessoas no interior de categorias predeterminadas. Como refere Marcus (1995a), a ruptura com o tópico
da estrutura, organizador da “etnografia realista”, conduziu à vontade de fixar em texto as “vozes
indígenas”, sem que estas sejam previamente colocadas no interior das categorias que
convencionalmente deram forma à estrutura. Esse trabalho de convocação das pessoas é, como
Marcus também refere, mais facilmente realizado pela câmara do que pela escrita. Nesse sentido,
penso que o presente texto não pode nunca substituir-se ao tipo de leitura que os filmes permitem.
Tentarei no entanto - apesar da utilização de algumas das denominadas categorias de estrutura, sem as
quais a leitura antropológica dos dados apresentados se torna difícil, se não mesmo inoperante - fazer
um exercício de produção de um texto que, sempre que necessário, convoque as pessoas, através da
única forma possível de o fazer, ou seja, tentando traduzir as suas expressões subjectivas. Muitas vezes
esse exercício será feito a partir de uma leitura das imagens cinematográficas, que aparecerão assim
como um suporte do texto.
4. Também aqui podemos referir a existência de algum desencontro entre as concepções que
presidiram ao trabalho da equipa de filmagem e aquelas que presidiram ao trabalho do “actor”.
Primeiro, nós queríamos filmar a especificidade dos percursos individuais, com tudo o que eles têm de
paradoxal e de contraditório, e apercebemo-nos de que José queria que o seu percurso fosse
transformado num percurso tipo, portanto limpo dessas vicissitudes; depois, queríamos que o filme
fosse claramente marcado por um olhar, que tivesse uma autoria, e verificámos que José acreditava no
realismo cinematográfico, ou seja, num cinema destituído de olhar. O primeiro desencontro nunca foi
alvo de comentários, mas o segundo sim. Por delicadeza, José nunca fez, depois de os visionar,
qualquer comentário menos positivo aos filmes. Limitou-se a lamentar a ausência de alguns planos
sobre os quais alimentava expectativas particulares, por exemplo, o da chegada a Quintanilha no Verão
das filmagens de Viagem à Expo, e a pedir cópias, se possível, da totalidade dos planos. No entanto
exprimiu a Rabia Bekkar, uma socióloga sua vizinha que nos havia posto em contacto com José, a sua
perplexidade face ao tipo de planos realizados. A questão essencial prendia-se com o facto de a
representação cinematográfica mais clássica, centralizada na cara, ou seja, na parte do corpo que a
cultura ocidental associa directamente à identidade pessoal, não presidir às opções de colocação de
câmara do realizador.

79
5-
“Os filmes etnográficos raramente revelam tais ocorrências; no entanto, relações de dependência e a
abertura de novos horizontes criadas pelas filmagens afectaram, sem dúvida nenhuma, profundamente
alguns dos sujeitos
filmados, para o melhor ou para o pior. Através de filmes etnográficos, certos participantes alcançam
uma medida de gratificação e de prestígio nas suas próprias comunidades” (MacDougall 1955 : 246).
6.É sabido que a presença do etnógrafo produz sempre a situação de auto-reflexão aqui referida. A
presença da câmara torna no entanto esse facto mais óbvio, na medida em que potencializa as suas
características. A relação de familiaridade que os informantes possuem com a narrativa cinematográfica
– e que não possuem com a escrita etnográfica - facilita a tomada de consciência dos mecanismos de
exposição de si próprios que estão presentes em qualquer situação de registo etnográfico. Esse facto
coloca aliás algumas questões relativas à natureza diferenciada dos dados etnográficos, conforme são
recolhidos através da câmara ou através de uma relação mais tradicional entre o etnógrafo e o informante.
Quando a câmara não está presente, a consciência da exposição pública tende a diluir-se e, nesses
contextos de registo etnográfico, as dimensões mais íntimas, e até mais conflituais, da vida dos
informantes podem surgir mais facilmente.
7. Como veremos, Jacinta convoca, para a construção da sua identidade pessoal, a dupla categoria de
emigrante/imigrante. Não tendo optado, como José, por uma fixação na categoria de emigrante, vai
convocando, de forma circunstancial, aquela que melhor se adapta às suas táticas identitárias.
8.
Segundo MacDougall (1955), a subjectividade pode ser tratada no interior de diferentes modos
cinematográficos. Um deles – aquele que produz uma “perspectiva” – pode constituir-se a partir da voz de
alguém que fala na primeira pessoa, ou seja, de alguém que testemunha : “O testemunho é o que nos dá
a voz subjectiva da pessoa histórica; no entanto, nós estamos implicados no destino dos outros através
da narrativa (...)” (Supra : 250)
9.A estratégia identitária de José aproxima-se do modelo descrito para dar conta da história da
permanência americana das comunidades de Japoneses e de Judeus: “A sua característica mais visível
foi o sucesso económico da primeira geração, mesmo sem se ter dado uma profunda aculturação. Pelo
contrário, ambos os grupos combateram ferozmente para preservar a identidade cultural e a
solidariedade interna” (Portes 1999 : 46).
10. Penso que Jacinta estaria consciente do facto de aquele comportamento integrar a imagem
negativa que os portugueses não-emigrantes fazem dos emigrantes.
11. As opções linguísticas contêm também as marcas do percurso cultural da diáspora. Apesar de
estudarem o português e de frequentarem a catequese em língua portuguesa, os filhos do casal têm
nomes franceses, o que pressupõe uma opção de integração simbólica na sociedade francesa.
12..“(...) a convergência do capitalismo e das técnicas de impressão com a fatal diversidade da linguagem
humana criou a possibilidade de uma nova forma de comunidade imaginada que, na sua morfologia
básica, preparou a cena para o aparecimento da nação moderna” (Anderson 1991 : 46).
13..Tal como Maria-Engracia Leandro (1995) demonstra, o associativismo da comunidade portuguesa
em França encontra-se fortemente ligado às instituições católicas, mesmo quando cobre actividades
que extravasam o âmbito religioso, como é o caso do ensino da língua. A definição da língua em que é
dada a catequese é alvo de negociações em que a comunidade portuguesa se bate pelo português,
reforçando assim a vontade de associar a língua à partilha das narrativas religiosas.
14. Maria-Engracia Leandro refere o facto de existirem diferenças substanciais nas formas observadas
de praticar e vivenciar a religiosidade das comunidades portuguesas, maioritariamente rurais e iletradas,
e das comunidades francesas dos bairros onde habitam. A associação que os emigrantes portugueses
fazem entre religiosidade e nação passa por uma identificação com formas rurais e localistas de
representar, praticar e vivenciar a religião católica, e por uma correlativa subvalorização do seu carácter
universal. Os esforços que desenvolvem para obter a presença nas suas paróquias de padres
portugueses prende-se também com essa concepção localista da religiosidade. No caso em estudo,
essa relação pareceu-me evidente. A sofisticação intelectual que orienta a postura religiosa e cívica do
pároco francês é claramente percepcionada como algo de distante pelos membros mais activos da
comunidade portuguesa.
15. Surge aqui, mais uma vez, a dupla condição de emigrante/imigrante.
16.“É muito raro encontrar num apartamento de porteira portuguesa móveis pesados, de prestígio, que
possam assinalar uma promoção social em Paris. É para a moradia de periferia, que se possui ou que
se sonha possuir, que se investe no mobiliário” (Leandro 1995 : 87).
17. A proximidade excessiva da casa dos sogros obriga a compromissos exteriores ao estilo de vida que
procura e, nesse sentido, a opção ideal seria um apartamento em Paris. Mas, dada a dificuldade da
negociação, durante o período em que decorreu o trabalho de terreno, apesar de fazer referência a essa
possibilidade, Jacinta conformou-se com a opção da moradia que, por esta estar perto da casa dos pais
de José, respondia melhor ao projecto de vida deste.
18..As propostas de trabalho referidas implicaram, no essencial, uma deslocação dos estudos de cultura
material - com base em trabalhos precursores de autores clássicos como Simmel (1978) e Mauss

80
(1974), e em trabalhos mais recentes de autores como de Certeau (1990), Baudrillard (1968, 1972) e
Bourdieu (1979) - do pólo da produção
24

para o pólo do consumo. Essa deslocação implicou uma revisão, e uma consequente complexificação,
das teorias sobre o consumo nas sociedades capitalistas, que passaram a incluir a dimensão
culturalmente produtiva do acto de consumir, agora entendido como um processo de apropriação : “Eu
sugeri que o consumo deve ser entendido como uma actividade social que se tornou, enquanto lugar
através do qual nós mudamos e desenvolvemos as nossas relações sociais, progressivamente mais
importante do que quer a produção quer a distribuição. (...) Por conseguinte, o consumo é mais do que
apenas comprar, ele é melhor compreendido como uma luta que começa com o facto de no mundo
moderno vivermos cada vez mais com instituições e objectos em cuja criação não sentimos que tenhamos
participado. Em consequência disso temos, logo à partida, uma espécie de relação de segunda mão com
o mundo cultural. Podemos no entanto não aceitar isto de uma forma passiva; o nosso objectivo é
frequentemente apropriar e usar essas formas para os nossos próprios propósitos” (Miller 1997 : 26).
19. Sobre a noção de “estilo de vida”, Celia Lury afirma: “Enquanto modo de consumo, ou atitude de
consumo, refere-se às formas que cada pessoa procura para exibir a sua individualidade e o seu sentido
de estilo através da escolha de uma série particular de bens e da subsequente customizing ou
personalização desses bens. Esta actividade parece ser um projecto de vida central para o indivíduo.
Enquanto membro de um grupo particular de estilo de vida, o indivíduo utiliza activamente bens de
consumo – roupas, a casa, mobiliário, decoração interior, carro, férias, comida e bebida, e também bens
culturais como música, filmes e arte – de formas que indicam o gosto ou estilo desse grupo. Nesse
sentido, o estilo de vida é um exemplo da tendência dos grupos de indivíduos para usar bens para
estabelecer distinções entre si próprios e outros grupos de indivíduos, o que suporta o ponto de vista
segundo o qual as práticas de consumo podem ser entendidas em termos de luta pelo posicionamento
social. Todavia, a noção de estilo de vida enfatiza a dimensão simbólica ou estética desse esforço” (Lury
1997 : 80).
20. E esse era, provavelmente, um objectivo que José também pretendia atingir com a dramatização a
que sujeitou as suas opções identitárias (Turner 1982). O facto de a cena ter sido presenciada por duas
pessoas que lhe eram então quase desconhecidas - mas que ele sabia que procuravam “actores” para
rodar um documentário sobre a emigração portuguesa - colocou José numa situação particular, em que a
“apresentação de si próprio” (Goffman 1973) foi feita em função do papel que pretendia assumir no futuro
filme.
21. A facilidade com que as políticas populares de localização assumem valores conservadores e
antifeministas é também assinalada, tendo por referência etnográfica a actual sociedade americana, por
Akhil Gupta e James Ferguson (1992) : «(...) a associação do lugar com memória, perda e nostalgia
favorece os movimentos populares reaccionários. Isto é verdade não só no que diz respeito às imagens
nacionais explícitas, há muito associadas com a direita, mas também no que diz respeito aos locais
imaginados e aos ambientes nostálgicos como a “América das cidades de província” ou “a América dos
cowboys”, que frequentemente favorecem e complementam as idealizações antifeministas de “lar” e
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ANTROPOlógicas
2015, nº 13, xx-yy
Texto 4

A Performance da Etnografia como Método da Antropologia

Ricardo Seiça Salgado

CRIA - Centro em Rede de Investigação em Antropologia


Portugal

RESUMO

Pensamos a etnografia enquanto modo de ação e, na sua relação aberta e íntima com a teoria, também enquanto
modo de expressão. A própria comparação deixa de estar na cultura para passar a estar na etnografia, no destino
que o antropólogo dá aos dados etnográficos. A etnografia constitui-se como o modo epistemológico da antro-
pologia. É justamente pela sua natureza que se percebe a relação entre a prática etnográfica e a teoria antropoló-
gica. Serve este artigo para dar conta do procedimento construtivista do conhecimento, de como ele emerge e se
sedimenta por via da metodologia que afinal caracteriza a antropologia.

PALAVRAS-CHAVE: etnografia; comparação; metodologia; performance.

ABSTRACT

We understand ethnography as a mode of action as well as a mode of expression, in its open and intimate
relationship with theory. Comparison itself is no longer in the culture but is to be found in ethnography, at the
destination anthropologist gives to his ethnographic data. Ethnography becomes the epistemological mode of an-
thropology. It is precisely because of the ethnography nature we perceive the relationship between ethnographic
practice and anthropological theory. This article serves to account for the constructive procedure of knowledge,
how it emerges and settles through the methodology that ultimately characterizes anthropology.

KEYWORDS: ethnography; comparison; methodology; performance.

que se produz conhecimento antropológico. Serve este


A etnografia é um termo de significados flutuantes, artigo para dar conta do procedimento construtivista
negociados ao longo da história da antropologia, ela do conhecimento, de como ele emerge e se sedimenta
carece sempre de um enquadramento com o desenho por via da metodologia que afinal caracteriza a antro-
da investigação. Não nos deteremos nessa história do pologia.
conceito, mas interessa delinear o denominador co-
mum que norteia o que entendemos por etnografia, de 1. Etnografia
como ação: ospapéis e
forma a clarificar a metodologia que poderá en- qualidade da participação
quadrar uma viagem etnográfica. Sobretudo, a partir
do momento em que se pensa a etnografia enquanto Numa primeira aceção, a etnografia deve ser enca-
modo de ação, como uma experiência que é vivida, rada como o produto de um cocktail de metodologias
que é registada, e sempre numa relação aberta e ín- que partilham da suposição que o envolvimento com
tima com a teoria, isto é, enquanto modo de expres- o sujeito é chave para a compreensão de uma cultura
são. É aqui que se podem potenciar relações, conexões ou moldura social particular. Essa moldura
possíveis com questões e dimensões mais amplas: seja sociocultural possibilita configurarmos um contexto,
do jogo de apreensão e perceção das práticas culturais de onde emergem as questões, os enigmas da
e as perspetivas teóricas que as podem enquadrar e investigação, permitindo pensar o modo como o
explicar, seja do simples jogo de variação das escalas trabalho poderá ser realizado. A componente comum
de análise, das micro às macropercepções, no proces- deste cocktail de me- todologias é a observação
so de interpretação de uma determinada experiência. participante, o método fa- vorito da antropologia.
Trata-se de dar conta de como as mudanças sociais e Combina entrevistas formais, informais, com uma
culturais podem emergir das práticas que os dados miríade de histórias, eventos consequentes do
etnográficos evidenciam e evocam, da experiência re- encontro localizado no quotidiano, resultante da
gistada, e de como a partir de uma microhistória (da prolongada estadia no terreno.
experiência vivida com o interlocutor) se podem con- A etnografia abrange, portanto, métodos que
ceptualizar mudanças mais amplas, ou seja, de como envolvem contacto social direto e continuado com os
do micro se pode iluminar o pensamento e a com- agentes da investigação. Implica, por isso, um sentido
preensão do macro (da experiência de estar e ser no de estar presente. A tarefa etnográfica refere a
mundo). É dentro da dialética entre etnografia e teoria experiência

86
que se adquire com as práticas incorporadas do encon- do tradicional, ao recusar reduzir a experiência vivida
tro dialógico com o outro, que considera o dialógico a modelos mecânicos que representam o essencial da
como um evento1, decorrente das interações sociais experiência vivida no terreno, “dos” e “com os” inter-
entre investigador e seus interlocutores. A etnografia locutores. Na antropologia, esta proposta é sistema-
pretende explicar e analisar a partir da tradução da ex- tizada sobretudo a partir de Jackson (1989), e advém
periência resultante com o outro, e reconhece, identifi- do regresso do corpo como categoria central na teoria
ca e regista como essa experiência embarca no fluxo da antropológica, por volta da década de oitenta do sé-
história. É por isso que requer participação, é aqui que culo XX, onde o método se dilui com a filosofia (num
se eliciam, extrai e suscitam os dados, o lugar onde período da crítica pós-modernista).
emerge e sai informação. É através da participação que Para Jackson, o foco de interesse privilegiado desta
se produz informação, induzindo um mais profundo estratégia metodológica, o empiricismo radical, refere-
entendimento da realidade estudada. Ao induzir-se, se à importância do encontro etnográfico, da prática no
leva-se alguém a praticar um ato, mas também, por via terreno. É no encontro, nas interações com aqueles com
desse ato induzido, se deduz e infere outra multi- quem o antropólogo vive ou estuda que se pode
plicidade de dados (e é aqui que pode surgir a potên- produzir uma espécie de energia empática da parti-
cia da combinação das várias escalas de análise). Esta cipação corpórea do antropólogo, da sua experiência
consciência da participação, enquanto modo de com- pessoal participada com os outros, os interlocutores.
preensão das outras culturas, foi sempre o âmago da Há uma clara primazia na interação observador/
antropologia, já desde Malinowski. A observação par- observado, enquanto ponto crucial da etnografia. O
ticipante implica, portanto, a performance, um estar e contexto que enquadra o encontro entre investigador e
ser com o outro, de forma a melhor o compreender, interlocutor (em confronto com o desenho da inves-
enquadrando o seu habitat de significado, o enqua- tigação) contém e é afetado por se realizar numa deter-
dramento da sua vida ao contexto de análise. A perce- minada circunstância, demarcado por se realizar num
ção de uma situação é radicalmente influenciada pela determinado local e num tempo próprio (com todas as
personalidade do observador, pelas suas ansiedades, contingências ou imprevistos que podem acontecer e
manobras de abordagem (algumas, até, defensivas), as que o investigador tem que estar preparado em lidar);
suas estratégias de investigação, as metodologias, as é no encontro que se situa e acontece a história parti-
suas decisões e posições que atribuem significado às lhada, uma intersubjetividade partilhada ao nível do
observações, a própria razão em ter optado estudar corpo, quando entendido na sua função percetiva, e
este aspeto e não aqueloutro (Devereux, 1967). que obriga a inclusão dos cinco sentidos na perceção
A etnografia é igualmente multivocal, procura-se etnográfica. A antropologia envolve uma atividade de
sempre registar as várias interpretações e formas de reciprocidade e de inter-experiência (Devereux, 1967).
agir dos vários agentes, um imperativo para a obser- Este posicionamento vai-se mostrar fulcral para as
vação participante. Privilegiam-se várias vozes, ativa- opções metodológicas realizadas em certos contextos.
se o debate e trocam-se pontos de vista com os inter- Como nos diz Jackson (1989), interessa justamente a
locutores num “verdadeiro diálogo”, onde se trocam e experiência resultante da viagem etnográfica, em que
negoceiam pontos de vista em conjunto, com um obje- a experiência do investigador se define no campo ex-
tivo claro comum. E neste sentido, não chega “lançar perimental de interações e intersubjetividade, tornan-
as redes” no local certo e esperar que algo caia nelas do-se ela própria um modo de experimentação em que
(como comentou Mauss (in Fortes, 1973, p. 284), é ne- se testa e explora a forma como as nossas experiências
cessário ser um caçador ativo, conhecedor das marés, se conectam com a dos outros.
e lançar bem ao fundo, conduzir para as redes a sua A relação estabelecida no fazer, coloca a centralida-
presa e segui-la até aos esconderijos mais inacessíveis de da pesquisa na experiência física, sensorial, e afeti-
(Malinowski, 2002, p. 7). É a qualidade deste trabalho va do investigador, incluindo-o como agente da inves-
que legitima a autoridade etnográfica. tigação, em relação ativa com os interlocutores. Tem,
A questão da participação torna-se de fulcral im- igualmente, a vantagem de se poder integrar vários
portância para a legitimidade que o etnógrafo adquire modos de participação. É, portanto, necessário refletir
ao jogar na íntima conexão entre a experiência da vida o tipo de participação que se imprime à observação, o
quotidiana partilhada no terreno, a prática, e a con- seu conjunto de características, uma vez que dele de-
ceptualização da vida que produz pela análise conse- corre o tipo de dados etnográficos relevantes para a
quente, a teoria. Aqui, a posição epistemológica e me- investigação. O mais importante torna-se a viagem, o
todológica de uma certa perspetiva construtivista das processo etnográfico propriamente dito.
leituras fenomenológicas, existencialistas e pragmáti- Na viagem etnográfica destaca-se o papel de inves-
cas, permitiram a afirmação de um empirismo radical tigador-antropólogo. O investigador anda por ali to-
herdado de William James (Jackson, 1989). Este,difere dos os dias, atento, participante, e acaba por criar uma
relação afetiva, de amizade com os seus interlocutores.
Este papel de investigador-antropólogo decorre do tipo
de relação formal do trabalho de campo mas cru- za-se
1 Uma extensa bibliografia aborda a questão da etnografia como um com todos os outros papéis adjacentes possíveis
encontro dialógico. Ver, por exemplo Castañeda, 2006; Conquer- good, (contingentes ou não) que integram a observação par-
1991; Conrad, 2008; Denzin, 2001; Fabian, 1990; Madison, 2005; 2006 a);
2006 b). ticipada de uma investigação. Para dar exemplos mais
[p.28]

87
experimentais, quando se trata da realização de um Há, portanto, uma diferença fundamental entre dois
filme etnográfico, o papel de investigador-realizador tipos de participação: a participação que coloca o
cruza-se com o de investigador-antropólogo; ou quan- antropólogo em posição de público, de se referenciar o
do se performatiza a etnografia teatralmente e se faz interlocutor como ator social observado ou, dito de
etnoteatro2 com os interlocutores, se cruza igualmen- outra forma, o antropólogo como espectador da reali-
te o papel de investigador-diretor de uma peça teatral; dade social; e a participação que coloca o antropólogo
ou quando o investigador é convidado a performar como coparticipante, referenciando, agora, a própria
eventos, manifestações performativas organizados pe- relação com o interlocutor, privilegiando a interação
los interlocutores (seja um ritual de passagem, seja um como o foco de perceção do horizonte de uma deter-
baile, seja uma manifestação política) onde se acabam minada situação, ação essa que é sempre consequente,
por revelar experiencialmente (também no corpo do induzindo diferentes modos de se envolver na comu-
investigador) os processos de incorporação que cole- nidade e, portanto, diferentes meios de se produzir
tivamente se constroem, contribuindo para uma even- informação. Também o empiricismo radical coloca o
tual melhor compreensão da domesticação dos cor- foco no fazer em conjunto, na experiência que faz do
pos; ou ainda quando se recorre à foto-eliciação, o uso antropólogo mais um ator do fluxo da experiência vi-
de imagens para a realização de uma entrevista, e se vida do grupo, ou contexto estudado. É na relação en-
conversa com os interlocutores com um sentimento de tre estes diferentes papéis do investigador que o tipo
partilha, de ambos terem experimentado a vivência e de participação se configura e é ditado, revelando os
o estado de espírito daquela situação, mesmo que um diferentes processos de criação, as diferentes formas
seja o retratado e o outro esteja por detrás da câmara. de produção de conhecimento e, finalmente, os dife-
A este respeito, e enquanto metodologia que ex- rentes modos de expressão etnográfica.
pressa inerentemente essa consciência metodológica Pela combinação destes diferentes papéis, o antro-
da necessidade de perscrutar o outro por via de uma pólogo torna-se uma espécie de “espect-actor”3, como
sensibilidade performativa, a foto-eliciação revela-se Boal (2005) definiu para a metodologia do Teatro do
de uma eficácia surpreendente em eliciar a memória e Oprimido. A equiparação que procuro fazer de “es-
evocar diferentes tipos de informação, como se cap- pect-actores” aproxima-se mais do seu papel na me-
turasse elementos mais profundos da consciência, co- todologia do Teatro Invisível (e que se relaciona igual-
nectando com o âmago das definições do self. Permite mente com o happening4). Aqui, o público não tem
aos entrevistados verem-se de uma outra perspetiva, a noção da sua condição de espectador e, como refere
capturada pela objetiva, representação das subjeti- Boal “todos os presentes podem intervir a qualquer
vidades incorporadas no enquadramento. Parece que momento na busca de soluções para os problemas tra-
praticamente não é necessário perguntar nada para se tados” (Boal, p. 20), qualquer que seja a circunstância
iniciar o discurso. Basta manter uma conversa so- bre da performance (artística mas como aqui quero expli-
cada imagem para surgirem comentários sobre os citar, também etnográfica).
mais variados temas envolventes, disparando para vá- Vale a pena notar que a combinação de vários pa-
rios planos de fuga passíveis de serem percecionados péis que o investigador pode criar, em ordem a poten-
como potencial de análise. ciar o tipo de participação, o coloca mais facilmente na
Como se vê, os papéis que o investigador pode as- posição clandestina (de “undercover”), que burila a
sumir devem assentar no fazer “entre” e “com” o gru- condição específica de investigação e o recoloca estra-
po estudado e que, por isso, se enevoa ou obscurece o tegicamente no território interno da comunidade estu-
papel de investigador propriamente dito, ou a separa- dada, mesmo que provisoriamente. Em certo sentido,
ção clássica investigador/investigado, em que o pri- a dimensão de investigador é ofuscada, fica encoberta
meiro é simplesmente aquele que inquire e que detém por outros papéis que o investigador promove. Bau-
a autoridade do discurso. Jogando com os diferentes man (2003) talvez chamasse ao desempenho de um
papéis que ele pode ter na perceção do encontro etno- determinado papel pelo investigador, a identidade
gráfico, há um deslocamento da perceção que se tem decorrente de uma “comunidade-cabide” (cloakroom
do investigador, há uma supressão dessa relação insti- community)5. Naturalmente que isso só é viável salva-
tucional, ela dilui-se, reconfigurando a relação clássica

de poder entre ambos, passando a ser quase omissa [p.29]


a sua relação institucional para o decurso da prática 3 O espect-actor é a transformação do espectador que assiste
a um determinado espetáculo num sujeito que também age e in- tervém
etnográfica. E este facto contribuiu sobremaneira para nele, podendo inclusive controlar a direção do espetáculo (Boal, 2005).
a concretização de uma participação dialógica.
4 O happening foi cunhado por Kaprow no início dos anos ses- senta
sendo uma arte direta e participativa, que não precisa de ser revelada a
sua ocorrência, uma assemblage de eventos performa- dos e apreendidos
2 De modo sucinto, o etnoteatro relaciona métodos etnográficos (é um em mais que um espaço e estendidos no tempo (Kaprow, 1966).
modo alternativo de observação participante) e metodologias teatrais, Congregando várias linguagens (elementos visuais, sonoros, teatrais),
enquanto subgénero do teatro documental. Coloca investi- gadores e emprega vários modos de comunicação e é sem- pre uma atividade
interlocutores no mesmo plano de ação, no processo de construção de um intencional e com um propósito, contextuali- zando a realidade
espetáculo teatral que decorre dos dados obtidos na etnografia, podendo selecionada num “mundo possível”, forçando a atenção dos observadores-
igualmente constituir-se como método da performance da etnografia, participantes para a ambiguidade dessa realidade, dando vida à vida.
uma vez que os interlocutores se pen- sam nesse processo. 5 Comunidades-cabide precisam de um espetáculo que apele a

88
guardando antecipadamente todas as questões éticas zida sem as suas expressões (do discurso e das ações),
que se prendem com a proteção dos interlocutores aquelas que o antropólogo localiza para responder às
(caso seja imperativo), a informação clara dos objeti- suas questões, no limbo das suas próprias posições,
vos da investigação, as autorizações institucionais, etc. também elas performativamente constituídas. Uma
Os “espect-actores” constroem um drama da vida real simples entrevista pode dar conta de uma miríade de
que performam, a partir de temas da comunidade e, assuntos e de equiparações possíveis, quando se inter-
onde “atores [como os interlocutores] e espectadores preta a partir dos atos performativos a ela inerentes.
[como o antropólogo] encontram-se no mesmo nível Dar conta dessa performatividade é, justamente, parte
de diálogo e de poder, não existe antagonismo entre do que se entende por fazer etnografia, da prática para
sala e a cena, existe superposição” (Boal, 2005, p. 20). a teoria.
Foi Castañeda (2006) que primeiramente propôs esta
analogia com o Teatro Invisível, sendo mais que uma
metáfora para o trabalho etnográfico. Para ele, a et- 2. Etnografia enquanto modo de expressão
nografia constitui-se como uma forma específica, um
modo ou manifestação de Teatro Invisível, estrutura- Numa segunda aceção, a etnografia refere igual-
do e concebido a partir da lógica disciplinar e teórica mente um género de texto da ciência social (Clifford,
da antropologia. Marcus, 1986). Aqui, a proposta de Geertz, da etnogra-
Os “espect-actores” (antropólogo e interlocutores) fia poder ser compreendida como um modo particular
são os protagonistas da ação, no sentido de resultar de de inscrever cultura, como um tipo de “descrição den-
um ato, de uma situação que precipita um aconte- sa” (Geertz 1993), produz a viragem interpretativa na
cimento, uma ação que causa uma invocação automá- antropologia e que haveria, então, de ser remexida por
tica de um procedimento, de onde se retém dados e se Michael Jackson. Sem separar de todo, o simbólico do
interpreta a integridade referencial, as propriedades corpo, a ideia do corpo refletir os valores sociais, Jack-
que os dados detêm. Nesse sentido, o antropólogo é son precisa que a ideia de não haver nada fora do tex-
um ativador (ibidem): faz perguntas constantemente, to parece absurdo no mundo real onde o antropólogo
anda por ali, conversa, observa, ouve, lembra-se de faz a etnografia, no fluxo das relações humanas, “the
questões e fá-las emergir, envolve-se com as pessoas, ways meanings are created intersubjectively as well as
solicita e sugere coisas, elicia, ativa, aciona, partilha ‘intertextually’, embodied in gestures as well as in
histórias e experiências, entrevista, etc., uma série de words, and connected to political, moral, and aesthetic
procedimentos que desencadeiam, estimulam, eli- interests. Quite simply, people cannot be reduced to
ciam, ou colocam em funcionamento respostas, ten- do texts any more than they can be reduced to objects”
em conta os objetivos e desenho da investigação. E (Jackson, 1989, p. 184).
assim se recolhe dados, se faz trabalho de campo. O Chama-se, por isto, à atenção para a dimensão per-
antropólogo tem uma ideia pré-imaginada que pro- formática6 da vida. O etnógrafo tem que ler o “texto da
duz uma agenda, implicando estratégias de entrada no cultura”, tem de o interpretar, vivendo-o em inte-
campo, táticas, métodos, de forma a intervir ativa- ração participativa. O paradigma da teoria da perfor-
mente no mundo a estudar. Esse envolvimento resulta mance fala-nos nas limitações da visão “textualista”
das questões que põe mas também da sua atitude, da com o despertar para a centralidade da performance
forma como se apresenta a si próprio, da forma como na dramaturgia da vida quotidiana. Victor Turner foi,
promove a interação que vai caracterizar a observação talvez, o primeiro a alertar para as consequências me-
participante. todológicas deste novo paradigma:
A sensibilidade performativa, como uma prática da
interpretação, conduz-nos para a ideia de que vivemos The movement from ethnography to performance is a pro-
e habitamos numa cultura dramática, baseada na per- cess of pragmatic reflexivity. (…) If anthropologists are ever to
formance. A vida é sempre fazer algo. Não há ser sem take ethnodramatics seriously, our discipline will have to
o fazer e, por isso, todas as dimensões sociais se defi- became something more than a cognitive game played in our
nem enquanto se age, atualizando-se constantemente, heads and inscribed in – let’s face it – somewhat tedious jour-
como a dimensão performativa em Butler (1993) dos nals. We will have to become performers ourselves, and bring
próprios atos linguísticos, onde o próprio discurso é to human, existential fulfillment what have hitherto been only
performativo, espaço onde a identidade se constrói. mentalistic protocols (Turner, 1992, p. 100-101).
Dito de outra forma, as palavras têm efeitos materiais
nas pessoas (falante e ouvinte), constituindo-as através
e ao longo dos seus atos performativos, o espaço onde À intertextualidade, acrescentaram-se os fenóme-
as posições da vida se tomam e as pessoas se definem. [p.30]
Então, não há identidade performativamente produ- 6 O adjetivo performático, adotando a sugestão de Taylor (2007), serve
para denotar a forma adjetiva do reino não-discursivo da performance.
“Why is this important? Because it is vital to signal
the performatic, digital, and visual fields as separate form, though

interesses semelhantes em indivíduos diferentes e que os reúna du- rante of that same logocentricism rather than a confirmation that there’s no
certo tempo em que outros interesses – que os separam em vez de uni- there there” (Taylor, 2007, p. 6).
los – sejam temporariamente postos de lado, deixados em lume brando
ou inteiramente silenciados (Bauman, 2003).always embroiled with, the
discursive one so privileged by Western logocentricism. The fact that we
don’t have a word to signal that performatic space is a product

89
torna absurda a ideia de um todo a priori da realidade
nos da incorporação e a intersubjetividade do corpo7.
(Strathern, 1991). Ao nível das partes sociais, o ato de
Reclamava-se, portanto, pelo reconhecimento da na-
corte pode revelar o que a autora chama de “exten-
tureza corporal do trabalho de campo e a importância
sões” e evocar a perceção de relações resultantes do
da experiência, da perceção de algo que se constitui
encontro etnográfico, a que chama de “conexões par-
enquanto é expresso, e que por essa via adquire um
ciais”.
significado. Turner e Turner (1982) viu realmente o
etnógrafo como um etnodramaturgo e chegou mes-
mo a realizar workshops em que se performativizava a [E]xtensions – relationships and connections – are inte-
grally part of the person. They are the person circuit. The ef-
cultura teatralmente8. Agora, aqui, trabalham-se as
extensões possíveis entre investigador e investigado, fect of the ‘same material’ produces a perception of the
distinguindo o conhecimento textual do performati- common background to all movement and activity. Hence the
vo. Tratava-se de alertar para a importância do modo further importance of the creative act of severance, the burst
como o antropólogo lê o “texto performativo da cultu- of infor- mation that makes one person visible as an extended
ra”, por oposição ao modo como lê o “texto dramático part of an- other; that makes mother’s brothers feel they are
da cultura”9. only partially connected to their sister’s sons, and that
Uma outra questão que importa clarificar sobre a differentiates between the locations of the person’s identity.
dimensão textual da etnografia é a forma como se esta- The cutting/extension is equally effective, the figures equal to
belece a conexão entre a prática etnográfica e a teoria, one another in substance (….)” (Strathern, 1991, p. 118).
e de expressar esse conhecimento na monografia (ou
no filme etnográfico, ou no etnoteatro). Daí a impor- É essa erupção súbita, essa manifestação repentina
tância em se separar a etnografia como modo de ação e de informação (burst of information), essa emergência
a etnografia como modo de expressão. Clifford (2002), súbita de informação, que torna a pessoa visível en-
discute a ideia de se escreverem etnografias como o quanto parte estendida de uma outra, e que resulta do
modelo de collage, de uma reunião de diferentes for- efeito que determinado material etnográfico contribui
mas que criam um novo todo. Strathern (1991) trabalha para o que está a ser trabalhado, da força que se se-
a proposta de Clifford de forma a evitar a totalização dimenta na perceção de um plano de sentido comum
da cultura, enquanto todo orgânico, a ideia de que as (conectando diferentes escalas de análise). Segundo
partes de que o etnógrafo faz uso são cortadas de um Strathern (2006), a própria prática social funciona já
todo pré-imaginado e concebido. De qualquer forma, pelo processo de corte/extensão. Corte e extensão é já
é sempre pressuposto que os dados de campo arquiva- o procedimento de como se dá sentido à vida. Aliás,
riam esse todo em forma de notas de campo (escritas, uma mera entrevista é já esclarecedora deste facto. Um
fotografadas, filmadas, representadas teatralmente), interlocutor pode estar a falar de um evento e produ-
bem como ao nível da experiência incorporada do in- zir uma extensão repentina com a vida social ao nível
vestigador. Mas seguindo a autora, o problema é que dos costumes para, de seguida, notar algum pormenor
as “partes textuais” são confundidas com as “partes sobre a vida política do país e, logo de seguida, da re-
sociais” da realidade. lação que tem com a sua família, ou com um belo dia
No que diz respeito às partes sociais, a autora su- de sol. Os entrevistados constroem igualmente uma
gere que é por via da comparação, que é por via da narrativa, uma montagem de eventos e ideias por via
analogia, que é por via daquilo a que ela chama de um da colagem, fraturando o tempo, de modo que ele não
rompimento, uma separação, um “ato de corte” (act of é propriamente linear e que os momentos temporais
severance), como diz, um ato que tem sempre uma for- podem surgir em colapso, não sendo introduzidos por
te dimensão criativa e que, justamente por ser criativa sequências causais. Como argumenta Denzin:
Time, space and character are flattened out. The intervals
between temporal moments can be collapsed in an instant.
7 Acerca da dialogia na própria intertextualidade ver Bakhtin (1997). More than one voice can speak at once, in more than one tense.
8 Estas experiências desenvolvem-se no seio da University of Vir- ginia The text can be a collage, a montage, with photographs, blank
com estudantes de Antropologia, e no Department of Perfor- mance
spaces, poems, monologues, dialogues, voice-overs, and
Studies da Tisch School of New York – New York University, com
estudantes de Drama, onde Victor Turner se encontrou com Ri- chard interior streams of consciousness (Denzin, 2001, p. 29).
Schechner, e que veio a resultar no desenvolvimento de uma nova área Como refere Strathern, tanto o corte como a exten-
do saber, os Estudos da Performance. são são igualmente efetivos, igualam-se um ao outro
9 Há aqui uma exportação operativa dos conceitos definidos por Richard em substância. O ato de corte é um ato criativo que
Schechner para as artes performativas. “Performance texts: everything
that takes place on stage that a spectator experiences, from the exibe as capacidades internas das pessoas e o poder
movements and speech of the dancers and/or actors to the lighting, sets, externo das relações (Strathern, 1991), e que é desta
and other technical or multimedia effects. The perfor- mance text is forma que a sociedade parece prosseguir, como uma
distinguished from the dramatic text. The dramatic text is the play, script, configuração de sentido sobre um background de pes-
music score, or dance notation that exits prior to being staged”
soas e relações que constituem um contexto sociocul-
(Schechner, 2006, p. 227). Pretende-se apenas, com esta equiparação, dar
conta das consequências metodológicas que a teoria da performance traz tural. Sendo assim, a antropologia define-sejustamen-
para a observação participante. O texto dramático da cultura poderia não te por via do seu método: a etnografia e a comparação
dar conta de dimensões perfor- mativas que a experiência “da” e que é feita na própria realidade, constituída por via de
“naquela” cultura ainda permi- tem, e que decorrem da natureza da [p.31]
participação etnográfica.

90
conexões parciais. Estas conexões parciais, ao contrá- mando o facto de que todos somos co-performers nas
rio do discurso hegemónico da modernidade na an- nossas vidas, devolvendo aos leitores, ao público, ou
tropologia, operam entre realidades comensuráveis e aos interlocutores, precisamente essa experiência.
incomensuráveis, como veremos, e expressam e tradu- A escrita performativa (Phelan, 1998; Pollock, 1998)
zem questões mais amplas, sobretudo tendo em conta é uma escrita que se expressa simultaneamente a si
que o encontro etnográfico é um encontro informado própria e a partir do que a motivou (é o que faz a escri-
e densificado. ta falar como escrita, algo que implica a desconstrução
No que diz respeito às partes textuais, são a colagem das formações discursivas). Em vez de ser a descri- ção
na escrita e na composição monográfica propriamen- de um evento performativo como “representação
te dita, que procuram justamente dar uma coerência direta”, esta escrita apodera-se novamente da força
retórica ao processo experienciado pelo antropólogo, e afetiva do evento performativo. Ela dirige-se a si pró-
procuram traduzir as extensões produzidas nesse es- pria e às cenas que a motivaram, recriando aquilo que
tar e ser no mundo com a “vida do outro”. No fundo, descreve, tal como pode acontecer, por exemplo, no
é o que a vida vivida faz emergir a partir da qualida- filme etnográfico. Pollock (1998) sugere que a escrita
de do encontro e a partir das múltiplas comparações performativa toma forma no território em que está
possíveis decorrentes das extensões entre si e o outro localizado e que simultaneamente marca, determina,
(antropólogo e interlocutor). Trata-se de traduzir as transforma. Segundo a autora, a escrita performativa
partes, as frações, os encontros, e apresentar as per- evoca mundos que de outro modo eram intangíveis,
formances e os momentos particulares, estabelecendo inlocalizáveis, mundos da memória, do prazer, da sen-
as analogias, as conexões e equiparações necessárias sação, da imaginação, do afeto; tende a favorecer as
para compreender a imaginação cultural, dentro do capacidades generativas e lúdicas da capacidade da
contexto em causa. Na prática social, resultante do linguagem e dos encontros da linguagem (entre o au-
encontro etnográfico e do tipo de relação estabelecida tor e o leitor; o autor e os temas abordados), numa pro-
com o outro, existe já um texto dramático e performa- dução conjunta de significado. Não descreve como no
tivo onde, seletiva ou mesmo assistematicamente, se sentido tradicional um evento ou processo verificado
reconstroem ideias e posições sobre o mundo. Existe já objetivamente. Usa a linguagem como a pintura para
material de sobra para se perceber a integração com o criar o que é mais ou menos evidente, uma versão do
coletivo e as conexões passíveis de reconhecer a socie- que foi, ou do que é. Conduz o leitor-espectador para
dade ou a cultura. Na vida, as ideias do mundo estão uma imediação projetada (mimeticamente) que nunca
sempre a ser colocadas em jogo. O encontro etnográ- esquece a sua genealogia na performance. Ela move-se
fico acaba por ser uma construção, uma fabricação, e opera também através da escrita científica. O escritor
ficção persuasiva que permite a interpretação, arranjo e o mundo dos corpos interligam-se na escrita evoca-
e ordenamento das várias dimensões do mundo estu- tiva, numa co-performance íntima da linguagem e da
dado. Qualquer forma em que se traduzam os dados experiência. Segundo a autora, esta escrita é reflexiva,
etnográficos (monografia, filme etnográfico, ou etno- questiona a estabilidade dos significados porquereco-
teatro) é já o reflexo dessa disposição. nhece que eles são ideologicamente constituídos. E é
A partir da crítica à escrita monográfica, por via do metonímica, e na exposição metonímica, na sua pró-
paradigma da performance, Conquergood (2002) pria materialidade, a escrita sublinha a diferença de
alertou justamente para os problemas do centrismo da um fenómeno baseado no impresso, no corpóreo, no
escrita (scriptocentrism), das monografias se pode- rem afetivo. Ironicamente, a escrita metonímica evoca uma
centrar mais no texto dramático da cultura que no presença do que não está, elaborando aquilo que está.
texto performativo da cultura; alertou ainda para E fá-lo de uma forma parcial, multivocal sendo, igual-
o facto de mais facilmente a escrita olvidar, colocar na mente, consequente, no sentido de ser uma atitude es-
margem, nas fronteiras, todo esse conhecimento tética, ética e política.
humano tácito e performático, sem esquecer que esta Também o filme etnográfico pode bem expressar a
omissão põe em causa a ética da representação. Isto dialogia do encontro e está igualmente engajado com
não quer dizer que a tradução possível numa mono- o tema que o motiva, expandindo-se em mundos sen-
grafia não consiga dar conta das conexões parciais que síveis, permitindo o acesso a realidades do foro da
esse conhecimento possa permitir fazer. Apenas abriu experiência, permitindo uma leitura reflexiva e críti- ca
espaço à experimentação de diferentes formas de tra- por parte do público, ao convocá-lo e transportá-lo
dução cultural e, acima de tudo, de uma sensibilidade justamente para a partilha dessa experiência. E assim,
pertinente para as técnicas de estar e ser na observa- o filme também comunica conhecimento etnográfico
ção participante, nos diferentes tipos de participação ao público por via da sua “escrita” particular. O es-
possíveis, e no que dos papéis de investigador resul- pectador é convocado a interpretar os sentidos subja-
tantes podem contribuir para a qualidade da etnogra- centes ao encontro, nas várias dimensões da realidade
fia. Abriu espaço à sensibilidade performativa e trou- representada. É como se a memória, pelo discurso pro-
xe novas óticas para a perceção e análise do material duzido, se tornasse tangível. Há uma objetivação da
cultural. Enquanto forma de tradução e de expressão história pelo modo reflexivo de construção discursiva
etnográfica, tanto o filme etnográfico como o etnotea- dos interlocutores e que, com a edição, pode resultar
tro surgem como possibilidades para explorar e trans- numa troca de vozes, relativizando os factos sociais,
formar informação em experiência partilhada, confir- destrinçando a sua operacionalidade na vida, expres-
[p.32]

91
sando e acentuando a performatividade da etnografia. dispersa por todo o mundo, construindo o mosaico da
O que importa ainda clarificar em relação à etno- diferença cultural. Fruto do trabalho etnográfi- co em
grafia é que ela não é politicamente inocente. A retó- diferentes locações culturalmente definidas, e com a
rica reflexiva da etnografia tem ajudado a politizar a retórica do discurso antropológico baseada na
própria etnografia no que diz respeito à posição do construção de ideias comensuráveis, formaram-se as
antropólogo no processo de construção e tradução do estratégias localizantes (Fardon, 1990), uma estratégia
conhecimento cultural. Sem descartar os textos, o narrativa de descrever o mundo que ancora concei- tos
paradigma da performance questiona a representação a topografias concretas10. Elas tornam-se no modo
do outro ao trazer para o debate a performance dialó- como a antropologia produz a cultura através da com-
gica como um imperativo ético. Ela assume-se como paração produzindo, assim, diferentes contextos (no
um modo alternativo de saber, responsabilizando o et- seu sentido topográfico). Aqui, a comparação torna-se
nógrafo quanto à qualidade do seu testemunho sobre simultaneamente um fenómeno de fixação e circula-
o outro, e impondo a necessidade de uma vigilância ção de ideias entre diferentes lugares (podendo serem
epistemológica decorrente da responsabilidade ine- exportadas ou importadas). Acontece que no processo
rente à representação que produz a razão da etnogra- de comparação, frequentemente, essa circulação toma
fia. O que daí resulta é que a etnografia constitui-se a forma de uma negação ou inversão da relação que
como o modo epistemológico da antropologia. É isso existe entre os termos aplicados (da mesma família de
que determina o conhecimento produzido, e que legi- significado) e consequentemente, se produz uma ima-
tima a produção de teoria, pela comparação intrínse- gem reprovativa ou pejorativa do conceito (Strathern,
ca à interpretação e análise das partes sociais que se 1990). Por outras palavras, um conceito que produz
convertem em partes textuais, não só aquelas que a asserções eficazes para explicar uma identidade per-
monografia trabalha, mas também as partes resultan- mitiria dizer, no processo de comparação, que uma ou-
tes do encontro etnográfico filmado, das equiparações tra identidade em que isso não se verifica é uma “não-
possíveis que esse material completa e permite com- -identidade” relativamente ao aspeto que o conceito
produziu. Definindo a identidade pela negação enfra-
por. No filme, por exemplo, pode-se justapor imagens
representativas (do arquivo), adensando a descrição; quece-se, escusadamente, a sua capacidade analítica11.
ou ainda as partes sociais que se utilizam para se fazer Até que ponto é que os conceitos limitam ou não o
etnoteatro, quando se entra no processo de construção conhecimento cultural? Serão estes conceitos a tra-
de um espetáculo teatral, no domínio do “como se”, e dução de características hegemónicas de determinada
se trabalha a representação de modos de estar e ser no cultura, do processo de invenção da cultura, ou serão
mundo historicamente determinados criando, por formações discursivas que se sedimentam a partir de
isso, um texto dramático e performativo particular que uma ontologia prévia do mundo real? Perguntas como
pode ser feito com os interlocutores que se pensam (e estas produziram uma crise no seio da antropologia,
aqui, o etnoteatro torna-se igualmente metodologia). permitindo a crítica a todos os literalismos adjacentes.
Estas três formas de expressão etnográfica (monogra- A “morte do sujeito”, a morte das categorias univer-
fia, filme etnográfico, e etnoteatro) envolvem lógicas sais, desmantelaram o argumento comparativista vi-
de pensamento, diferentes níveis de interpretação, de gente. Contudo, o problema da comparação persiste,
perceção, racional e afetiva, determinado por uma ex- ainda hoje, pouco claro. Permanece o perigo em se co-
periência etnográfica própria. Elas complementam-se meter o erro fundador, a ideia de que a antropologia
e aperfeiçoam-se umas às outras, quer por via dos seus mapeia culturas, agora num cenário fragmentado, e
processos de construção distintos (do seu modo par- que agora o trabalho da antropologia seria refazer o
ticular de fazer etnografia e traduzir conhecimento), mapa na mesma lógica de sentido, apenas num mun-
quer pela possibilidade de se produzirem diferentes do transformado.
campos de perceção para o leitor-espectador. Investe-

se na relação com ele, implicando-o a diferentes níveis [p.33]


com diferentes tipos de conhecimento etnográfico. A 10 Appadurai (1986) denomina-as de “conceitos encarcerados”
(gatekeeping concepts), já Strathern (1988) prefere chamar-lhes “to-
partir do interior destes diferentes modos de expres- pografias concretas”. Strathern (1987) explora a comparação an-
são etnográfica crê-se expressar de uma forma insur- tropológica através do conceito de contexto, numa visão tripartida
gente a tradução cultural. (evolucionismo, estrutural-funcionalismo, pós-modernismo), dis- cutindo
as ficções persuasivas da narrativa antropológica. Dir-se-

-ia que a noção de contexto que conduz à formação das topografias


3. Comparação enquanto método concretas foi uma das consequências da ficção persuasiva do estru- tural
etnográfico: modelos analíticos funcionalismo, ancorada no positivismo.
entre a prática e a teoria
11 Em outro texto, Strathern sintetiza disjunções como: “1) divi- ding

data into domains, such as kinship or economy, which are then collapsed
Não se pretende, também aqui, a análise da evolu- or seen as versions of one another; 2) defining concepts by negation – the
ção do conceito de comparação na antropologia des- X have (say) no concept of ‘culture’ – in order to intro- duce discontinuities
de a construção imagética da “sociedade primitiva”, into what are habitual dichotomies in western thought (e.g., the contrast
através da separação intrínseca do “Ocidente e o Res- between culture and nature); 3) cross-cul- tural comparison which rests on
an elucidation of similarities and differences but always implies the
to”. Ainda assim, interessa lembrar que a função da distinctiveness of units so com- pared; and 4) internal comparison within
antropologia era, enquanto prática, mapear a cultura the analysis between us and them, now and then (the other being
presented as a version of oneself or in antithesis to the familiar self)”
(Strathern, 1987, p.261).

92
Para Bauman (1992), o conceito de “habitat” ocupa dependente da presença e da qualidade da participa-
o lugar na teoria social onde a agência opera, produ- ção.
zindo-se no curso dessa operação, sugerindo que a no- Os modelos de análise cultural proporcionam uma
ção de agência deve ser combinada com a ideia flexível fonte de compreensão que dá sentido à experiência no
de habitat, o habitat em que a agência opera, onde se terreno, no cruzamento entre habitats de significado e
encontra as suas fontes e os seus objetivos. Então, o ha- a socialidade criada. E por modelo cultural enten- de-
bitat oferece à agência os recursos de toda a ação pos- se um sistema de referência que modela os com-
sível. Como argumenta, é o território dentro do qual a portamentos de determinado coletivo, privilegiando
liberdade e a dependência da agência são constituídas, valores, compondo-os e hierarquizando-os, para dar
o palco onde a ação e o significado se tornam possí- sentido às ações da vida. Qualquer que seja a força
veis. Também para Hannerz, esta ideia estende-se a motivadora dos modelos culturais, ela é condicionada
“habitat de significado” (o nome que optamos usar), e pela prática, e não por um qualquer código abstrato
que inter-relaciona o sentido físico (o sentido de (Hastrup, Hervik, 1994). Deste modo, os modelos de
presença, da experiência de estar, da energia do fazer análise cultural valem enquanto interpretações in-
que Bauman fala), com as capacidades, as competên- formadas da experiência, ou seja, enquanto concep-
cias e possibilidades interpretativas (Hannerz, 1996), tualizações que as diferentes culturas constroem, de-
uma ecologia do self. A produção do habitat de signi- corrente da forma como validam o conhecimento na
ficado só é possível com extensões, relações, conexões experiência das suas vidas. E como isso só é acessível
parciais que se estabelecem entre si e o outro, entre as através das partes sociais que acontecem no encontro
múltiplas agências (corpos, espaços, objetos). E aqui, é etnográfico, são elas que informam o antropólogo no
o corpo físico (e o lugar em que se encontra) que acaba jogo que conecta igualmente a sua própria experiên-
por produzir a ilusão do conceito ser topográfico. O cia e que ele terá de fazer traduzir, enquanto jogo da
corpo assegura a perceção e a expressão, revela a per- etnografia. É, por isso, imperativo participar. A com-
formatividade da vida. É no cruzamento e sobreposi- paração deixa de estar na própria cultura para passar
ção de vários habitats de significado que se podem for- a estar na etnografia, no destino que o antropólogo dá
mar coletivos, grupos, comunidades. Assim, o habitat aos seus dados etnográficos, às equiparações entre as
de significado é constituído num processo que conecta partes sociais que a sua experiência com o outro per-
o nosso capital emocional, a nossa história, memória mitiu construir ou induzir. Para compreender essas
afetiva e pensamento, e que se consuma através de um equiparações no processo de comparação, estas partes
corpo num determinado lugar. Mas também é sociais podem ser comensuráveis ou incomensuráveis
constituído pela forma como uma pessoa se constrói, entre si e, ainda assim, produzirem uma lógica de sen-
os métodos e estratégias que incorpora e de que faz tido.
uso para experimentar relações. É, portanto, conteúdo Lambek (1993; 1998), argumentou que o conceito de
(posições ideológicas e éticas, sentimentais e afetivas), incomensurabilidade é distinto de contradição, opo-
mas também modo de operar com ele (competências, sição, incompatibilidade ou incomparabilidade. Ele
motivações, capacidades). A ideia de habitat lembra- opõe-se a comensurabilidade e, portanto, à impossi-
nos que apropriamos o espaço construindo um mapa bilidade de se poder mediar duas coisas com um ins-
topográfico de significado. Contudo, é antes um mapa trumento de medida comum. A incomensurabilidade,
impregnado de afetividade, de história que se espar- diz Lambek, pode ser um potencial de mais-valia da
tilha ao longo das nossas emoções ressonantes, é um comparação, ao tornar visíveis processos complexos,
mapa simbólico da vida, o habitat de significado. aparentemente incompatíveis no seio de uma, ou mes-
Para resolver o problema da comparação na antro- mo entre várias culturas. Porque na própria prática so-
pologia, tem de se procurar na forma como se con- cial, nos mecanismos culturais de socialização, as par-
ceptualiza o conhecimento, como os membros de um tes comensuráveis e incomensuráveis estão sempre a
determinado grupo objetivam e materializam esse ser comparadas, podendo conjugar vários planos de
conhecimento. Perceber esta questão é revelar a na- sentido e várias lógicas de pensamento em conjunto,
tureza construída do conhecimento etnográfico e sa- mesmo que as pessoas não tenham consciência que o
ber relacionar a prática com a teoria. Na verdade, a fazem, é o que configura o habitat de significado. A
própria realidade sociocultural, na complexa ilha de incomensurabilidade dos discursos e das ações terá de
significado em que o etnógrafo se move, se constitui já ser sempre articulada pela hermenêutica local, em que
em muito material para o antropólogo comparar, e que um constrói a interpretação do outro (Lambek, 1993;
se poderá manifestar nas equiparações que a tradução 1998).
cultural deve fazer. Aqui, continuando com Jackson Para exemplificar a conexão parcial entre modelos
(1989, p. 4), o método comparativo torna-se mais uma que emergem da etnografia, Wikan (1991; 1992), numa
questão de encontrar similitudes e diferenças da nossa etnografia sobre o modo de vida em Bali, revela um
própria experiência em conjunção com a experiência possível caminho para a comparação em termos me-
dos outros, do que encontrar as similitudes e diferen- todológicos. Ao perceber que o “sentir-pensar” (fee-
ças “objetivas” entre culturas. Se há um mapa, será um ling-thinking) é o modo de compreensão e inscrição
mapa de experiências, e dos habitats de significado fundamental para validar o conhecimento das pessoas
configurarem uma espécie de ilha de significado para de Bali, produz-se um modelo cultural que não sepa-
perceber a escala do coletivo. Tal enquadramento será [p.34]

93
ra a razão dos sentimentos12. O modelo em Bali anco- lugar, há a possibilidade de importação (e exportação)
ra o conhecimento com a experiência de uma forma de modelos analíticos culturais, refinando os conceitos
que questiona a ideia na perspetiva ocidental. O sen- em termos da sua heurística, agora para um novo con-
tir-pensar implica envolvimento, e a consciência que texto cultural. Aqui, o trabalho do antropólogo seria,
se tem dele parece ser incorporada. O conhecimento então, a análise dos modelos culturais, podendo im-
ocidental teve sempre a tendência de menosprezar o portar modos de análise se eles entrarem em diálogo
sentimento, porque subjetivo, e sempre suspeito de direto com a interpretação da realidade estudada. A
nebulosidade racional. Ao se perceber o modo como interpretação do grupo estudado pode sugerir já simi-
as pessoas de Bali conceptualizam a forma como se litudes com um modelo cultural já conhecido. E esse
adquire conhecimento, Wikan sugere que talvez o sen- modelo conhecido, para o antropólogo, constituiu a
tir-pensar seja um processo crucial para se adquirir priori um novo conhecimento de si próprio, de enten-
conhecimento sobre si, sobre o outro e sobre o mundo der a sua própria cultura. Pode então reter, dessa aná-
(em Bali, mas também no Ocidente). lise dos modelos culturais, conhecimento suplementar
No Ocidente, por exemplo, a partir de uma inves- para percebermos uma qualquer outra realidade es-
tigação que conduzi a um grupo de teatro univer- tudada. Se a viagem etnográfica necessita da partida,
sitário, e para o que aqui importa, o modo como os que seja o jogo teórico analítico e comparativo, o mo-
membros do grupo percecionam a prática teatral, bem vimento do regresso.
como aquele período da sua vida social, assenta num Miller (2007) propõe a extensão do olhar antropo-
sentir-pensar diferente do hegemónico ocidental. As lógico na sua radicalidade metodológica para com-
emoções trabalhadas, e os sentimentos ensaiados no preender, dentro de uma atualização assumida, o
jogo dramático, bem como toda a sua operacionalida- “macrocosmo” e a sua interligação com o “microcos-
de (sistematizável em modelos, ou em metodologias mo”. O holismo presente em cada indivíduo leva à
teatrais), enquanto mecanismo de produzir extensões, proposta desta ideia de comparação que temos vindo
são igualmente um modo de trabalhar posições no a debater (a comparação intrínseca às partes sociais, e
mundo, mas também de se sedimentarem essas posi- a comparação que a análise destas partes sociais per-
ções e os mecanismos envolvidos para a ação. A partir mite). Agora, um indivíduo pode ser uma sociedade.
das competências do corpo, interfere-se no processo O diálogo entre os dois extremos da análise sociocul-
de incorporação ao longo da vida, e que é trabalhado tural, o muito pequeno e o muito grande, impele à
de forma muito intensa no teatro, onde se tem de estar observação microscópica (o individuo como elemento
sempre disponível para, a partir da sua experiência, se de uma sociedade; o “interlocutor privilegiado” den-
engajar com mundos outros, outras possibilidades de tro de uma comunidade que servia para a antropolo-
vida, outros modos de relação. O jogo dramático gia fazer analogias e perceber “o todo”, como se do
trabalha e atualiza uma géstica, tendo influência no “todo” a comunidade se tratasse). Segundo o autor,
modo de sentir-pensar a realidade, como uma força, e essa observação micro também participou nas “gene-
que se ancora na experiência individual e coletiva, ralizações do mundo”. Contudo (e curiosamente), esse
configurando aquilo que denominamos por ilha de mesmo mundo se tem manifestado numa simultânea
significado. Sendo assim, torna-se possível a equipa- maior particularização da identidade. O indivíduo
ração do modelo cultural que caracteriza as pessoas de torna-se a possível escala da comunidade que se pode
Bali ao da produção da identidade deste grupo, e em cruzar com o mundo. Miller propõe “assumir a pers-
habitats de significado completamente díspares (algo petiva mais holista e englobante que encarcera o indi-
que, aparentemente, pareceria à primeira vista víduo como uma sociedade, recorrendo ao trabalho de
inverosímil porque incomensurável). Este passo com- campo” (Miller, p. 122). Segundo o autor, os mesmos
parativo é heurístico e apenas serve para compreender conceitos operatórios e categorias sociais podem ser
a realidade estudada, não tendo qualquer tipo de am- metodologicamente usados para estudar uma pessoa
bição comparativa essencialista ou universalista. ou o contexto mais amplo em que se insere, a socieda-
Em primeiro lugar, há a comparação que opera na de. Há uma lógica, uma cosmologia, uma “sociedade
realidade social, quer entre comensuráveis, quer entre autónoma” em cada indivíduo, expressão de um ha-
incomensuráveis, com a qual o antropólogo se con- bitus que lhe é peculiar mas que traduz um determi-
fronta no encontro etnográfico porque são imanentes nado contexto social e histórico. Os dados biográficos
da realidade sociocultural. É ao nível da análise produ- de uma escala micro podem caracterizar uma escala
zida pelas etnografias enquanto prática, dos conceitos macro, mais ampla.
operatórios emergentes da lógica de ser e estar local, Entre a perspetiva de baixo para cima e a de cima
que as comparações podem ser encetadas, enquanto para baixo, para estudar o indivíduo (que é estudar a
estratégia de produção do conhecimento. Em segundo sociedade), as “tecnologias de objetivação”13 cons-
[p.35]

12 O trabalho de Damásio (1994) coloca em causa este mito oci- dental, 13 Para Michael Lambek (1993, p. 307), a objetivação é interdepen-
da razão estar separada das emoções, precisamente através do discurso dente da incorporação, há uma dialética particular entre ambas. A
das ciências biológicas que o produziram. Curiosamen- te, é na altura em objetivação é encarada como um processo que segue o curso dos corpos
que Unni Wikan escreve que já prolifera no Oci- dente literatura em vários e das pessoas “na” e “dentro” da esfera pública. Refere-se às
domínios científicos a pôr em causa esta incomensurabilidade. características que são externalizadas e com um certo grau de inde-
pendência dos corpos, signos, regras, efeitos, ou constrangimentos

94
tituem o elo teórico que fazem da prática etnográfica a a variação de escalas de contexto é importante para se
génese da produção de modelos de análise. Assim, perceber todas as dimensões do fenómeno sociocultu-
Miller propõe-nos duas dimensões de análise que, me- ral em análise. A escala de análise é, sem dúvida, um
todologicamente, o etnógrafo terá que identificar. Por tópico inviolável da pré-imaginação etnográfica, bem
um lado, uma dimensão vertical que corresponde ao como dos contínuos ajustamentos ao longo da investi-
que os interlocutores, agora “agentes totais”, enquan- gação. A este propósito, Cordeiro diz-nos que
to pessoa, informam e fundamentam numa ordem an- a macro-escala da ‘sociedade global’ faz parte das micro- reali-
cestral existente (a história da pessoa e seu habitat de dades, territoriais ou outras, constr[uindo] ela também a mi-
significado, o background sociocultural, a geração a que cro-escala. Só conceptualmente se pode introduzir esta sepa-
pertenceu, o seu papel e a sua visão do grupo, etc.), e ração artificial, e só como estratégia metodológica se acentua
que cabe à análise detetar a sua referencialidade. São mais a grande-escala, tentando agarrar a perspectiva emic do
estas objetivações dos sujeitos sociais/culturais em real vivido, ou uma escala mais pequena, mudando a lente de
análise, que nos conduzem, por analogia, ao estado do observação para uma perspectiva mais etic e distanciada de
mundo na sua visão macro. Por outro lado, deve- se uma determinada realidade social. (Cordeiro, 1997, p. 444).
ter em conta, para todos os casos etnográficos, uma
dimensão horizontal, um campo da vida, “estético”, É necessário olhar o local e o global como duas di-
produtor do habitus [como em Bourdieu (2002; 2005)], mensões da realidade, da reprodução sociocultural. O
ou o contexto homólogo interveniente que justifica de- local é relacional e contextual, uma dimensão da vida
terminada ocorrência sociocultural coerente, influente social, uma propriedade fenomenológica estruturada
na identidade, como viável e produtora de sentido. A em práticas e em modos e formas particulares de as
dimensão de análise vertical apresenta-se como com- reinventar, produzindo efeitos materiais específicos
plementar à horizontal. É justamente neste cruzamen- nas relações coletivas (Appadurai, 1997). Constituem
to que, segundo Miller, se determina, hoje, a produção ilhas de significado que organizam e dão sentido à
da identidade. vida partilhada. Já a dimensão global refere-se a tudo
O foco de estudo deixa de incidir sobre as estru- o que é produzido para além das relações face-a-face
turas, padrões, os produtos sociais, para passar a na vida quotidiana e opera através das novas tecno-
trabalhar as lutas, as histórias, tensões, os desejos, as logias da comunicação e das estratégias espetaculares
nostalgias, símbolos e performances que produzem e que daí decorrem, no sentido das novas “encenações”
são produzidas pelas estruturas, padrões, e produtos e estratégias que a consciência coletiva usa para a pro-
sociais, tal como na antropologia que Conquergood dução de dramaturgias (Chaney, 1993). Com as duas
(1991) (Madison, 2005; Madison, 2006a) defende. O dimensões produz-se o contexto. Por isso importam as
terreno intersubjetivo dos modos de ser e estar num ferramentas analíticas e mecanismos de que a ciência
determinado coletivo produz então, as partes sociais social se faz munir para capturar, perceber e intersec-
que o antropólogo trabalha, dialogicamente, numa ob- tar estas dinâmicas aceleradas da identidade no seu
servação que decorre da participação ativa. O próprio contexto. Que limite micro e macro apropriado para a
encontro etnográfico expressa isso mesmo, uma jus- explicação/interpretação dos territórios de influência
taposição ou colagem em que se compara por níveis de em que o observador se move, o da diferença cultu-
equiparação e, assim, dando sentido à realidade ral? Como os assumir e articular? Passará, com certe-
vivida. Deste modo, é pela natureza da comparação za, pela elaboração metodológica, e na determinação
que se percebe a relação entre a prática etnográfica e a de fontes que tenham em conta as duas dimensões da
teoria antropológica, no que diz respeito às partes vida sociocultural. É através da combinação das es-
sociais de que o antropólogo se serve no processo do calas que, por outro lado, se constroem os níveis do
trabalho de campo. Como vimos, na própria realida- espaço de fronteira que constitui o objeto de estudo e
de, a comparação na vida vivida opera já por via da melhor se gerem as esferas de controlo metodológico
incomensurabilidade, de informação que aparece co- implicadas.
nectada e relacionada nos encontros sociais, inseridos
num determinado contexto, e decorrentes das exten- Bibliografia
sões produzidas pela pessoa e das conexões parciais Appadurai, A. (1997). Modernity at Large: Cultural
que o antropólogo visibiliza. Dimensions of Globalization. Delhi: Oxford University
Para definir o contexto de análise (o constituir e di- Press.
mensionar) é necessário uma tomada de decisão me-
todológica acerca do alcance e detalhe que se pretende Appadurai, A. (1986). Theory in Antropology: Center and
investigar. Uma mudança de escala implica uma mu- Periphery. Comparative Studies of Society and Geography, 28
dança de fenómeno e cada escala revela fenómenos e (2), (April): pp. 356-361.
omite ou distorce outros (Santos, 1987). É por isso que

Bastos, C. (1997), “Macroantropologia: como chegar aos


da construção da pessoa (personhood). É a objetivação que permite que o imponderáveis quotidianos da aldeia global”. In
conhecimento incorporado seja percetível pelos outros. É por isso que, Dinâmicas Culturais: Novas Faces, Outros Olhares. Actas
para Lambek, o conhecimento só pode ser entendido no contexto da
das sessões temáticas do III Congresso Luso-Afro-
prática.
Brasileiro de Ciências Sociais. Lisboa, 4-7 de Julho de
1994. Lisboa,

[p.36]

95
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Cartografia Simbólica das Representações

97
2.3 (Re)descobrir objetos e terrenos: arquivos,
corpos e ciberespaço

No final deste capítulo deverá:

• Analisar novas abordagens contemporâneas, novos terrenos de


investigação etnográfica
Texto 5: Gonçalves, José (2007) Teorias Antropológicas e Objetos Materiais, In
Antropologia dos objetos: coleções, museus e patrimônios, Coleção Museu,
Memória e Cidadania. Rio de Janeiro.
http://naui.ufsc.br/files/2010/09/antropologia_dos_objetos_V41.pdf
Texto 6: Almeida, Miguel (1996) Corpo presente Antropologia do corpo e da
incorporação. In Corpo Presente: Treze Reflexões Antropológicas sobre o
Corpo, Miguel de Almeida (Org.). Oeiras, Celta Editora.
http://miguelvaledealmeida.net/books/CorpoPresente.pdf
Texto 7: Silva, Adelina (s.d.)Ciberantropologia. O estudo das comunidades
virtuais. http://bocc.ubi.pt/pag/silva-adelina-ciberantropologia.html

Nestes dois textos deverá analisar e escrever:


Novos objetos de investigação etnográfica: ex. objetos, corpos, ciberespaço
Possibilidades de estudo

Outros recursos, outras leituras, outras escritas:


Silva, Adelina (s.d.) Ciberantropologia. O estudo das comunidades virtuais.
http://bocc.ubi.pt/pag/silva-adelina-ciberantropologia.html
Joan Josep Pujadas Muñoz (2013) "Identidade, Transnacionalismo e
Cidadania". Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social -UFRGS
https://vimeo.com/channels/677384/71818578

98
Texto 5
Teorias Antropológicas e Objetos Materiais
josé reginaldo santos gonçalves

“Ao colocar a natureza simbólica de seu objeto, a antropologia social não


pretende nem por isso afastar-se das realia. Como poderia fazê-lo uma
vez que a arte, onde tudo é signo, utiliza veículos materiais? Não se
podem estudar os deuses e ignorar suas imagens; os ritos, sem analisar
os objetos e as substâncias que o oficiante fabrica e manipula; regras
sociais, independentemente de coisas que lhes correspondem. A
antropologia social não se isola em uma parte do domínio da etnologia;
não separa cultura material e cultura espiritual. Na perspectiva que lhe
é própria – e que nos será necessário situar – ela lhes atribui o mesmo
interesse. Os homens se comunicam por meio de símbolos e signos; para
a antropologia, que é uma conversa do homem com o homem, tudo é
símbolo e signo que se coloca como intermediários entre dois sujeitos.”
claude lévi-strauss

Casas, mobílias, roupas, ornamentos corporais, jóias, armas,


moedas, instrumentos de trabalho, instrumentos musicais, variadas
espécies de alimentos e bebidas, meios de transporte, meios de
comunicação, objetos sagrados, imagens materiais de divindades,
substâncias mágicas, objetos cerimoniais, objetos de arte,
monumentos, todo um vasto e heteróclito conjunto de objetos
materiais circula significativamente em nossa vida social por intermédio
das categorias culturais ou dos sistemas classificatórios dentro dos quais
os situamos, separamos, dividimos e herarquizamos. Expostos
cotidianamente a essa extensa e diversificada teia de objetos, sua
relevância social e simbólica, assim como sua repercussão
subjetiva em cada um de nós, termina por nos passar desapercebida
99
em razão mesmo da proximidade, do aspecto familiar e do caráter de
obviedade que assume. Na maioria das vezes, a tendência mais forte é
para o esquecimento da existência e da eficácia dos sistemas de
classificação a partir dos quais esses objetos são percebidos: quando,
por exemplo, nos limitamos a perceber estes últimos segundo uma
“razão prática” (Sahlins 1976), a partir da qual eles existiriam em função
de sua [p.14] utilidade, manipulados por “indivíduos” a partir de suas
necessidades e interesses supostamente universais (Dumont 1985;
Sahlins 2004 [1996]) 120, conforme sugere uma perspectiva a que um
autor chamou de “concepção estratigráfica” da cultura (Geertz 1989:
25-40).

Essa epistemologia, cabe sublinhar, pressupõe uma


naturalização das modernas categorias ocidentais de “sujeito” e
“objeto” cuja problematização parece ser a condição mesma para uma
reflexão antropológica. A literatura antropológica e etnográfica tem nos
ensinado há mais de um século que são precisamente esses sistemas de
categorias culturais que fazem a mediação e, mais que isso, organizam
e constituem esses dois termos polares, e que sem esses sistemas de
categorias, sem sistemas de classificação, os objetos materiais (assim
como seus usuários) não ganham existência significativa (Durkheim &
Mauss 2001 [1903]; Mauss 2003; Boas 1966
[1911]; Whorf 1984 [1956]; Sapir 1985 [1934]; Lévi-Strauss 1962;
Douglas 1975; Sahlins 2004 [1976]; Geertz 1973).

20
(1) Para uma reflexão original e problematizadora da categoria “indivíduo” no contexto da sociedade
eda cultura brasileira ver a obra de RobertoDaMatta (1980)

100
Na medida em que os objetos materiais circulam
permanentemente na vida social, importa acompanhar descritiva e
analiticamente seus deslocamentos e suas transformações (ou
reclassificações) através dos diversos contextos sociais e simbólicos:
sejam as trocas mercantis, sejam as trocas cerimoniais, sejam aqueles
espaços institucionais e discursivos tais como as coleções, os museus e
os chamados patrimônios culturais. Acompanhar o deslocamento dos
objetos ao longo das fronteiras que delimitam esses contextos é em
grande parte entender a própria dinâmica da vida social e cultural, seus
conflitos, ambigüidades e paradoxos, assim como seus efeitos na
subjetividade individual e coletiva. Os estudos antropológicos
produzidos sobre objetos materiais, repercutindo esse quadro, têm
oscilado seu foco de descrição e análise entre esses contextos sociais,
cerimoniais, institucionais e discursivos.

Os antropólogos e seus objetos

Não será exagero afirmar que o entendimento de quaisquer


formas de vida social e cultural implica necessariamente na
consideração de objetos [p.15] materiais. Estes, na verdade, sempre
estiveram presentes na história da antropologia social e /ou cultural e
particularmente na literatura etnográfica. Alguns se tornaram célebres:
os churinga nos ritos australianos (Durkheim 2000); os colares e
braceletes do circuito do Kula trobriandês (Malinowski [1922] 1976); as
máscaras dogon (Griaule 1938). Mas ao longo da história da disciplina
nem sempre os antropólogos estiveram voltados
para o estudo dos objetos materiais enquanto tema específico de
101
descrição e análise. Acompanhar as interpretações antropológicas
produzidas sobre os objetos materiais é até certo ponto acompanhar as
mudanças nos paradigmas teóricos ao longo da história dessa disciplina.

Em fins do século XIX e início do século XX, na condição de


“objetos etnográficos”, eles foram alvo de colecionamento,
classificação, reflexão e exibição por parte de autores cujos paradigmas
evolucionistas e difusionistas situavam-nos no macro- contexto da
história da humanidade. O destino desses objetos era não somente as
páginas das obras etnográficas (não necessariamente produzidas por
antropólogos profissionais, mas por viajantes e missionários) e das
grandes sínteses antropológicas do período, mas sobretudo os espaços
institucionais dos museus ocidentais, ilustrando as etapas da evolução
sócio-cultural e os trajetos de difusão cultural.

Objetos retirados dos contextos os mais diversos, dos mais


distantes pontos do planeta, eram re-classificados com a função de
servir como indicadores dos estágios de evolução pelos quais
supostamente passaria a humanidade como um todo. Uma máscara
ritual da Melanésia poderia ser colocada lado a lado com uma outra de
origem africana. Uma vez identificadas e descritas a sua composição
material e a sua forma esté- tica, uma delas poderia ser classificada
como a que apresentava maior complexidade e pressupondo uma
tecnologia mais avançada do que a outra. Assim sendo, indicariam
estágios hierarquicamente diferenciados de evolução entre as
sociedades de onde vieram. Ou poderiam ser classificadas como
indicadores de um mesmo nível de complexidade e de evolução

102
tecnológica, o que indicaria a posição similar das socieda- [p.16] des que
as produziram na grande escala da evolução sócio-cultural da
humanidade (Stocking 1968; 1985; Chapman 1985; Dias 1991; 1991a;
1994; Gonçalves 1994; ver Capítulo II deste livro).

Os processos históricos de difusão de objetos materiais e traços


culturais entre diversas sociedades preocupavam muitos autores, os
quais viam os objetos como meios de reconstituir esses processos. Ao
longo dos trajetos de difusão os objetos sofriam modificações,
tornavam-se mais complexos. A cultura humana, para eles, era
raramente um assunto de invenção, mas de transmissão. Alguns
operavam com modelos nos quais se traçavam círculos concêntricos,
onde o ponto central era onde supostamente se situava o objeto em sua
forma primeira, sua forma original. Na medida em que se difundia, ele
se transformava. Esse raciocínio valia tanto para objetos materiais como
para instituições, práticas sociais, idéias e valores, sendo que alguns
levaram essa visão a extremos, afirmando que era possível identificar
um único centro de onde teria partido todas as invenções culturais
significativas da humanidade. Apesar das diferenças que os separavam,
os paradigmas evolucionistas e difusionistas no entanto convergiam
quanto a um ponto fundamental: a cultura era concebida como um
agregado de objetos e traços culturais. Isto significa dizer que estes
eram interpretados como elementos que responderiam a questões e
dificuldades universais. Estava aberta a porta para uma percepção e
entendimento claramente etnocêntricos desses objetos e das culturas
da qual faziam parte (Lévi-Strauss 1973: 13-44).

103
Esses paradigmas, com suas divergências e convergências,
forneceram os modelos museográficos dos grandes museus
enciclopédicos do século XIX (Schwarcz 1998; Dias 1991a). O objetivo
destes era narrar a história da humanidade desde suas origens mais
remotas, reconstituindo esse longo caminho até chegar ao que
entendiam como o estágio mais avançado do processo evolutivo: as
modernas sociedades ocidentais. É a partir dessas coordenadas teóricas,
fundadas numa concepção de cultura como um agregado de objetos e
traços culturais, que veio a se delimitar uma área de pesquisa: os
chamados estudos de “cultura material”. Como se possível [p.17] fosse
separar na vida social e cultural o material e o imaterial (ver Capítulo XII
deste livro).

Um ponto importante merece ser ainda assinalado para


entendermos as diferenças entre as formas como os antropólogos
pensaram a categoria “objetos materiais” ao longo da história da
disciplina: nesse período, que ficou conhecido como a “era dos museus”,
diferentemente do que veio a ocorrer em décadas subseqüentes, a
relação entre etnógrafos, antropólogos e museus era bastante próxima.
A antropologia nessa época era de certo modo produzida nos limites
institucionais dos museus (Karp & Levine 1991; Gonçalves 1994; ver
Capítulo III deste livro).

A antropologIa pós-boasiana

Um autor como Franz Boas (1858-1942) ainda em 1896 formulou


uma crítica extremamente poderosa às teorias evolucionistas e
difusionistas e essa crítica se estendia aos modelos museográficos
concebidos a partir daquelas teorias. O ponto forte da argumentação
104
de Boas é o de que esses antropólogos pensavam os objetos materiais
em função de seus macroesquemas de evolução e difusão, esquecendo-
se de se perguntarem pelas suas funções e significados no contexto
específico de cada sociedade ou cultura onde foram produzidos e
usados. Diante de uma máscara melanésia e uma máscara africana, não
era suficiente descrever o material com que eram feitas, nem o estilo
que as caracterizava, nem a tecnologia mais ou menos evoluída com que
eram produzidas. Era necessário saber qual o uso dessas máscaras, e
conseqüentemente qual o seu significado para as pessoas que as
empregavam em diversos contextos sociais e rituais. Em outras palavras,
era preciso saber quem as usava, quando e com quais propósitos, o que
permitiria revelar a diferença verdadeira entre uma máscara melanésia
usada em rituais religiosos e uma outra máscara usada nas festas de
carnaval em algumas sociedades ocidentais. É preciso observar que a
partir dessa crítica desloca-se o foco de descrição e análise dos objetos
materiais (de suas formas, matéria e técnicas de fabricação) para os seus
usos e significados e conseqüentemente para as relações sociais [p.18]
em que estão envolvidos os seus usuários. O estudo comparativo dessas
relações nos revelaria as funções e os significados dos objetos materiais
e dos traços culturais em diferentes culturas (Boas 2004 [1896]);
Stocking 1974; Jacknis 1985).

A antropologia pós-boasiana – ou pós-malinowskiana, se


utilizarmos a obra de Bronislaw Malinowski (1884-1942) como
referência – produzida a partir das primeiras décadas do século XX veio
de certo modo a relegar progressivamente o estudo da “cultura

105
material” a uma posição marginal na disciplina, em grande parte devido
ao desgaste sofrido pela perspectiva etnocêntrica da antropologia
vitoriana. Apesar disso, é importante enfatizar que os objetos materiais
jamais vieram a se ausentar das páginas das monografias
antropológicas. Esse período da história da antropologia, marcado pela
sua profissionalização e pela junção dos papéis de “etnógrafo” e de
“antropólogo” distingue-se pelo afastamento dos antropólogos
profissionais em relação aos museus. A produção científica da
antropologia social ou cultural desloca-se dos museus para os recém
criados departamentos de antropologia nas universidades (Clifford
1988: 21-54; Jacknis 1996; Stocking 2004;
Stocking 1985; Schwarcz 1998).

Nas décadas subseqüentes, especialmente após a II Guerra


Mundial, os antropólogos sociais britânicos de orientação estrutural-
funcionalista e voltados para o estudo de “sociedades” (ao invés de
“culturas”) interpretarão os objetos materiais como sinais diacríticos a
indicar posições sociais, pouco importando a descrição e análise da
forma e do material e da técnica com que eram produzidos esses
objetos. A formação desses antropólogos não passava necessariamente
pelos museus e pela atenção à “cultura material” e as teorias
antropológicas com as quais operavam vieram a deslocar o seu foco de
discussão dos objetos materiais para as relações sociais e para os
significados dessas relações. Os objetos vão ser interpretados com base
num esquema teórico onde eles existiam não em função de estarem
respondendo a necessidades práticas universais, nem como indicadores
de processos evolutivos e de difusão, mas como meios de

106
demarcação de identidades e posições na vida social. No início [p.19]
dos anos sessenta, o antropólogo Edmund Leach (1910-1989), ao refletir
sobre o que ele pensava ser a diferença fundamental entre o conceito
de “sociedade” e o conceito de “cultura” dizia:

“A cultura proporciona a forma, a “roupagem” da situação


social. Para mim, a situação cultural é um fator dado, é um produto e
um acidente da história. Não sei por que as mulheres kachin antes de se
casarem andam com a cabeça descoberta e o cabelo cortado curo, mas
usam um turbante depois, tanto quanto não sei por que as mulheres
inglesas põem um anel num dedo particular para denotar a mesma
mudança de status social; tudo o que me interessa é que nesse contexto
kachin o uso de um turbante por uma mulher tem esse significado
simbólico. É uma afirmação sobre o status da mulher” (1995 [1964]: 79).

Se interpretamos o texto corretamente, pouco importava


teoricamente se uma mulher kachin, ao passar da condição de solteira
para a de casada, passava a usar um turbante; enquanto uma mulher
ocidental passava a usar uma aliança na mão esquerda. O importante,
do ponto de vista do analista, era que um e outro objeto estariam
demarcando uma mudança de status, especificamente da condição de
solteira para a condição de casada. Nessa perspectiva, os objetos
materiais são pensados como um sistema de comunicação, meios
simbólicos através dos quais indivíduos, grupos e categorias sociais
emitem (e recebem) informações sobre seu status e sua posição na
sociedade (Leach 1995 [1964]; Graburn 1975; Douglas 1982; Douglas &
Isherwood 2004; Miller 1987; 1995; Bourdieu 1979).

107
Os estudos de antropologia simbólica

Já os estudos antropológicos voltados especificamente para a


natureza e as funções específicas do simbolismo na vida social,
especialmente a partir dos anos sessenta, resgataram a relevância social
e cognitiva do estudo dos objetos materiais no contexto da vida
cotidiana, dos rituais e dos mitos. Este é o caso dos estudos de
antropologia estrutural; e também dos estudos produzidos pela
chamada “antropologia simbólica” (Dolgin; Kemnitzer; Schneider 1977).
[p.20]

Muitos desses antropólogos virão a contestar aquela concepção


defendida por Edmund Leach e irão perguntar se o papel dos objetos
materiais (e dos símbolos em geral) na vida social se resume afinal a essa
função de comunicação, a de serem apenas sinais diacríticos de posições
e identidades sociais. E vão sugerir que os objetos não apenas
demarcam ou expressam tais posições e identidades, mas que na
verdade, enquanto parte de um sistema de símbolos que é condição da
vida social, organizam ou constituem o modo pelo qual os indivíduos e
os grupos sociais experimentam subjetivamente suas identidades e
status. A partir dessa perspectiva, seria sim relevante saber por que uma
mulher kachin usa turbante e por que uma mulher ocidental uma aliança
no dedo anular esquerdo. Seria relevante conhecer a forma desses
objetos, o material e a técnica de fabricação, assim como as
modalidades e contextos de uso. Afinal cada um deles faz parte de um
sistema de representações coletivas, um sistema de categorias culturais
que organiza o modo como essas mulheres experimentam
subjetivamente a sua condição de mulheres e

108
suas eventuais mudanças de status ao longo de sua biografia. Enquanto
“objetos cerimoniais”, eles não apenas demarcam posições sociais, mas
permitem que os indivíduos e os grupos sociais percebam e
experimentem subjetivamente suas posições e identidades como algo
tão real e concreto quanto os objetos materiais que os simbolizam
(Mauss 1967 [1947]; Turner 1967; Sahlins 2004 [1976]; Seeger
1980).221

É Importante assinalar que, a partir dessa perspectiva, os objetos


materiais, como aqueles classificados como “tecnologia” (Schlanger
1998) ou como “arte” (Boas 1955; Levi-Strauss 1958; Forge, 1973;
Geertz 1998: 142-181; Gell 1992; Almeida 1998; Price 2000; Lagrou
2000), serão pensados não mais enquanto parte de uma totalidade
social e cultural que se confunde com os limites de uma determinada
sociedade ou cultura empiricamente considerada, mas sim enquanto
parte de sistemas simbólicos ou categorias culturais cujo alcance
ultrapassa esses limites empíricos e cuja função, mais do que a de
“representar”, é a de organizar e constituir a vida social. Em outras
palavras, eles serão interpretados, segundo a ex- [p.21] pressão basilar
de Marcel Mauss, como “fatos sociais totais” (Mauss 2003), exigindo
portanto que se ponham de quarentena e se problematizem as
categorias classificatórias usadas na sociedade do observador.

21
(2)Para uma fonte notável de dados e interpretações estimulantes sobre objetos
materiais (mobiliário, roupas, meios de transporte, comidas e bebidas) seus usos e
significados na sociedade brasileira, são indispensáveis as obras de Gilberto Freyre
(1981; 2000; 2004); e especialmente as de Luis da Câmara Cascudo (1957; 1983 [1959];
1962 [1954]; 1983 [1963]; 1986 [1968]; 2001); artigos que publiquei sobre algumas das
obras de Cascudo podem ser úteis (Gonçalves 2000; ver Capítulo X deste livro)

109
A historicização da antropologia: a reaproximação entre
antropólogos e os museus

Mas é a partir dos anos oitenta, como parte do processo de


historicização da disciplina, que os objetos materiais, especificamente
enquanto partes integrantes de coleções, museus, arquivos e
“patrimônios culturais” virão a ser tematizados como foco estratégico
para a pesquisa e reflexão sobre as relações sociais e simbólicas entre
os diversos personagens da história da antropologia social ou cultural:
viajantes, missionários, etnógrafos, antropólogos, nativos,
colecionadores, museus, universidades, poderes coloniais, lideranças
étnicas, etc.

Assiste-se nesse período a uma reaproximação entre os


antropólogos e os museus, os quais passam a ser considerados como
objetos de pesquisa, descrição e análise. Ao mesmo tempo, assiste-se a
um trabalho de problematização sistemática (e denúncia) do papel
desempenhado por essas instituições enquanto mediadores sociais,
simbólicos e políticos no processo de construção de representações
ideológicas sobre diversos grupos e categorias sociais, especialmente
aqueles que foram tradicionalmente eleitos como “objetos” de estudo
da antropologia.

Em parte da literatura antropológica produzida nas duas últimas


décadas do século XX sobre os objetos materiais, estes serão estudados
não exclusivamente enquanto partes funcionais e significativas de
determinados contextos sociais, rituais e cosmológicos nativos; mas
também enquanto componentes dos processos sociais, institucionais,
epistemológicos, e políticos de apropriação e
110
colecionamento que sofrem por parte das sociedades ocidentais,
através de coleções, museus, arquivos e patrimônios culturais (Stocking
1985; Clifford 1988; 1994; 1997; 2002; Hainard & Kaehr
1982; 1885; Haraway 1989; Karp & Levine 1991; Karp; Kreamer; Levine
1991; Steven Kirshenblatt-Gimblett 1991; Dias 1991; 1991a; 1994;
[p.22] Thomas 1991; Ames 1992; Jones 1993; Greenfield 1996;
Grupioni 1998; Jacknis 2002).

O interesse recente pelo tema na área de antropologia


(sobretudo a partir dos anos oitenta) está em parte associado a um
determinado momento da história da disciplina que já foi caracterizado
por um conhecido historiador da antropologia como um momento
“reflexivo”, “hermenêutico”, “interpretativo”, “desconstrutivo”, ou
ainda como a manifestação de uma “sensibilidade romântica”, que
acompanharia toda a história dessa disciplina (Stocking 1989:7). Mas
evidentemente os objetos materiais que integram as coleções, museus
e patrimônios não são estudados apenas pela sua íntima relação com a
história da antropologia social ou cultural. essas instituições constituem
na verdade o locus de cruzamento de uma série de relações de ordem
epistemológica, social e política, configurandose como áreas
estratégicas de pesquisa e reflexão para o entendimento das relações
sociais, simbólicas e políticas entre diversos grupos e segmentos sociais,
especialmente aqueles que se fazem presentes nos contextos coloniais
e pós- coloniais. Acrescente-se que, ao longo de sua história, elas
desempenharam e desempenham ainda um papel importante na
formação, transmissão e estabilização de uma série de categorias de

111
pensamento fundamentais para o ocidente moderno em suas relações
com as culturas não ocidentais: civilizado / primitivo; natureza / cultura;
civilização /culturas; passado / presente; tradição / modernidade;
erudito / popular; nacional / estrangeiro; ciência / magia e religião
(Stewart 1984; Haraway 1989; Schwarcz 1998; Santos 1988;
1992; 2003; 2004; Pearce 1992; Kury; Camennietzki 1997; Cavalcanti
2001; Latour 2002). Entre essas categorias cabe certamente sublinhar o
papel desempenhado pela noção de “autenticidade”, cuja notável
função social, política e cognitiva já foi assinalada por diversos autores
(Sapir 1985; MacCannell 1976; Handler 1986; Clifford 1988; ver Capítulo
VII deste livro).

O deslocamento dos objetos materiais para os espaços de


coleções privadas ou públicas ou para museus (por exemplo, na
condição de “objetos etnográficos” ou “arte primitiva”) pressupõe
evidentemente a sua [p.23] circulação anterior e posterior em outras
esferas. Antes de chegarem à condição de objetos de coleção ou de
objetos de museu, foram objetos de uso cotidiano, foram mercadorias,
dádivas ou objetos sagrados. Afinal, conforme já foi sugerido, cada
objeto material tem a sua “biografia cultural” (Kopytoff 1986) e sua
inserção em coleções, museus e “patrimônios culturais” é apenas um
momento na vida social. No entanto, esse momento é crucial pois nos
permite perceber os processos sociais e simbólicos por meio dos quais
esses objetos vêm a ser transformados ou transfigurados em ícones
legitimadores de idéias, valores e identidades assumidas por diversos
grupos e categorias sociais.

112
O colecionamento como categorIa de pensamento

Esse processo de deslocamento dos objetos materiais do


cotidiano para o espaço de museus e patrimônios pressupõe uma
categoria fundamental: o colecionamento. Na verdade, toda e qualquer
coletividade humana dedica-se a alguma atividade de colecionamento,
embora nem todas o façam com os mesmos propósitos e segundo os
mesmos valores presentes nas modernas sociedades ocidentais. Quem
coleciona o quê, onde, segundo quais valores e com quais objetivos?
Basicamente, toda e qualquer “coleção” pressupõe situações sociais,
relações sociais de produção, circulação e consumo de objetos, assim
como diversos sistemas de idéias e valores e sistemas de classificação
que as norteiam. Em algumas sociedades colecionam-se determinados
objetos materiais com o propó- sito de redistribuí-los ou mesmo de
destruí-los; no ocidente moderno, o colecionamento está fortemente
associado à acumulação (Mauss 2003; Malinowski [1922] 1976; Clifford
1988).

Um dos espaços institucionais que no contexto globalizado das


modernas sociedades ocidentais abrigam e exibem as coleções
(especialmente as coleções etnográficas) são os “museus”. Enquanto
instituições culturais, ele têm acompanhado os últimos cinco séculos de
história da civilização ocidental, assumindo funções e significados
diversos ao longo desse tempo e em diferentes contextos sócio-cul-
[p.24 ] turais. Desde os “gabinetes de curiosidades” dos séculos XVI e
XVII às coleções privadas de nobres e ricos burgueses da Renascença,
passando pelos “museus de história natural” e pelos “museus nacionais”
do século XIX e início do século XX, até os museus do final

113
do século XX e princípios do século XXI, essa instituição parece traduzir
ou representar, em suas estruturas materiais e conceituais, concepções
diversas da ordem cósmica e social (Oliver Impey 2001; Kury &
Camenetzky 1997; Sherman & Rogoff 1994). Além disso, a instituição
parece estar intimamente associada aos processos de formação
simbólica de diversas modalidades de autoconsciência individual e
coletiva no ocidente moderno.

Nas últimas décadas, observa-se um notável crescimento dos


museus em todo o planeta. Aparentemente, estamos vivendo uma nova
“era dos museus” semelhante (embora com diferentes significados e
funções) àquela que caracterizou a segunda metade do século XIX e
início do século XX. É sintomático que, desde os anos oitenta do último
século, essa instituição, enquanto tema de reflexão, tenha ocupado
progressivamente um maior espaço nos debates acadêmicos (em
antropologia, em história, em sociologia e nos chamados “estudos
culturais”), o que se manifesta na crescente e significativa bibliografia
produzida sobre o tema, sobretudo nos EEUU e na Europa, mas também
no Brasil (ver Capítulo III deste livro).

Em parte dessa bibliografia, a coleção aparece como uma


categoria histórica e culturalmente relativa, própria do ocidente
moderno e sujeita a transformações intelectuais e institucionais. Mas
ela pode assumir uma dimensão mais ampla e ser pensada não apenas
como uma categoria nativa do ocidente moderno, mas como uma
categoria universal, como uma prática cultural presente em toda e
qualquer sociedade humana. Desse modo, ela assume em alguns
autores rendimento analítico, servindo como eixo para uma análise

114
comparativa (Baudrillard 1989; Alexander 1979; Hainard & Kaehr 1982;
1985; Pomian 1987; 1991; 1997; 1997a; 2003; Clifford 1988; ver
Capítulo III deste livro) .[p.25]

No contexto da recente literatura produzida sobre coleções e


museus etnográficos, o centro da discussão está evidentemente nos
limites da representação etnográfica do “outro”. A discussão se fará a
partir de outras formas de representação etnográfica que não
exclusivamente os textos: fotografias, filmes, exposições em museus,
etc.322 A partir desse enfoque, as coleções e museus etnográficos
deixam de aparecer como conjuntos de praticas ingênuas ou neutras,
para serem redesenhadas como espaços onde se constituem formas
diversas da autoconsciência moderna: a do etnógrafo, a do
colecionador, a do nativo, a do civilizado, do primitivo, etc. (Stocking
1985; Clifford 1985: 236-246; Clifford 1988; Kirshenblatt-Gimblett
1991; Dias 1991; Hollier 1993).

Objetos materiais como patrimônIos culturais

Em um sugestivo texto onde comenta o “poder dos objetos”,


AnnetteWeiner afirma:

22
(3) É interessante observar que essa discussão (sobre modos alternativos de
representação etnográfica), que, para muitos, teria sido uma criação dos chamados
“pósmodernos”, é, na verdade, um problema já assinalado por Clifford Geertz no início
dos anos 70: “...a maior parte da etnografia é encontrada em livros e artigos, em vez
de filmes, discos, exposições de museus, etc. Mesmo neles há, certamente, fotografias,
desenhos, diagramas, tabelas e assim por diante. Tem feito falta à antropologia uma
autoconsciência sobre modos de representação (para não falar de experimentos com
elas)” (1973:30).
115
“...nós usamos objetos para fazer declarações sobre nossa
identidade, nossos objetivos, e mesmo nossas fantasias. Através dessa
tendência humana a atribuir significados aos objetos, aprendemos
desde tenra idade que as coisas que usamos veiculam mensagens sobre
quem somos e sobre quem buscamos ser. (...) Estamos intimamente
envolvidos com objetos que amamos, desejamos ou com os quais
presenteamos os outros. Marcamos nossos relacionamentos com
objetos (...). Através dos objetos fabricamos nossa auto-imagem,
cultivamos e intensificamos relacionamentos. Os objetos guardam ainda
o que no passado é vital para nós. (...) não apenas nos fazem retroceder
no tempo como também tornam-se os tijolos que ligam o passado ao
futuro.” (Weiner 1987: 159).

Na formulação mais abrangente e mais precisa de um outro


antropólogo, Roy Wagner, os objetos materiais, de certo modo,
constituem nossa subjetividade individual e coletiva:

“Existe uma moralidade das “coisas”, dos objetos em seus


significados e usos convencionais. Mesmo ferramentas não são tanto
instrumentos utilitários “funcionais” quanto uma espécie de
propriedade humana ou cultural comum, relíquias que [p.26 ]
constrangem seus usuários ao aprenderem a usá-los. Podemos mesmo
sugerir [...] que esses instrumentos “usam” os seres humanos, que
brinquedos “brincam” com as crianças, e que armas nos estimulam à
luta. [...] Assim, em nossa vida com esses brinquedos, ferramentas,
instrumentos e relíquias, desejando-os, colecionando-os, nós
introduzimos em nossas personalidades todo o conjunto de valores,
atitudes e sentimentos – na verdade a criatividade – daqueles que os
inventaram, os usaram, os conhecem e os desejam e os deram a nós. Ao
aprendermos a usar esses instrumentos nós estamos secretamente
aprendendo a nos usar; enquanto controles, esses instrumentos
mediam essa relação, eles objetificam nossas habilidades” (Wagner
1981: 76-77).

116
Esses dois textos apontam de formas distintas para a função
simbólica dos objetos materiais nos processos de formação de
modalidades de autoconsciência individual e coletiva. A sugestão é que
sem os objetos não existiríamos; ou pelo menos não existiríamos
enquanto pessoas socialmente constituídas. Sejam os objetos materiais
considerados nos diversos contextos sociais, simbólicos e rituais da vida
cotidiana de qualquer grupo social; sejam eles retirados dessa circulação
cotidiana e deslocados para os contextos institucionais e discursivos das
coleções, museus e patrimônios; o fato importante a considerar aqui é
que eles não apenas desempenham funções identitárias, expressando
simbolicamente nossas identidades individuais e sociais, mas na
verdade organizam (na medida em que os objetos são categorias
materializadas) a percepção que temos de nós mesmos individual e
coletivamente (Clifford 1985).

Na vida social em geral os objetos materiais podem circular na


forma de mercadorias, podendo ser livremente comprados e vendidos;
ou na forma de dádivas e contra-dádivas; ou ainda terem a sua
circulação restringida na forma de “bens inalienáveis” (Weiner 1992).
Evidentemente, os objetos materiais estão submetidos a um processo
permanente de circula- ção e reclassificação, podendo ser deslocados
da condição de mercadoria para a condição de presentes; ou da
condição de presentes para a condição de mercadorias; e alguns desses
objetos podem ser elevados à condição de “bens inalienáveis”, os quais,
nessa condição, em princípio não podem [p.27] ser nem vendidos e nem
doados, mas que integram os sistemas de trocas recíprocas para que
paradoxalmente possam ser mantidos e

117
guardados sob o controle de determinados grupos (Mauss 2003;
Gregory 1982; Weiner 1992; Godelier 2001; Hénnaf 2002:135-207).

É possível que essa categoria universal de bens nos possa ser útil
para entender ao menos parcialmente aqueles objetos que, uma vez
retirados da circulação cotidiana, vêm a ser, no contexto das modernas
sociedades ocidentais, classificados como “patrimônio cultural”.
Objetos que compõem coleções particulares podem ser vendidos e
comprados; e mesmo objetos que integram o acervo de museus podem
eventualmente ser vendidos ou trocados; mas, em princípio, não é
admitido esse procedimento para aqueles objetos classificados como
“patrimônio cultural” por determinado grupo social. Na medida em que
assim classificados e coletivamente reconhecidos, esses objetos
desempenham uma função social e simbólica de mediação entre o
passado, o presente e o futuro do grupo, assegurando a sua
continuidade no tempo e sua integridade no espaço.

Nas últimas décadas, tem crescido notavelmente a literatura


sobre os chamados “patrimônios culturais” em diversas áreas, mas
especialmente na área de antropologia423. Grande parte desses estudos
corretamente tem assinalado as funções identitárias daqueles objetos
materiais (ou mesmo de supostos bens “imateriais” ou “intangíveis”) na
representação pública de identidades coletivas

23
(4) Para a já extensa produção bibliográfica sobre patrimônio cultural no Brasil, vale
a pena consultar: Arantes 1984; Gouveia 1985; Abreu 1996; 2003; Londres 1997; 2001;
Rubino 1991; Santos 1992; Lima Filho 2001; Proença 2004; entre muitos outros. Para
a discussão dessa categoria no contexto francês, especialmente do ponto de vista dos
historiadores, ver (Nora 1997).

118
(nações, grupos étnicos, grupos religiosos, bairros, regiões).
Aparentemente, menos ênfase vem sendo dada à natureza mesma dos
objetos eleitos como patrimônio (sua forma, o material com que são
produzidos, as técnicas de produção adotadas, seus usos sociais e
rituais) para representar uma determinada “identidade” e “memória”.
Em alguns estudos, a sugestão implícita ou explícita é de que a escolha
desses objetos seria de natureza arbitrária, contingente, materializando
o que seriam emblemas de “tradições inventadas” (Hobsbawm&Ranger
1992). As ações que levariam a tais escolhas seriam conscientes e
intencionais, visando propósitos ideológicos e políticos em contextos
sociais marcados pelos conflitos de interesses e valores. [p.28] Se
formos coerentes com a perspectiva que estamos explorando, teremos
que efetivamente perguntar se afinal é assim arbitrário e contingente
esse processo de escolha e se, ao legitimarmos essa tese, não
estaremos nos prendendo à lógica etnocêntrica da “razão prática”
(Sahlins 1976). A tese da “invenção dos patrimônios” vem se tornando
uma verdadeira obsessão e penso se não seria tempo de explorarmos a
sugestão segundo a qual mais importante que a “invenção das
tradições”, seria pensarmos na “inventividade das tradições” (Sahlins
1999). Ou, parafraseando a rica sugestão de Roy Wagner, se não será
oportuno considerar se não são afinal os “patrimônios culturais” que
nos “inventam” (no sentido de que constituem nossa subjetividade), ao
mesmo tempo em que os construímos no tempo e no espaço. Em outras
palavras: quando classificamos determinados conjuntos de objetos
materiais como “patrimônios culturais”, esses objetos estão por sua vez
a nos

119
“inventar”, uma vez que eles materializam uma teia de categorias de
pensamento por meio das quais nos percebemos individual e
coletivamente. Por esse prisma, a categoria “patrimônio cultural”
assume uma dimensão universal e não seria apenas um fenômeno
ocidental e moderno: na verdade, manifestar-se-ia de formas diversas
em toda e qualquer sociedade humana.524 Nesse sentido, os processos
sociais e culturais que levam à escolha desses objetos escapam em
grande parte às nossas ações conscientes e propositais de natureza
política e ideológica. Seria importante para o entendimento de sua
natureza o trabalho de acompanhamento dos processos sociais e
simbólicos de circulação, deslocamento e de reclassificação que os
elevam à condição de “patrimônios culturais”. É nesses processos de
reclassificação que podemos surpreender a construção e os efeitos
daquelas categorias fundamentais de objetos situados para além da
condição de mercadorias ou dádivas: objetos que, retirados da
circulação mercantil e da troca recíproca de presentes, acedem à
condição de “bens inalienáveis”, e que circulam, paradoxalmente, para
serem guardados e mantidos sob o controle de determinados grupos e

24
(5) Do ponto de vista das ideologias das modernas sociedades ocidentais, a categoria
patrimônio tende a aparecer com delimitações muito precisas. É uma categoria
individualizada, seja enquanto patrimônio econômico e financeiro; seja enquanto
patrimônio cultural; seja enquanto patrimônio genético; etc. Nesse sentido, suas
qualificações acompanham as divisões estabelecidas pelas modernas categorias de
pensamento: economia; cultura; natureza; etc. Sabemos no entanto que essas divisões
são construções históricas. Podemos pensar que elas são naturais, que fazem parte do
mundo. Na verdade resultam de processos de transformação histórica e continuam
em mudança. A categoria patrimônio, tal como ela é usada na atualidade, nem sempre
conheceu fronteiras tão bem delimitadas. Em contextos não modernos (e mesmo em
contextos específicos das modernas sociedades ocidentais) ela tende a assumir formas
totais, incorporando amplas dimensões cosmológicas e sociais, exigindo assim o seu
entendimento como “fatos sociais totais” (ver Capítulo VI deste livro) .

120
instituições, assegurando para estas sua continuidade no tempo e no
espaço. [p.29]

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131
Texto 6

1 CORPO PRESENTE
ANTROPOLOGIA DO CORPO E DA INCORPORAÇÃO

Miguel Vale de Almeida

A ideia inicial para a construção deste volume colectivo surgiu ainda du-
rante o processo de redacção de um livro relativo à minha investigação an-
terior sobre género e masculinidade (Vale de Almeida, 1995). A produção e
reprodução das categorias de género, explicadas então sobretudo ao nível
de discursos e práticas, pareciam necessitar de um entendimento da incor-
poração1 mais ou menos inconsciente de posturas, movimentos, entendi-
mentos e ocultações dos corpos dos sujeitos com género.
A abordagem deste tema teve de ficar suspensa por razões tanto de
economia da escrita, como da novidade relativa do campo e da ausência de
técnicas não logocêntricas no trabalho etnográfico que pudessem dar conta
dos processos de incorporação. No regresso ao quotidiano académico suce-
deu que — e para lá do trabalho de recensão bibliográfica em torno do tema
— a experiência pessoal de aprendizagem da arte marcial chinesa tai-chi-
chuan fez-me descobrir (usando-me a mim mesmo como sujeito e objecto de
questionamento) em que consistia o processo de incorporação. Para aprender
tai chi não é preciso ler manuais. Considera-se, inclusive, que é melhor não
os ler. Não é necessário transmitir informações orais. Não é necessário
conceptualizar ou sequer contextualizar a aprendizagem na fi- losofia
chinesa. Basta aprender fazendo com o corpo, aprender imitando, até que o corpo
reproduza os movimentos certos e estes abram portas para no- vos níveis de
consciência incorporada. Então, sim, premissas, regras e filosofia fazem
sentido. Experiências semelhantes aconteceram com os an- tropólogos
Jackson (1989) e a sua aprendizagem de hatha-yoga; ou com Ots (1994) e a
sua entrada na prática de chi-kung durante o seu trabalho de cam- po na
China.
Para Jackson (1989), aliás, a subjectividade está localizada no corpo,
contrariando assim a ideia de cultura como algo de superorgânico. Usando
um conjunto de ideias fenomenológicas e terapêuticas, segundo comenta
A. Strathern (1995), que em princípio são gerais e transculturais, Jackson vai

132
contra a posição simbolista, afirmando que o corpo não se limita a reflectir a
sociedade. Ele não é apenas inscrito, como nas teorias de Durkheim e Mary
Douglas; constitui-se a si mesmo como body subject. O próprio conhecimento
derivaria da empatia e do envolvimento prático e sensual — e não de princí-
pios gerais. O uso mimético do corpo seria a base para alcançar o sentimento
de viver em comum com os outros.
As questões epistemológicas e metodológicas que se colocam à antro-
pologia contemporânea estão intimamente ligadas a aspectos como o acima
mencionado: desde o papel do antropólogo no terreno, na escrita, na respon-
sabilidade pública do seu trabalho e nas metodologias que permitam conhe-
cer “por dentro”, sem esquecer a política da relação de observação, até à
reavaliação do que significam conceitos como sociedade, indivíduo, pessoa,
self, sujeito e, consequentemente, corpo.
Um autêntico boom sobre o tema do corpo e da incorporação tem surgi-
do nas ciências sociais na última década. Seja no enquadramento teórico de
uma teoria da prática ou do regresso da fenomenologia, o tema ganhou esta-
tuto de coqueluche nos grandes centros de produção académica, especial-
mente no mundo anglo-saxónico. Duas perguntas se impõem a quem, como
os autores deste livro, recebe as exportações dos centros académicos globais:
trata-se de um movimento genuíno de reavaliação das nossas premissas
epistemológicas e metodológicas através de um novo tema? Ou trata-se de
uma estratégia de política académica para a conquista de “feudos” temáti-
co-teóricos? Esta é, desde logo, uma questão que esteve na raiz deste livro. A
perplexidade sentida por muitos dos participantes em torno da questão “de
que falamos quando falamos de corpo?” assemelha-se em tudo à exposta por
José Gil (1995):

Acontece, porém, um facto curioso: justamente enquanto esta moda revela uma cada
vez maior sensibilização aos problemas do corpo com a tendência para afir- mar a sua
importância nos mais diversos campos, volta-se a velhos conceitos (…), idênticos
àquelas ordens de signos que serviram para explorar o corpo. Este tornou-se o
significante despótico capaz de resolver todos os problemas, da de- cadência da
cultura ocidental até aos mínimos conflitos internos dos indivíduos. Semelhante
concepção não seria perigosa se não elevasse o “corpo” à categoria de significante
supremo que, enquanto preenche um vazio, substitui tudo aquilo de que foram
privados os nossos corpos, pelo menos a partir da desagregação das culturas arcaicas
(1995: 201-202).

Estaremos perante mais uma instância de “nostalgia imperialista” (R. Rosal-


do, 1989) face àquilo que nós próprios ajudámos a destruir? Ou, como diz a
canção, each man kills the thing he loves?
Seja qual for a resposta, em Portugal quedámo-nos, uma vez mais, na si-
tuação de receptores das novidades editoriais. O próprio funcionamento,

133
algo liceal e auto-reprodutivo, das nossas universidades, bem como a margi-
nalidade em que nos encontramos na economia-mundo do conhecimento, le-
vou a uma perplexidade expectante em relação aos desenvolvimentos desta
área. Mas, paradoxalmente, as nossas desvantagens parece serem também as
nossas vantagens, pois podemos manipular fontes de origens nacionais di-
versas, somos híbridos de cidadãos da periferia e membros de uma elite cul-
tural transnacional, e encontramo-nos numa “zona de contacto” (Hastrup,
1995) propícia ao desenvolvimento do “momento experimental” em que a
antropologia se encontra (Marcus e Fischer, 1986).
A estratégia para a organização deste livro partiu, pois, da curiosidade
em saber que pensariam os colegas sobre o assunto, particularmente que sen-
tido fariam as expressões “corpo” e “incorporação” se confrontadas com os
dossiers das suas pesquisas, mesmo que estas não tivessem aqueles por ponto
de focagem privilegiado. Neste sentido, é um livro-experimentação, em que
se assume a bricolage de diversos contextos e tendências confrontados à luz
de palavras-chave. Por isso, e ao contrário do que é costume, o livro não cons-
titui as “actas” de um seminário académico, actas essas minuciosamente
revistas após a recepção e discussão dos textos. O livro, pelo contrário, apre-
senta-se à discussão.
A maioria dos convidados pertence ao que se poderia chamar uma nova
geração de antropólogos, formados em Portugal no seio de academias que,
por sua vez, floresceram após 1974 com académicos vindos do estrange- iro
ou formados no estrangeiro. Pertencem a uma geração que quer partici- par
de igual para igual na produção científica internacional e nos fora de
discussão e circulação apropriados. As questões colocadas aos participantes,
se bem que a partir do questionamento do estatuto do corpo na antropologia
e do surto de produção internacional em torno do tema, implicavam um con-
junto de outros questionamentos.
Por um lado, os de tipo metodológico, propondo uma reflexão sobre o
logocentrismo, a escrita, a visualidade ou a performance como instrumentos
expositivos questionáveis ou potenciáveis a partir do corpo. Por outro lado,
pretendia-se estimular uma reflexão sobre se a temática abordada poderia
ser uma ponte (ou, pelo contrário, um corte) entre modelos linguís- tico-
textuais, simbólicos, cognitivistas, fenomenológicos, hermenêuticos, ou
pragmatistas. Tendo sempre como pano de fundo a experiência da investiga-
ção antropológica que tantas vezes nos ensina que é preferível o diálogo en-
tre teorias à luz da diversidade de objectos de análise e experiências de
terreno, do que um manual monolítico para a leitura do mundo. Precisamos
hoje mais de “itinerários” do que de “mapas” (Hastrup, 1995).
Este trabalho é um desafio no sentido de, num contexto algo periférico
de produção teórica, não desistirmos de avaliar a relevância do que chega de
fora, não hesitarmos em confrontar essas contribuições com as nossas etno-
grafias, sejam elas nacionais ou não. Igualmente, é um desafio no sentido de

134
nos engajarmos no momento histórico em que vivemos, momento esse que
apela a uma “política da vida”, como diria Anthony Giddens (1992), em que
o corpo é um terreno privilegiado das disputas em torno quer de novas
identidades pessoais, quer da preservação de identidades históri- cas, da
assunção de híbridos culturais ou das recontextualizações locais de
tendências globais.
Quando se fala de corpo em antropologia, é incontornável o legado de
Marcel Mauss, para quem toda a expressão corporal era aprendida, uma afir-
mação entendível no quadro da sua preocupação em demonstrar a interde-
pendência entre os domínios físico, psicossocial e social. Tanto Mauss como
Van Gennep mostraram que as técnicas do corpo correspondem a mapea-
mentos socioculturais do tempo e do espaço. Mauss argumentou que o corpo
é ao mesmo tempo a ferramenta original com que os humanos moldam o seu
mundo e a substância original a partir da qual o mundo humano é moldado.
O famoso ensaio sobre as técnicas do corpo 1980 (1936) abordava os modos
como o corpo é a matéria-prima que a cultura molda e inscreve de modo a cri-
ar diferenças sociais. Isto é, o corpo humano nunca pode ser encontrado num
qualquer suposto “estado natural”.
As premissas de Mauss foram contemporaneamente desenvolvidas por
Mary Douglas:

O corpo social limita as formas de percepção do corpo físico. A experiência física do


corpo, sempre modificada pelas categorias sociais através das quais é conhe- cida, é o
suporte de uma visão específica da sociedade. Há uma troca de signi- ficados
constante entre os dois tipos de experiência corporal, cada uma refor- çando as
categorias da outra. Resulta desta interacção que o corpo é em si mesmo um meio de
expressão extremamente restringido (Douglas, 1973: 93).

A consequência deste “durkheimianismo” foi a elaboração de uma antropo-


logia do corpo baseada em análises dos usos metafóricos e metonímicos dos
símbolos naturais na reprodução da ordem social, resultando numa litera-
tura sobre relações homólogas, definindo assim sistemas de classificação
(Lock, 1993). Assim, os princípios subjacentes às teorias nativas são quase
sempre vistos como exemplares dos princípios do holismo, da unidade e da
inclusão. A isto se liga o clássico debate sobre a história e a diferença das no-
ções de pessoa e indivíduo — patente na frase de Leenhardt o primitivo é o ho-
mem que não apreendeu o laço que o une ao seu corpo, permanecendo assim incapaz
de o singularizar [1971 (1947): 70]. Mas em perspectivas estruturais, como a de
Douglas, há o reconhecimento de que os sistemas classificatórios também são
usados para legitimar hierarquias, diferenças e exclusões — de que pes- soa
e corpo não são prisioneiros de uma determinação social absoluta. E por…,
algum determinismo social dogmático tem sido a pedra-de-toque das nossas
análises e o que nos tem impedido de incluir o corpo e a incorporação

135
nas nossas agendas de investigação. Como se só houvesse duas possibilida-
des: ou o remetimento (excludente) para o domínio do biológico, ou o mape-
amento da acção das categorias sociais sobre os corpos enquanto argamassa e
não pessoas.
Não se pretende aqui historiar a abordagem do corpo e noções correla-
tivas em antropologia — o que resultaria em mais uma (necessariamente má)
história da disciplina e do pensamento ocidental, bem como das sucessivas
malaises do Ocidente e dos seus encontros e confrontos com os Outros. Cabe,
sim, resumir a produção que tem sido feita sobre o corpo em antropologia,
imediatamente antes e durante o surto desta “moda” ou, para evitar o juízo
de valor, deste facto social académico. Comparem-se dois textos genéricos
separados por vinte anos: a introdução de Blacking (1977) a The Anthropology
of the Body e a recensão de Lock Cultivating the Body (…) (1993).
Blacking iniciava então a sua obra colectiva com uma citação de Merle-
au-Ponty:

É através do meu corpo que compreendo as outras pessoas; assim como é através do
meu corpo que percepciono as “coisas”. O significado de um gesto “com- preendido”
deste modo não está escondido por ele, está sim entrelaçado com a estrutura do
mundo (1962: 186).

De seguida, porém, como que pede desculpa aos leitores, dizendo que, em-
bora comece com esta citação — para ele “demasiado fenomenológica” —,
procura estudar as fundações biológicas e afectivas das nossas construções
sociais da realidade, sendo a sua preocupação central os processos e produ-
tos que são exteriorizações e extensões do corpo em vários contextos de inte-
racção social. Referindo-se aos fundadores Mauss e Durkheim, diz que as
técnicas do corpo não se aprendem apenas com os outros, mas descobrem-se
através dos outros.
As premissas que Blacking estabelece para uma antropologia do corpo
são emblemáticas de algumas preocupações da época “pré-corpo”. Contras-
tam por ausência com algumas das que, mais adiante, definirei como as
nossas contemporâneas. Em primeiro lugar, baseando-se em Durkheim, en-
tende que a sociedade não é um ser nominal criado pela razão, mas um siste-
ma de forças activas; não é um mero organismo singular, mas sim um
fenómeno biológico, um produto do processo evolutivo, sendo a linguagem
uma forma de comunicação entre outras — e tardia. Em segundo lugar, todo
o membro normal da espécie teria um repertório de estados somáticos e um
potencial comum para alcançar estados alterados de consciência, mas tam-
bém as mesmas propriedades específicas da função cognitiva. Em terceiro
lugar, se a condição básica da sociedade é um estado de fellow-feeling que
pode ser percepcionado pelas sensações de organismos individuais, as for-
mas de interacção não verbais são fundamentais. Por fim, a mente não pode

136
ser separada do corpo. As preocupações dos textos daquele livro giram so-
bretudo em torno do interface entre evolução / biologia e comunicação, ou
então em torno de etnografias dos sistemas de classificação simbólica elabo-
rados a partir do corpo e dos sentidos.
Lock (1993) não começa por dizer placidamente, como Blacking, que o
corpo é o laço entre a natureza e a cultura, mas sim que o corpo medeia toda a
reflexão e acção sobre o mundo — uma diferença substancial. Descrevendo
primeiro a influência de Durkheim e Mauss, as análises simbólicas ou o anti
universalismo de Mary Douglas (e suas críticas em relação a Freud e Lévy-
Strauss), termina uma parte introdutória dizendo que a inflexão feita por
Douglas constituiu uma reformulação do problema do corpo como pro-
blema de semiosis; ou seja, como funciona o corpo enquanto transmissor e re-
ceptor de informação — uma função do posicionamento do indivíduo na
sociedade que teria a ver com a dificuldade de as pessoas simultaneamente
terem e serem corpos.
A recensão de Lock aborda sete tópicos, que servem aqui de mapea-
mento das áreas mais focadas pela antropologia contemporânea em torno do
corpo. O primeiro diz respeito à incorporação, em que acentua a redefinição
feita por Bourdieu a partir de Mauss. O seu contributo é equiparado ao de De
Certeau (1984) e Elias (1978), sendo colocado na linhagem da filosofia de
Husserl e do combate aos modelos cognitivistas e linguísticos. Importante é a
referência ao esforço de Jackson (1981, 1989) em desenvolver uma teoria da
incorporação baseada no mimetismo: as práticas corporais mediariam uma
realização pessoal de valores sociais, uma afirmação com reminiscências de
Victor Turner.
Em segundo lugar, o tema da construção do self e do Outro. Embora a psi-
canálise não permita, na sua opinião, uma perspectiva radical da incorporação,
Lock relembra a necessidade de a antropologia do corpo incluir uma teoria da
emoção, sendo emblemática a ideia de M. Rosaldo (1984) das emoções como
pensamentos incorporados e marcados pela consciência do envolvimento do
sujeito em certas situações de interacção. Alternativamente, uma etnografia dos
sentidos poderia, como lhe parece indicar o trabalho de Desjarlais (1992), con-
duzir a uma política da estética assente na experiência sentida.
O terceiro bloco corresponde ao tema dos corpos dóceis e resistentes. A
noção de biopoder de Foucault é fortemente castigada por não demonstrar a
implementação da microfísica do poder na prática, mas a obra do filósofo
francês é resgatada pela vertente da reintrodução da História. A referência à
obra de Comaroff (1982, 1985) — em que se discute como o controlo políti-
co-ritual é imposto nos domínios da produção, troca, sexualidade e cuidados
maternos, através de uma focagem na significação corporal da memória soci-
al — pretende realçar que as mudanças na ordem social e política têm de ser
acompanhadas por mudanças no “esquema mnemónico inscrito numa for-
ma física”.

137
O quarto tópico aborda a doença como performance cultural: os muitos
trabalhos sobre doenças de “nervos” mostram como estas são performances
culturais, parte de um repertório que permite o exercício de alguma força por
parte de quem está destituído de poder. Um exemplo seria o trabalho de Ong
(1988) sobre possessão em operárias de multinacionais na Malásia, que assim
negoceiam alterações no sentido auto-identitário de género, condições de
trabalho e modernização.
O quinto bloco aborda a montagem, a mimesis, a alteridade e a agência:
trata-se de um parágrafo feito à medida do trabalho de Taussig (1993), no
qual o autor apela a uma ciência das mediações, em que self e Outro estejam
ambos explicitamente implicados no processo de justaposição de “dissimila-
res” — a “montagem” —, explorando a faculdade mimética ou a compulsão
de se tornar no Outro verificada na história de colonizadores e colonizados.
O sexto tópico aborda a epistemologia e política do corpo. Nesta área
têm surgido muitos trabalhos sobre os discursos biomédicos e epidemiológi-
cos e seus sistemas classificatórios, bem como abordagens radicais do conhe-
cimento e das práticas médicas (“como é que os médicos e os doentes sabem o
que sabem?”), produzindo-se assim um corpo instável, resultado de trocas
entre conhecimento local e global.
Por fim, a normalização e reconstrução de corpos, com ênfase em Rabi-
now (1992) (e no seu trabalho sobre o projecto do mapeamento do genoma
humano, o qual, refazendo a natureza em cultura, levará a uma “biossociali-
dade”), e em M. Strathern (1992), cujo trabalho sobre novas tecnologias
reprodutivas explora os efeitos destas nas ideias sobre parentesco e relacio-
namento entre seres humanos.
Embora no presente livro não se pretenda fazer uma abordagem com-
pleta da área do corpo, a fertilização mútua entre sociologia e antropologia
obriga a incluir uma referência a M. Featherstone e B. Turner (1995), os quais,
ao iniciarem a mais recente revista sobre o tema, Body and Society, fazem um
balanço das investigações na área da sociologia, em que uma recensão dos te-
mas abordados não parece ser substancialmente diferente da antropologia,
exceptuando alguma ausência da perspectiva etnográfica e comparativa e
uma maior concentração nas transformações da tardo-modernidade ociden-
tal. Quatro grandes tópicos são delineados, porém, no que respeita às priori-
dades de investigação actual e futura. Em primeiro lugar, procurar respon-
der às questões sobre o que são o corpo e a incorporação. A questão da natu-
reza do corpo levanta a da natureza do self; autores como Shilling (1993) e
Synnott (1993) dizem que o self na sociedade modernaéo projecto do corpo, e
Giddens (1991) ao falar do self reflexivo associa-o à ideia de que o corpo pode
ser moldado na sociedade moderna de modo a exprimir as narrativas au- to-
reflexivas.
Em segundo lugar, dizem ser necessário desenvolver uma noção incor-
porada do ser humano como agente social e das funções do corpo no espaço

138
social. Em terceiro lugar, afirma-se ser preciso mais do que a noção do corpo
cultural e representacional: é necessário compreender como a incorporação é
fundamental para os processos de reciprocidade e troca — a partir de Goff-
man —, mas enveredando pelo estudo da cultura de consumo, mostrando
como o self moderno é representacional, mas procedendo também a uma
análise dos afectos, emoções e imagem corporal nas reciprocidades e solida-
riedades. Em quarto lugar, é afirmada a necessidade de mais história do cor-
po, à semelhança da abordagem feita por N. Elias sobre a domesticação das
emoções através das maneiras e controlos corporais.
Um lugar de destaque deve ser conferido a Anthony Giddens, por ve-
zes acusado pelos sociólogos do corpo de não ter uma visão específica da in-
corporação. Mas a sua tentativa de entender as relações entre agência e
estrutura pode ser ideal para o pragmatismo epistemológico. Reconhecendo
que na teoria social recente, o tema do corpo está associado ao nome de Fou-
cault, a análise deste da relação entre o corpo e os mecanismos de poder con-
centrou-se na emergência do poder disciplinar da modernidade. O corpo ter-
se-ia tornado no foco deste poder e este, em vez de marcar aquele, sujei- ta-o
uma disciplina interna de auto controlo, produzindo os corpos dóceis.
Giddens, todavia, acha isto incompleto, por Foucault não analisar a relação
entre corpo e agência.
Giddens afirma claramente que o corpo não é apenas uma entidade físi-
ca que possuímos (ainda que para a criação da auto-identidade, segundo La-
can, seja preciso o estádio do espelho, em que a criança se vê separada do seu
corpo). Ele é um sistema-acção, um modo de praxis, e a sua imersão prática
nas interacções quotidianas é essencial para a narrativa da auto-identidade.
Em termos de self e auto-identidade, Giddens presta atenção sobretudo à
aparência, posturas, sensualidade e regimes do corpo. Se o corpo era um as-
pecto da natureza, com a invasão do corpo pelos sistemas abstractos (isto é, o
conhecimento científico aplicado), o corpo como self torna-se um local de in-
teracção, apropriação e reapropriação.
Não estão atrás delineadas — nas abordagens do corpo (mas não por
acaso no corpo?) — algumas das tendências e problemas que se colocam à an-
tropologia contemporânea? No seu texto “Introduction to culture” incluído
na Companion Encyclopaedia of Anthropology, Tim Ingold define quatro suces-
sivas abordagens da cultura na história da disciplina. Primeiro, as noções de
escala de progresso teriam igualado cultura a civilização. Em segundo lugar,
o relativismo, que teria correspondido a uma pluralização da noção de cultu-
ra, sendo cada cultura uma tradição específica. Num terceiro momento, ter-
se-ia dado uma mudança desde o enfoque nos padrões de comportamen- to
para um enfoque nas estruturas de significado simbólico subjacentes,
opondo-se assim cultura a comportamento, do mesmo modo que língua a
fala, e sendo cada cultura um sistema partilhado de representações mentais.
Por último, a disciplina teria começado a procurar a fonte generativa da cul-

139
tura nas práticas humanas situadas no contexto relacional do envolvimento
mútuo das pessoas no mundo social, e não nas estruturas de significação com
que o mundo é representado (Ingold, 1994).
É certo que não estamos perante paradigmas sucessivos e excluidores
dos anteriores, sobretudo no caso dos dois últimos, que são complementares
no trabalho da etnografia, da comparação e da discussão teórica. A possível
complementaridade entre análises de estruturas sociais, classificações sim-
bólicas e práticas agenciadas é mesmo uma das questões implícitas da co-
lectânea que aqui apresento. Ingold reconhece que a questão de vulto subja-
cente às diferenças apontadas (sobretudo entre a terceira e a quarta aborda-
gens) diz respeito à forma como os seres humanos percepcionam o mundo.
Será que os dados brutos da sensação corporal são processados pelos intelec-
tos em termos de esquemas conceptuais contrastantes? Ou será que as pes-
soas são treinadas, através de diferentes tarefas práticas, implicando movi-
mentos corporais? A primeira hipótese implica que o sujeito apreende o
mundo desde fora. A segunda situa o sujeito num envolvimento activo; a
percepção não será, então, uma conquista da mente, mas de toda a pessoa-
-corpo. Trata-se, grosso modo, de uma divisão entre posturas cognitivistas e fe-
nomenológicas.
Uma divisão que está a ser ultrapassada por antropólogos como Toren
(1993) que, em antropologia cognitiva, demonstram como os processos cog-
nitivos implicam a localização da pessoa no mundo, cujo sentido é mediado
pelo seu envolvimento nas relações sociais, podendo assim a cognição ser en-
tendida como um processo histórico. A esta questão não é alheia uma outra,
de cariz metodológico, colocada por Maurice Bloch (1995) quando afirma que
a antropologia tem vivido em simultâneo e em conflito com duas heran- ças:
uma que exige a cientificidade a la Durkheim e outra, interpretativa, que surge
do contacto pessoal do antropólogo com os informantes. Assim se teria
formado uma “epistemologia bastarda” que estaria mesmo na origem dos
sucessos da antropologia. Segundo ele, ela deveria prosseguir, posicionan-
do-se tanto contra o integrismo cientifista quanto contra o integrismo anti
objectivista.
Apesar destas tentativas antropológicas para “temperar” as demar- ca-
ções epistemológicas, a questão do corpo é central no debate entre cogniti-
vismo e fenomenologia. Em primeiro lugar, o estatuto ontológico do corpo
surge como instrumento passivo na primeira tendência e como activo na se-
gunda. Em segundo lugar, a estabilidade da forma cultural é vista, na pri-
meira, como estando assente na transmissão geracional de informação con-
ceptual linguisticamente codificada, ao passo que na segunda está contida na
corrente contínua das relações humanas. Assim, o que as gerações preceden-
tes fornecem não são esquemas, mas sim condições específicas de desen-
volvimento sob as quais os sucessores adquirem as suas capacidades e dis-
posições incorporadas. Por fim, e no que respeita à atenção etnográfica, para

140
sabermos o que o mundo significa para as pessoas, a primeira tendência diz-
nos que prestemos atenção às representações mentais, a segunda que
olhemos para a “quinética” do corpo, triunfando numa o “conceito” e na ou-
tra a “performance” (Ingold, 1994).
Nos últimos vinte anos tem-se assistido, quer do lado da antropologia
quer do lado da sociologia, a uma tentativa para ultrapassar a separação ra-
dical entre conhecimento e prática, descentrando a construção cognitiva do
conhecimento, pelo que as novas interpretações procuram abolir as dualida-
des entre mente e corpo, o que advém do reconhecimento da dificuldade de
as pessoas terem e serem (e fazerem) corpos. Comecemos pela ponte entre as
duas disciplinas, e igualmente entre cognitivismo e fenomenologia: Pierre
Bourdieu.
Bourdieu toma de Mauss o conceito de habitus, como repetição de práticas
corporais inconscientes e mundanas. Procura assim ultrapassar o dualismo lé-
vi-straussiano entre estruturas mentais e o mundo dos objectos materiais. O ob-
jectivo metodológico de Bourdieu para uma teoria da prática é delinear uma
terceira ordem de conhecimento para lá tanto da fenomenologia como de uma
ciência das condições objectivas da possibilidade da vida social (in Csordas,
1990). Ou seja, passar da análise do facto social como opus operatum para a sua
análise como modus operandi. Pretende claramente acabar com a dualidade
corpo-mente e signo-significado através do conceito de habitus.
Se bem que este tenha sido introduzido por Mauss para se referir à totali-
dade dos usos culturalmente padronizados do corpo numa sociedade, Mauss
antecipou que o corpo era simultaneamente objecto de técnica e meio técnico,
bem como identificou a natureza subjectiva da técnica. Bourdieu vai mais lon-
ge do que a ideia do habitus como colecção de práticas, definindo-o como um
sistema de disposições duradouras, princípio inconsciente e colectivamente
inculcado para a geração e estruturação de práticas e represen- tações. Este
princípio não é mais do que o corpo socialmente informado.Éa propósito da
temática do género — e não por acaso — que Bourdieu estabelece uma das
suas análises mais conseguidas. Duas citações do ensaio sobre a dominação
masculina são suficientemente ilustrativas:

A somatização progressiva das relações fundamenais que são constitutivas da ordem


social tem por resultado a instituição de duas “naturezas” diferentes, isto é, de dois
sistemas de diferenças sociais naturalizadas, simultaneamente inscri- tas nas hexis
corporais sob a forma de duas classes opostas e complementares de posturas, formas
de andar, gestos, etc. (1990: 9).

E ainda:

Sendo o produto da inscrição no corpo de uma relação de dominação, as es- truturas


estruturadas e estruturantes do habitus são o princípio de actos de co-

141
nhecimento e de reconhecimento prático da fronteira mágica que produz a diferença
entre os dominantes e os dominados (...). Este conhecimento pelo corpo é que o leva
os dominados a contribuírem para a sua própria domina- ção (1990:12).

Bourdieu é uma das fontes de inspiração, juntamente com Merleau-Ponty, da


proposta de Csordas (1990) da incorporação (embodiment) como possível
novo paradigma para a antropologia. Se a fenomenologia de Husserl pode
ser sintetizada — escolarmente — como uma vontade de retorno às coisas
elas próprias, como atenção à intencionalidade da consciência (contra o idea-
lismo das consciências encerradas nas representações), como uma atenção ao
vivido, e como reconhecendo a importância do papel da subjectividade, já no
caso de Merleau-Ponty é necessário esmiuçar alguns postulados.
Segundo Crossley (1995), Merleau-Ponty leva-nos para lá de um enten-
dimento estreitamente cartesiano do corpo como objecto. Permite-nos com-
preender que os agentes-sujeitos humanos são corpos e que os corpos são
seres sensível-sensório, comunicativos, práticos e inteligentes. Merleau-Ponty
define a subjectividade como um fenómeno social e intersubjectivo, um en-
gajamento sensível com o mundo e uma abertura ao mundo, assumindo uma
forma incorporada e cultural, que assenta num habitus social comum e que
está disponível publicamente. Assim, o social não pode ser pensado como
um objecto, por cima dos sujeitos sociais, ou como objecto de pensamento. É
antes, sim, uma estrutura intersubjectiva concreta, reproduzida através da
acção incorporada. Consiste em locais de significado partilhado e em interac-
ção mútua (mesmo que conflitual), em que os corpos agem e são passivos de
acção sobre eles. São agentes e alvos de poder. Em termos de postulados, um
resumo possível da interpretação e utilização que Crossley faz de Merle- au-
Ponty seria o seguinte: 1) toda a subjectividade é intersubjectiva; 2) toda a
intersubjectividade é intersubjectividade concreta; 3) a intersubjectividade
concreta constitui o social; 4) o social é um campo de luta e poder; 5) o sujei-
to-corpo está no âmago desta interligação; 6) não como origem transcenden-
tal mas como princípio de acção.
O desafio de Merleau-Ponty é contra a visão mecanicista de Descartes.
O corpo é um agenteeéa base da subjectividade humana. Tanto em Feno- me-
nologia da Percepção como em O Visível e o Invisível, o tema-chave é a percep-
ção, a qual é vista como uma experiência incorporada. A percepção não é
uma representação interna de um mundo exterior. A percepção ocorre no
mundo e não na mente. A percepção visual de um objecto dá-se entre este e o
corpo do percepcionador, não havendo “dois” objectos. Por outro lado, Mer-
leau-Ponty rejeita a ideia de que a mente seja uma substância separada do
corpo. O corpo vê e é visto, ouve e é ouvido, etc. Por outro lado ainda, nunca
se percepciona de “nenhures”, sempre se percepciona de algum lado e é a
presença visível, tangível, etcetera de cada um, que fornece esse algures. Em

142
terceiro lugar, a percepção baseia-se no comportamento, em ver, ouvir, tocar,
por exemplo, enquanto formas de conduta baseadas em hábitos culturais ad-
quiridos. Assim, o relato de Merleau-Ponty não é um relato da nossa expe-
riência “da” incorporação. A incorporação não é experienciada, é a base
mesma da experiência. Experienciamos através da nossa incorporação sensí-
vel e sensorial. O nosso corpo é o nosso modo de ser (estar)-no-mundo, como
exemplificado quando dizemos que “nos” dói o pé: o corpo é o terreno da ex-
periência e não objecto dela.
Csordas (1990) parte do postulado de que o corpo não é um objecto para
ser estudado em relação à cultura, mas deve ser antes considerado como suje-
ito de cultura. Ele afirma que uma teoria da prática necessita de assentar no
corpo socialmente informado, sendo que o paradigma da incorporação leva-
rá à destruição das dualidades mente / corpo e sujeito / objecto. Assim, para
Merleau-Ponty, a principal dualidade, no domínio da percepção, é entre suje-
ito e objecto, e para Bourdieu, no domínio da prática, é entre estrutura e práti-
ca. Ambos invocam a incorporação como o princípio metodológico para
abolir estas dualidades. Csordas afirma que os antropólogos têm considera-
do a percepção como uma função da cognição, e raras vezes a têm colocado
em relação com o self e as emoções. Têm isolado os sentidos, focando sobre-
tudo na percepção visual, e raras vezes examinaram a síntese e inter- relação
dos sentidos na vida perceptual. Têm focado a investigação em tarefas expe-
rimentais abstractas, em vez de ligarem o estudo da percepção ao da prática
social.
A perspectiva de Csordas não contempla — assimilando-a ou critican-
do-a — a influência teórica de Foucault e, por outro lado, parece possuir um
pendor universalista, que não contempla os casos etnográficos de elaboração
de claras distinções entre corpo e pessoa. O efeito sedutor do seu texto de
1990 parece desvanecer-se perante uma avaliação mais sensata — porque
questionadora da história das ideias e ancorada na experiência do terreno —
de Terence Turner (1994), o qual situa o interesse moderno pelo corpo em algo
de semelhante à “política da vida” e da identidade pessoal de Giddens (1991),
devido ao facto de a apropriação da corporalidade ser a matriz funda- mental
da produção da noção de pessoa e da identidade social no Ocidente.
Todavia, T. Turner — em cuja abordagem me basearei profusa e abusi-
vamente no que segue — chama a atenção para dois defeitos das abordagens
comuns do corpo: a ignorância ou não reconhecimento da natureza social do
corpo, e das formas várias como é constituído nas relações com outros cor-
pos, a favor de uma concepção reificada do corpo como sujeito com fronteiras
marcadas;ea propensão para ignorar o carácter primário do corpo como ac-
tividade material a favor de uma ênfase no corpo como objecto conceptual do
discurso.
O discurso contemporâneo sobre o corpo teria emergido de uma das
maiores manifestações de uma crise na epistemologia e política do pensa-

143
mento ocidental, que levou ao questionamento de muitas premissas sobre a
interdependência entre indivíduo e sociedade. A rejeição da subjectivida- de,
a negação do acesso a uma realidade social e histórica objectiva, a rejei- ção
de uma teoria social sistemática ou mesmo de uma noção de sociedade, e a
abolição do sujeito como entidade metafísica, teriam contribuído para a
substituição do sujeito pelo corpo. A elevação do corpo ao lugar ocupado
pelo sujeito, agente e indivíduo social, tem implicado uma focagem em re-
presentações conceptuais ou linguísticas do corpo, explicado por vagas for-
ças trans-históricas, como o “poder” ou a “disciplina”. Num ataque ao pós-
estruturalismo, enquanto cripto-estruturalismo pós-moderno, T. Tur- ner
diz:

Neste contexto de derrota política e de desilusão com as possibilidades da acção


subjectiva, o estruturalismo, com a sua descoberta de um mundo platónico de fe-
nómenos mentais concebido segundo o modelo da langue Saussuriana — imune à
determinação material, às forças históricas ou aos efeitos de actividade social, e
igualmente impermeável às ilusões da subjectividade —, transformou a aliena- ção
política de uma geração numa aparência de abordagem científica e apolítica capaz de
penetrar níveis de realidade cultural e psicológica inacessíveis quer ao marxismo
tradicional quer à fenomenologia sartriana (1994: 32-33).

Maio de 68 teria sido o golpe final no estruturalismo a la Lévi-Strauss e a la


primeiro Foucault, bem como no marxismo e na fenomenologia sartriana. As
exigências egoístas e de libertação individual deram azo à “libertação do cor-
po e do eros” (veja-se Marcuse), às ideias do corpo como subjectivo, erótico,
emocional, antítese das estruturas austeras e intelectuais de Lévi-Strauss,
Althusser ou Sartre.
Segundo T. Turner, a nova síntese de Foucault pode ser entendida como
uma tentativa de restabelecer a hegemonia intelectual perdida com o terre-
moto de 68: retendo o idealismo linguístico do estruturalismo no seu essenci-
al, mas transferindo a focagem da langue para a parole, isto é “discursos”,
manifestações transcendentes do demiurgo extra-histórico chamado “po-
der” (T. Turner 1994: 35). Como o corpo de Foucault não tem “carne”, a “resis-
tência” do corpo é vista como sua emanação natural, tal como o poder é visto
como emanação natural da sociedade.
Esta crítica à inspiração foucaultiana detectável em muitos dos recen-
tes estudos sobre o corpo (crítica que poderia encontrar eco na de Giddens)
não impede o reconhecimento das contribuições positivas do filósofo fran-
cês, começando pela realidade do corpo e seus desejos como historicamente
determinados, sendo que esta determinação é essencialmene política, con-
sistindo nas operações de poder e resistência que estas operações suscitam.
Se o corpo é o objecto e local privilegiado destas operações políticas e, por-
tanto, a principal matéria de determinação política e histórica, a análise de

144
discursos de poder sobre o corpo e sobre disciplina pode ser uma forma de
acção política.
No entanto, para o pós-estruturalismo, o corpo é “o corpo”: um indiví-
duo abstracto, singular, intrinsecamente auto-existente e socialmente desco-
nexo. Para os novos movimentos políticos de resistência pessoal, social,
cultural e ambiental, “o corpo” consiste essencialmente em processos de acti-
vidade auto produtiva, ao mesmo tempo subjectiva e objectiva, significativa
e material, pessoal e social, um agente que produz discursos, bem como os re-
cebe.
Noutro texto, T. Turner (1995) afirma que a proeminência teórica do cor-
po é em parte efeito e em parte causa de uma tendência reducionista geral
para rejeitar categorias abstractas e construções teóricas totalizantes que não
sejam directamente acessíveis à percepção, consciência e participação indivi-
duais. O corpo preencheu o vácuo criado pela evacuação do conteúdo social,
cultural e político da teorização da condição humana na era moderna pós-
moderna (ou, como prefiro, tardo-moderna, segundo Giddens).
Mas a corporalidade tem, de facto, importância como categoria unifi-
cadora da existência humana. Assim, a apropriação social da corporalidade
é o protótipo de toda a produção social; a pessoa constituída por uma sub-
jectividade socializada e incorporadaéo protótipo de todos os produtos. O
“corpo socialmente informado” (Bourdieu, 1977) age como produtor e pro-
duto neste processo de apropriação. T. Turner defende que a antropologia
pode oferecer documentação etnográfica comparativa e uma análise da va-
riação social e cultural nas concepções e tratamentos dos corpos e da corpo-
ralidade. Em segundo lugar, pode levar para a arena da discussão teórica
ocidental os conceitos e teorias implícitas ou explícitas dos povos não oci-
dentais.
Partindo de uma análise da etnografia kayapo (Amazónia), T. Turner diz
que as representações da corporalidade dos Kayapo, tal como no pensamen-
to pragmatista ocidental, começam com o imbricamento do corpo na praxis
social, através da qual os indivíduos se produzem e definem como agentes e
pessoas, sujeitos e objectos, reproduzindo, nesse processo, os seus corpos e o
seu mundo social. Não se trata nem de um conceito de um sujeito unitário e
transcendental, nem da noção de um “corpo” unitário e abstractamente ho-
mogéneo com o qual teóricos do corpo como Foucault tentaram substituí-lo
(T. Turner, 1995: 164).
Assim, o corpo social não é redutível nem a um corpo biológico consi-
derado como um dado a priori ao seu envolvimento nas actividades social-
mente padronizadas, nem às formas de consciência social ou discurso através
das quais essas actividades são mediadas como formas cultural- mente
partilhadas de significado. O corpo individual não é tomado como um todo.
Os Kayapos concentram a sua atenção em subsistemas ou aspec- tos da
corporalidade, como sejam a sexualidade, as faculdades sensoriais, a

145
saúde e a doença, etc. Classificação que, por sua vez, assenta nas proprieda-
des e capacidades distintivas de corpos de diferentes idades e géneros (T.
Turner, 1995: 164).
T. Turner usa o termo “sujeito” para se referir a uma consciência incor-
porada com propósito, vontade e capacidade de agência. Isto não tem de cor-
responder necessariamente ao “indivíduo” ocidental. A subjectividade e a
agência podem ser representadas, como entre os Kayapo, como “dividuais”
— uma noção desenvolvida por M. Strathern (1988), acentuando o carácter
relacional, processual e contextual da identidade pessoal), e como incorpora-
das em processos corporais e modos de actividade distintos. Não como atri-
butos de um ego cartesiano desincorporado e íntegro.
Esta perspectiva parece aproximar-se mais de uma teoria da prática do
que o excessivo pendor fenomenológico de Csordas. Todavia, mais duas áre-
as de reflexão são de importância central para uma abordagem do corpo: a
antropologia da experiência e a memória social incorporada. O movimento
de Victor Turner contra a ortodoxia estrutural-funcionalista, inspirado na
noção diltheiana de Erlebnis (experiência vivida), viria a ser sistematizado
como “antropologia da experiência”. Bruner (1986) confessa que o epíteto se-
ria igualmente traduzível como “antropologia processual”, “pós-estrutural”,
“hermenêutica ou interpretativa”, “simbólica” (no sentido norte-americano),
ou “hermenêutica comportamental” a la Clifford Geertz. suficientemente
ecléctico, o campo tem por expressões-chave “experiência”, “pragmática”,
“prática” e “performance”.
Para Dilthey, a experiência tem carácter primordial, pelo que a reali-
dade só existe em factos da consciência dados pela experiência interna. A
experiência, assim, não é só cognição, mas também sentimentos e expecta-
tivas, e não “chega” só verbalmente, mas também através de imagens. A
experiência reporta-se sempre a um self activo, em situações de intersub-
jectividade.2 A noção de experiência é complementada pela de “expres-
sões” (representações, performances, objectificações, textos), fechando-se o
círculo hermenêutico no facto de a experiência estruturar as expressões e
estas aquela.
Segundo Bruner, os selves, as organizações sociais e as culturas estão em
constante produção. A mudança cultural, a continuidade, a transmissão,
ocorrem simultaneamente nas experiências e nas expressões da vida social.
São todas processos interpretativos e são todas experiências nas quais o sujei-
to se descobre a si próprio. Por isso, a comparação de culturas far-se-ia supos-
tamente melhor através dos seus rituais, teatros, contos, baladas, etc — mais
do que através dos seus hábitos.
Mas será só assim? Paul Connerton (1993, 1989), que aborda igualmen-
te o ritual como forma de memória social (insistindo mais no seu carácter in-
corporado do que textual ou paratextual), refere dois tipos de prática social
que garantem a memória social: a incorporação e as práticas de inscrição. As

146
primeiras referem-se, por exemplo, à memorização de posturas cultural-
mente específicas (o poder e a posição exprimem-se em posturas). É atra- vés
da natureza corporizada da existência social e das práticas incorporadas
baseadas nessas corporizações que os termos opostos nos fornecem as
metáforas pelas quais pensamos e vivemos (1993: 90). O alfa- beto, por
contraste, é uma prática de inscrição. As práticas corporais en- volvem uma
combinação de memória cognitiva e de memória-hábito. Mas é necessário ver
como as práticas são incorporadas, compreender a sua qualidade de hábito.
Assim, os hábitos são mais do que uma competência técnica, pois eles
impelem-nos, são disposições afectivas. Um hábito é mais do que uma
disposição, pois o termo transmite o sentido de operati- vidade de uma
actividade continuamente praticada, a realidade do exercí- cio. Por fim, o
hábito não é apenas um símbolo. A experiência corporizada não pode ser
entendida só pelo cognitivismo e pelo modelo de significação linguística,
reduzindo o corpo ao estatuto de símbolo. O significado não pode ser
reduzido a um símbolo que existe num nível separado, exterior às acções do
corpo. O hábito é um conhecimento e uma memória existente nas mãos e no
corpo, e ao cultivarmos o hábito é o nosso corpo que “com- preende” (1993:
114).
A hermenêutica nasceu, de facto, da filologia e a actividade de interpre-
tação tomou a inscrição como objecto privilegiado. Privilegiou-se a inscrição,
negligenciou-se a incorporação. Assim, o corpo só tem sido “legível” como
texto ou código, mas sempre olhado como contentor arbitrário de significa-
dos. O império da linguagem, tanto nas escolas wittgensteiniana, como es-
truturalista ou pós-estruturalista, postulou a linguagem como conjunto de
normas sociais, sistema de símbolos ou discurso de poder, pelo que o corpo
humano só é incluído de forma sublimada. Do lado da análise da estrutura
social, é preciso ver que as práticas corporais têm um grau de segurança con-
tra os questionamentos que todas as práticas discursivas acarretam. Por isso
persistem tanto como sistemas mnemónicos. Existe assim uma inércia nas es-
truturas sociais que não pode ser explicada adequadamente pelas ortodoxias
correntes sobre estrutura social. Os antropólogos que reconheceram a impor-
tância das performances perceberam como elas “explicitam” a estrutura exis-
tente, mais do que sublinham, marcam ou definem uma continuidade com o
passado (Connerton, 1993, 1989).
Num livro da natureza deste que aqui se apresenta não pode nem deve
formular-se uma escolha teórica programática. A riqueza dos trabalhos co-
lectivos apela a um movimento no sentido contrário. No trabalho individual
as apostas devem ser mais temerárias. É o caso de Csordas (1990), como já ha-
via sido o de Jackson (1981), que pretendia criticar as tendências intelectua-
listas que, segundo ele, assimilam a experiência corporal a formulações
conceptuais e verbais, vendo as práticas como “simbólicas” de qualquer coi-
sa exterior a elas mesmas. Neste volume colectivo, a postura é de pluralismo,

147
procurando o diálogo entre símbolo e prática, estrutura e agência, verbalida-
de e corporalidade.
Os textos que se seguem falarão por si, e dialogarão em torno das vári-
as perspectivas que o corpo e a incorporação abrem ou encerram dentro de
si. Voltando ao início, à pergunta “de que falamos quando falamos de cor-
po?”, o desafio lançado aos meus colegas para reflectirem sobre o lugar do
corpo e da incorporação nas suas pesquisas resultou num conjunto de tex-
tos que abordam as perspectivas acima recenseadas, avaliando-as à luz dos
seus dossiers etnográficos, isto é, das experiências concretas dos seus infor-
mantes em contextos culturais concretos, sejam eles terrenos sociais ou bi-
bliográfi-cos. Confirmando a suspeita inicial, cada texto permite ainda, a
partir da temática proposta, ramificar no sentido de outros problemas teóri-
cos, epistemológicos, metodológicos, temáticos e políticos da antropologia
contemporânea.
Nélia Dias contribui com um texto em que a própria disciplina antropo-
lógica se constitui em objecto de análise. Nele, o corpo é encarado como sus-
tentáculo para a visibilidade da diferença. Isto torna-se patente quando se
analisam os modos de representação visual nas exposições antropológicas,
quer de antropologia física, quer de artefactos. Subjacente à apresentação da
diferença via corpos e objectos está a definição de categorias do “natural” e
do “cultural”. A abordagem do corpo e da incorporação deve, pois, começar
pela “antropologia da antropologia”: como é que temos vindo a representar e
reapresentar os Outros enquanto diferenças corporalizadas?
Rosa Maria Perez defende a tese de que, no contexto indiano por ela es-
tudado, se pode inferir que a intocabilidade das mulheres e dos intocáveis
constitui um sistema. A sua perspectiva foca o corpo como sustentáculo de
uma lógica classificatória, em que são evidentes as homologias entre as hie-
rarquias de casta e as de género. A fonte simbólica subjacente a ambaséa co-
dificação dos corpos como potencialmente poluentes pela sua natureza social
e em instâncias específicas de relações sociais de desigualdade. O texto é um
claro exemplo de que as potencialidades das abordagens simbólicas não
estão esgotadas, necessitando, sim, de serem reformuladas à luz da in-
trodução de novas variáveis.
Maria Cardeira da Silva também aborda um contexto “exótico”, marca-
do no imaginário ocidental — à semelhança da Índia — como assente em di-
visões de género com base na impureza dos corpos femininos. Todavia, a sua
abordagem não segue a análise estrutural simbólica, mas antes a via do ques-
tionamento das relações entre tradição, modernidade e pós-modernidade
num contexto urbano de Marrocos, em que as suas informantes fazem, nos
seus corpos, uma bricolage de influências plurais e globais, para a redefinição
das suas identidades. A própria estratégia retórica — na primeira pessoa,
como narradora de episódios com personagens concretas — releva de preo-
cupações reflexivistas e intersubjectivas.

148
Manuela Cunha traz-nos de volta a Portugal. Não se trata de um terre-
no tradicionalmente associado à antropologia, mas sim de uma prisão femi-
nina. Partindo da análise da prisão como instituição total, é no corpo que se
dá e verifica sobremaneira a tensão entre a instituição e as reclusas, estreitan-
do-se mesmo na prisão a conexão entre corpo e self. Sujeitas a uma disciplina
institucional que incide sobretudo sobre os aspectos corporais, é também
através de estratégias que têm o corpo como suporte da identidade pessoal
que as reclusas resistem à desidentificação causada pelas circunstâncias pri-
sionais. É um caso em que, às definições e limitações impostas pela cultura e
pelas relações sociais, se sobrepõe ainda a força de uma instituição do estado
definida pelos eixos da punição da criminalidade e da segregação de género.
Jean-Yves Durand, antropólogo de origem francesa radicado em Portu-
gal, socorre-se das suas experiências de terreno em França e em Portugal para
comparar os conhecimentos de hidrogeólogos e de vedores de água. Os pri-
meiros são vistos, normalmente, como detentores de um saber intelectual e
científico desincorporado, ao passo que aos segundos seria de senso comum
atribuir a utilização de “técnicas do corpo”. O apelo a uma antropologia si-
métrica (Bruno Latour) é seguido por Jean-Yves Durand, que assim entende
os conhecimentos e práticas dos dois tipos de especialistas como analisáveis
em pé de igualdade. A principal diferença reside na presença ou ausência de
“cartesianismo” entre a inscrição num corpo-objecto e um corpo-sujeito faze-
dor de cultura.
A participação de Inácio Fiadeiro, psicólogo e acupunctor, não preten-
de ser uma forma de introduzir interdisciplinaridade no volume. As ques-
tões abordadas no texto constituem um exemplo concreto de algumas das
preocupações correntes em antropologia, não deixando de ser irónico que um
não antropólogo esteja entre quem as leve mais longe — em si próprio. A sua
abordagem da ciência cognitiva, da percepção da arte e da medicina chi- nesa
permite um fluir de cruzamentos epistemológicos em torno dos temas da
percepção, emoção e representação. A experiência do cientista ocidental que,
depois da aprendizagem científica, incorpora a teoria e a prática da me- dicina
oriental surge, assim, como objecto de (auto) análise dos processos de
pensamento sobre o corpo e dos processos de incorporação.
Paulo Raposo, antropólogo com fortes laços com a prática teatral, re-
flecte sobre como o corpo do actor é transformado in acto pela performance,
de modo análogo àquele que leva o “primitivo” que enverga a máscara de
veado num dos seus exemplos a ser ao mesmo tempo o homem que a enver-
ga e o veado. É na noção de personagem que as relações entre a pessoa, o
corpo e a persona mais se evidenciam, assim como as sucessivas situações de
liminalidade propiciadas. Neste texto pode-se encontrar uma explana- ção
sistemática da área da antropologia da performance, uma proposta que
parece estar a vingar na disciplina, a partir das relações sugeridas entre tea-
tro e ritual.

149
Maria José Fazenda, com formação dupla em dança e antropologia,
aborda o caso concreto da ideia de “corpo natural” tal como surgiu na dança
teatral americana, elaborando a sua análise a partir das figuras de Isadora
Duncan e de Steve Paxton. O “corpo natural” surge claramente como um
projecto próprio de uma forma artística ocidental em que a naturalidade se
coloca como objecto perdido e exótico — acabando por ter de ser reconstruí-
da. O texto reflecte igualmente sobre os problemas que se colocam quando se
faz um discurso sobre dança, problemas que são análogos aos que se põem
quando se discursa sobre o corpo e a experiência incorporada.
Susana de Matos Viegas aborda os processos intersubjetivos de cons-
ciência do tempo no envelhecimento, baseada em trabalho de campo em Por-
tugal. O seu texto constitui uma crítica aos excessos do “paradigma do
corpo” como reacção ao “paradigma linguístico”. Partindo da obra de Victor
Turner e da noção diltheyiana de “experiência vivida”, o seu enfoque é na no-
ção de pessoa mais do que na de corpo. No seu estudo de caso, o corpo surge
sempre como um indefinido. Susana de Matos Viegas defende a focagem
preferencial nos interstícios de qualquer ontologia dualista. Trata-se de uma
defesa da ideia de que é a intersubjectividade que informa os modos de o cor-
po fazer sentido, sobretudo no caso abordado, em que a ausência ou presença
dos idosos em situações de interacção é um marcador do processo de enve-
lhecimento.
Clara Saraiva explora alguns aspectos da sua investigação sobre o culto
dos mortos em Portugal. Utilizando um estudo de caso do Minho, aborda a
questão da corporalização do morto, defendendo a teoria local de justaposi-
ção entre pessoa e corpo, mesmo depois da morte. A ilustração etnográfica
privilegia a sociabilidade feminina no cemitério, a expressão das emoções e a
primazia da continuidade da “casa” minhota como relação social contextua-
lizadora das relações com os mortos e subsequente corporalização. Neste
sentido, é um texto em que “incorporação” é substituída por “corporaliza-
ção”: a fixação em imagens, memórias e discursos do morto tal como era num
dado momento da sua vida.
Cristiana Bastos apresenta um texto que abre caminhos na forma de fa-
zer e apresentar antropologia. O seu principal “informante” — Alfredo Gon-
zález—é reconhecido como co-autor, sendo o seu relato o núcleo central do
texto. Trata-se do relato de um homem infectado com o virus HIV-sida e da
sua experiência corporalizada como paciente com o “hospital cravado na
pele”, através das tecnologias médicas que assim abolem ou redefinem as
fronteiras do corpo nos tempos da sida. O estudo, localizado em Nova Ior-
que, é apresentado sob a forma mais próxima possível do hipertexto, numa
postura claramente experimental ao nível da escrita etnográfica, bem como
engajada do ponto de vista da política do corpo.
A João Pina Cabral foi feito o convite para ser o discussant dos contribu-
tos para este volume. Pretendeu-se assim que um antropólogo de renome na

150
academia portuguesa e internacional, e sem uma ligação directa ao processo
de elaboração do livro, discutisse as vozes plurais que nele circulam à luz do
momento actual da antropologia, das especificidades nacionais e das suas
próprias preocupações. Esta solicitação constituiu também um desafio para
o organizador e os contribuintes, já que em relação ao discussant não se esta-
beleceu nenhum controlo editorial. Com a participação do discussant, preten-
deu-se a abertura dos contributos para lá de uma hipotética lógica de
fechamento num grupo.
Um agradecimento muito especial é dirigido a Rui Pena Pires, que sou-
be compreender o potencial de interesse editorial, científico e social num pro-
jecto deste tipo. De igual modo, o Centro de Estudos de Antropologia Social
do ISCTE associou-se à organização da reunião fechada que juntou os auto-
res para a discussão das pontes e valas que os unem e afastam.
Algumas contribuições inicialmente previstas não vieram a concreti-
zar—se, devido a circunstâncias pessoais dos convidados: Nuno Porto, João
Leal, Antónia Pedroso de Lima, Ana Câmara Leme, Joaquim Pais de Brito,
João Vasconcelos, Catarina Alves Costa e Paulo Valverde. Mas não poderia
deixar de referir o contributo que alguns deles deram na reunião de discus-
são e nas trocas de correspondência, nomeadamente João Leal, Nuno Porto e
Antónia Pedroso de Lima.

Notas
1 O termo “incorporação” foi escolhido como tradução do inglês embodiment. Julgou-se que o
termo seria mais feliz do que as alternativas “corporalização”, “encarnação”, “somati- zação” ou
outras, por serem estas ou demasiado fechadas semanticamente ou mal sonan- tes. A
ambiguidade de “incorporação” está também presente no inglês embodiment; mas a expressão
deve ser entendida, neste livro, como tendo que ver apenas com a aprendiza- gem e assimilação
feita pelo corpo e só nele observável, e não nos seus sentidos de “interi- orização” ou
“exemplaridade”.
2 A abordagem diltheyiana e a sua subsequente influência em Victor Turner são desenvol- vidas no
texto de Susana de Matos Viegas, pelo que me restrinjo aqui a uma mera enuncia- ção. A
abordagem da performance é desenvolvida no texto de Paulo Raposo.

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153
Texto 7

Ciberantropologia. O estudo das comunidades virtuais

Adelina Maria Pereira da Silva1

Universidade Aberta

Índice

• Índice
• Introdução
• Ciberespaço / Cibercultura
• Ciberantropologia
• Comunidades Virtuais - as salas de Chat
• Conclusão
• Bibliografia

Introdução

Cada vez mais se verifica a informatização da sociedade. Basta observar com


atenção a publicidade exterior para constatar, que a maioria, apresenta um
endereço relacionado com sites, na Internet. Esta informatização envolve
transformações culturais, que, a pouco e pouco, se vão manifestando no
comportamento dos indivíduos.

A cultura, normalmente, é tida como um padrão de desenvolvimento, que se


reflecte nos sistemas sociais de conhecimento, ideologia, valores, leis e rituais
quotidianos.

A Antropologia serve de base para o estudo da cultura de uma organização ou


comunidade. O antropólogo deve ter um elevado grau de relativismo cultural,
de modo a conseguir neutralizar eventuais distorções provocadas pelo seu
contexto cultural de origem. A experiência da alteridade leva a perceber a
própria cultura e a cultura do outro, através do reconhecimento de que ela
nada tem de natural, é sim essencialmente formada de construções sociais.

A cultura pode ser entendida como um sistema simbólico, tal como a arte, o
mito, a linguagem, na sua qualidade de instrumento de comunicação entre
pessoas e grupos sociais, que permite a elaboração de um conhecimento
consensual sobre o significado do mundo.

154
Segundo Levy (1998), o ciberespaço representa um estágio avançado de auto-
organização social, ainda que em desenvolvimento - a inteligência colectiva - .
O Ciberespaço aparece como um Espaço do Saber, em que o conhecimento é
o factor determinante e a produção contínua de subjectividade é a principal
actividade económica. O ciberespaço surge, assim, como o quarto espaço
antropológico: o primeiro, a terra; o segundo, o território; o terceiro, o
mercado; o ciberespaço, o último.

Ciberespaço / Cibercultura

Levy define ciberespaço e cibercultura da seguinte maneira: por ciberespaço


entende que é um novo meio de comunicação que surgiu da interconexão
mundial dos computadores. O termo especifica não apenas a infra-estrutura
mundial da comunicação digital, mas também o universo oceânico de
informações que ela abriga, assim como os seres humanos que navegam e
alimentam esse universo. Quanto ao neologismo "cibercultura", especifica o
conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, atitudes, de modos
de pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente com o
crescimento do ciberespaço. É precisamente neste ciberespaço que se criam
comunidades virtuais, componentes da cibercultura. Formam-se a partir de
interesses comuns entre pessoas e organizações e têm várias formas de
expressão, dentre as quais se vulgarizaram as salas de chat.

As redes telemáticas, nas quais se inclui a Internet, mais do que um meio de


comunicação, afiguram-se um espaço de sociabilidade, no interior do qual se
desenvolvem práticas sociais, culturalmente determinadas e relativamente
autónomas.

A virtualidade, via de regra, é associada a uma "não-realidade", concepção que


não é das mais adequadas para se pensar o Ciberespaço. Vários pensadores
argumentam que o virtual não se opõe ao real, mas sim que o complementa e
transforma, ao subverter as limitações espaço-temporais que este apresenta.
Desta forma, o virtual não é o oposto do real, mas sim uma esfera singular da
própria realidade, onde as categorias de espaço e tempo estam submetidas a
um regime diferenciado. Esta forma de conceber o virtual ( o ``real virtual'') é
fundamental para se tratar de uma das dicotomias problemáticas dentro do
campo da Cibercultura - a oposição entre o on-line e o off-line.

A partir destas considerações, o termo "Ciberespaço" pode ser definido como


o locus virtual criado pela conjunção das diferentes tecnologias de
telecomunicação e telemática, em especial, mas não exclusivamente, as

155
suportadas por computador. Contudo, a Internet, não é a única instância de
Comunicação Mediada por Computador (CMC), e por extensão, de suporte ao
Ciberespaço.

O Ciberespaço, assim definido, configura-se como um locus de extrema


complexidade e difícil compreensão. A sua heterogeneidade é notória quando
se percebe o grande número de ambientes de sociabilidade existentes, no
interior dos quais se estabelecem as mais diversas e variadas formas de
interacção, tanto entre Homens, quanto entre Homens e máquinas e,
inclusive, entre máquinas.

Assim, o conceito de Cibercultura abarca o conjunto de fenómenos sócio-


culturais que ocorrem no interior deste espaço ou que estão a ele
relacionados. Escobar (1994), percorrendo um caminho inverso chega ao
Ciberespaço através da noção de Cibercultura. Segundo afirma, engloba uma
série de manifestações contemporâneas, não apenas as relacionadas com as
CMC's, mas também as referentes ao relacionamento do homem com a
tecnologia e, em especial, a biotecnologia acrescentando a noção de tecno-
socialidade.

Em qualquer caso, a compreensão do Ciberespaço pressupõe que este não seja


observado como um objecto no sentido estrito do termo, mas sim como um
espaço frequentado por personas que constituem localidades e
territorialidades. MacKinnon (1995) utiliza o conceito de persona, para
designar as identidades construídas pelas pessoas no interior do ciberespaço.

Ciberantropologia

Considerado um espaço frequentado por personas, a observação antropo-


analítica volta-se para a compreensão das peculiaridades dos grupos que se
constituem no seu interior. A análise poderá ser conduzida a dois níveis:
interno e externo.

O interno considera o Ciberespaço como um "nível" de realidade


substancialmente específico e diverso dos restantes, dentro do qual se
desenvolvem fenómenos peculiares, que devem ser abordados com um
referencial teórico adequadamente desenvolvido ou adaptado.

O externo considera-o como mais um aspecto da cultura contemporânea


estando nela inserido e confrontando a reflexão antro-pológica com o mesmo
tipo de problemas.

156
Assim, a abordagem externa efectua a Antropologia do Ciberespaço
considerando-a como mais um aspecto de outras realidades, enquanto que a
abordagem interna tenta estabelecer uma Antropo-logia noCiberespaço, uma
Ciberantropologia.

De qualquer modo, a pesquisa etnográfica em ambientes de sociabilidade


virtual poderá contribuir para o enriquecimento da reflexão sobre as
sociedades complexas, visto que o Ciberespaço pode ser compreendido como
uma das esferas constituintes da mesma. O Ciberespaço oferece um cenário,
se não equivalente, pelo menos bastante semelhante ao das sociedades
complexas, de cuja reflexão, no campo da Antropologia, já resultou um
referencial teórico bastante desenvolvido. Ao debruçar-se sobre as cidades e
sobre o mundo ocidental, a Antropologia apercebeu-se de um impasse: como
estranhar um "outro" que está aparentemente tão próximo?

Para Levy (1994), o espaço da rede suporta uma realidade social, constituída
por um conjunto de actividades coordenadas e construída por diversos
interlocutores dispersos pelo espaço físico. Ou seja, caracteriza-se pela
multiplicidade dos sujeitos envolvidos, pela coordenação que existe entre eles
e, sobretudo, pela convergência de actividades no sentido de alcançar um
sentido comum.

Para que um sistema possa ser usado como ferramenta de comunicação, no


ciberespaço, deve:

• ser de fácil acesso;


• ser fácil de utilizar;
• ser capaz de filtrar e seleccionar informação relevante;
• permitir o processamento de informação em tempo real (on-line).

Vive-se a Era Digital, marcada pela revolução tecnológica que está a mudar as
formas de pensamento, os costumes e os hábitos. A evolução das redes e a
utilização cada vez maior da Comunicação Mediada por Computador (CMC),
no dia-a-dia, está a fazer com que a sociedade readeque os hábitos dos
indivíduos tendo em conta, por um lado, a expansão quantitativa da
informação, e por outro, a distribuição da mesma. Caminha-se para o que hoje
se chama de sociedade de informação ou auto-estradas da informação. A está
em vias de se tornar um fenómeno de massas, uma vez que toda a economia,
cultura, saber, etc. passam por um processo de negociação, distorção,
apropriação do ciberespaço - nova dimensão espaço-temporal - (Lemos, s/d).

157
Na perspectiva da Antropologia, a dimensão simbólica da cultura é concebida
como capaz de integrar todos os aspectos da prática social. Os antropólogos
tenderam sempre a conceber os padrões culturais não como um molde que
produziria condutas estritamente idênticas, mas antes como regras de um
jogo, isto é, uma estrutura que permite atribuir significado a certas acções e
em função da qual se jogam infinitas partidas (Durhan, cit. in Fleury, 1987).

No estudo de um cultura, existem três perspectivas a ter um atenção:

• Cognitivista - a cultura é definida como um sistema de conhecimento


e crenças compartilhados; é importante determinar quais as regras
existentes numa determinada cultura e como os seus membros vêem
o mundo;
• Estruturalista - a cultura constitui-se de signos e símbolos. É
convencional, arbitrária e estruturada, constitutiva da acção social
sendo, portanto, indissociável desta;
• Simbólica - define cultura como um sistema de símbolos e significados
partilhados que necessita de ser decifrado e interpretado; as pessoas
procuram decifrar a organização, tendo em vista adequar o próprio
comportamento.

Para além da perspectiva de análise, a cultura de uma comunidade pode ser


apreendida a vários níveis:

• A nível dos artefactos visíveis - ambiente, arquitectura, pa-drões de


comportamento visíveis, por exemplo -;
• A nível dos valores que ditam o comportamento das pessoas - valores
que regem o comportamento das pessoas, por vezes, idealizações ou
racionalizações -;
• A nível dos pressupostos inconscientes - aquilo que os membros do
grupo percebem, pensam e sentem -.

Para criar e manter a cultura, a rede de concepções, normas e valores têm de


ser afirmados e comunicados aos membros da comunidade de uma forma
tangível, tal como são as formas culturais, ou seja, os ritos, rituais, mitos,
histórias, gestos e artefactos.

O rito, em especial, configura-se como uma categoria analítica privilegiada


para desvendar a cultura de uma comunidade. As pessoas expressam os
símbolos rituais através de diversos fenómenos - gestos, linguagem,
comportamentos ritualizados, que podem ser classificados em diversas
taxonomias, por exemplo:

158
• Ritos de passagem;
• Ritos de degradação;
• Ritos de confirmação;
• Ritos de reprodução;
• Ritos para redução de conflitos;
• Ritos de integração.

Assim, os ritos são facilmente identificáveis, porém de difícil interpretação.

As comunidades virtuais são agregações sociais que emergem da Rede quando


existe um número suficiente de pessoas, em discussões suficientemente
longas, com suficientes emoções humanas, para formar teias de relações
pessoais em ambientes virtuais, alterando de algum modo o EU dos que nele
participam (Rheingold, 1994)

A existência de uma comunidade virtual depende de três factores:


computador, linha telefónica (ou cabo) e software.

A tradicional comunicação em suporte papel e fala natural, há muito foi


mediada pela electrónica: primeiro através do telex, telefone e fax; mais
recentemente através do e-mail ou mesmo através do chat, que permitem a
comunicação simultânea e dialogante on-line.

O termo comunidade virtual sugere aparentemente uma comunidade que só


existe no ciberespaço. De qualquer modo, implica uma nova forma de ligação
que passa a existir no meio de, ou entre, comunidades no espaço geossocial
real, ligando-as e estendendo-as, trazendo mesmo comunidades reais para o
seu contacto. Nesse sentido, a Net representa uma analogia do mundo, ou
seja, é um lugar onde se constrói um espaço topográfico (interface), com
lugares (sites) e os caminhos (path) que irão ser percorridos, até se chegar ao
destino.

Ribeiro (s/d) defende que na internet os utilizadores quando interagem, criam


um mundo paralelo, on-line, transportando-se para outros locais.

Real ou virtual, não há dúvida queos utilizadores interagem no ciberespaço.


Mais do que informações e mensagens, circulam na Net actos de linguagem
que colocam em jogo a interacção, a negociação entre actores sociais (Aranha,
s/d).

Os discursos no ciberespaço sugerem que se pode caminhar para fora do EU


numa extensão tal que pode mesmo recriar-se do EU, conferindo-lhe uma

159
identidade virtual, em que o ciberespaço constitui a metáfora da pessoa - o
utilizador é levado a reinscrever a sua identidade, que pouco tem a ver com a
sua voz, aparência física ou mesmo personalidade.

É a essa construção de identidade do EU que antes se deu o nome de


persona. A persona que aparece no ciberespaço é, potencialmente, muito mais
do que um mero reflexo do EU real.

O conceito de sociabilidade ampliou-se ao permitir que os mais tímidos, que


mal ousam sair de casa, se relacionem com desconhecidos, quantas vezes
através de personalidades fictícias criadas para o efeito, através de uma
ciberexistência. Ao constituir-se como espaço de sociabilidade, o ciberespaço
gera novas formas de relações sociais, com códigos por vezes conhecidos, mas
adaptados ao espaço e tempo virtuais e às possibilidades de construção de
novas identidades. Cabe à Antropologia o estudo desses códigos, no sentido
de identificar as representações sociais que transmitem.

Para além disso, há também a questão da oralidade. Verifica-se um retorno à


oralidade, uma vez que o modo como a comunicação se processa na Internet
(ex. nas salas de Chat), escrevendo como se fala, está muito próximo dessa
mesma oralidade, embora pertencente ao domínio da escrita. Contudo, a
Internet vai muito mais além da mera oralidade, combinando texto, sons e
imagens.

Por essa razão, a internet está a mudar a comunicação humana. Nela


encontramos verdadeiros pontos de encontro on-line, que têm contribuido
para a formação de comunidades virtuais.

Comunidades Virtuais - as salas de Chat

Mas o que é comunidade?

Comunidade é um conjunto de pessoas numa determinada área, normalmente


geográfica, com uma estrutura social (existe algum tipo de relacionamente
entre os indivíduos), podendo existir um espírito compartilhado entre os seus
membrose um sentimento de pertença ao grupo.

Uma comunidadeterá de apresentar as seguintes características (Ávila, 1975):

• uma certa continuidade espacial, que permita contactos directos


entre os seus membros;

160
• a consciência da existência de interesses comuns, que permitem aos
seus membros atingirem objectivos que não seriam alcançados
individualmente;
• a participação numa obra, que sendo a realização desses objectivos é
também uma força de coesão interna da comunidade.

O conjunto de pessoas que se reune e interage através de uma sala de chat


experimenta circunstâncias idênticas às acima descritas, com uma diferença: o
local é o ciberespaço.

Fernback e Thompson (s/d) definem comunidades virtuais co-mo sendo


aquelas em que as relações sociais que se estabelecem ocorrem no
ciberespaço através de um contacto repetido num local específico,
simbolicamente limitado por um tópico de interesse (por exemplo, uma sala
de chat).

Rheingold (1994), por seu lado, define-as como agregações sociais que
emergem na Internet quando um número de pessoas conduz discussões
públicas por um tempo determinado, com suficiente emoção, e que forma
teias de relações pessoais no ciberespaço.

Lemos (s/d), defende que o ciberespaço não é uma entidade puramente


cibernética, e o interesse antropológico do ciberespaço reside justamente no
vitalismo social, nomeadamente dos chats. Afirma que o ciberespaço não está
desligado da realidade. É um espaço intermédio. Nele todos são actores,
autores e agentes de interacção.

Uma vez que as salas de chat, estão dividas por temas (#portugal;
#porto;#30-40; etc), as comunidades virtuais, construidas à volta de interesses
e não de proximidades físicas, sugerem a formação de ``subúrbios virtuais''. Os
utilizados destes serviços ligam-se às salas de Chat, pelos títulos (assuntos) que
lhes dizem alguma coisa. É nesse convívio que desenvolvem as suas personas,
que desenvolvem um senso comunitário e que fazem ou desfazem amizades.
Criam-se laços estruturais que unem os participantes.

As comunidades virtuais respondem às necessidades sociais das pessoas. E


baseiam-se na proximidade intelectual e emocional (Rheingold, cit. in FernBack
e Thompson, 1995).

Um problema que se coloca é o da natureza das relações on-line. Uma


comunidade não é apenas constituida de interesses compartilhados e
interacções cívicas humanas. Há também conflito e contradição.

161
Ao contrário das comunidades geográficas, as ciber-comuni-dades podem ser
efêmeras. Um participante num canal de chat só faz parte da comunidade
quando se ligar a ela. Assim, que deixa o canal, deixa também de pertencer
àquela comunidade virtual.

Há também a questão do nome (nick): numa comunidade virtual um indivíduo


pode simular que deixou de fazer parte da comunidade simplesmente
mudando de nick, sem o comunicar a mudança. Virtualmente transformou-se
noutro indivíduo, mas continua a fazer parte da mesma comunidade. Numa
comunidade geográfica isto não seria possível de acontecer.

O Chat é um serviço síncrono através do qual dezenas de pessoas comunicam


ao mesmo tempo, num ou em diversos canais, devidamente identificados.
Através dele o indivíduo pode conversar simultaneamente com diversas
pessoas e acompanhar a conversa de outros. Cada frase da conversa vem
antecedida do nome do utilizador. Ao mesmo tempo vai-se recebendo
informação sobre quem entra ou sai do canal. Existe também a possibilidade
de conversar em privado com determinado utilizador.

Ao entrar uma sala de chat o utilizador é obrigado a escolher um nick (um


apelido), pelo qual será identificado em todas as suas mensagens. A escolha
do nick é fundamental, pois será como o seu ``cartão de visita'', a sua máscara.
Através do nick, outro qualquer utilizador poderá identificar os interesses da
pessoa com quem poderá manter uma conversa.

Na Internet existe sempre um grande número de salas de chat, cujos nomes e


assuntos são muito diversos. Cada pessoa pode escolher a sala ou o assunto
sobre que quer falar ou, então, criar a sua própria sala.

162
Fig 1.: janela principal do Mirc (comunicação pública)

Fig 2.: exemplo de janela de comunicação privada

Os indivíduos que utilizam os canais IRC (Internet Relay Chat) apresentam


determinados traços comuns: são normalmente pessoas com interesse pelo
mesmo tema e com um nível sócio-econó-mico equivalente. Porém, outros
traços são bastantes heterogéneos, nomeadamente ao nível de culturas
(diferentes países) quer ao nível cognitivo, pelo que existe um elevado grau de
interajuda na superação de algumas dificuldades: língua, linguagem utilizada
(acrónimos e ``emoticons''), registo de nick, etc.

163
Acrónimo A Tradução em português Acrónimo A Tradução em português
AFAICT É o máximo que eu posso GIGO Lixo vem...lixo vai
falar
AFAIK Tanto quanto sei ILY Amo-te
AIUI Como eu percebi IME Pela minha experiência
BBL Voltarei mais tarde OIC Ah! Percebo
BRB Volto em breve OMG Oh, meu Deus!
F2F Cara a cara SITD Continuo sem resposta
FAQ Perguntas frequentes MORF Homem ou mulher?
B4 Antes IR Na realidade
AFK Afastado do teclado JAM Espere um minuto
BTW A propósito TIF Beijo na face
BSF Falo sério pessoal FYI Para tua informação
RUOK Estás bem? FOC Gratuito

Figura 3.: Exemplos de acrónimos

Emoticons Significado Emoticons Significado


#-) deslumbramento ,-) feliz e a
piscar o
olho
$-) acertou no :-# de boca
totoloto fechada
ressaca :-{ de bigode
%-
%-) com muito :-) de
tempo a olhar felicidade
para o ecrã
(8-0 quem paga a :---} de um
conta mentiroso
(:-) careca :)U copo cheio

164
+:-) padre :-> com
sarcasmo
,-} de ironia a piscar :-] de cabeça
o olho dura
:,( de choro constipado
:-
:- de homem :-7 sorriso
charmoso
(:-( muito triste :-C muito
infeliz
:-e de :-O de
desapontamento tagarela
:-Q de fumador >- feminino
de um génio de burrice
@: <:-
:-X beijo babado O:-) de anjo
P-( de pirata B-) à batman

Fig 4.: Exemplos de emoticons

Constata-se, contudo, que existem diferenças importantes entre a


comunicação mediada por computador (CMC) e a convencional:

• falta de feedback regulador - os indivíduos comportam-se de maneira


mais espontânea, mesmo com estranhos, já que não existem
limitações contextuais como o aspecto físico ou o status social -;
• apresentação anónima - qualquer indivíduo apresenta-se co-mo
quiser, criando uma nova identidade -;
• fraqueza dramatúrgica - quase inexistência de informações não-
verbais -;
• desconhecimento do status social - completo desconhecimento de
quem é o OUTRO, até que este o divulgue -.

Quer a fraqueza dramatúrgica quer o desconhecimento do status social


motivam a construção de um novo universo simbólico que, no caso dos canais
de Chat, impulsiona a criação de novas culturas e comunidades.

165
É possível definir três pilares psicossociais da comunicação pessoa-pessoa
através do ciberespaço (Riva & Galimberti, cit. in Cunha, s/d):

1) a realidade construída na rede;

2) a conversação virtual;

3) a construção da identidade.

O espaço das interacções sociais não pode ser descrito apenas em termos
físicos. Os espaços construídos com base na realidade virtual caracterizam-se
por níveis de simulação cada vez maiores: é a co-presença de discursos, mais
do que a co-presença física de interlocutores que determina a construção das
capacidades cognitivas e a performance.

Além disso, a realidade virtual é um espaço em que:

• cada interlocutor continua a poder influenciar a acção do(s) outro(s);


• os interlocutores continuam a poder regular a comunicação através
de feedback de informação.

Por tudo isto, a Internet oferece um campo de liberdade para o indivíduo


exprimir a sua identidade. No contexto do ciberespaço, o indivíduo pode
decidir:

• interagir com os outros tal como é;


• seleccionar apenas aspectos particulares da sua identidade, e
eventualmente acrescentar outros aspectos ``inventados'';
• adoptar uma identidade completamente diferente da sua identidade
real;
• optar por manter-se anónimo, como observador passivo e invisível.

A rede surge, então, como um espaço verdadeiramente democrá-tico, em que


todos têm igualdade de oportunidades, independentemente de questões de
género, saúde, estatuto, etnia, etc.

A influência de uns sobre os outros está apenas limitada pela capacidade de


comunicação, que depende não só da habilidade verbal, como também dos
conhecimentos técnicos obtidos.

A própria metáfora espacial que se usa para caracterizar a Internet como um


ciberespaço, remete para o facto de o próprio conceito de espacialidade ser

166
modificado por este meio: as pessoas podem interagir durante dias, semanas
ou anos (através do chat, por exemplo), independentemente das mudanças
geográficas que tenham lugar. A comunidade está onde a pessoa estiver. É um
excelente suporte, dentro daqueles que estão actualmente disponíveis, para
manter o contacto social com pessoas distantes.

Em qualquer comunidade há regras de conduta, que variam de cultura para


cultura. Também nas comunidades virtuais há regras de conduta, que surgiram
de uma maneira espontanea, que deverão ser respeitadas. É o que
vulgarmente de chama de Netiqueta.

Netiqueta é a forma aportuguesada do termo inglês "netiquette", que significa


"etiqueta (bons modos) na Internet". A Netiqueta é um conjunto de regras
não-oficiais, passadas de boca em boca e site em site que tenta estabelecer um
padrão de comportamento considerável "desejável" pelos utilizadores e para
os utilizadores. As regras da netiqueta visam tornar a Internet um lugar menos
caótico e mais sadio, ensinando as pessoas que certas atitudes aparentemente
inofensivas podem aborrecer, atrapalhar ou agredir outros usuários, devendo
ser evitadas. O usuário que desrespeita a netiqueta, propositalmente ou não,
prejudica também a si mesmo, porque é "deixado de lado" pelos outros
utilizadores. A Netiqueta pode variar ligeiramente de acordo com o tipo de
comunicação que está a ser utilizado (por exemplo: canais chat, grupos de
discussão, e-mail). Alguns dos exemplos de netiqueta são: não falar palavrões,
não fazer flood2, não gritar, não fazer propaganda de qualquer espécie, entre
outras coisas. Se alguém quebrar uma dessas regras, a pessoa é kickada3 do
canal, ou então pode ser banida4.

Conclusão

Em suma, ao criar um meio de circulação de informações, a rede possibilitou


um multiplicidade de formas de comunicação e de criação de sociabilidades
através do CMC. Criou-se um novo espaço, virtual, a que se deu o nome de
ciberespaço. Nele materiali-zam-se relações sociais e valores, que vulgarmente
se chama de cibercultura.

A cibercultura tem possibilitado mudanças nas relações do homem com a


tecnologia e entre si, gerando novas formas de sociabilidade. Estas novas
formas de sociabilidade estão condicionadas pelo aparecimento de novas
identidades sociais.

Os utilizadores do chat mantém um senso de comunidade e linguagem


partilhada. Reconhecem o seu universo simbólico particular que os

167
caracteriza e os une, apresentam um senso de respeito pelas convenções do
grupo, de responsabilidade pelo chat, e os que não o respeitam são
marginalizados.

A Internet desenvolve novas possibilidades de comunicação, expressão


cultural e de sociabilidade.

Estas novas formas de sociabilidade podem ser enquadradas no quadro de


uma Ciberantropologia.

O objectivo da Ciberantropologia será o estudo das novas formas de


sociabilidade que são estabelecidas na Internet através de outros elementos
de identidade que não a voz, a aparência física ou a escrita, destacando outros
códigos e relações sociais experimentados pelos utilizadores desse espaço e a
sua relação com os interfaces.

A Internet é simultaneamente real e virtual (representacional), informação e


contexto de interacção, espaço (site) e tempo, mas que altera as próprias
coordenadas espacio-temporais a que estamos habituados, compactando-as,
ou seja, o espaço e o tempo na rede existem na medida em que são construção
social partilhada. Esta construção é estruturada pelos laços e valores socio-
políticos, estéticos e éticos que tipificam este novo espaço antropológico.

Este novo espaço com áreas de privacidade - um novo mundo virtual ou mundo
mediatizado - é um suporte aos processos cognitivos, sociais e afectivos, os
quais efectuam a transmutação da rede de tecnologia electrónica e
telecomunicações em espaço social povoado por seres que (re)constroem as
suas identidades e os seus laços sociais nesse novo contexto comunicacional.
Geram uma teia de novas sociabilidades que suscitam novos valores. Estes
novos valores, por sua vez, reforçam as novas sociabilidades. Esta dialéctica é
geradora de novas práticas culturais.

Trata-se de um novo tipo de organização socio-técnica que facilita a


mobilidade no e do conhecimento, as trocas de saberes, a construção colectiva
do sentido, em que a identidade sofre uma expansão do eu baseada na diluição
da corporeidade, ou seja, o que se perde em corpo ganha-se em rapidez e
capacidade de disseminar o eu no espaço-tempo. Assiste-se, assim, a uma
aceleração do metabolismo social. Geram-se as chamadas comunidades
virtuais.

168
As redes e serviços telemáticos geram novos espaços de encontro, novos
espaços antropológicos, há que questionar em que medida esses novos
espaços representacionais (re)criam as identidades e as práticas culturais.

Gera-se um espaço antropológico alternativo.

Diz Rheingold (1996:43): ``Talvez o ciberespaço seja um dos lugares públicos


informais onde possamos reconstruir os aspectos comunitários perdidos
quando a mercearia da esquina se transforma em hipermercado. Ou talvez o
ciberespaço seja precisamente o lugar errado onde procurar o renascimento
da comunicação, oferecendo, não um instrumento para o convívio, mas um
simulacro sem vida das emoções reais e do verdadeiro compromisso perante
os outros. Seja qual for o caso, precisamos de descobri-lo o mais rapidamente
possível''.

Bibliografia

• Aranha Filho, Jayme (s/d), Tribos Electrónicas: Usos & Costumes,


http://altervex.com.br/ esocius/t-jayme.htm
• Ávila, Fernando B. (1975), Pequena Enciclopédia de Moral e Civismo,
Fename, Brasília
• Cunha, Luís Simões, Narrativa(s) do Futuro,
http://www.geocities.com/HotSprings/Resort/2564/inter.html
• Escobar, Arturo (1994), Welcome to Cyberia, Current Anthropology,
vol. 35, 3
• Fernback, Jan, Thompson, Brad (s/d), Virtual Communities: Abort,
Retry, Failure? http://www.well.com/user/hlr/texts/vccivil.html
• Fleury, Maria Tereza L. (1987), Estória, Mitos, Heróis - Cultura
Organizacional e Relações de Trabalho, Revista de Administração de
Empresas, out/dez, S. Paulo
• Guimarães, Mário José L., A Cibercultura e o Surgimento de Novas
Formas de Sociabilidade, guima/ciber.html
• Guimarães, Mário José L., O Ciberesapço como Cenário para as
Ciências Sociais,
guima/papers/ciber_cenario.html
• Lemos, André L. M. (s/d), As Estruturas Antropológicas do
Cyberespaço,
http://www.facom.yfba.br/pesq/cyber/lemos/estrcy1.html
• Levy, Pierre (1994), As Tecnologias da Inteligência - O Futuro do
Pensamento na Era da Informática, Instituto Piaget, Lisboa

169
• Levy, Pierre (1998), A Inteligência Colectiva - Por uma Antropologia do
Ciberespaço, Loyola, S. Paulo
• MacKinnon, Richard C., (1995), Searching for the Leviathan in Usenet,
in Jones, Steven G., CyberSociety - Computer-Mediated Communication
and Community, Sage, Londres
• Primo, Alex Fernando T. (1997), A Emergência das Comunidades
Virtuais, aprimo/pb/comuni.htm
• Rheingold, Howard (1994), The Virtual Community: Finding Connection
in a Computerized World, Minerva, Londres
• Rheingold, Howard (1996), A Comunidade Virtual, Gradiva, Lisboa
• Rheingold, Howard (1998), The Virtual Community,
http://www.rheingold.com/vc/book/
• Ribeiro, Gstavo Lins (s/d), The Condition of Transnationality: Exploring
Implications for culture, Power and Language,
http://www.ibase.org.br/ esocius/anais.html
• Rodrigues, Adriano (1999), Comunicação e Cultura, Editorial Presença,
Lisboa

Notas de rodapé

... Silva1
Mestre em Relações Interculturais pela Universidade Aberta.
...flood2
Repetição seguida de mensagens em pouco espaço de tempo. O Flood
atrapalha o andamento do canal. Repetir 3 vezes a mesma linha é considerado
flood em alguns canais.
...kickada3
Quando um dos operadores disconecta uma pessoa do canal.
...banida4
Ser disconectado do canal e ser impedido de entrar nele por alguns minutos.

170
41101 Textos e escritos: Etnografias

Tema 3: As etnografias portuguesas: encruzilhadas coloniais e terrenos


contemporâneos

Lúcio Sousa
Universidade Aberta
2019/2020
Tema 3: as etnografias portuguesas: encruzilhadas coloniais e terrenos
contemporâneos1

Introdução: sinopse do tema em estudo2 1

3.1 Etnografias, usos e costumes, em Portugal e nas colónias 3

Texto 1 Ramos, Francisco Martins (2002) Os caminhos da Etnografia 4


Portuguesa

Texto 2 Leal, João (2000) “A antropologia portuguesa entre 1870 e 8


1970: um retrato de grupo”

3.2 Etnografias contemporâneas 39

Texto 3 Ramos, Francisco Martins e Pires, Ema Cláudia (2004) “5. A 40


Etnografia Portuguesa a partir de 1965 - José Cutileiro”

1
© Este é um trabalho em desenvolvimento pelo que as sugestões serão bem-vindas
[lucio.sousa@uab.pt ]. O uso deste recurso é limitado ao trabalho individual e colaborativo no
âmbito estrito da unidade curricular 41101 Etnografias e não pode ser objeto de
divulgação/disponibilização exterior à plataforma moodle.
2
Atendendo à dispersão geográfica dos estudantes e a eventuais limitações de requisição em
bibliotecas ou aquisição de obras de obras de referência, foi preocupação constante na
elaboração deste trabalho encontrar textos de qualidade disponíveis de forma legal na web,
assim como colocar excertos de obras salvaguardando os limites decorrentes dos direitos de
autor. No caso dos textos do docente estes foram usados de forma mais livre, porquanto
pessoais.

1
Introdução: sinopse do tema em estudo

Neste tema iremos trabalhar as etnografias portuguesas, procurando compreender o


papel da etnografia em Portugal (intimamente associada à antropologia), analisando a
sua evolução no tempo e a sua aplicação em contexto colonial.

No subtema 3.1 Etnografias, usos e costumes, em Portugal e nas colónias iremos


trabalhar dois textos de carácter introdutório, mas fundamentais, o Texto 1 de Francisco
Martins Ramos e o Texto 2, de João Leal, que nos irão dar um vislumbre da evolução da
etnografia em Portugal, o seu uso e aplicabilidade prática, quer em contexto
metropolitano quer nas colónias portuguesas existentes até 1975. Sendo vários os
autores a reter há um fundamental para a compreensão do desenvolvimento da
etnografia / antropologia em Portugal: Jorge Dias.

No subtema 3.2 Etnografias contemporâneas iremos analisar dois textos que permitem
explorar as etnografias iniciadas sobretudo após os anos setenta, algumas destas
revisitando antigos terrenos, outras explorando novos espaços de trabalho. Neste
subtema iremos debruçarmo-nos em particular sobre o autor de uma obra charneira da
antropologia portuguesa: José Cutileiro (um autor que, paradoxalmente, não é na
atualidade antropólogo...).

É importante ler os textos e explorar os recursos tendo presente a forma como a


investigação entretece estreitas relações com o(s) poder(es) e de como os etnógrafos e
antropólogos podem ser parte desse processo.

Sendo este um tema vasto são feitas sugestões de leituras complementares. Muitos
destes recursos estão disponíveis na web.

2
3.1 Etnografias, usos e costumes, em Portugal e nas colónias

No final deste capítulo deverá:

§ Compreender o papel da etnografia em Portugal


§ Analisar o papel da etnografia no espaço colonial português
§ Conhecer alguns dos trabalhos de autores clássicos

O trabalho deste tema assenta na leitura de dois textos:


Texto 1:
Ramos, Francisco Martins (2004) “3. Os caminhos da etnografia portuguesa”. In Etnografia geral
portuguesa. Francisco Martins Ramos. Lisboa : Universidade Aberta .pp. 67-70

Texto 2:
Leal, João (2000) “A antropologia portuguesa entre 1870 e 1970: um retrato de grupo”, In
Etnografias portuguesas (1870-1970). Cultura popular e identidade nacional, João Leal. Lisboa:
Dom Quixote. pp. 27-61.
Disponível integralmente online em:
https://run.unl.pt/bitstream/10362/4339/1/Etnografi...pdf

Com base nos textos 1 e 2 deverá reconhecer e analisar:


§ O desenvolvimento da etnografia em Portugal e a sua estreita relação com a emergência da
antropologia social;
§ Alguns dos autores dos finais do século XIX, 1ª metade do século XX e as suas preocupações
etnográficas, em Portugal e nas colónias;
§ O papel central de Jorge Dias no desenvolvimento da prática etnográfica e da antropologia
cultural em Portugal.

Outros recursos, outras leituras, outras escritas:


Branco, Jorge Freitas. (1999) A fluidez dos limites: discurso etnográfico e movimento folclórico
em Portugal. In Etnográfica. ISSN 08736561. Vol. III, nº 1 (1999), p. 23-48. Disponível online:
http://hdl.handle.net/10071/625

Sobral, J. M. (s.d.), Dias, António Jorge (Porto,1907 - Lisboa, 1973). In Dicionário de Historiadores
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Pereira, Benjamim. (2009 [1965]) Bibliografia Analítica de Etnografia Portuguesa. Lisboa:


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Sousa, Lúcio (2011) Objetos lulik, neolítico e casas sagradas: um episódio de antropologia
colonial em António de Almeida. In Atas do Colóquio Timor: Missões Científicas e Antropologia
Colonial. AHU, 24-25 de maio de 2011. Disponível online:
http://www.historyanthropologytimor.org/wp-content/uploads/2012/01/18-SOUSA_L.pdf

3
Texto 1

Francisco Martins Ramos


3. Os caminhos da etnografia portuguesa

O autor que pode ser considerado a «alma mater» do trabalho etnográfico em Portugal foi
Leite de Vasconcelos (1858-1941). Todavia, ele beneficiou de abordagens anteriores
realizadas por Teófilo Braga (1843-1924), Adolfo Coelho (1847-1919) e Consiglieri
Pedroso (1851-1910), ao nível nacional, e foi influenciado por autores estrangeiros, tais
como Edward Tylor, Spencer, Darwin, Max Muller e Auguste Comte.

Para Leite de Vasconcelos, a Etnografia estava dividida em três ramos: a) Território e


Povo; b) Folclore e c) Ergografia (Guerreiro 1997). A sua obra-prima foi a ambiciosa
Etnografia Portuguesa, que não terminou antes da sua morte, tendo publicado apenas três
volumes, num total de dez, mais tarde continuados e publicados por alguns dos seus
seguidores.

Vasconcelos licenciou-se em Medicina, mas as suas principais áreas de interesse foram a


Literatura, o Folclore e a Etnografia. Ele foi um autor ecléctico: as suas investigações e
publicações incluíram temas em dialectologia (o seu doutoramento realizado em França, na
Sorbonne, foi sobre o dialecto mirandês), arqueologia, numismática, cultura material, lendas,
contos, museologia, etc.

É um facto que a Antropologia Portuguesa não se desenvolveu à volta do Império, apesar


da dimensão e da longevidade das nossas colónias; ela centrou-se ao redor da construção da
nação. Assim, "tal como em muitos outros países europeus onde prevaleceu urna opção
idêntica, a antropologia portuguesa não só se constituiu como um espaço disciplinar orientado
para o estudo da cultura popular portuguesa de matriz rural, como essa sua orientação foi
dobrada por pressupostos analíticos marcados pela centralidade da problemática da
identidade nacional" (Leal 2000: 28). Tal orientação persistiu até à década de 1960, em cujos
primeiros anos três estudos se iniciaram no terreno (Colette Callier-Boisvert, Joyce
Riegelhaupt e José Cutileiro). Para estes autores, e de acordo com João Leal, "o estudo da
cultura popular de matriz rural aparece dissociado de quadros analíticos influenciados por
pressupostos de tipo nacionalista" (Leal 2000: 28).

Na segunda metade do século XIX, os autores que estudaram a sociedade e a cultura


portuguesa constituíram os agentes do período "positivista filológico--etnográfico" da
Etnologia Portuguesa. "Eles abordaram a cultura, a literatura e a linguagem popular, assim
como a história nacional e a arqueologia" (Duarte 1999: 82).

Nos finais do século XIX, "a cultura popular é vista como um universo formado quase
exclusivamente pela literatura e pelas tradições populares. A literatura popular, pelo seu lado,
compreendia três grandes géneros: o cancioneiro, o romanceiro e os contos. Quanto às
4
tradições populares, formavam uma área relativamente heterogénea, onde cabiam desde
crenças a 'superstições', festas cíclicas, ritos de passagem, etc... foi um período de forte
investimento na
67

recolha, em que a imagem da cultura popular é eminentemente textual" (Leal 2000: 41).

Interessa, entretanto, aprofundar um pouco mais o perfil dos protagonistas principais das
primeiras fases da Antropologia Portuguesa. Nesse sentido, a obra de João Leal
Etnografias Portuguesas (1870-1970): Cultura Popular e Identidade Nacional, editada em
2000, pelas Publicações Dom Quixote, fornece um contributo valioso para o
entendimento da génese e desenvolvimento dos estudos etnográficos em Portugal.

Por outro lado, no começo do século XX, o estudo da cultura centrou-se essencialmente
na etnologia e no folclore e na sua relação com a identidade nacional, tal corno já foi referido.
Alguns anos mais tarde, sob a influência do funcionalismo britânico, podemos verificar uma
nítida separação destes dois campos: antropologia (social e/ou cultural), por um lado, e
estudos folclóricos, por outro lado.

A opção etno-folclórica portuguesa (semelhante à escandinava e alemã) prolonga-se até


cerca de 1970 e pode ser justificada por razões ideológicas relacionadas com a identidade,
o nacionalismo, o ruralismo, as tradições e a cultura material. Todavia, esta opção
«nacionalista» do estudo da cultura popular deve ser enquadrada num contexto mais
alargado. De facto, na mesma altura, em diferentes países europeus, tais como a Alemanha,
Finlândia e Grécia, Hungria, Roménia e Noruega, a ênfase folclórica foi semelhante. Até
mesmo em França existiu uma tradição de estudos folclóricos e etnográficos articulados com
as orientações nacionalistas.

Em Portugal, o interesse colocado nos estudos folclóricos e consequentes actividades


museológicas foi extremamente forte e constituiu um obstáculo para o desenvolvimento
das disciplinas antropológicas até à segunda metade do século XX.

O movimento da "etnologia nacional" espalhou-se pela Europa através de um grande


projecto científico designado European Ethnology, Europaische Volkskunde ou
Ethnologie Européenne, segundo os diferentes países e de acordo com as línguas
envolvidas (Duarte 1999). Tal movimento revestiu-se de grande dinâmica nomeadamente
na área dos estudos folclóricos. Tratou-se de uma bandeira que gerou várias actividades:
reuniões e debates internacionais, publicações, actividades de recolha e instalação de
museus.

João Leal considera dois modelos para interpretar o processo da literatura folclórica em
Portugal o modelo romântico, em que as tradições populares e a literatura

consubstanciavam e legitimavam a identidade nacional, através da recolha e publicação;


por outro lado, "Os modelos etnogenealógicos assentam no peso de correntes como a
mitologia comparada ou as escolas difusionistas pré-evolucionistas e propõem-se trabalhar
a literatura e as tradições

5
68

populares como testemunhos das correntes étnicas que teriam sucessivamente frequentado o
país" (Leal 2000: 55). No início do século XX, a ênfase orientou-se para os estudos
regionais e locais.

Em 1940, foi decidido celebrar o oitavo centenário da independência e o terceiro


centenário da restauração de Portugal. Foi a «festa do regime». Tratou-se de uma iniciativa
de propaganda ideológica em que algumas das actividades se basearam nas práticas
folcloristas: exposições das diferentes regiões do Império, pavilhões com objectos da
cultura material, representações dramáticas de cenas populares, reconstrução de velhos
castelos, criação do Museu de Arte Popular, etc., etc. Foi, sem dúvida, a mais importante
década para a exaltação da nacionalidade, da autenticidade, das raízes históricas e da cultura
popular: o período de ouro para os folcloristas portugueses.

Em resumo e no que diz respeito à primeira metade do século XX, os folcloristas portugueses
«trabalharam sobre o seu próprio país», concentrando a sua atenção sobre a vida local,
nomeadamente sobre a vida quotidiana dos «mais humildes». Foi abordada uma parafernália
múltipla de temas tais como as tecnologias tradicionais, a arquitectura popular, o
vestuário e os artefactos, como componentes da cultura material. Por outro lado,
investigaram sobre dialectos, musicologia, toponímia, contos, narrativas e antroponímia,
como elementos da cultura intangível. Estes dois ramos podem ser justificados por diferentes
perspectivas teóricas, aceites e assumidas pelas orientações ideológicas do regime: o
primeiro baseado em factos históricos para legitimar a «autenticidade», o segundo procura
a «singularidade nacional». De acordo com vários autores, o resultado final seria o
entendimento que a população rural constituiria o «tesouro» da identidade nacional, perdida
pela influência da modernização urbana e das classes superiores (Duarte 1999).

Pina Cabral ajuda-nos a entender o processo evolutivo da Etnografia e da Antropologia


em Portugal: "Desde a subida ao poder da burguesia, na primeira metade do século XIX, o
estudo dos «costumes populares» foi considerada uma questão de interesse fundamental.
À «cultura popular» é atribuída uma autenticidade que a sociedade burguesa pensa não
encontrar no seu próprio seio. A produção e reprodução de uma identidade nacional no
contexto de uma hegemonia burguesa parece, assim, ter dependido da constante
reformulação da noção de «o povo» — no seio do qual se deveria encontrar a «verdadeira»
identidade nacional. Tal como na maior parte dos outros Estados--Nação europeus, durante
o século XIX e a primeira metade do século XX, o recurso à etnografia, tanto como interesse
académico como interesse literário, foi conscientemente associado à procura de uma
identidade nacional" (Cabral 1991: 15).

Em 1971, José Cutileiro manifestava a sua preocupação pela ausência de estudos


comparativos sobre as diversas regiões do país. E afirmava:
69

6
"Esperemos que, com o desenvolvimento actual dos estudos de antropologia na
Universidade de Lisboa, tal trabalho venha um dia a ser feito. Até lá teremos apenas como
em tantos outros sectores da sociologia e da história contemporânea portuguesa,
sugestões, palpites e quando muito hipóteses não provadas.

Esta situação é particularmente grave. Se se tratasse de ciências naturais, de botânica ou


de astronomia, por exemplo, tal fase de conhecimento faria de nós apenas um país
ignorante. Tratando-se de ciências históricas e sociais faz de nós um país enganado e
presumido. Na falta de evidência produzida por profissionais o campo está entregue aos
leigos e aos amadores, pois podem-se escrever asneiras sobre história e sociedade com
muito mais impunidade (e alarmante sucesso) que sobre pteridófitas ou galáxias. Os
ficcionistas, os jornalistas e os políticos arvoram-se em historiadores e sociólogos e têm
os seus públicos. Os mitos dos integralistas e dos neo-integralistas, os mitos dos marxistas
e dos neo-marxistas servem de apoio teórico às desfigurações que, com mão incompetente
e leviana, por aí se vão fazendo passar por retratos do passado e do presente deste país. E
enquanto, na Universidade ou fora dela, centros de investigação adequados não produzam
trabalhos que possam concorrer, no mercado das ideias, com os exercícios dos amadores,
a situação tenderá a piorar" (Cutileiro 1988: xxvii)

Depois de 1960 e especialmente depois de 1974, a Antropologia e as outras ciências


sociais iniciaram uma nova era em Portugal. A instauração de um regime democrático
permitiu novas possibilidades para a investigação e para o ensino. A Antropologia pode
finalmente ocupar o seu próprio espaço, livre dos constrangimentos de um regime
autoritário.
Leituras adicionais

Recomenda-se a leitura dos diversos títulos da Colecção "Portugal de Perto",


nomeadamente a obra de João Leal Etnografias Portuguesas ( 1870-1970).

Deve, ainda, consultar-se o Capítulo I do livro de João Pina Cabral Os Contextos da


Antropologia, Difel (1991) e ler o artigo de Jorge Freitas Branco "A Fluidez dos Limites:
Discurso Etnográfico e Processo de Folclorização em Portugal", EtnográficallI,1: 23-48
(transcrito nas páginas seguintes).
70

7
Texto 2

João Leal

A ANTROPOLOGIA PORTUGUESA ENTRE 1870 E 1970: UM RETRATO DE


GRUPO

Num artigo de 1982 George Stocking (1982b) chamou a atenção para a existência
de duas tradições distintas no processo de desenvolvimento da antropologia a partir do
final do século xix: uma tradição antropológica de «construção do império» e uma
tradição antropológica de «construção da nação». A primeira triunfou nos EUA e em
países europeus «centrais» - como a Grã-Bretanha e a França - que possuíam então um
império colonial. Nesses países, a antropologia definiu-se como uma disciplina
preferencialmente orientada para as sociedades e culturas não-ocidentais, por
intermédio da qual ganhou corpo uma reflexão sobre a primitividade e a alteridade
culturais. A segunda tradição, por seu turno, ganhou maior expressão em países
europeus da periferia ou semi-periferia que, além de não terem colónias, lutavam então
pela obtenção e/ou consolidação da sua autonomia nacional. Aí, a antropologia definiu-
se como um projecto orientado para o estudo da tradição camponesa nacional marcado
por pressupostos analíticos decisivamente ligados à construção da identidade nacional.
Em Portugal, apesar da existência de um império e da inexistência de um problema
nacional idêntico ao da generalidade dos países periféricos e semi- periféricos da
Europa, foi entretanto como uma antropologia de construção da nação que a
antropologia se desenvolveu e afirmou na cena cultural e intelectual portuguesa a partir
das décadas de 1870 e 1880.
De facto, por um lado - e em provável consequência da debilidade e do carácter
dependente do colonialismo português -, é relativamente tardio o desenvolvimento de
um interesse antropológico centrado no terreno colonial português. Este, como
demonstrou Rui Pereira (1986, 1989a, 1989b, 1989c, 1999),

27

remonta ao final da década de 1950, quando Jorge Dias iniciou a sua pesquisa entre os
Macondes do norte de Moçambique. Até aí, como sublinhou o mesmo autor, a
frequência «antropológica» do terreno colonial português havia-se orientado
exclusivamente para investigações de antropologia física e/ou biológica (Pereira, Rui
1999). Embora tivessem sido editados alguns estudos marcados por uma certa
curiosidade pelos sinais propriamente culturais da alteridade das populações residentes
nos territórios sob administração colonial portuguesa, trata-se de contribuições
isoladas, de teor essencialmente descritivo e com uma circulação e um impacto
limitados na cena cultural e científica portuguesa.
Na ausência de uma tradição antropológica de construção do império, foi como
uma antropologia de construção da nação que a disciplina se desenvolveu em Portugal.
De facto, tal como em muitos outros países europeus onde prevaleceu uma opção
8
idêntica, a antropologia portuguesa não só se constituiu como um espaço disciplinar
orientado para o estudo da cultura popular portuguesa de matriz rural, como essa sua
orientação foi dobrada por pressupostos analíticos marcados pela centralidade da
problemática da identidade nacional. É certo que Portugal, usualmente considerado
como uma das mais «antigas e contínuas nações do ocidente» (Seton-Watson 1977),
não tinha um problema nacional similar ao da maioria dos países onde triunfou uma
tradição antropológica de construção da nação. Entretanto, como sublinhou Eduardo
Lourenço (1978), não é menos verdade que a vida cultural portuguesa ao longo do
século xix e de boa parte do século XX parece estruturar-se em redor da «preocupação
obsessiva» (id.: 89) com a identidade nacional portuguesa, resultante daquilo que o
autor classifica como um persistente «sentimento de fragilidade ôntica» (id.: 92) dos
intelectuais portugueses relativa- mente ao seu próprio país. Responsável pelo lugar
central que Portugal enquanto sujeito ocupa na história literária portuguesa dos últimos
150 anos, essa circunstância é também susceptível de explicar o peso que o tópico da
identidade nacional teve no desenvolvimento histórico da antropologia portuguesa.
Nascida sob o signo da identidade nacional, a antropologia portuguesa guardou
até muito tarde estas suas características. De facto, por um lado - como acabámos de
ver -, só a partir do final de década de 1950, com o trabalho de Jorge Dias entre os
Maconde, é que o auto-centramento da disciplina em torno do terreno português
começou a ser posto em causa. Por outro lado, foi apenas nas décadas de 1960 e 1970
que começaram a surgir trabalhos - como os de Joyce Riegelhaupt (1964, 1967, 1973),
Colette Callier-Boisvert (1966, 1968) e José Cutileiro (1971, 1977) - onde o estudo da
cultura popular de matriz rural aparece dissociado de quadros analíticos influenciados
por pressupostos de tipo nacionalista.
Pode-se pois dizer que ao longo do período de quase um século que se estende
de 1870 a 19703 a antropologia portuguesa não só teve na cultura
28

popular de matriz rural o seu objecto principal de pesquisa, como o seu interesse por
tópico se organizou em torno de preocupações hegemonizadas pelo tema da identidade
nacional portuguesa.

CONTEXTOS, PROTAGONISTAS, INSTITUIÇÕES

Nessa sua dupla configuração, a antropologia portuguesa conheceu, ao longo


desse período de quase um século, diferentes fases no seu processo de
desenvolvimento, ligadas antes do mais a diferentes contextos, protagonistas e níveis
de institucionalização4.

3
Adopto aqui os limites cronológicos empregues por Luís Angel Sanchez Gomez (1997).
4
O que se procura de seguida fazer foi já tentado por diversas vezes na história da antropologia
portuguesa, por autores como Leite de Vasconcelos (1933: 250-325), Jorge Dias (1952), Jorge Freitas
Branco (1986), João Pina Cabral (1991) ou Sánchez Gomez (1997). É no seguimento dessas reflexões
anteriores sobre a periodização da antropologia portuguesa que se situa a presente proposta. Esta, ao
mesmo tempo que apresenta em relação a elas um certo número de similitudes, separa-se delas nalguns
pontos. Assim, nos termos da presente proposta, e deixando de lado os precursores românticos, seria
possível distinguir fundamentalmente quatro grandes períodos na história da antropologia portuguesa:
9
A primeira grande fase de desenvolvimento da antropologia em Portugal
coincide com as décadas de 1870 e 1880: é nesse período que se assiste à emergência,
como campo disciplinar autónomo, da antropologia portuguesa. Tendo em Adolfo
Coelho (1847-1919) e em Teófilo Braga (1843-1924) as suas figuras mais destacadas, a
nascente antropologia portuguesa assentou ainda no trabalho pioneiro de Consiglieri
Pedroso (1851-1910) e do então jovem Leite de Vasconcelos (1858-1941)5.
O contexto intelectual mais vasto em que estes autores desenvolveram o seu
trabalho é dominado pelas Conferências do Casino de 1871 - de que Adolfo Coelho e
Teófilo Braga foram participantes destacados - e pelos seus propósitos de radical
regeneração da vida intelectual portuguesa. Insistindo na urgente europeização de
Portugal e na sua adesão às «ideias do século», procurando «agitar na opinião pública
as grandes questões da Filosofia e da Ciência Moderna» (Antero de Quental in Pires
1992: 62), as Conferências do Casino constituíram de facto um momento de viragem na
cultura e na ciência portuguesas do século XIX, tendo tido um impacto considerável no
desenvolvimento

29

de ramos de saber até então desconhecidos em Portugal. Entre esses saberes - a par das
ciências naturais darwinistas, da história de Renan ou da linguística indo-europeia -
encontra-se justamente aquilo que hoje designamos como antropologia e que, na
altura, era classificado de muitas outras maneiras.
Etnografia, folclore, etnologia, demótica, demologia, mitologia, mitografia,
tradições populares, eram, de facto, as expressões mais ou menos equivalentes
utilizadas para designar este novo campo de saberes que possuía, simultaneamente,
fronteiras relativamente porosas com disciplinas como a filologia, a linguística, a história
literária, a arqueologia ou a antropologia física6. Dada esta porosidade de fronteiras, a
maioria dos etnólogos portugueses desse período foram também destacados cultores
de outras disciplinas. Teófilo Braga, por exemplo, teve um papel determinante na
divulgação do positivismo em Portugal27 e praticou a história literária. Adolfo Coelho,
para além de antropólogo, foi também linguista e pedagogo8. Leite de Vasconcelos
percorrerá, a partir de 1885, os caminhos da dialectologia e da arqueologia.

anos 1870 e 1880; viragem do século; anos 1910 e 1920; e, finalmente, anos 1930 a 1960. Esta
periodização apresenta, relativamente às propostas anteriores, algumas diferenças importantes. Assim,
no século XIX, autonomizo o período da viragem do século relativamente aos anos 70/80 (cf., a este
respeito, Leal 1995). No século XX, procedo também à autonomização do período dos anos 1910 e 1920,
até agora objecto de tratamentos relativamente sumários. A minha visão dos anos 1930 a 1960, por fim
distingue três grandes grupos de protagonistas: a etnografia do Estado Novo, o grupo de Jorge Dias e a
etnografia construída em torna da crítica ao Estado Novo.
5
2 Sobe Adolfo Coelho, cf. Leal 1993a e 1993b; sobre Teófilo Braga, há apenas estudos parcelares; cf.
Ferré 1982, Branco 1985, Leal 1987; sobre Consiglieri Pedroso cf. Leal 1988; finalmente, acerca da
actividade de Leite de Vasconcelos neste período, cf. Guerreiro 1986a.
6
1 Para algumas considerações sobre esta porosidade de fronteiras disciplinares, cf. Ramada Curto 1993:
132 e 1995: 179-184.
7
2 Acerca do papel de Teófilo Braga na divulgação do positivismo, cf. Ribeiro, Álvaro 1951 e Catroga 1977.
8
3 Acerca da obra de Adolfo Coelho no domínio da pedagogia, cf. Fernandes 1973. 30
10
Esta porosidade de fronteiras reflecte obviamente tendências mais gerais
prevalecentes na Europa, onde os novos saberes oitocentistas comunicam então entre
si com uma facilidade que só começará a ser posta em causa nas primeiras décadas do
século XX. Mas, no caso português, deve ser também vista como um efeito do clima
instaurado pelas Conferências do Casino. Dispersando-se por várias áreas científicas, os
etnólogos portugueses das décadas de 1870 e 1880 procuravam alargar a frente do
combate pela introdução dos novos saberes oitocentistas, indispensável ao programa
de regeneração da vida intelectual portuguesa pelo qual se batiam.
Simultaneamente, estas décadas iniciais deixam-se também ver como um
período dominado por uma grande vontade de actualização internacional da
antropologia portuguesa e, simultaneamente, de grande visibilidade desta na cena
intelectual e cultural interna.
De facto, antes do mais, os etnólogos portugueses mostram-se a par das
principais obras, correntes e debates que percorrem os campos disciplinares em que
operam. Estas, desde a inauguração da ligação ferroviária à Europa, passaram a chegar
a Portugal com relativa facilidade. Em consequência, a amplitude das referências
bibliográficas manipuladas é por vezes surpreendente. Teófilo Braga - como tem sido
sublinhado (Branco 1985, Leal 1987) - lê praticamente tudo o que há para ler, embora
lhe sobre por vezes pouco tempo para digerir tanta leitura. Consiglieri Pedroso faz
anteceder o seu ensaio pioneiro sobre «A Constituição da Família Primitiva» (1988a
[1878]) de um exaustivo balanço dos principais desenvolvimentos científicos
oitocentistas, pontuado por
30

referências a autores tão diversificados como Renan, Mõmmsem, Benfey, Max Müller,
Darwin, Spencer, Boucher de Perthes ou E. B. Tylor. Adolfo Coelho e Leite de
Vasconcelos afinam pelo mesmo diapasão, recorrendo de forma sistemática a Max
Müller e à escola da Mitologia Comparada ou a Tylor e a outros autores evolucionistas.
Simultaneamente, é forte a inserção internacional da antropologia portuguesa da época.
Um dos autores mais expressivos a este respeito é Consiglieri Pedroso, cujos
conhecimentos de línguas lhe dão acesso a autores pouco conhecidos em Portugal,
designadamente da nacionalidade alemã, russa e polaca. Os seus contactos
internacionais são também relativa- mente amplos e Consiglieri mantém
correspondência com diversos folcloristas estrangeiros, sendo membro de várias
sociedades científicas internacionais. Em consequência, alguns dos seus ensaios e
recolhas - com destaque para a sua colecção de contos populares, publicada em Londres
ainda antes da sua edição portuguesa (Pedroso 1882) - serão editados em revistas e
editoras estrangeiras9. Adolfo Coelho mantém igualmente uma rede de cooperação
internacional alargada, publicando artigos na Romania, nos Zeitschrift für Romanische
Philologie ou no Archivio per lo Studio delle Tradizione Popolari. A sua colecção de
contos populares será também editada em Londres, sob o título Tales of Old Lusitania
from Folklore of Portugal (Coelho 1885).

9
1 Cf., a este respeito, Leal 1988.

11
Paralelamente a esta inserção internacional, a antropologia das décadas de 1870
e 1880 possui também uma grande visibilidade na cena cultural e científica portuguesa,
que se reflecte, por exemplo, no lugar que ocupa - designadamente pela mão de
Consiglieri Pedroso e de Teófilo Braga - numa revista tão importante como O
Positivismo. Jornais de circulação nacional relativamente significativa como o Jornal do
Comércio ou o Diário de Notícias publicam também com alguma frequência artigos
etnográficos. É igualmente à luz desta capacidade de atracção da antropologia e da
etnografia que se pode entender, por exemplo, o modo como intelectuais como Teixeira
Bastos (1856- -1901) (Bastos 1878) e, sobretudo, Oliveira Martins (1845-1894) (Martins
1880, 1881, 1882, 1883) frequentaram então esse campo disciplinar. O caso de Oliveira
Martins é particularmente importante, não apenas pela importância que o autor tinha
na vida cultural portuguesa da época, mas também pelo facto das suas incursões na
antropologia terem originado a publicação de quatro volumes da sua famosa Biblioteca
de Ciências Sociais10.
Apesar deste clima globalmente favorável ao desenvolvimento da nova
disciplina, são entretanto notórias as suas dificuldades de consolidação institucional311.
E verdade que surgem então as primeiras revistas especificamente etnográficas e/ou
antropológicas, como a Revista de Etnologia e Glotologia,
31

dirigida por Adolfo Coelho, ou o Anuário para o Estudo das Tradições Populares
Portuguesas, editado por Leite de Vasconcelos. Mas estas revistas são, no essencial,
empreendimentos individuais sem efectiva capacidade de congregarem os esforços dos
membros da reduzida comunidade antropológica existente e, por essa e outras razões,
não durarão mais de um a dois anos112. Simultaneamente, todo este ambiente não
repercute em desenvolvimentos consistentes ao nível das instituições - como os museus
ou a universidade - que poderiam ter eventualmente dado um suporte mais seguro e
permanente à dis- ciplina. O conceito mesmo de museu etnográfico não surge ainda nas
discussões da época. Quanto à universidade, embora alguns dos etnólogos sejam lá
professores e ocupem simultaneamente posições de destaque noutras instituições
científicas e/ou culturais, fazem-no em geral ligados a outras áreas que não a
antropologia. Assim, Teófilo Braga ensinou Literaturas Modernas no Curso Superior de
Letras, onde Consiglieri Pedroso leccionava História Universal e Pátria e Adolfo Coelho
Filologia Românica e Filologia Portuguesa. Quanto a Leite de Vasconcelos, o primeiro
lugar público de destaque que exerceu foi o de director da Biblioteca Nacional de Lisboa.
O segundo grande período de desenvolvimento da antropologia portuguesa
corresponde à viragem do século, isto é, às décadas de 1890 e 1900213. Se o acon-

10
2 Acerca da produção antropológica de Oliveira Martins, cf., por exemplo, Guerreiro 1986b. e Vakil 1995.
11
Para uma visão geral das dificuldades de implantação institucional da disciplina antropológica em
Portugal, cf. Branco 1986.
12
1 A Revista de Etnologia e Glotologia, que nunca publicou outras colaborações senão as do seu director,
extinguiu-se ao fim do quarto fascículo e o Anuário não conseguiu também publicar senão um único
volume em 1882.
13
2 Na bibliografia até agora disponível sobre história da antropologia portuguesa, este período não tem
sido geralmente tratado de forma autónoma, sendo encarado como um prolongamento dos
desenvolvimentos ocorridos nas décadas de 1870 e 1880. Parece-me entretanto que as suas diferenças

12
tecimento decisivo para entender a antropologia portuguesa dos anos 1870 e 1880
tinham sido as Conferências do Casino, o evento fundamental que enquadra a
antropologia portuguesa na viragem do século é o Ultimatum e, na sua sequência, a
abertura da fase final da crise da monarquia. Como teremos ocasião de verificar, é
designadamente em resultado desse acontecimento que se pode entender o peso que
terá na antropologia portuguesa de então o tema da decadência nacional. Os principais
protagonistas da cena antropológica desses anos são Rocha Peixoto (1868-1909)14 e
Adolfo Coelho, sendo este último o único autor já activo nas décadas de 1870 e 1880
que prossegue então o seu labor no domínio antropológico. Teófilo Braga e Consiglieri
Pedroso haviam, sensivelmente desde o meio da década de 1880, trocado a
antropologia pela política republicana e Leite de Vasconcelos, a partir da mesma altura,
irá secundarizar o seu interesse pela etnografia em resultado de um mais efectivo
investimento na arqueologia15.
32

Do ponto de vista institucional, há a registar a maior consistência das revistas


etnográficas e antropológicas portuguesas então lançadas, com destaque para a
Portugália e para a Revista Lusitana, a primeira fundada e dirigida por Rocha Peixoto e a
segunda por Leite de Vasconcelos. É também desse período que datam as primeiras
incursões museológicas da etnografia e da antropologia portuguesas. Em 1896, Adolfo
Coelho propõe a realização de uma exposição etnográfica em Lisboa, por ocasião do 4.°
centenário da viagem de Vasco da Gama à índia, cujo programa será publicado no ensaio
«Exposição Etnográfica Portuguesa. Portugal e Ilhas Adjacentes» (1993e [1896]).
Embora essa exposição não se chegue a realizar, será entretanto organizada, no âmbito
dessas comemorações, uma exposição de alfaias agrícolas na Tapada da Ajuda (Coelho
1993g [1901]), que pode ser encarada como uma das primeiras exposições etnográficas
realizadas em Portugal. Antes, em 1893, havia também sido criado o Museu Etnográfico
Português, dirigido por Leite de Vasconcelos, que apesar da sua vocação
fundamentalmente arqueológica, compreendia também uma secção consagrada à
etnografia16.
Na sequência das actividades pioneiras de Silva Vieira e da Revista do Minho e,
ainda, de A.Tomás Pires (1850-1913)17 e do círculo de etnógrafos de Elvas - que
remontam aos anos 1880 - tornam-se mais evidentes os sinais de desmultiplicação local
e regional da etnografia portuguesa. O papel da Portugália de Rocha Peixoto nesse
processo de descentralização é particular- mente importante. Alguns dos seus nomes
mais relevantes - como Silva Picão (1859-1922) e Tude de Sousa (1874-1951) - são
colaboradores regulares da Portugália, cuja rede de correspondentes locais se estende

relativamente a essas décadas inicias são suficientemente importantes para justificarem o seu tratamento
autónomo (cf., a este respeito, Leal 1995).

14
3 O melhor estudo acerca de Rocha Peixoto, continua a ser o de Flávio Gonçalves (1967). Cf. também
Veiga de Oliveira 1966a e Leal 1995.
15
4 Acerca da reorientação arqueológica da carreira de Leite de Vasconcelos a partir de 1885, cf. Leal
1996 e ainda o capítulo 2 do presente livro.
16
1 Acerca do Museu Etnográfico Português, cf. Branco 1995 e Leal 1996.
17
2 Acerca de Tomás Pires, cf. Falcão & Ferreira 1986 e Lajes 1992.

13
um pouco por todo o país. No mesmo período, a Revista Lusitana publica também
regularmente recolhas de A. Tomás Pires e outros etnógrafos locais e surgem revistas
como A Tradição e A Ilustração Transmontana, dedicadas exclusivamente a matéria
etnográfica - como é o caso de A Tradição de Serpa - ou reservando a esta um lugar de
destaque - como é o caso da Ilustração Transmontana. Cândido Landolt (1863-1921)
(Barcelos e Póvoa do Varzim), Pedro Fernandes Tomás (1853-1927) (Figueira da Foz),
Vieira Natividade (1899-1968) (Alcobaça) e Ataíde de Oliveira (1842-1915) (Algarve),
são, para além dos nomes já indicados, outros autores que testemunham deste
florescimento local e regional da antropologia portuguesa na viragem do século318.
Apesar desta maior espessura institucional, mantém-se entretanto o
alheamento universitário em relação à antropologia e globalmente a produção
antropológica, agora mais rotinizada, perde alguma da visibilidade na vida cultu-

33

ral e científica portuguesa que possuía nas décadas de 1870 e 1880. Isso não impede
que não se mantenha alguma capacidade de actualização teórica da disciplina,
particularmente bem ilustrada na obra de Adolfo Coelho, onde é possível encontrar
inúmeras referências a antropólogos como Wundt, Durkheim, Mauss e Boas, que, como
se sabe, marcaram em plano de relevo a antropologia internacional da viragem do
século.
O terceiro grande período do desenvolvimento da antropologia portuguesa
estende-se ao longo das décadas de 1910 e 192019. Coincidente em traços gerais com a
I República, essa fase tem em Vergílio Correia (1888-1944), D. Sebastião Pessanha (1892-
1975), Luís Chaves (1889-1975) e Augusto César Pires de Lima (1888-1959) algumas das
suas principais figuras. É também nestes anos que, depois de quase duas décadas
consagradas basicamente à dialectologia e, sobretudo, à arqueologia, Leite de
Vasconcelos regressa de forma mais sistemática à investigação etnográfica, com a
edição dos ensaios incluídos na série Estudos de Etnografia Comparativa (1918, 1925a,
1925b) e com a publicação do Boletim de Etnografia, de que foi o fundador, director e
único colaborador. É de resto em torno de Leite de Vasconcelos que os etnógrafos acima
referidos se organizam. Vergílio Correia - que posteriormente entrará em rota de colisão
com Vasconcelos e abandonará a etnografia, concentrando-se na arqueologia e na
história da arte - e Luís Chaves foram seus colaboradores no Museu Etnológico
Português e A. C. Pires de Lima publicava com regularidade na Revista Lusitana20.

18
Para mais detalhes acerca destes autores cf. Vasconcelos 1933: 268-283. Acerca da importância das
etnografias locais e regionais no desenvolvimento histórico da disciplina antropológica em Portugal, cf.
Brito & Leal 1997 e Santos Silva 1997: 131-151.
19
1 Conforme assinalámos atrás, este tem sido até agora um período negligenciado na produção
disponível sobre a história da antropologia portuguesa. Entretanto, como procurarei demonstrar, apesar
de uma produção eventualmente menos significativa, a etnografia destas duas décadas marca não apenas
uma inflexão importante no desenvolvimento histórico da antropologia em Portugal, como é essencial
para a compreensão da etnografia do Estado Novo, que se situa na sua sequência imediata.
20
2 Sobre o retorno de Leite de Vasconcelos à etnografia cf. Leal 1996. Acerca dos restan- tes autores que
marcaram em plano de maior ou menor relevo as décadas de 1910 e 1920, não há, devido ao silêncio que
tem rodeado até agora este período de desenvolvimento da antropologia portuguesa, estudos disponíveis
do ponto de vista da história da antropologia. Sobre Vergílio Correia, existe alguma bibliografia, mais
14
Do ponto de vista institucional, registam-se alguns tímidos progressos por
referência ao período da viragem do século. O processo de descentralização local e
regional da etnografia e da antropologia portuguesas prossegue, tendo em Cláudio
Basto (1866-1945) e na revista Lusa (Viana do Castelo), por ele fundada e dirigida, um
dos seus mais expressivos exemplos. Várias outras revistas regionalistas, como a Terra
Nossa ou a Alma Nova, reservam também um lugar de relevo à publicação de materiais
etnográficos. Autores como Leite de Ataíde (1882-1955) e Urbano Mendonça Dias
(1878-1951) (Açores), Jaime Lopes Dias (1890-1977) (Beira Baixa), Pe. Firmino Martins
(1890-?)
34

(Vinhais), Afonso do Paço (1895-1968) e Alberto Braga (1862-1965) (Minho) confirmam


também essa crescente expressão regionalizada da etnografia portuguesa. A nível
central, entretanto, a situação é de algum impasse. No plano museológico, apesar dos
passos auspiciosos dados na última década do século xix, mantém-se uma situação de
alguma estagnação, com o Museu Etnográfico Português - que desde 1897 havia
adoptado a designação mais abrangente de Museu Etnológico Português - a continuar a
privilegiar o seu espólio arqueológico em detrimento dos materiais etnográficos. Apesar
desse impasse, que se reencontra, mais uma vez, ao nível da universidade, surgem
entretanto novas instituições de alguma forma comprometidas com a antropologia,
como a Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia (SPAE), fundada no Porto por
Mendes Correia (1888-1960) e que, apesar de uma opção dominante pela antropologia
física e pela arqueologia, não deixará de estimular alguma pesquisa etnográfica. Em
Lisboa, por seu turno, Vergílio Correia aparece associado - com D. Sebastião Pessanha -
à revista Terra Portuguesa que, a par de temas da história de arte e de arqueologia,
consagrará também um lugar de relevo à etnografia.
Apesar das dificuldades de institucionalização e de um relativo isolamento
internacional - reencontrável noutras tradições nacionais de antropologia da época - a
etnografia portuguesa do período recupera entretanto, no plano doméstico, alguma da
visibilidade perdida nos anos da viragem do século. Os etnógrafos têm de facto presença
relevante nalgumas das revistas culturais mais significativas da época, como A Águia de
Teixeira de Pascoaes (1877- -1952) ou a Atlântida de João de Barros (1881-1960) e, como
teremos oca- sião de ver mais adiante, integram-se activamente no clima de
nacionalismo cultural que caracteriza os anos da I República (Ramos 1994).
Finalmente, um quarto período no desenvolvimento da antropologia por-
tuguesa é o que se desenvolve desde a década de 1930 até aos anos 1970. Politicamente
coincidente com o Estado Novo, esta fase é protagonizada por uma diversidade maior
de actores, que podemos distribuir por três grandes grupos.
Um desses grupos é constituído pelos etnógrafos mais ligados ao Estado Novo,
cuja «política de espírito», como se sabe, reservou um lugar extremamente importante
à etnografia e ao folclore21. A acção do SPN/SNI - sob a direcção de António Ferro - foi,

orientada, entretanto, para as suas prestações no domínio da história da arte e da arqueologia. Cf.
designadamente França 1990 (1967): 344- -352 e Carvalho, Joaquim 1946.

21
1 Durante muito tempo ignorado pelas pesquisas de história da antropologia portuguesa, a etnografia
do Estado Novo tem vindo a ser redescoberta recentemente por vários historiadores que têm trabalhado
15
a esse respeito, decisiva. Orientada simultaneamente para a propaganda externa de
Portugal e para acções de divulgação interna junto das classes médias urbanas, a
actividade do SPN/SNI notabili-
35

zou-se pela importância concedida a procedimentos de estilização da cultura popular


em exposições, espectáculos, edições e outras iniciativas. Entre essas iniciativas
destacam-se, em 1938, o Concurso da Aldeia Mais Portuguesa de Portugal, e, em 1940,
a organização do Centro Regional da Exposição do Mundo Português, integrado por uma
secção ao ar livre - onde se reproduziam os diversos tipos regionais de casa popular
portuguesa - e pelo pavilhão da Vida Popular. Acompanhado pela edição do livro Vida e
Arte do Povo Português (1940) e pelos primeiros espectáculos do grupo de bailados
Verde Gaio22, o Centro Regional forneceu ainda o núcleo de edifícios e peças a partir do
qual foi criado, em 1948, o Museu de Arte Popular, ponto culminante do «processo de
fixação fotográfica, estética e simbólica do mundo da cultura popular» conduzido pelo
SPN/SNI (Melo 1997: 85).
Simultaneamente ao SPN/SNI, outros organismos tiveram também uma acção de
relevo no campo da etnografia e do folclore. Entre eles conta-se a Junta Central das
Casas do Povo (JCCP), criada em 1945 como organismo de coordenação das Casas do
Povo. A etnografia e o folclore foram, de facto, aspectos fundamentais da actividade de
enquadramento político-ideológico das populações rurais cometidas a este organismo.
Ao mesmo tempo que estimulou - com um sucesso muito relativo - a formação de
museus etnográficos e ranchos folclóricos nas Casas do Povo (cf. Melo 1997), a JCCP
editou também o Mensário das Casas do Povo, onde a doutrinação folclórica e ruralista
e os apontamentos regulares sobre matéria etnográfica ocupam um lugar de relevo23.
Finalmente, a FNAT, criada em 1935 e com uma acção importante de enquadramento
dos ranchos folclóricos, e as Juntas Provinciais e Distritais, que, em muitos casos,
estimularam o aparecimento de museus e revistas de natureza etnográfica24, contam-
se também entre os organismos oficiais que se virão a revelar importantes no
desenvolvimento de uma etnografia próxima do Estado Novo.
Tendo atingido o seu apogeu no decurso dos anos 1940 e 1950, esta etnografia
pôde contar, em primeiro lugar, com alguns dos etnógrafos já em actividade nos anos
1910 e 1920, com destaque para Luís Chaves e para Augusto César Pires de Lima e,
embora de forma menos sistemática, para D. Sebastião Pessanha e Vergílio Correia. Luís
Chaves, em particular, foi um activo colaborador do SPN/SNI e de algumas das suas
iniciativas mais importantes, como o Concurso da Aldeia mais Portuguesa de Portugal
ou a edição do volume Vida e Arte do Povo Português. Quanto a A. C. Pires de Lima, foi

sobre política cultural do Estado Novo e por alguns antropólogos interessados na história da disciplina.
Entre as contribuições dos historiadores, cf., por exemplo, Paulo 1994, Melo 1997 e Acciaiuoli 1998. Entre
os antropólogos cf. Brito 1982, Alves 1997 e Branco 1999a e 1999b.
22
1 Acerca do Verde Gaio, cf. nomeadamente Pavão dos Santos (ed.) 1999.
23
2 Sobre o Mensário das Casa do Povo, cf. Branco 1999b.
24
3Entre as Juntas Provinciais e Distritais, a que teve actividade etnográfica mais relevante foi o da Douro
Litoral, que dinamizou um Museu de História e Etnografia e editou a revista Douro Litoral. A sua actividade
teve depois continuação na Junta Distrital do Porto, que, entre outras iniciativas, foi responsável pela
Revista de Etnografia. Embora num plano mais modesto, refira-se também a Junta Provincial da
Estremadura, que editou a revista Estremadura.

16
o fundador e director do Museu de Etnografia e História do Douro Litoral e da revista
Douro Litoral. A estes nomes vindos da etnografia da I República juntam-se entretanto

36

etnógrafos como Ábel Viana (1869-1964), Guilherme Felgueiras (1890-1990), Armando


Leça (1893-1977), Armando de Matos (1899-1953) e dois outros Pires de Lima: Joaquim
Alberto Pires de Lima (1877-1951) e, sobretudo, Fernando de Castro Pires de Lima (1903-
1973) que, em 1960, será o organizador dos três volumes de A Arte Popular em Portugal
(Lima 1960). Embora a partir do final dos anos 1950 - com o declínio das formas mais
espectaculares de investimento ideológico do Estado Novo na cultura popular -, haja um
certo esforço para dotar esta etnografia de um rosto mais académico - designadamente
por inter- médio da organização de alguns colóquios científicos25, de tentativas de
estabelecimento de redes de cooperação internacional ou da edição de revistas como a
Revista de Etnografia - ela manteve sempre, a par de um envolvimento mais ou menos
claro com a política e a ideologia do regime, uma certa marginalidade em relação aos
circuitos universitários e/ou científicos.
Simultaneamente, outras figuras surgem então em cena, mais ligadas a uma
etnografia de contornos académicos. Entre essas figuras sobressai, antes do mais, Leite
de Vasconcelos - que, na sequência do seu retorno à etnografia na década de 1910,
inicia, a partir dos anos 1930, a publicação da sua ambiciosa Etnografia Portuguesa
(1933, 1936, 1942), posteriormente interrompida pelo morte do autor. Paralelamente,
um conjunto de jovens sem ligações com o passado da disciplina ganham lugar de relevo
na cena antropológica. Entre eles encontra-se, por exemplo, um autor injustamente
esquecido pela generalidade dos historiadores da antropologia portuguesa: Herculano
de Carvalho, autor de uma monografia sobre sistemas tradicionais de debulha
influenciado pela escola alemã «Palavras e Coisas» (Carvalho, Herculano 1953)26.
Mas a figura central da antropologia portuguesa de perfil académico nos anos
1930 a 1970 é sem dúvida A. Jorge Dias (1907-1973)27. Com um doutoramento em
Etnologia obtido em Munique, Jorge Dias forma, no seu regresso a Portugal, em 1947,
uma equipa de trabalho, onde avultam os nomes de Ernesto Veiga de Oliveira (1910-
1990), Fernando Galhano (1904-1995), Benjamim Pereira e Margot Dias que operará
primeiro a partir do Porto - onde Mendes Correia tinha confiado a Jorge Dias a direcção
da Secção Etnográfica do Centro de Estudos de Etnologia Peninsular - e, de 1956 em
diante, a partir de Lisboa4.

25
1 Refiram-se a este propósito os Congressos Internacionais de Etnografia e Folclore, rea- lizados
respectivamente em 1956 em Braga e em 1963 em Santo Tirso e o Colóquio de Estudos Etnográficos Dr.
José Leite de Vasconcelos, que teve lugar no Porto em 1958.
26
2 Acerca da escola «Palavras e Coisas», cf. Beitl, Bromberger & Chiva 1997.
27
3 A bibliografia de referência sobre Jorge Dias é já relativamente numerosa. Para uma apresentação de
conjunto da sua obra, ver, entre outros, Lupi 1984 e Veiga de Oliveira 1968 e 1974. 4 Para além dos nomes
acima indicados, fizeram ainda parte da equipa de Jorge Dias - embora em posições de menos destaque -
António Carreira (1905-1988) e Fernando Quintino (cf. Lupi 1984: 413-414). Entre outros colaboradores
mais ocasionais de Jorge Dias, deve também mencionar-se Viegas Guerreiro (1912-1997) - autor de
volume IV da monografia sobre os Macondes (Guerreiro 1966) - que parece ter entretanto entrado em
ruptura com Jorge Dias uma vez terminada a sua investigação em Moçambique.
17
37

Por intermédio deste grupo - que terá uma produtividade e uma longevidade
notáveis a antropologia portuguesa recupera alguma da actualização teórica e inserção
internacional perdida nas décadas da I República. Jorge Dias bater-se-á de facto desde o
seu regresso a Portugal por uma forte inserção internacional da antropologia
portuguesa. O papel activo que desempenhou nas actividades da Comissão
Internacional de Artes e Tradições Populares (CIAP) a partir de 1947, tem sido, a este
respeito, posto em evidência. De facto, entre 1954 e 1956, Dias exerceu o cargo de
Secretário-Geral deste orga- nismo que coordenava a pesquisa etnológica na Europa, e
quando, em 1964, «a CIAP mudou a sua designação para Société Internationale
d'Ethnologie et Folklore (...) [foi] eleito para membro do Conselho de Administração»
(Lupi 1984: 46). Em 1965, integrou também o grupo fundador da revista Ethnologia
Europaea, a cuja comissão editorial pertenceu até à sua morte. Simultanea-mente,
outros factos devem ser retidos. Entre eles, vale a pena mencionar a preocupação de
Jorge Dias com a abertura de linhas de diálogo com as academias espanhola e brasileira,
as suas deslocações a colóquios e reuniões de trabalho no estrangeiro, os ensaios que
publicou fora de Portugal e, ainda, as suas viagens aos EUA nas décadas de 1950 e de
1960. Estas últimas levaram- -no nomeadamente a participar, em 1953, no colóquio da
Wenner-Gren Foundation for Anthropological Research subordinado ao título «Anthro-
pology Today»28 e a permanecer durante alguns meses em 1960 como «visiting scholar»
da Universidade de Stanford (Califórnia). Esta projecção internacional do trabalho de
Jorge Dias e da sua equipa é de resto testemunhada pelo elevado número de
colaboradores não-portugueses nos volumes In Memoriam António Jorge Dias (1974) e
Estudos em Homenagem a Ernesto Veiga de Oliveira (Baptista, Brito & Pereira 1989).
Enquanto que no volume de homenagem a Veiga de Oliveira esses colaboradores foram
vinte, nos volumes dedicados a Jorge Dias participaram mais de cinquenta antropólogos
estrangeiros, com relevo para figuras como Meyer Fortes, Max Gluckman, M. G.
Marwick e John Beattie, com quem Jorge Dias havia certamente entrado em contacto
na sequência das suas investigações sobre os Macondes do norte de Moçambique.
Simultaneamente, no plano interno, a equipa de Jorge Dias projectou de forma
importante a antropologia na cena intelectual e científica portuguesa, como o
comprovam nomeadamente o êxito das monografias de Jorge Dias sobre Vilarinho da
Furna (Dias 1948a) e Rio de Onor (Dias 1953a) ou a importância do seu ensaio
«Elementos Fundamentais da Cultura Portuguesa» (Dias 1990a [1953]). A influência de
Jorge Dias estende-se de resto aos etnógrafos do Estado Novo que, depois de uma
atitude inicial de indiferença ou mesmo desconfiança em relação a Dias (Pereira,
Benjamim 1996) irão, sobretudo a partir do final dos anos 1950, reconhecer a
importância da sua pesquisa. É sig-

38

28
1 Acerca da importância do colóquio «Anthropology Today» na antropologia norte-americana do post-
guerra, cf. Stocking 1999.
18
nificativo, a este respeito que A Arte Popular em Portugal de F. C. Pires de Lima abra
com contributos de Veiga de Oliveira e Fernando Galhano (Oliveira & Galhano 1960a,
1960b) ou que o número inaugural da Revista de Etnografia - também dirigida, como
vimos, por Pires de Lima - publique um artigo de Dias sobre a natureza científica da
etnografia (Dias 1963) seguido de uma contribuição de Sigurd Erixon (1963), etnólogo
sueco amigo de Dias e uma das figuras centrais - a par de Dias - da etnologia europeia
do pós-guerra.
Esta projecção do trabalho de Jorge Dias e da sua equipa - para além da própria
qualidade e persistência que o caracterizava -, fica a dever-se a duas razões principais.
A primeira tem a ver com a capacidade que Jorge Dias e os seus colaboradores mostram
para inserir as suas pesquisas numa rede mais alargada de discussões interdisciplinares
baseada na universidade e onde se integram, em plano de relevo, a geografia humana
de Orlando Ribeiro (1911-1997) ou a linguística de Paiva Boléo (1904-1992) e Lindley
Cintra (1925-1991). A importância do persistente diálogo que Jorge Dias estabelece com
Orlando Ribeiro - ao qual teremos ocasião de regressar no decurso deste livro - deve,
em particular, ser realçado.
A segunda razão para o êxito de Dias e dos seus colaboradores tem a ver com a
articulação da sua pesquisa com os primeiros esforços consistentes e relativamente bem
sucedidos de institucionalização da disciplina antropológica tanto ao nível da
investigação, como ao nível museológico e universitário. A Secção Etnográfica do Centro
de Estudos de Etnologia Peninsular, e, mais tarde, os Centros de Estudos de Etnologia e
de Antropologia Cultural, que forneceram sucessivamente o suporte organizativo para
o trabalho de Dias e dos seus colaboradores, constituem os primeiros organismos
especificamente orientados para a investigação antropológica em Portugal.
Simultaneamente, no plano universitário, Jorge Dias foi responsável pela docência das
primeiras cadeiras com efectivo conteúdo antropológico existentes na universidade
portuguesa, primeiro nas Faculdades de Letras das Universidades de Coimbra e de
Lisboa e, depois, no Instituto Superior de Estudos Ultramarinos (mais tarde Instituto
Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina) onde, a convite de Adriano Moreira,
foi professor entre 1956 e 1967. Finalmente, no plano museológico, Jorge Dias está,
como se sabe, decisivamente ligado à criação, em 1965, do Museu de Etnologia do
Ultramar29, que, na sequência do Museu Etnológico Português de Leite de Vasconcelos
e do Museu de Arte Popular, se transformará no museu português de referência nessa
área.
Um terceiro grupo de protagonistas importante na cena antropológica
portuguesa entre 1930 e 1970, por fim, é constituído por um conjunto de intelectuais
ligados de forma menos sistemática à etnografia e à antropologia, mas que, a partir de
posições críticas da etnografia do Estado Novo, tiveram incursões relativamente
significativas nessas áreas. Com formações muito variadas
39

- artistas, arquitectos, músicos - e com posicionamentos políticos também relativamente


diversificados - desde gente relativamente próxima do PCP até católicos de esquerda -

29
1 Sobre a criação do Museu de Etnologia do Ultramar, cf. Pereira, Rui 1989c.
19
este grupo de intelectuais convergiu entretanto na preocupação de construir um contra-
discurso ao discurso etnográfico do Estado Novo.
Embora com alguns antecedentes nos anos imediatamente a seguir à II Guerra,
esta etnografia crítica conheceu um desenvolvimento mais importante no final da
década de 1950 e no decurso da década de 1960, beneficiando, em muitos casos, das
novas condições de trabalho cultural criadas pela Fundação Calouste Gulbenkian. As
suas figuras mais emblemáticas são sem dúvida Michel Giacometti (1930-1990)30 e
Fernando Lopes Graça (1906-1994). Mas críticos de arte como Ernesto de Sousa (1921-
1988)31, os arquitectos do Inquérito à Arquitectura Popular em Portugal ou, ainda, o
conjunto de cineastas - como Manuel de Oliveira ou António Campos (1923-1999) - que,
no decurso das décadas de 1960 e de 1970, procurou filmar o popular a contra corrente
do gosto etnográfico do Estado Novo32, desempenharam também um papel importante
na afirmação desta visão alternativa do mundo rural português. A visibilidade deste
discurso, que, por razões sobretudo políticas, teve algumas dificuldades de penetração
universitária, foi sobretudo efectiva nos meios culturais da esquerda. A este nível mais
restrito, entretanto, o seu impacto foi considerável, como o demonstra, para o caso da
música popular, a influência que o exemplo de Michel Giacometti teve na canção de
intervenção dos anos 1970, ou, num plano mais genérico, a capacidade de atracção que
o paradigma de recolhas da cultura popular do mesmo Giacometti teve sobre as
modalidades de diálogo com o povo no imediato post-25 de Abril (cf. Branco & Oliveira
1993).

OBJECTOS, MÉTODOS, TEORIAS

Os diferentes momentos que temos vindo a passar em revista remetem todos


eles para a centralidade do estudo da cultura popular portuguesa na tradição
antropológica portuguesa. Esta é estudada de acordo com algumas grandes constantes.
Assim e antes do mais, a cultura popular é sempre sinónimo de ruralidade. Dela estão
excluídas, por norma, as cidades e as camadas populares urbanas. Nela têm também
uma presença insignificante - salvo excepções localizadas - as populações

40

piscatórias (cf. Martins 1997). Em segundo lugar, a ruralidade que tanto fascina os
etnógrafos e antropólogos portugueses é objecto de um olhar descontemporaneizador
(Fabian 1983). Embora observada no presente, ela é vista, antes do mais, como um
testemunho do passado: um passado que há que reconstituir em termos interpretativos,
que há que registar antes que desapareça, que há que preservar, que há eventualmente
que «purificar». Finalmente, o mundo da cultura popular estudado pela antropologia
portuguesa é um mundo moral e esteticamente qualificado pelo olhar do observador,

30
1 Acerca de Giacometti, cf. Branco & Oliveira 1993. Cf. também a recensão deste livro em Leal 1994.
31
2 Acerca de Ernesto de Sousa, cf. Brito (ed.) 1995.
32
3 Cf., a este respeito, o catálogo do ciclo de cinema Olhares sobre Portugal. Cinema e Antropologia (Leal
et ai. 1993). Para uma avaliação das incursões desta etnografia alternativa no domínio do teatro popular
cf. Raposo 1998.
20
um mundo relativamente ao qual não é possível a indiferença. É, ou um mundo do qual
se celebram, embora em tons diversos, as excelências, ou - embora esta seja, como
teremos ocasião de verificar, uma posição minoritária - um mundo visto, pelo contrário,
como o depositário de um conjunto de traços negativos.
No interior destes consensos, entretanto, em cada um dos períodos do
desenvolvimento histórico da antropologia portuguesa, são diferentes não apenas os
objectos precisos que são supostos representar de forma mais emblemática a cultura
popular, mas também os meios metodológicos e teóricos mobilizados para o seu estudo.
Assim, nos anos 1870 e 1880, a cultura popular é vista como um universo formado
quase exclusivamente pela literatura e pelas tradições populares. A literatura popular,
pelo seu lado, compreendia três grandes géneros: o cancioneiro, o romanceiro e os
contos. Quanto às tradições populares, formavam uma área relativamente
heterogénea, onde cabiam desde crenças a «superstições», festas cíclicas, ritos de
passagem, etc.
De acordo com esta definição da cultura popular, os etnólogos portugueses
desse período consagram grande parte das suas energias à realização de extensas
colectas em ambos os domínios. Teófilo Braga, por exemplo edita sucessivas recolhas
em cada uma das três áreas mais relevantes da literatura popular (Braga 1867a, 1867b,
1987 [1883]). Adolfo Coelho e Consiglieri Pedroso - para além de contribuições menos
marcantes no domínio do cancioneiro e do romanceiro - publicam também importantes
colecções de contos populares (Coelho 1879, Pedroso 1882)33. Estes dois últimos
autores, e ainda Leite de Vasconcelos, editarão ainda as mais significativas colecções de
tradições populares destes anos inaugurais da etnografia e da antropologia portuguesa
(Coelho 1993c [1880], Pedroso 1988b [1879-82], Vasconcelos 1882).
Em consequência deste investimento na recolha e no estudo da literatura e das
tradições populares, a imagem da cultura popular predominante neste período é uma
imagem eminentemente textual. O povo e a cultura popular são textos, desinseridos dos
seus contextos concretos de produção e circulação. Esta ideia é particularmente
evidente - por razões óbvias - nas colecções de

41

literatura popular. Estas são, literalmente, colectâneas de textos, eventualmente


organizadas por temas e antecedidas de um prefácio do colector. Mas é também de
acordo com o mesmo modelo que são tratadas as tradições populares. Estas são
recorrentemente transcritas como textos - embora mais curtos - que contêm uma
narrativa, sob a forma de um provérbio, de uma crença ou de uma «superstição». A
edição destes materiais é ela própria feita frequentemente de forma idêntica à de uma
colectânea de literatura popular.
Do ponto de vista metodológico, estas recolhas de literatura e de tradições
populares assentam sobre procedimentos ainda muito incipientes. De facto,
contrariamente a uma ideia muito generalizada na avaliação deste período, o contacto
efectivo com os protagonistas da cultura popular é então escasso. O caso mais
33
1 A recolha de Leite de Vasconcelos, a mais importante de todas quantas foram até hoje produzidas no
âmbito da antropologia portuguesa, foi editada postumamente nos anos 1960 (cf. Vasconcelos 1963,
1966).
21
emblemático a esse respeito é o de Teófilo Braga, de quem Leite de Vasconcelos viria a
escrever mais tarde que «poucas vezes interrogou directamente o vulgo», baseando-se
fundamentalmente em materiais «colhidos em fontes literárias, e em informações que
pessoas cultas lhe deram» (Vasconcelos 1933: 264). Mas, nos restantes casos, embora
se desenvolva um esforço de colecta mais importante, embora se enfatize
insistentemente a necessidade de recolher a informação «na boca do povo», embora se
cheguem inclusivamente a organizar algumas excursões científicas com esse objectivo -
por exemplo à Serra da Estrela ou ao Soajo34 -, os materiais são obtidos
maioritariamente por processos como o testemunho de uma velha «ama» - ou «criado»
- de origem rural, informações enviadas por correspondentes locais, curtas deslocações
de trabalho ou de férias fora de Lisboa.
A interpretação da cultura popular repousa, pelo seu lado, sobre a utilização
informada de várias correntes então em voga na Europa. Entre essas correntes
destacam-se a mitologia comparada de Max Muller, que, apoiada nas conquistas da
linguística comparada, defendia a origem indo-europeia da literatura e das tradições
populares da maioria dos países europeus. Presente na reflexão de Consiglieri Pedroso
(Leal 1988), a mitologia comparada foi também determinante em Adolfo Coelho (Leal
1993a) e em Leite de Vasconcelos. Embora em plano secundário, podemos detectar
também marcas da sua influência nalguns textos de Teófilo Braga escritos na primeira
metade dos anos 1880 (Leal 1987). Em todos estes autores, a mitologia comparada, em
resultado de um certo eclectismo teórico que é de resto um traço mais ou menos
estrutural da antropologia portuguesa entre 1870 e 1970 (cf. Leal 2000), convive
entretanto com a influência de outras correntes teóricas. Entre estas contam-se escolas
difusionistas pré-evolucionistas - como o difusionismo de

42

Benfey ou o turanianismo de Lenormant - que influenciam de forma importante,


respectivamente Adolfo Coelho e Teófilo Braga - que, de resto, se mostra também
sensível a teses celticistas e moçárabes. O evolucionismo, pelo seu lado, exerceu alguma
influência na obra de Consiglieri Pedroso - em particular na sua reflexão sobre a família
- e de Adolfo Coelho (Leal 1988, 1993a).
Recorrendo a estas diferentes teorias, os etnólogos dos anos 1870 e 1880
subscrevem uma perspectiva historicista da cultura popular. Esta é vista não apenas
como um testemunho do passado, mas de um passado de características
fundamentalmente etnogenealógicas (Smith 1991). Embora observadas no presente, a
literatura e as tradições populares são encaradas como uma herança étnica de que o
povo asseguraria a custódia. Mais do que o criador dos textos que profere para o
etnógrafo, o povo é pois visto como um guardador de textos anonimamente criados em
remotos tempos étnicos.

34
1 A excursão científica à Serra da Estrela teve lugar no início dos anos 1880. Embora organizada no
âmbito das ciências naturais, possuía também objectivos de levantamento da vida popular, como resulta
das notas etnográficas publicadas por Eduardo Coelho — irmão de Adolfo Coelho — no «Diário de
Notícias» (cf. a este respeito, Coelho 1993a [1880]). Quanto à excur- são ao Soajo, contou com a
participação, entre outros, de Leite de Vasconcelos e Martins Sarmento e teve lugar em 1882 (cf.
Vasconcelos 1927: 3-9).
22
Na viragem do século emerge uma imagem relativamente menos textual e mais
complexa da cultura popular, decorrente de uma certa diversificação de objectos. Além
da literatura e das tradições populares, as tecnologias e a cultura material, a arte
popular, as formas de vida económica e social, etc., passam a integrar a agenda de
pesquisa da antropologia portuguesa. Esse pro- cesso de diversificação de objectos toma
primeiro corpo com Adolfo Coelho que, em vários textos de natureza programática,
insiste repetidamente na necessidade de multiplicar os campos de estudo (Coelho
1993b [1880], 1993d [1890], 1993e [1896]). Fiel aos seus próprios apelos, o próprio
Adolfo Coelho fará ele próprio algumas investigações pioneiras sobre temas até aí não
cobertos pela antropologia portuguesa, como os ciganos (Coelho 1892), as alfaias
agrícolas (Coelho 1993g [1901]) ou a pedagogia popular (Coelho 1993f [1898], 1993h
[1910], 1993i [1910]).
Mas é sobretudo em Rocha Peixoto que este esforço de alargamento temá- tico
é mais visível. No ponto de partida da sua produção antropológica encontram-se ainda
as tradições populares - como as Maias, as festas de São João ou o Natal - sobre as quais
escreveu os seus primeiros ensaios (1967a [1894], 1967b [1894], 1967c [1894]). Mas,
rapidamente, os seus interesses vão conhecer um processo de decisivo alargamento e
temas como a arte e a arquitectura popular, as tecnologias tradicionais ou o colectivismo
agrário prenderão sucessivamente a sua atenção. Esta mesma concepção alargada da
etnografia e da antropologia reencontra-se também na orientação editorial imprimida
por Rocha Peixoto à Portugalia, onde Adolfo Coelho publicou um dos seus mais
importantes textos sobre pedagogia popular (Coelho 1993f [1898]) e Silva Picão
capítulos da sua monografia sobe a vida rural alentejana (Picão 1903).
Simultaneamente, do ponto de vista metodológico, à escassez de contactos com
o povo substitui-se na viragem do século um contacto mais efectivo com os
protagonistas da cultura popular. O exemplo de Rocha Peixoto é a esse respeito
particularmente significativo. Os seus artigos mais importantes resultam justamente de
reconhecimentos in locu que se estendem um pouco por todo o norte do país, cobrindo
uma área que, como escreveu o seu biógrafo

43

Flávio Gonçalves, «surpreende pela (...) amplitude» (1967: XXIX). É também essa
preocupação de construir um contacto mais efectivo com o povo que explica a
importância que passa a ser atribuída à produção etnográfica local, sobretudo no círculo
de etnógrafos mais directamente influenciados por Rocha Peixoto. Por seu intermédio,
punha-se à disposição do público interessado informação etnográfica resultante de
recolhas directas junto das populações estudadas, cujos modos de vida alguns desses
etnógrafos conheciam de muito perto.
Quanto à inspiração teórica dominante torna-se o evolucionismo, um paradigma
que, embora evidenciando alguns sinais de crise, mantinha intacta uma certa influência
na Europa da viragem do século (Stocking 1994). Se no caso de Adolfo Coelho - que já
havia recorrido nos anos 1880 a autores evolucionistas - esta influência se faz sobretudo
sentir por intermédio das suas leituras antropológicas, no caso de Rocha Peixoto, ela
baseia-se fundamentalmente no diálogo com a arqueologia, de que o autor foi também
praticante.

23
Em consequência desta dominância do evolucionismo, continua a triunfar uma
concepção historicista da cultura popular. Entretanto, o passado que é agora valorizado
é não tanto o passado étnico predominante nos anos 1870 e 1880, mas o passado dos
estágios de evolução dos evolucionistas. O camponês passa a ser visto como uma
espécie de «primitivo moderno», em particular nos textos de Rocha Peixoto, onde são
constantes as analogias entre os costumes populares «modernos» e as populações pré-
históricas.
Seja pelo facto desta equação entre o primitivo e o camponês contaminar este
último com os atributos pouco entusiastas com que os autores evolucionistas
generalizadamente qualificavam o primeiro (cf. Stocking 1987: 186- -237), seja em
consequência do cepticismo relativamente à valia de Portugal e do povo português
induzido pelo Ultimatum a imagem da cultura popular que triunfa nos escritos de Adolfo
Coelho e de Rocha Peixoto ao longo deste período é uma imagem negativizada.
Expressões como «boçal», «rude», «grosseira», «bárbara» são agora utilizadas para
caracterizar a cultura popular e o povo é momentaneamente visto - em contraste com
a representação de matriz romântica prevalecente nos restantes períodos da
antropologia portuguesa - como uma entidade de que se lamentam os defeitos.
Nas décadas de 1910 e 1920, por seu turno, a cultura popular passa a ser vista,
com sacrifício da concepção alargada que se havia imposto na viragem do século, como
sinónimo de arte popular, compreendendo um conjunto de objectos, entre os quais se
contavam a olaria, a arte pastoril, o traje tradicional ou a casa. Os antecedentes desse
interesse etnográfico pela arte popular remontam a um texto pioneiro escrito em 1881
por Leite de Vasconcelos - contra a corrente do gosto etnográfico da época - acerca das
cangas de bois minhotas (Vasconcelos 1881) e, sobretudo, aos ensaios que Rocha
Peixoto consagrou sucessivamente à olaria do Prado (1967e [1900]), aos ex-votos
(1967g [1906]), aos cata-ventos (1967h [1907]) ou às filigranas (1967i [1908]). Mas tinha
sido sobretudo no âmbito da história da arte e, em particular, da obra de Joaquim de
Vasconcelos (1844-1936), que um interesse mais sólido pelo tema se tinha
desenvolvido35.
A figura chave neste fascínio da etnografia portuguesa dos anos 1910 e 1920 pela
arte popular foi, sem dúvida, Vergílio Correia que, além de numerosos estudos empíricos
sobre a arte popular alentejana - depois reunidos no volume Etnografia Artística. Notas
de Etnografia Portuguesa e Italiana (Correia 1916a) -, foi também o autor da primeira
reflexão de fundo sobre o tema (Correia 1915a). Mas, na sua peugada, vários autores -
com destaque para D. Sebastião de Pessanha e outros colaboradores da revista Terra
Portuguesa, para Luís Chaves e para o próprio Leite de Vasconcelos - cultivarão também
aquilo que na época é recorrente e apropriadamente classificado como «etnografia
artística».
Em consequência, ganha sistematicidade um esforço de levantamento da arte
popular portuguesa e de identificação de alguns dos seus núcleos mais relevantes.
Secundado pela formação ou alargamento de colecções como a do Museu Etnológico
Português, esse trabalho, em muitos casos, não se limitou à mera fixação de informação,
mas articulou-se com processos de activa reinvenção de tradições em crise ou já mesmo
caídas em desuso. Foi nomeada- mente o que se passou com os tapetes de Arraiolos -

35
1 Sobre Joaquim de Vasconcelos, ver França 1990 (1967): 115-120.
24
objecto de uma intensa campanha organizada pela revista Terra Portuguesa36 que
conduziu à revitalização de uma tradição que parecia encontrar-se então praticamente
moribunda - ou com os bonecos de Estremoz, que parecem ter sido relançados como
resultado do interesse que etnógrafos como Luís Chaves manifestaram por eles (Chaves
1916).
Simultaneamente, dá-se uma espécie de colonização de outras áreas - como as
tradições populares - por esta concepção da etnografia como estudo privilegiado da arte
popular. Aquelas, em vez de documentos de natureza literária - como eram definidas
nos anos 1870 e 1880 - passam a ser vistas, por exemplo na obra de A. C. Pires de Lima
ou de Cláudio Basto, como objectos de natureza quase-plástica, descritos e analisados
de acordo com uma retórica e convenções muito similares àquelas que eram utilizadas
para falar da arte popular no sentido mais estrito da palavra.

45

Com esta reorientação da etnografia portuguesa para os temas artísticos, a


concepção da cultura popular que se impõe neste período é a de um uni- verso
composto basicamente por objectos que devem ser vistos e aprecia- dos. A etnografia
transforma-se literalmente em etnografia artística, expressão que - como acabámos de
ver - é recorrente nos textos da época. Triunfa nessa medida uma imagem
eminentemente visual da cultura popular. Esta é antes do mais qualquer coisa que deve
ser olhada. Esta imagem da cultura popular invade de resto as próprias modalidades de
apresentação da etnografia. Os artigos então publicados caracterizam-se pela
abundância de desenhos e ilustrações etnográficas que os acompanham e,
simultaneamente, fortalecem-se os laços de cooperação entre etnógrafos, fotógrafos,
aguarelistas e pintores37. As ligações da etnografia com disciplinas dependentes
também de uma relação de natureza visual com os seus objectos de estudo, como é o
caso da história de arte ou da arqueologia, são também muito fortes. A própria

36
2 Acerca da campanha em torno dos tapetes de Arraiolos, cf. designadamente A Terra Portuguesa, Vol.
I, pp. 96, 183, Vol. II, pp. 135, 151-52, vol. III, pp. 35-37. Cf. também o jornal Povo de Arraiolos Ano I, n.°
14, de 8 de Março e Ano I n.° 15 de Abril de 1917, dedica- dos à exposição resultante da campanha
organizada pela revista A Terra Portuguesa. No jornal Terra Nossa, essa exposição é referida nos seguintes
termos: «Deverá ser uma manifestação curiosa e salutar dessa nossa velha e extinta indústria caseira. Que
dela surja um belo renasci- mento, são os votos que fazemos!» (Vol I, n.° 3, p. 64). D. José Pessanha (1898-
?) e D. Sebastião Pessanha foram duas das figuras chave nesta campanha. Cf. a este respeito Pessanha, D.
José 1906 e Pessanha, D. Sebastião 1916
37
1 Numerosos factos testemunham, por exemplo, as ligações preferenciais existentes entre a etnografia
deste período e a pintura tardo-romântico. Atente-se por exemplo na seguinte notícia inserida no primeiro
número da revista Terra Portuguesa: «Muita coisa valiosa para a Etnografia e Arqueologia artísticas de
Portugal apareceu nesta nova exposição da Sociedade Nacional de Belas Artes. A reprodução de
monumentos e de assuntos regionais (tipos, casas, interiores, paisagens, costumes), embora não tenha
cientificamente senão um valor muito rela- tivo, favorece consideravelmente o desenvolvimento do gosto
pelas cousas portuguesas, pouco conhecidas ou pouco divulgadas. Sem intenção, a maior parte das vezes,
porque apenas têm de se preocupar com os efeitos artísticos, os desenhadores e os pintores vão criando
um ambiente apropriado à expansão dos conhecimentos de estética regionalista, de arqueologia e de
etnografia. É por isso que, a cada nova exposição, vamos seguindo enternecidamente a pronunciada
tendência dos nosso artistas para se ocuparem, cada vez mais, de assuntos absolutamente portugueses»
(p. 32).
25
linguagem empregue a propósito desta cultura popular esteticizada pelo olhar do
etnólogo é uma linguagem eminentemente pictórica «à la Perec»38, feita do enunciado
obsessivamente descritivo das propriedades e características formais dos objectos
sucessivamente apresentados.
Os procedimentos metodológicos dominantes nesta etnografia fascinada com a
arte popular, por seu turno, parecem traduzir um certo recuo relativa- mente às
possibilidades abertas na viragem do século por Rocha Peixoto e tendem, em função do
próprio objecto, a basear-se em visitas intermitentes, muito direccionadas e
aparentemente rápidas ao terreno. As oficinas dos artesãos, as colecções locais de arte
popular de alguns eruditos ou as feiras regionais passam a ser os principais focos de uma
etnografia que se mostrava mais interessada nos objectos em si do que propriamente
no contexto em que eles eram produzidos ou por referência ao qual faziam sentido.

46

Finalmente, quanto à inspiração teórica então prevalecente, ela não é, em geral,


muito relevante. Mostrar e celebrar a cultura popular enquanto conjunto de objectos
de arte popular, mais do que explicá-la, parece ser a opção dominante. Há
evidentemente excepções, como é o caso do ensaio de Vergílio Correia sobre arte
popular publicado em A Águia (Correia 1915a) ou das preocupações comparativas que
caracterizam alguns dos seus artigos sobre arte popular alentejana. Mas, de uma forma
geral, a vontade de teorização é bastante incipiente e a característica dominante da
esmagadora maioria dos textos é o seu tom celebratório, assente num número limitado
de recursos retóricos, que invariavelmente cantam a «beleza», a «simplicidade» e
«humildade» dos objectos de arte popular ou evocam as suas lições de «são tradiciona-
lismo», de «modéstia» e de «singeleza».
O passado mantém-se como referência principal na interpretação deste novo
território etnográfico. Só que, em resultado da irrelevância de apoios teóricos muito
sofisticados, esse passado é, por um lado, algo indefinido e essencializado, uma vez que,
a seu respeito, raramente são propostas especificações étnicas ou temporais
detalhadas. A cultura popular tende nessa medida a ser vista como uma tradição remota
e imemorial, tão remota e imemorial que seria redundante precisar o seu grau de
antiguidade: por definição ela está lá desde o princípio do tempo. Por outro lado, e na
medida em que o discurso etnográfico então dominante se articula frequentemente
com um trabalho de activa reinvenção de tradições em crise ou já caídas em desuso, o
passado de que falam os etnógrafos dos anos 1910 e 1920 é frequentemente visto como
algo que se procura preservar e reactivar no presente, de forma a projectar neste as
qualidades estéticas e morais que lhe estariam associadas.
Ao longo das décadas que se estendem de 1930 a 1970, em função da
diversidade de protagonistas que caracteriza a antropologia portuguesa desses anos, é

38
2 Georges Perec é um romancista francês contemporâneo cuja escrita, provocadoramente
experimental, reserva um papel importante à descrição obsessivamente minuciosa de situações,
personagens ou objectos. Um dos seus romances - A Vida. Modo de Usar - foi traduzido para português
por Pedro Tamen.

26
possível encontrar diferentes formas de definição do universo da cultura popular e
metodologias e inspirações teóricas também elas distintas.
A etnografia directamente ligada à «política de espírito» do Estado Novo, pelo
seu lado, privilegiará uma concepção de cultura popular que se situa no seguimento da
prevalecente nas décadas da I República. Esta continuidade deve ser sublinhada. À
semelhança do que aconteceu em França - onde o investimento do regime de Vichy no
popular se situa na sequência de iniciativas desenvolvidas inicialmente no quadro da III
República (cf. Peer 1998) - também em Portugal a descontinuidade política entre a I
República e Estado Novo não exclui que, noutros planos, não se possam detectar
importantes continuidades. E o que se passa com a etnografia.
Quer isto dizer que a cultura popular continua a ser vista durante o Estado Novo
como sinónimo da arte popular, e a etnografia frequentemente classificada como
etnografia artística. E claro que a par da arte popular, alguns dos etnógrafos desses anos
se continuam a movimentar em áreas como a literatura ou as tradições populares. É
esse, por exemplo, o caso de Augusto César e Fernando de Castro Pires de Lima ou de
Alexandre Lima Carneiro (1898-?).

47

Mas, no cômputo global, é a arte popular que ocupa o lugar mais destacado. É para a
sua importância que remetem as grandes iniciativas do SPN/SNI, com destaque para o
Museu de Arte Popular, ou a actividade regular de organismos como a JCCP - com a sua
obsessão pelos museus etnográficos locais - ou a FNAT - com a sua actividade de
disciplinamento dos ranchos folclóricos. É também da centralidade da arte popular que
falam não apenas o título mas, sobretudo, o conteúdo das duas publicações colectivas
que assinalam respectivamente o início e o termo dos anos de ouro deste tipo de
etnografia: a Vida e Arte do Povo Português (1940) e A Arte Popular em Portugal (Lima
1960)39. É por fim, sobre arte popular que, para além de Luís Chaves, escrevem
etnógrafos como Abel Viana, Armando de Matos, Armando Leça, ou, embora em
proporções mais modestas, Cardoso Marta (1882-1958) ou Guilherme Felgueiras.
Por detrás desta continuidade temática em relação às décadas de 1910 e 1920
perfilam-se entretanto diferenças e deslocações de significado que não são
desprezáveis. Assim, o conceito de arte popular - que já antes colonizava áreas como a
da literatura popular - passa agora, de forma mais efectiva, a recobrir a quase totalidade
do universo da cultura popular, abarcando tópicos como o trajo e a música - esta última
investigada por Armando Leça -, ou, no pólo oposto, a alfaia agrícola - como o mostram

39
1 O elenco de temas abordados na Vida e Arte do Povo Português é significativo: «o trajar do povo»,
«teares e tecedeiras», «Arte dos namorados», «barcos de Portugal», «arte popular», «bordadoras e
rendilheiras, «o carro rural», «a faina do campo», «pastoreio e arte pastoril», «luminária popular», «festas
do calendário», «danças e cantigas», «o fogo de vista», «oleiros e olaria», «bonecos de barro» e
«ourivesaria popular». Em A Arte Popular em Portugal, embora o ternário seja mais amplo, a orientação
de base não é muito distinta, sendo abordados temas como «arquitectura», «mobiliário», «cobres, ferros
e latões», «ourivesaria», «cestaria e esteiraria», «arte de papel», «medicina e superstição», «culinária e
doçaria», «escultura», «pin- tura», «cerâmica», «literatura de cordel», «teatro», «música e dança»,
«tecidos», «tapeçarias e bordados», «rendaria», «trajo», «brinquedos, fogo de artifício», «carros e
carroças» e «barcos. Alguns nomes são comuns a ambos os volumes: é o que se passa com Luís Chaves,
Guilherme Felgueiras, D. Sebastião Pessanha, Octávio Filgueiras e Luís de Pina.
27
por exemplo as contribuições de Vergílio Correia e Guilherme Felgueiras para a Vida e
Arte do Povo Português (Correia 1940, Felgueiras 1940). É sobre essa concepção
alargada da arte popular, de resto, que repousa o Museu de Arte Popular. Nas diferentes
salas que o compõem, correspondentes às principais províncias portuguesas, arados e
bonecos de barro, rendas de bilros e barcos de pesca, utensílios de cozinha e exemplares
de arte pastoril são tratados de forma homóloga, como instâncias, apenas formalmente
diferenciadas, do mesmo universo de bens artísticos do povo, dotados de um valor
indistintamente decorativo. Simultaneamente, há como que uma valorização acrescida
de algumas áreas que mais facilmente se prestavam às operações de encenação da
cultura popular favorecidas pelo Estado Novo. A dança é um dos exemplos mais claros
do que acabo de dizer. Tanto os novos apoios fornecidos, designadamente por

48

intermédio da FNAT, aos ranchos folclóricos, como a formação do grupo Verde Gaio,
darão uma projecção ao universo da dança - e, com ela, aos domínios associados do
trajo e da música popular - que, embora preparada em anos anteriores, ganha agora
uma expressão inédita40.
Em consequência deste conjunto de transformações, a imagem visual da cultura
popular herdada da I República torna-se, por assim dizer, mais coreográfica. Os objectos
representativos do viver popular põem-se em movimento, num processo que é
favorecido também pelo emprego de novas convenções visuais de estilização erudita da
cultura popular assentes no desenho de inspiração moderadamente modernista e sem
preocupações de reprodução exacta da realidade que era apanágio das iniciativas do
SPN/SNI ou do grafismo adoptado pelo Mensário das Casas do Povo. Como se sabe, foi
António Ferro que de forma mais feliz sintetizou esta imagem coreográfica da cultura
popu- lar, quando afirmou, por exemplo, que «o verdadeiramente belo seria trans-
formar Portugal rústico numa constante exposição viva de arte popular» (Ferro in Melo
1997: 235; os itálicos são meus), ou, quando, a propósito dos bailados do Verde Gaio,
escreveu:
Com Verde-Gaio começaram a animar-se, a ganhar vida e arte, todos aqueles
objectos ingénuos e familiares do Centro Regional: as flores de papel, as filigranas, as
olarias, os trajos, as mantas, os chapéus festivos, os instrumentos populares, harmónios
e adufes, as próprias mãos bailarinas das bordadoras (id., ibid.: 264).
Do ponto de vista metodológico e teórico a etnografia do Estado Novo prolonga
também algumas das características da etnografia dos anos 1910 e 1920. Entretanto, do
ponto de vista metodológico, as recolhas directas pare- cem agora alternar com maior
frequência com a gestão de redes de etnógrafos locais que se desenvolvem muitas vezes
à sombra das iniciativas governamentais (Alves 1997) e o tom repetitivamente
celebratório dos textos articula-se mais amiudadamente com uma retórica ideológica
de inspiração ruralista e nacionalista, que atinge o seu ponto culminante nalgumas
colaborações escritas pelos etnógrafos deste período para o Mensário das Casas do
Povo. A cultura popular é agora vista como o substrato sobre que repousa a

40
1 Para desenvolvimentos comparativos em torno dos ranchos folclóricos, cf. Duflos-Priot 1995.

28
nacionalidade na particular versão que dela elaborou o Estado Novo. Entretanto, no
mesmo período, com Jorge Dias e a sua equipa, emerge uma concepção da cultura
popular relativamente distinta. Nessa concepção, o lugar central é ocupado, antes do
mais, pelas tecnologias tradicionais. Uma das primeiras grandes obras de Jorge Dias é,
como se sabe, um estudo de síntese sobre os arados portugueses (Dias 1948b). No
seguimento desse estudo, Jorge Dias e os seus colaboradores irão desenvolver um
projecto de levanta- mento sistemático das tecnologias tradicionais que dará origem a
um conjunto

49

de mais de uma dezena de monografias, recobrindo domínios como os moinhos e


azenhas (Dias, Oliveira & Galhano 1959a, 1959b, Oliveira, Galhano & Pereira 1965,
1983), os sistemas de armazenagem e secagem dos cereais (Dias, Oliveira & Galhano
1963), de atrelagem de bois (Oliveira, Galhano & Pereira 1973), as actividades agro-
marítimas (Oliveira, Galhano & Pereira 1975), a alfaia agrícola (Oliveira, Galhano &
Pereira 1976) e a tecnologia tradicional do linho (Oliveira, Galhano & Pereira 1978). As
raízes deste extenso trabalho de pesquisa remontam, por um lado, à agenda da
etnologia europeia dos anos do post-guerra, dominada por grandes projectos de
cartografia etnográfica centrados designadamente em elementos da cultura material41.
Mas têm directamente a ver, por outro lado, com o peso que, nas prioridades de
pesquisa definidas por Dias e pelos seus colaboradores tinham as recolhas centradas em
elementos da cultura tradicional vistos como mais ameaçados pelas transformações
tecnológicas e sociais nos campos portugueses.
Nessa medida, em Jorge Dias encontramos uma imagem da cultura popular que,
embora privilegiando objectos - à semelhança da etnografia das décadas de 1910 e 1920
e, na continuidade desta, da própria etnografia do regime -, dá entretanto visibilidade a
outro tipo de objectos, predominantemente associa- dos à materialidade da vida
camponesa e dotados, se assim se quiser, de propriedades mais tácteis do que
propriamente visuais. Reforçado pela viragem museológica que o trabalho da equipa de
Jorge Dias conheceu com a criação do Museu de Etnologia do Ultramar em 1965, este
acento nos objectos privilegia, de facto, objectos que funcionam, cujos modos de
construção e de operação são descritos com detalhe e que, sobretudo, são
reiteradamente contextualizados por referência ao modo de vida rural que lhes
conferiria sentido e que, nessa medida, deveria ser exaustivamente documentado.
Simultaneamente, Jorge Dias e os seus colaboradores reintroduziram também -
na linha dos etnógrafos da viragem do século, e, em particular de Rocha Peixoto,
etnógrafo em relação ao qual nunca esconderam de resto a sua admiração - uma certa
diversidade na investigação da cultura popular portuguesa. Tópicos como as
comunidades de montanha do norte de Portugal, a arquitectura popular, as festividades
cíclicas, foram, entre outros, objecto da atenção da equipa de Jorge Dias. No tocante às
comunidade de montanha, é conhecida a importância das monografias pioneiras que
Dias escreveu sobre Vilarinho da Furna (1948a) e Rio de Onor (1953a). A arquitectura

41
1 Acerca da cartografia etnográfica na equipa de Jorge Dias, cf. Brito 1989.

29
popular, por seu turno, foi objecto - como teremos ocasião de examinar mais
detalhadamente no decurso do capítulo 7 - das atenções de Veiga de Oliveira,
acompanhado por vezes de Fernando Galhano e Benjamim Pereira (Oliveira & Galhano
1960a, 1992, Oliveira, Galhano & Pereira 1969). Quanto às festividades cíclicas - para
além de estudos mais pontuais de Jorge e Margot Dias (Dias & Dias

50

1950, 1956) e de Benjamim Pereira (1973) - foram sobretudo trabalhadas, mais uma
vez, por Ernesto Veiga de Oliveira (1966b, 1984).
Esta diversificação da pesquisa deve ser vista, por um lado, como o
prolongamento natural do esforço de documentação do modo de vida rural português
presente na pesquisa de Dias e dos seus colaboradores sobre alfaias agrícolas. Mas é
sobretudo o reflexo de uma vontade de conhecimento mais completo da cultura popular
portuguesa, que, de resto, possibilitou que Jorge Dias e os seus colaboradores se
abalançassem às primeiras tentativas de natureza antropológica de pensar a cultura
portuguesa no seu conjunto. É nessa perspectiva que deve ser designadamente vista a
importância de ensaios como «Algumas Considerações acerca da Estrutura Social do
Povo Português» (Dias 1990b [1955]), «Tentamen de Fixação das Grandes Áreas
Culturais Portuguesas» (Dias 1990c [1960]) e «Os Elementos Fundamentais da Cultura
Portuguesa» (Dias 1990a [1953]), nos quais Jorge Dias tentou sistematizar os factores
de diversidade e unidade da cultura popular portuguesa.
Recobrindo as temáticas que acabámos de passar em revista, a produção de Dias
e dos seus colaboradores caracteriza-se, do ponto de vista metodológico, por uma
aproximação relativamente sofisticada à cultura popular, assente sobretudo na
metodologia da «extensive survey». De facto, tanto os levanta- mentos no domínio das
tecnologias tradicionais como as recolhas em torno da arquitectura popular ou das
festividades cíclicas assentam numa cobertura equilibrada e representativa do país,
apoiada em estudos curtos mas numerosos realizados nas diferentes áreas
sucessivamente cobertas pelos investiga- dores. Simultaneamente, nas monografias
sobre Vilarinho da Furna e Rio de Onor, Jorge Dias realizou aquelas que podem ser vistas,
no âmbito da antropologia portuguesa, como as primeiras aproximações ao terreno «à
la Malinowski», com estadias mais ou menos prolongadas de investigação que
procuraram cobrir a totalidade dos aspectos da vida cultural e social das populações
estudadas.
Do ponto de vista das influências teóricas, por fim, apesar da complexidade e
diversidade de uma obra que se estendeu por mais de três décadas e que foi escrita a
várias mãos, podem-se de qualquer forma surpreender algumas tendências principais
na produção antropológica de Jorge Dias e dos seus colaboradores.
A primeira prende-se com a prevalência do difusionismo post-evolucionista de
inspiração alemã. Os Arados Portugueses e as suas Prováveis Origens (Dias 1948b) e os
Espigueiros Portugueses (Dias, Oliveira & Galhano 1963) são - como teremos ocasião de
verificar mais em detalhe no próximo capítulo - os exemplos mais elucidativos da
influência difusionista na obra de Jorge Dias. No primeiro caso, os três diferentes tipos
de arado dominantes no território português são apresentados como derivando de
correntes étnicas diferenciadas, respectivamente lusitana - no caso do arado radial -

30
romana e árabe - no caso do arado de garganta - e sueva - no caso do arado
quadrangular. Quanto aos espigueiros, a sua difusão é vista como resultando da
influência sueva no noroeste

51

do país, que afectaria também um conjunto diversificado de outros aspectos da cultura


popular dessa área. A par desta influência do difusionismo mais ortodoxo - que se
tenderá a atenuar com os anos - os trabalhos de Dias e dos seus colaboradores
caracterizaram-se também por uma certa abertura para uma historicidade menos
conjectural e mais apoiada no curto prazo. São disso exemplo - como teremos ocasião
de ver - os estudos iniciais de Ernesto Veiga de Oliveira sobre arquitectura popular ou
ainda a interpretação desenvolvida nos Sistemas de Atrelagem de Bois acerca dos jugos
minhotos de bois, que sublinha a sua origem nas reformas do liberalismo e no
enriquecimento das casas agrícolas do noroeste provocado por aquelas (Oliveira,
Galhano & Pereira 1973: 87).
Simultaneamente, é também possível detectar, em particular na produção de
Jorge Dias subsequente a 1950, uma presença importante do culturalismo norte- -
americano, corrente com a qual Jorge Dias teve oportunidade de se familiarizar de forma
mais efectiva aquando da sua primeira deslocação aos EUA. Textos como Rio de Onor
(1953a), com a sua tentativa final de aplicação da dicotomia apolíneos/ dionisíacos
(Benedict 1934) à análise de Rio de Onor e Vilarinho da Furna, ou «Os Elementos
Fundamentais da Cultura Portuguesa» (1990a [1953]), marcado por preocupações
idênticas às presentes nos estudos de carácter nacional da escola «cultura e
personalidade», constituem duas das mais conhecidas expressões da receptividade de
Jorge Dias às propostas culturalistas. Esta é de resto indissociável da sua formação
alemã, uma vez que, como se sabe, o culturalismo se desenvolve nos EUA à sombra da
matriz alemã que Boas tinha emprestado desde finais do século XIX à antropologia
norte-americana42.
Em resumo, embora ao recuperar as preocupações etnogenealógicas
características dos anos 1870 e 1880, o projecto antropológico de Jorge Dias mantenha
intacta a equação entre a cultura popular e o passado, a sua simultânea abertura para a
história mais recente e para o presente deve ser também realçada. Por seu intermédio,
a cultura popular portuguesa passa a ser vista de modo mais efectivo como o
testemunho de qualquer coisa que, embora ameaçada de extinção - e, nessa medida,
condenada a médio prazo a fazer parte do passado - se situa apesar de tudo num
patamar cronológico mais próximo do do observador.
Finalmente, na etnografia nascida de uma vontade de crítica em relação à leitura
da cultura popular proposta pelo Estado Novo, podemos encontrar uma opção por
universos que apresentam algumas similitudes como os domínios favoritos dos
etnógrafos do Estado Novo. De facto, a arte popular - com Ernesto de Sousa (1973) -, a
arquitectura tradicional - com os arquitectos do Inquérito à Arquitectura Popular em
Portugal (1980 [1961]) - e, sobretudo, a música popular - por intermédio dos trabalhos
de Giacometti e Lopes Graça43 -, foram
42
1 Sobre a matriz alemã do pensamento de Boas, cf. Stocking (ed.) 1996.
43
2 De Lopes Graça, retenha-se sobretudo A Canção Popular Portuguesa (1974 [1953]). Michel
Giacometti, pelo seu lado, escreveu pouco. Veja-se de qualquer forma o seu livro Cancioneiro Popular
31
52

Embora o passado esteja inequivocamente presente na sua leitura da cultura


popular, alguma desta etnografia crítica - sobretudo a produzida por intelectuais mais
próximos do PCP - tende simultaneamente a projectá-la para o futuro, na medida em
que a cultura popular passa a ser implicitamente vista como parte de um programa de
transformação democrática de Portugal ou, mais modestamente, de um programa
vanguardista de renovação das artes. E a esta luz que poder ser interpretado o papel
que Giacometti teve nas recolhas etnográficas organizadas, após a Revolução de 1974,
no âmbito do Serviço Cívico Estudantil (cf. Branco & Oliveira 1993).
*
Em resumo, no interior de um quadro de convergências cuja importância deve
ser acentuada, desenvolveram-se também, ao longo do período que vai de 1870 a 1970,
concepções distintas acerca da cultura popular, relativas tanto aos objectos pertinentes
para a sua definição, como aos meios teóricos e metodológicos mobilizados para o seu
estudo. Estas divergências são particular- mente marcantes e nítidas entre 1930 e 1970.
Em torno da etnografia do Estado Novo, da antropologia de Jorge Dias e da sua equipa
e, por fim, daquilo que temos vindo a designar como etnografia crítica, desenrolou-se
de facto - como teremos ocasião de explicitar de forma mais clara no final do capítulo 7
- uma espécie de guerra cultural centrada na cultura popular e em diferentes
modalidades da sua representação e interpretação que foi um dos episódios mais
importantes da vida intelectual portuguesa no período da ditadura.

Associados a objectos, métodos e teorias diferenciadas, ligados a imagens


distintas da cultura popular, os diferentes momentos da antropologia portuguesa que
temos vindo a passar em revista, articulam-se não apenas com diferentes formas de
pensar o país, mas também com modalidades distintas de construção da identidade
nacional.
Assim, nos anos 1870 e 1880, predomina uma visão do país enquanto uni- dade
sem falhas. A localização das informações publicadas, embora existente, é irrelevante e
aquilo que se encontra numa localidade ou área regional deter- minada é suposto
encontrar-se por todo o país. Isto é, parte-se do princípio que há uma distribuição
homogénea da tradição. Acoplada a esta imagem unitária do país, afirma-se uma forma
de pensar a identidade nacional oscilante entre um modelo que poderíamos designar
de romântico e um modelo etno- genealógico relativamente mais sofisticado.
Para o modelo romântico - de que Teófilo Braga foi o melhor intérprete - a literatura e
as tradições populares seriam como que a alma, a substância

54

Português (Giacometti 1981). Cf. ainda os textos que acompanham os sucessivos LPs editados no quadro
da Antologia da Música Popular Portuguesa.

32
mesma sobre que repousaria a identidade do país. A publicação pura e simples de
recolhas - sem mais comentários e análises - seria uma forma de, mostrando essa alma,
afirmar a identidade da nação.

Os modelos etnogenealógicos mais sofisticados assentam, pelo seu lado - como


teremos ocasião de verificar mais detalhadamente no próximo capítulo - no peso de
correntes como a mitologia comparada ou as escolas difusionistas pré-evolucionistas e
propõem-se trabalhar a literatura e as tradições populares como testemunhos das
correntes étnicas que teriam sucessivamente frequentado o país. Por seu intermédio,
ganha corpo uma reflexão antropológica que procura ancorar a identidade nacional
numa tradição provida dos argumentos da antiguidade e da originalidade. A esse
respeito podemos encontrar as mais diversas teses. Algumas delas procuram - com
recurso à mitologia comparada - vincar a antiguidade e a originalidade da cultura
popular portuguesa no quadro geral indo-europeu. Outras - como o difusionismo
turaniano praticado por Teófilo Braga ou as teses lusitanistas defendidas
sucessivamente por Martins Sarmento (1833-1899) e Leite de Vasconcelos - pro- curam
antecedentes étnicos anteriores às migrações indo-europeias. Por fim, desenvolvem-se
também as primeiras tentativas mais ambiciosas de construção de uma etnogenealogia
pluralista para a nação, da autoria de Teófilo Braga. Apesar das suas diferenças, todas
estas aproximações estão porém de acordo em dois pontos essenciais: a afirmação de
Portugal como uma comunidade étnica de descendência e a simultânea reivindicação
da antiguidade e originalidade dessa comunidade. Portugal deixa de ser visto como o
resultado contingente de um conjunto de acontecimentos políticos e militares mais ou
menos recentes, para passar a ser visto como o produto de remotíssimas originalida-
des étnicas, bem mais fortes e poderosas, identificáveis justamente através da
persistência da literatura e das tradições populares. A antropologia das décadas de 1870
e 1880 dá-se nessa medida como objectivo a reconstituição de uma verdadeira
arqueologia «espiritual» da nação susceptível de enraizar a sua identidade na
longuíssima duração da tradição.
Na viragem do século, em confronto com a imagem unitária e homogeneizadora
da cultura popular prevalecente nos anos 1870 e 1880, triunfa uma concepção
relativamente mais complexa de Portugal como somatório de diversidades. Como
vimos, esse período é caracterizado pela descoberta dos registos local e regional. Com
essa descoberta, passa-se a conferir maior ênfase às particularidades regionais
portuguesas, designadamente das que derivam da própria variedade de ambientes
naturais. As recolhas e estudos de Rocha Peixoto, por exemplo, incidem não apenas
sobre uma multiplicidade de objectos, mas cobrem também uma diversidade grande de
contextos locais: Póvoa do Varzim, Gerês, Trás-os-Montes, Ribeira minhota, etc. O que
a multiplicidade desses contextos locais põe em relevo é justamente a diversidade do
país e das principais expressões da sua cultura popular. Nesse sentido, cada um dos
textos de Rocha Peixoto é uma espécie de reconhecimento tácito dessa diversidade que,
por vezes, assume mesmo expressões mais claras. Falando por

55

exemplo da habitação popular portuguesa (1967f [1904]), Rocha Peixoto - como


teremos ocasião de verificar mais detalhadamente no capítulo 4 - assume de forma

33
explicita a sua diversidade etnográfica, rejeitando, nessa medida, a possibilidade de se
falar de um modelo único de casa portuguesa. Este reconhecimento, tanto implícito
como explícito, da diversidade do país não se articula entretanto como uma tentativa
sistematizada de pensar essa diversidade. Isto é: a diversidade da cultura portuguesa é
descoberta mas não é ainda pensada enquanto tal de uma forma sistemática.
Simultaneamente, desenvolve-se um discurso sobre a identidade nacional que
substitui o tom optimista dos anos 1870 e 1880 por um tom mais decla- radamente
pessimista. De facto, a viragem do século é marcada, como vimos, por um
acontecimento político maior: o Ultimatum. Ora bem, este - como tem sido sublinhado
- suscitou duas reacções contraditórias. Por um lado um sobressalto nacionalista que
deu nomeadamente origem à chamada geração de 90 - com particular expressão em
domínios como a literatura, a arte ou a arquitectura (cf. Ramos 1994). Por outro,
desenvolveu-se também uma reacção mais céptica, baseada na descrença em relação à
viabilidade de Portugal como nação, em que o tema da decadência nacional ocupou um
lugar determinante44.
É neste último quadro que se inscreve a etnografia portuguesa do período. Tanto
Adolfo Coelho como Rocha Peixoto, de facto, foram particularmente sensíveis ao tema
da decadência nacional. O retrato negativizado que ambos traçaram de certos aspectos
da cultura popular portuguesa reflecte aliás a ideia segundo a qual a própria cultura
popular estaria já irremediavelmente afectada pelo declínio geral do país. Estas ideias
ecoam de forma clara nos programas antropológicos e etnográficos escritos por Adolfo
Coelho nos anos 1890 (Coelho 1993d [1890], 1993e [1896]) ou emprestam ainda um
tom pessimista à sua reflexão sobre a pedagogia popular portuguesa (Coelho 1993f
[1898]). Mas é nalguns textos de Rocha Peixoto - como no conhecido «O Cruel e Triste
Fado» (1897) ou ainda em «A Casa Portuguesa» (1967f [1904]) - que o tema da
decadência nacional como característica constitutiva da própria cultura popular
portuguesa ganha um tom particularmente acerbo (cf. Leal 1995: 136- -140). Centrada
em torno do tema da decadência nacional, a antropologia portuguesa da época
configura-se nessa medida não já como uma antropologia de construção da nação, mas
como uma antropologia de problematização e interrogação da nação, à luz das teses
decadendistas.
Desenvolvendo uma visão céptica e descrente acerca da relação entre cultura
popular e identidade nacional, os antropólogos portugueses da viragem do século são
portadores de um discurso sobre a identidade nacional em choque com o discurso mais
optimista da chamada geração de 90. Desse choque

56

acabará por sair vitorioso o discurso mais optimista. A implantação da República é de


facto encarada pela esmagadora maioria dos intelectuais como uma nova oportunidade
para a nação portuguesa, em que todas as energias se deveriam concentrar no
renascimento pátrio. Em consequência, todo o período coincidente com as décadas de
1910 e 1920 é um período de intenso patriotismo, que - como demonstrou Rui Ramos
(1994) - conhece uma intensificação sem precedentes do trabalho de invenção de

44
1 Acerca do tema da decadência nacional na cultura portuguesa do século XIX cf. Pires, A. Machado
1992. Para um enquadramento comparativo, cf., por exemplo, Pick 1989.
34
tradições identitárias ligadas à nação. Assiste-se à multiplicação de revistas culturais
com designações45 e projectos nacionalistas. Teixeira de Pascoaes e o saudosismo
impõem-se como referências centrais na cena intelectual portuguesa. São dados passos
decisivos no sentido da criação de uma arte nacional. O regionalismo, encarado como
um preliminar indispensável ao verdadeiro patriotismo, conhece um desenvolvimento
sem precedentes e a província afirma- se como uma espécie de pequena pátria, cujo
amor implementa o amor à grande pátria46.
A etnografia portuguesa do período redefine-se de acordo com este programa
ideológico. A sua imagem do país é marcada pela insistente reiteração do local e do
regional como níveis de análise principais, mesmo por parte de etnógrafos mais ligados
ao centro. A arte popular de Vergílio Correia, por exemplo, é, fundamentalmente, a arte
popular do Alentejo. Os Pires de Lima trabalham também num quadro localista
relativamente bem delimitado. Mas por detrás dessas escalas de análise, encontra-se
um discurso de claros contornos nacionalistas que postula a equivalência entre a
«pequena pátria» e a «grande pátria». O local e o regional não são - como na viragem
do século - um meio para constatar a diversidade da cultura popular portuguesa, mas
instâncias contingentes e desmultiplicadas do espectáculo maravilhoso dos recursos do
povo sob a forma de uma galeria de retratos típicos todos eles representativos à sua
maneira da mesma essência - a nacionalidade47.
Quanto ao discurso identitário de que essa etnografia é portadora ele é pouco
elaborado, decompondo-se imediatamente no simples gesto de mostrar e celebrar esse
espectáculo maravilhoso, nomeando-o e exibindo-o, sem entre- tanto o explicar.
Caracterizada por textos invariavelmente curtos, povoados - como vimos - de muitas
imagens, a etnografia dos anos 1910 e 1920 limita- -se a pontuar esses textos e a
legendar esses imagens confirmações genuinamente comovidas sobre o carácter
«autenticamente português», «caracte-

57

risticamente nosso», «verdadeiramente tradicional» das tradições e objectos


estudados. Alinhada com a retórica nacionalista dominante, a etnografia por- tuguesa
desse período é, nessa medida - à semelhança da história da arte, da casa portuguesa
ou do saudosismo - um dos domínios fundamentais onde se procede à nacionalização
de Portugal
Entre as décadas de 1930 a 1970, a etnografia do Estado Novo prolonga as linhas
centrais da etnografia da I República. Servida agora por meios de propaganda muito
mais eficazes, sedimenta-se portanto uma imagem do país indiferente à sua diversidade
e em que as escalas local (ou regional) e nacional são vistas como ontologicamente
45
1 Entre essas designações veja-se por exemplo Lusa, Lusitânia, Renascença, Terra Nossa, Terra
Portuguesa, etc. Para um levantamento mais exaustivo de títulos de revistas culturais com uma referência
aos lusitanos, cf. a nota de rodapé da página 66 do presente livro.
46
2 Para efeitos comparativos, cf. Thiesse 1991, 1997.
47
3 Como teremos ocasião de verificar no capítulo 8, há evidentemente excepções a esta modalidade
«nacionalista» de pensar os registos local e regional. Mas ela não deixa de ser, tanto nos anos da I
Repúbica, como no decurso do Estado Novo, a modalidade dominante de articulação entre local, regional
e nacional.

35
equivalentes. Como afirma Pais de Brito a diversidade não era apreendida enquanto tal,
com todas as conflituosidades que transporta, mas antes como uma variação cromática
dentro do mesmo (...). Esboçava-se mais pelo lado pictórico, folclórico e ilustrativo de
curiosidades de diferenciação local (1995: 11).
Fortalece-se igualmente um discurso luxuriantemente nacionalista - mas
teoricamente insignificante - em torno da cultura popular como essência da
nacionalidade que, mais do que explicar, há que comemorar «através de festivais de
folclore, concursos, jogos florais voltados para a restituição e embelezamento» de um
país visto como um realidade de natureza «cénica» (id., ibid.).
Com Jorge Dias e a sua equipa, encontramos um discurso sobre Portugal
relativamente distinto. A imagem do país projectada pela antropologia de Dias e seus
colaboradores baseia-se de facto não só na redescoberta da sua diversidade, como na
tentativa de proceder à sua sistematização. Postulada inicial- mente pela antropologia
da viragem do século, a diversidade da cultura popular portuguesa é agora objecto de
uma reflexão que procura dar conta das suas grandes linhas de força.
Essa reflexão apoia-se decisivamente no modelo tripartido proposto por Orlando
Ribeiro em Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico (1963 [1945]), segundo o qual seria
possível distinguir em Portugal três áreas claramente individualizadas do ponto de vista
da geografia física e humana: o Portugal Mediterrânico - coincidente com o Algarve, o
Alentejo, a Estremadura e o Ribatejo - o Portugal Atlântico - correspondente à Beira
Litoral, ao distrito do Porto e ao Minho - e o Portugal Transmontano - compreendendo
Trás-os- -Montes e as Beiras. Sensível - devido à sua formação alemã - aos contributos
da geografia, Jorge Dias irá socorrer-se do modelo de Orlando Ribeiro para pensar a
diversidade etnográfica e antropológica de Portugal. A primeira tentativa de
operacionalização antropológica desse modelo é feita em Os Arados Portugueses e suas
prováveis Origens (Dias 1948b), sendo depois retomada em monografias como os
Espigueiros Portugueses (Dias, Oliveira & Galhano 1963) ou a Arquitectura Tradicional
Portuguesa (Oliveira & Galhano 1992). A distribuição dos diferentes elementos da
cultura material tradicional é explicada, nestas diferentes monografias, com recurso ao
modelo de Orlando

58

Ribeiro. Mas é sobretudo nos ensaios «Algumas Considerações acerca da Estrutura


Social do Povo Português» (Dias 1990b [1955]) e «Tentamen de Fixação das Grandes
Áreas Culturais Portuguesas» (Dias 1990c [1960]) que a explicitação antropológica do
modelo de Orlando Ribeiro é levada mais longe. De acordo com Jorge Dias, a totalidade
dos elementos em que se decomporia a cultura tradicional portuguesa - das alfaias
agrícolas aos tipos de família, das tipologias habitacionais às modalidades de
organização social, das formas de povoamento às características da religiosidade
popular - distribuir-se-ia no território português de acordo com a divisão tripartida
proposta por Ribeiro.
Consagrando uma parte significativa da sua produção à sistematização da
diversidade da cultura popular portuguesa, Jorge Dias interrogou-se simultaneamente
sobre os factores que, sobrepondo-se a essa diversidade, concederiam unidade à cultura
portuguesa. Nessa medida, os seus ensaios de «Algumas Considerações acerca da

36
Estrutura Social do Povo Português» (Dias 1990b [1955]) e «Tentamen de Fixação das
Grandes Áreas Culturais Portuguesas» (Dias 1990c [1960]) devem ser lidos em conjunto
com «Os Elementos Fundamentais da Cultura Portuguesa» (1990a [1953]). Uma vez
postulada a diversidade do país, trata-se de pensar a sua unidade, que assen- taria,
segundo Dias, na partilha de uma substância espiritual comum a toda a cultura
portuguesa. Influenciado por tentativas anteriores de pensar a psicologia étnica
portuguesa - com destaque para as concepções da saudade como núcleo estruturador
da identidade nacional formuladas no início do século pelo poeta Teixeira de Pascoaes -
Jorge Dias encontra na «personalidade base» dos portugueses, ou no seu carácter
nacional, o grande elemento unificador, do ponto de vista antropológico, de Portugal.
É a partir das linhas de força que temos vindo a pôr em evidência que é também
possível interpretar a relação que no discurso antropológico de Jorge Dias e dos seus
colaboradores é estabelecida entre cultura popular e identidade nacional. Assim, a
reciclagem do modelo tripartido de Orlando Ribeiro por Jorge Dias está intimamente
ligado à reivindicação de uma etnogenealogia pluralista de Portugal, com as diferentes
áreas propostas por Ribeiro a serem vistas por Dias como diferentes «províncias
etnogenéticas» de Portugal ligadas respectivamente aos romanos e árabes (Portugal
mediterrânico), aos lusitanos (Portugal transmontano) e aos suevos (Portugal atlântico).
Quanto à reflexão de Dias sobre o carácter nacional português, é sobre ela que assenta
- na continuidade de posições defendidas já no final do século XIX por autores como
Teófilo Braga, Adolfo Coelho ou Rocha Peixoto, mas, sobretudo, na continuidade da
reflexão de Teixeira de Pascoaes sobre a saudade - a reivindicação da singularidade e da
superioridade da cultura portuguesa.
Finalmente, a etnografia que se situa numa posição crítica em relação ao Estado
Novo propõe também - à semelhança de Jorge Dias e dos seus colaboradores - uma
imagem do país que se opõe à imagem unitária proposta pelo regime e que acentua os
factores de diferenciação e clivagem internas da cul-

59

tura popular portuguesa. Nalguns casos, essa ênfase na diversidade é também


acompanhada de uma nova geografia simbólica do país, em que áreas marginalizadas
pela etnografia do Estado Novo passam a receber um estatuto de grande visibilidade. É
o que se passa com o lugar que o Alentejo ocupou na etnomusicologia de Michel
Giacometti e, de uma forma mais geral, no imaginário da esquerda sobre a cultura
popular.
Por fim, o discurso de identidade nacional desta etnografia - sobretudo da mais
radicalizada politicamente - tende a ver o povo como detentor de um segredo ligado à
transformação do país num sentido alternativo ao proposto pelo Estado Novo. Pode-se
nessa medida falar de um «reaportuguesamento à esquerda» do vínculo entre cultura
popular e identidade nacional.
Tal como no plano das imagens relativas à cultura popular, também neste
domínio mais relacionado com os modos de pensar o país e as modalidades de
afirmação da identidade nacional, assistimos a uma guerra cultural entre os diferentes
protagonistas da antropologia portuguesa ao longo do período que se estende entre
1930 e 1970. O principal cponto de discórdia é constituído pela questão da unidade e

37
diversidade do país. À imagem unitária proposta pela etnografia do Estado Novo,
contrapõe-se o acento na diversidade defendido tanto pelo grupo de Jorge Dias como
pelos etnógrafos críticos. Entretanto ao nível da identidade nacional, essa guerra
cultural parece ganhar formas mais atenuadas. O facto deriva do consenso que em
última instância todos os protagonistas partilham relativamente à equação cultura
popular/ identidade nacional. Pode haver diferenças - e diferenças importantes, como
vimos atrás - relativamente aos modos de definição da cultura popular, mas definida de
diferentes maneiras, a cultura popular é sempre o fundamento da identidade nacional.

CONCLUSÃO

De formas diferentes, estes sucessivos momentos do processo de


desenvolvimento histórico da etnografia portuguesa confrontam-nos pois com esse
traço verdadeiramente estrutural da disciplina que é a sua articulação com exercícios de
imaginação etnográfica da nação conduzidos a partir da cultura popular.
Nessa sua fixação na temática da identidade nacional, a etnografia e a
antropologia não estão sós. De facto, como mostraram Eduardo Lourenço (1978) e, mais
recentemente, Rui Ramos (1994), outras disciplinas e modalidades discursivas, da
literatura à pintura, da filosofia - especialmente a chamada filosofia portuguesa - ao
ensaísmo, fizeram de Portugal e da identidade portuguesa o seu tema reiterado de
reflexão ao longo deste últimos 150 anos. Nesse sentido, ao mesmo tempo que - como
foi sugerido no início deste capítulo - a opção da antropologia portuguesa pela
tematização da identidade nacional deve ser interpretada por referência ao quadro
comparativo do desenvolvimento da disciplina antropológica na Europa, deve também
ser pensada no

60

âmbito dessa orientação preferencial da cultura portuguesa para o seu auto-


questionamento. No fundo, ao privilegiarem Portugal como objecto de estudo, ao
concentrarem-se no vínculo entre cultura popular e identidade nacional, os etnólogos
portugueses não fizeram mais do que replicar no interior do seu espaço disciplinar
próprio, uma tendência mais geral da cultura portuguesa.

61

38
3.2 Etnografias contemporâneas

No final deste capítulo deverá:

§ Conhecer a emergência da antropologia contemporânea

O trabalho deste tema assenta na leitura de dois textos:

Texto 3:
Ramos, Francisco Martins e Pires, Ema Cláudia (2004) “5. A Etnografia Portuguesa a partir de
1965 - José Cutileiro”. In Etnografia geral portuguesa. Francisco Martins Ramos. Lisboa :
Universidade Aberta .pp. 103-111.

Filme: Ricos e pobres no Alentejo: https://www.youtube.com/watch?v=T8EXbDfzugU

Com base no texto 3 deverá reconhecer e analisar:

§ A emergência de uma nova prática etnográfica a partir dos anos setenta;


§ Conhecer o trabalho de José Cutileiro, Ricos e Pobres no Alentejo – Uma sociedade rural
portuguesa

Outros recursos, outras leituras, outras escritas:

Sugestões de obras disponíveis na integra ou em recensão na web, que permitem explorar obras
mais recentes, a algumas das quais retomam as obras dos clássicos.

João de Pina Cabral (1989) Filhos de Adão, Filhas de Eva - A Visão do Mundo Camponesa no
Alto Minho. Lisboa: Publicações Dom Quixote
http://pina-cabral.org/PDFs/022_Filhos_de_Adao_Filhas_de_Eva.pdf

Francisco Reimão Queiroga (1997). Recensão do livro Retrato de aldeia com espelho. Ensaio
sobre Rio de Onor, de Joaquim Pais de Brito. In Antropológicas, nº 1 1997:
http://revistas.rcaap.pt/antropologicas/article/view/1011/816

Cordeiro, Graça Índias (2003) Uma certa ideia de cidade: popular, bairrista, pitoresca. In
Sociologia, Revista do Departamento de Sociologia da FLUP.XIII:185-199. Disponível online:
http://hdl.handle.net/10071/5589

39
Texto 3

Francisco Martins Ramos (co-autoria com Ema Cláudia Pires)

A Etnografia Portuguesa a partir de 1965 - José Cutileiro

José Cutileiro nasceu em Évora, em 1937. Seu pai, médico de profissão, foi professor na
Universidade de Cabul, onde viveu com a família durante um ano. Cutileiro frequentou a
Faculdade de Medicina de Lisboa, onde foi finalista, desistindo da profissão médica. Decidiu partir para
Inglaterra, onde se diplomou em 1964 e se doutorou em 1968, em Antropologia Social, na
Universidade de Oxford. Durante os três anos seguintes foi Research Fellow em Estudos
Portugueses no St. Antonys College, sendo posteriormente. Leitor de Antropologia na London
School of Economics and Political Science, da Universidade de Londres.

Realizou investigação na sua região natal (o Alentejo) e escolheu Vila Velha (um pseudónimo)
para aí realizar, em 1963 e 1965, o trabalho de campo conducente àquela que viria a ser urna
das mais emblemáticas etnografias sobre. a sociedade rural transtagana.

Este autor é o antropólogo português mais conhecido e mais citado internacionalmente.


Tal facto deve-se a duas ordens de razões: em primeiro lugar, porque a versão inicial da sua tese
de doutoramento foi publicada cm língua inglesa; em segundo lugar, porque este antropólogo
integrou a chamada corrente mediterranista, orientação que marcou a Antropologia Europeia desde
finais da década de 60 do século passado até aos nossos dias.

Cutileiro viria a abandonar a vida académica, tendo, após Abril de 1974, abraçado a carreira
diplomática, onde tem exercido cargos notórios a nível internacional.

Apesar de a Diplomacia ter ganho um elemento de grande prestigio e valor, também é certo
que a Antropologia perdeu um dos seus representantes mais conceituados, cuja obra é marcante
na Etnografia Portuguesa contemporânea.

Ricos e Pobres no Alentejo — Uma Sociedade Rural Portuguesa é um livro referencial e


insubstituível para a compreensão da sociedade rural alentejana da primeira metade do século
XX, no que diz respeito à hierarquia social resultante da posse da terra, aos mecanismos
políticos do Estado Novo, às relações familiares, aos grupos sociais, ao patrocinato e às
desigualdades sociais. Na sua etnografia, o autor aborda a problemática do "sistema da posse da
terra, baseado numa agricultura latifundiária extensiva e na respectiva estratificação social"
(Ramos 1988: 2). Na realidade, "The major defining characteristics of the villages... was their
highly polarised class structure, arising from the extreme inequality inherent in the structure of land
tenure and the latifundia system" (Clark & CrNeill 1980: 48).

103

Ricos e Pobres no Alentejo constitui a versão portuguesa da obra A Portuguese Rural Society,
publicada em 1971 pela Clarendon Press. e produto da tese de doutoramento em
Antropologia Social defendida naquela universidade inglesa. Ao longo das cinco partes

40
em que estruturou a presente. Obra José Cutileiro estuda, em óptica antropológica, a
comunidade rural de Vila Velha, (pseudónimo de Monsaraz, no distrito de Évora). Ao
analisar o prefácio verifica-se, desde logo, a postura do autor e da escola mediterranista a que.
pertence. Como sustenta o investigador. o "o propósito da antropologia social não é
certificar-se das diferenças entre sociedades mais ou menos exóticas e os países
desenvolvidos do ocidente, onde esta ciência nasceu e donde vêm os seus mais ilustres
praticantes, mas tentar verificar (ou falsificar) hipóteses sobre problemas específicos que vão
constituindo contribuições para uma futura teoria geral da sociedade" (Cutileiro 1977; x),
É. neste contexto que se explana o objectivo geral da presente obra; "Ao estudar
pormenorizadamente a estrutura social de meia dúzia de aldeias com menos de dois mil
habitantes, esperou-se contribuir para um conhecimento mais rigoroso do Alentejo, E em
muitos temas o leitor reconhecerá características que transcendem o Alentejo e
encontram, com generalidade, na sociedade portuguesa contemporânea" (Cutileiro 1977:
xi). Logo na introdução, José Cutileiro começa pol. apresentar Vila Velha ao leitor. De modo
a melhor contextualizar o objecto desta monografia, a comunidade em análise é.
caracterizada geográfica e espacialmente, (ao nível dos tipos de relevo, solos, clima,
ecologia e evolução histórica). No

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âmbito desta caracterização, Cutileiro descreve pormenorizadamente as estruturas sócio-


económicas e a evolução demográfica local, assim como as dinâmicas de interacção entre
a comunidade e o exterior (nomeadamente as estabelecidas com Vila Nova, a sede
concelhia).

Tal caracterização remete o olhar do antropólogo para o papel fulcral da terra no


quotidiano da comunidade. Assim, «Posse da Terra — Estratificação Social», o título da
primeira parte desta obra, abre a leitura para aquela que é uma das questões centrais deste
livro.

"Os habitantes da freguesia mantem-se à custa da terra. Mesmo aqueles que não
dependem directamente da agricultura, tais como lojistas, taberneiros e artífices,
são ainda condicionados pelo ano agrícola: [...] A maioria da população masculina
ocupa-se na agricultura, corno trabalhadores ou seareiros. A maior parte deles não
possui terras, mas cerca de duas dúzias são suficientemente abastados para que não
tenham de trabalhar nas terras de outrém e possam dar trabalho a outros homens
nas suas propriedades. Denominam-se proprietários os homens pertencentes a este
grupo. As herdades são quase todas de pessoas residentes em Vila Nova. Estes
abastados proprietários de herdades recebem o nome de lavradores ou
latifundiários e, conquanto não vivam na freguesia, não são impessoais e absentistas
recebedores de rendas. A distância que os separa da maior parte dos habitantes da
freguesia é, no entanto, tão considerável como a diferença entre as dimensões das
terras" (Cutileiro1977: 8-9).

O autor começa por analisar historicamente o despontar do actual regime de posse da


terra, caracterizando a base agrícola da povoação, para. nos capítulos seguintes, analisar
três vectores fortemente imbricados na inter-relação entre estruturas fundiárias e sociais:
«O Papel do Trigo», «O Valor da Terra» e «A Distribuição da Terra». Tornando como
41
referência o contexto local e trans-local, Cutileiro avalia os mecanismos que. presidiram,
entre o final do século XlX e a década de 1960 do século XX, a uma reificação do papel
do trigo e das culturas cerealíferas. Este cultivo intensivo tem tido consequências ao nível
do valor conferido à terra que, de investimento seguro entra agora em processo de
desvalorização, gerando cepticismo em relação ao futuro da agricultura local.
Adicionalmente, a distribuição e posse da terra "permite ainda traçar a curva de nível da
estratificação social. Distingue ainda os principais grupos populacionais ou, corno dizem
as pessoas da região, as principais classes sociais" (Cutileiro 1977: 53).

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A terra torna-se, assim., quase como que um barómetro para, com eficácia e realismo,
medir a própria sociedade. Esta é a tarefa que o autor se propõe realizar quando analisa
os «Grupos Sociais» e «Crises e Conflitos», capítulos que encerram esta parte. Num tom
discursivo bastante rico, Cutileiro descreve os grupos sociais de Vila Velha, categorizados
em ´Latifundiários', `Proprietários', 'Seareiros' e 'Trabalhadores Rurais':

Esta categorização tomou-se uma referência incontornável para todos os trabalhos


antropológicos realizados não apenas no sul de Portugal, mas também num modelo a
testar em sociedades nortenhas do país, consideradas «igualitárias». Além disso, é
também urna referência obrigatória em diversos estudos realizados em comunidades
rurais que integram a chamada «área mediterrânica».

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Latifundiários. "Constituem o grupo mais reduzido e mais próspero, sobressaindo do resto


da população, sobretudo pelos bens que possuem. Além da terra que têm na freguesia, são
donos de outras terras cuja área, em alguns casos. chega a ser de milhares de hectares.
Empregam nas suas herdades um equipamento muito superior e, mesmo nas circunstâncias
actuais, dão trabalho a um maior número de trabalhadores do que qualquer outro grupo"
(Cutileiro 1977: 57).

Proprietários. "Estes constituem o grupo dos habitantes da freguesia que se mantêm


exclusivamente com os rendimentos das terras que possuem. Totalizavam vinte e seis em
1965. Aos dois proprietários mais prósperos dá-se o nome de lavradores, designação
habitualmente reservada aos latifundiários. São consideráveis as diferenças de rendimento
entre o lavrador mais abastado e o mais modesto dos outros proprietários" (Cutileiro 1977:
63).

Seareiros, "os jornais locais chamavam-lhes muitas vezes a «classe heróica» dos seareiros;
em artigos de fundo descreviam as suas duras condições de trabalho As grandes (e parte das
terras pertencentes aos proprietários) têm sido cultivadas, desde que há memória, num
sistema misto de exploração directa e participação nas colheitas dos cereais semeados pelos
seareiros. [...] De uma maneira geral, os seareiros possuem mais terra do que os
trabalhadores rurais" (Cutileiro 1977: 69-71).

42
107

Para finalizar este capítulo, José Cutileiro direcciona ainda a análise para o universo de
crises e conflitualidades„ manifestas e latentes, na ordem socioeconómica vigente.
Abordando os conflitos entre grupos sociais, desde os historicamente existentes até à
época presente, o autor desmonta alguns dos mecanismos de controlo e regulação dos
mesmos e, em larga medida, contribuí para uma desmontagem da imagem politizada de
«paz nos campos» do sul de Portugal, durante o Estado Novo. Segundo João Leal, a obra
de Cutileiro assume-se como uni "discurso contra-pastoral sobre o Portugal
mcditerrânico" (Leal 2001: 158). Com efeito, segundo este autor, pode "dizer-se que a
percepção contra-pastoral que Culileiro tinha do Portugal mediterrânico se encontrava
estreitamente associada a um discurso politicamente empenhado sobre a identidade
nacional portuguesa" (Leal 2001: 16 I ).

Derivada da caracterização de grupos sociais antes realizada, a segunda parte de Ricos e


Pobres é subordinada ao tema «Família, Parentesco e Vizinhança». Ao longo de vários
capítulos, José Cutileiro caracteriza aquelas instituições sociais. Logo nas páginas
iniciais, analisa-se. o mercado matrimonial de Vila Velha, ao nível das relações
estabelecidas no seio de cada um dos grupes sociais. Após caracterizar O «Namoro», o
autor explora a arquitectura das relações conjugais entre marido e mulher — "dado que
os cônjuges pertencem normalmente ao mesmo grupo socioeconórnico, os seus bens
costumam equiparar-se. Dentro de cada grupo, no entanto, o casamento resulta da livre
escolha exercida pelos interessados" (Cutileiro 1977: 123).

Deambulando pelo universo dicotómico de papéis sociais conferidos ao marido e à mulher


pelos vários grupos sociais, Cutileiro reflecte também sobre as questões da honra e sobre
a apropriação diferencial dos espaços físicos e sociais: "A mulher em casa, o homem na
praça, segundo ° dizer tradicional" (Cutileiro 1977: 140), analisando também o papel das
relações entre. pais e filhos, o papel das crianças no seio familiar e o tipo de relações de
géneros estabelecidas no seio familiar nuclear. Importa também abordar o modo como à
"medida que os filhos crescem, as suas relações com os pais são influenciadas, no caso
dos trabalhadores rurais e seareiros, pelas suas posições relativas face ao trabalho e, no
caso dos latifundiários e proprietários, pelos problemas emergentes da posse e governo da
terra" (Cutileiro 1977: 153). É nesse contexto que ir transmissão das heranças assume
especial relevância na consolidação ou deterioração dos laços de parentesco, em particular
entre irmãos e cunhados. (Globalmente, segundo o autor, não "encontramos na freguesia
um parentesco formal que se revista de direitos e deveres recíprocos e exclusivos. Fora
da família nuclear depressa se desvanecem as obrigações ditadas pelos laços de
parentesco" (Cutileiro 1977: 169). O controle social local e as. relações de vizinhança são
também objecto da última secção desta parte.

Ao longo da terceira parte desta obra, desmonta-se. «A Estrutura Politica» de Vila Velha.
O autor caracteriza os organismos corporativos, a «Casa do Povo»

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43
(na freguesia) e o «Grémio da Lavoura» (na sede concelhia ), integrando-os no cenário
mais vasto do sistema político vigente e, logo, enquanto reflexo do corporativismo
salazarista. Num registo discursivo crítico, descreve igualmente as relações de poder entre
o organismo administrativo local a «Junta de Freguesia», subordinada à «Câmara
Municipal» de Vila Nova, assim como as dinâmicas relacionais entre a função pública e
interesses privados em Vila Velha. Com efeito, "Raramente existe a noção clara do que
distingue a função do funcionário, a pessoa do cargo, interesses individuais do bem geral,
Esta confusão de conceitos é extensiva a todas as camadas da população" (Cutileiro 1977:
23 I ). Parte integrante da estrutura política são também os organismos de regulação da
ordem, de aplicação das leis e de cobrança dos impostos, que Cutileiro aborda nos
capítulos seguintes. Através da caracterização do conjunto destas instituições, que se
"destinavam, segundo a versão oficial, a servir o bem comum" (Cutileiro 1977: 253), o
autor finaliza a caracterização da estrutura política com um capitulo acerca do exercício
do poder e controle políticos, diacronicamente considerados.

«O Patrocinato» é o objecto central da quarta parte de Ricos e Pobres no Alentejo e uma


das instituições mais estruturantes da vida social da comunidade. Através de. seis
capítulos. Cutileiro situa o leitor nos conceitos de patrocinato e parentesco espiritual,
caracterizando as amizades políticas e pessoais, as dinâmicas evolutivas do paternalismo
ao corporativismo, e a relação entre patrocinato e controle social. Cutileiro insere na
categorização de patrocinato um conjunto de relações sociais, que, não obstante a sua
configuração diversa, “resulta de permutas de favores entre indivíduos muitas vezes
ligados por relações de amizade ou por laços de parentesco espiritual" (Cutileiro 1977:
271). Esta teia de relações, por seu lado, atravessa transversalmente a estrutura social
local e os respectivos grupos sociais, numa rede. de trocas de favores em desequilíbrio.

"Na balança de trocas de uma relação de patrocinato, uma das partes, ao ver-se em
dificuldades, dá início a esta relação com o pedido de um favor. Concedido o favor, este tem
deve ser recompensado. Todavia, a compensação que o cliente (protegido) tem para oferecer
é objectivamente menos valiosa do que o benefício que obteve do patrono (protector) ou
graças à sua intercessão. [...]
Implícita na aceitação geral da instituição do patrocinato reside a noção de que a sociedade
se encontra, por qualquer razão básica, deficientemente organizada e de que são os esforços
individuais, muito mais do que os colectivamente organizados, o único meio de tentar
remediar esta situação. Este estado de coisas é bem testemunhado pelo termo cunha, tantas
vezes empregue para definir a insinuação junto de alguém que ocupa uma posição de
influência decisiva [...] a fim de se conseguir determinado resultado favorável" (Cutileiro
1977: 271-272).

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O parentesco espiritual "situa-se entre o padrão formal das relações de parentesco e as


relações de amizade, voluntárias e menos formalizadas, Tal corno era o caso da amizade,
o parentesco espiritual constitui um vínculo temporariamente criado; no entanto, à
semelhança dos laços familiares, reveste-se, em principio, de um carácter sagrado e
irrevogável" (Cutileiro 1977: 283). Configuração diversa assumem, porém, as «Amizades
Políticas», fruto do declínio do sistema de patrocinato político, o qual, de uma postura de
paternalismo, divergiu evolutivamente para urna de corporativismo, sob a influência
assumida do Salazarismo, A imbricada relação entre «Patrocinato e Controle Social»,
objecto do último capitulo desta parte, chama a atenção do leitor para o condicionamento

44
social implícito a esta instituição, em campos diversos (religião, família e política), e com
base no qual o controle de um grupo social é exercido sobre os restantes48.

Na quinta e ultima parte do livro de José Cutileiro - intitulada «A Religião» -, a


comunidade em análise é caracterizada nas suas relações com o sobrenatural e a esfera
religiosa. Como refere o autor, a "paisagem de Vila Velha é mareada pela importância
tradicional da religião- (Cutileiro 1977: 331)- Em particular, Cutileiro desdobra a análise.
ao longo de cinco capítulos interligados: «Os Ritos da Igreja»; «Padres»; «Santos (I)»:
«Velhas e Mau Olhado» e «Santos (II)». Ao realizar uma caracterização destas
instituições, e do seu desenvolvimento processual, o autor assume que os "mecanismos
do patrocinato tornam--se extensivos ao mundo do sobrenatural graças ao
estabelecimento de uma relação com os santos. O culto dos santos faz parte do corpo de
crenças, conceitos e imagens da Igreja Católica Romana que molda a vida religiosa em
Vila Velha" (Cutileiro 1977: 331). É sobretudo no contexto deste patrocinato religioso
que deve ser situado o papel das crenças e práticas religiosas, não obstante um inevitável
carácter limitado dos seus resultados no quotidiano da comunidade.

A finalizar a obra Ricos e Pobres no Alentejo, um breve «Epílogo» encerra algumas


considerações finais sobre o caminho de investigação percorrido neste retrato a 'uma
sociedade rural portuguesa', à sua estrutura social e às dinâmicas de contextos de mudança
que a envolvem. O ritmo desta mudança justifica a inclusão pelo autor de um «Pósfácio
à edição portuguesa», em que reflecte acerca do impacto da revolução de Abril de 1974
sobre a comunidade de Vila Velha e sobre o Alentejo.

Em 1976, a revista The Polital Quarterly apreciava assim a edição inglesa do livro de José
Cutileiro "Neste livro de Antropologia Social - uni dos mais reveladores estudos políticos
escritos durante o período caetanista - descreve-se a teia de relações de patrocinato entre
trabalhadores rurais e latifundiários, em que só havia exploração para um lado e
benefícios para outro.

José Cutileiro realizou o seu trabalho de campo em meados da década de 60 numa zona
rural do distrito de Évora. Aí estudou uma sociedade dominada

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ainda pelo analfabetismo, pela superstição e pela miséria, cujas reivindicações políticas
eram implacavelmente reprimidas. Mas como observa o Autor, «o ódio e a desconfiança
não têm, ao nível das classes, expressão visível e, muito menos, violenta. Contudo, quem
quer que esteja familiarizado com os trabalhadores sabe que estes reprovam vivamente a
actual distribuição da terra... São unanimes em sustentar que pelo menos os grandes
latifundiários deveriam ser sistematicamente expropriados da maior parte das suas
terras».
Publicado originalmente em inglês, este livro continua a ser um trabalho vital para quem
queira compreender os tumultuosos problemas agrários dos últimos três anos e o sistema
económico-social que foi, entretanto, destruído.

48
Numa análise recente, em revisitação de Vila Velha e da problemática do patrocinato, Francisco Martins ramos
(1997) desvenda o modo como, não obstante o conjunto variado de mudanças alguns dos mecanismos
contemporâneos de “regeneração” daquela instituição na politica local se caracterizam ainda por dinâmicas de
reprodução e continuidade em relação à observada por Cutileiro na década de 1970.
45
Esta obra, mareada pela inteligência e sensibilidade do Autor, verá aumentar a sua
reputação com o decorrer do tempo".

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