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41098 Textos de Antropologia Geral 23|24

Lúcio Sousa
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Capa: Lúcio Sousa, foto de emissão RTP de 20 de maio de 2002 com a transmissão da cerimónia de
passagem da autoridade da UNTAET para o Estado Timorense. Na foto: matas Paulo Mota e bei José
Tilman, representantes do Distrito de Bobonaro.

Nota: as fotos utilizadas são pessoais, exceto se indicada outra fonte.

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Indice geral

Apresentação da UC e dos Textos 3

Conteúdos temáticos 7

Objetivos gerais por tema 8

1.O campo e o método da antropologia 9

1.1 A antropologia e a compreensão do mundo contemporâneo 11

1.2 A metodologia de investigação antropológica 33

2.Teorias e práticas antropológicas 47

49
2.1 Teorias clássicas e debates contemporâneos

2.2 Antropologia Aplicada: entre a academia e a prática 83

3.Campos e objetos da antropologia social e cultural 99

3.1 Antropologia e parentesco 101

3.3 Antropologia e poder 135

3.4 Antropologia e economia 151

Bibliografia 167

3
Apresentação da unidade curricular

A antropologia não é uma ciência das sociedades longínquas e exóticas, nem das pequenas
comunidades ou das sociedades simples e fechadas. Interessa-se pelo Ser Humano (άνθρωπος -
anthropos) como objeto de estudo (λόγος, logos), conhecimento, discurso.
A disciplina institucionaliza-se como ciência no século XIX e acompanhou a expansão
colonial, industrial, científica e tecnológica europeia, focalizando-se nas sociedades ditas
“primitivas” ou “longínquas”, para, como numa situação de laboratório, compreender a
organização “complexa” da sua própria sociedade. Após a descolonização, a Antropologia
regressa aos países de onde partira mas permanece também nesses terrenos antropológicos
afirmando, num e noutro lado, as relações e comparações entre as sociedades, e a sua
pertinência e contemporaneidade.
Nesta unidade curricular abordaremos de forma introdutória conceitos fundamentais da
Antropologia Social e Cultural, os seus contextos, a sua dimensão integrativa e alguns dos seus
domínios de estudo. Centrar-nos-emos numa antropologia para a nossa época, antropologia nas
sociedades contemporâneas sem deixarmos de explorar a sua dimensão histórica e os seus
instrumentos metodológicos.

Competências:

No final desta unidade curricular o/a estudante deverá ser capaz de:
§ analisar e interpretar a complexidade da diversidade cultural no mundo atual;
§ contextualizar e constituir conhecimento teórico com base em dados etnográficos;
§ reconhecer e compreender os processos de (re)produção e transformação social nas
interações humanas.
§ identificar e explicitar a dimensão aplicada da antropologia nas sociedades
contemporâneas.

Apresentação dos Textos

Os Textos1 da unidade curricular Antropologia Geral têm como objetivo trabalhar os


conteúdos letivos do programa da unidade curricular Antropologia Geral. Considerando que os
destinatários destes recursos são estudantes em regime de autoaprendizagem em ambiente
colaborativo os seus objetivos prioritários são:

1
© Este é um trabalho em desenvolvimento pelo que as sugestões serão bem-vindas [lucio.sousa@uab.pt]. O uso
deste recurso é limitado ao trabalho individual e colaborativo no âmbito estrito da unidade curricular 41098
Antropologia Geral e não pode ser objeto de divulgação/disponibilização exterior à plataforma moodle.

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a) facultar ao estudante um conjunto de elementos de aprendizagem, permitindo a análise
e esquematização de conteúdos, conceitos e problemáticas selecionados;
b) proporcionar elementos suplementares que permitam a exploração dos conteúdos
letivos, valorizando deste modo a formação em curso.
c) facultar elementos para trabalho colaborativo na sala de aula virtual.

Organização dos Textos

Os Textos estruturam-se da seguinte forma:


1. Apresentação do programa da disciplina Antropologia Geral sendo expostos os
pressupostos e objetivos gerais dos conteúdos temáticos.
2. Quatro capítulos relativos aos Temas 1- 3 do programa com o propósito de:
• Clarificar os objetivos de aprendizagem;
• Proporcionar informação relativa a conceitos, noções e teorias;
• Facultar elementos de exploração dos conteúdos trabalhados.
3. Ao longo dos Textos são propostas leituras e atividades de pesquisa visando facultar ao
estudante elementos de consolidação e desenvolvimento da aprendizagem.
4. São efetuadas sugestões bibliográficas, de pesquisa online, de caráter complementar,
em língua portuguesa, espanhola, inglesa e francesa.

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Conteúdos temáticos

1. O campo e o método da antropologia

1.1. A antropologia e a compreensão do mundo contemporâneo

1.2 A metodologia de investigação antropológica

2. Teorias e práticas antropológicas

2.1 Teorias clássicas e debates contemporâneos

2.2 Antropologia Aplicada: entre a academia e a prática

3. Campos e objetos da antropologia social e cultural

3.1 Antropologia e parentesco

3.2 Antropologia e poder

3.3 Antropologia e economia

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Objetivos gerais por tema

No final do processo de aprendizagem de cada unidade o/a estudante deverá estar apto a
compreender, analisar e explicar:

Conteúdos Conceitos Objetivos gerais


• alteridade • compreender a natureza da
• etnologia antropologia no contexto das ciências
• etnografia sociais
• cultura / • entender as diferentes aceções do termo
Tema 1: O campo e sociedade • analisar os vários campos de estudo
o método da • terreno • compreender a especificidade do
antropologia • observação processo de investigação em
participante antropologia;
• identificar os seus métodos e técnicas
de investigação

• evolucionismo • analisar as principais teorias e escolas


• difusionismo em antropologia;
• funcionalismo • reconhecer o papel de alguns
• estruturalismo antropólogos no desenvolvimento;
Tema 2: Teorias e
• pós- • compreender a dimensão aplicada da
práticas
modernismo antropologia;
antropológicas
• antropologia • analisar as funções e papeis
aplicada desempenhados

• analisar através do ciclo da vida as


• ciclo de vida relações com o parentesco
• casamento e • compreender o papel do casamento e
aliança aliança
• descendência e • entender as formas de descendência e
filiação de filiação
• padrões de • analisar organização política na
residência perspetiva antropológica;
• compreender a relação entre
Tema 3: Campos e
• poder organização social e política em
objetos da
• controlo social determinados grupos;
antropologia social
• organização • analisar o papel do poder as diferentes
e cultural
política formas de controlo social.

• Economia • a emergência da antropologia


• Dádiva económica;
• Reciprocidade • as principais orientações teóricas;
• a produção e distribuição de bens na
perspetiva antropológica;
• o papel dos mercados sociais, a dádiva e
a reciprocidade

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Tema 1: O campo e o método da antropologia

© LSousa, 2006. Conversar a brincar2, trabalho de campo e


parceiros locais.

Pressupostos do tema

O tema pretende proporcionar uma abordagem introdutória sobre a natureza e objetivos da


antropologia, assim como os seus diferentes campos de trabalho. Existindo, como veremos, uma
dimensão mais abrangente do conceito de Antropologia, esta consubstancia-se em áreas mais
delimitadas que iremos identificar e explicar de forma sucinta.

De seguida, analisam-se os métodos e técnicas de investigação, uns clássicos e outros mais


contemporâneos, através dos quais a antropologia, teórica e aplicada, desenvolve o seu trabalho de
investigação com o objetivo de obter os seus dados e proceder às respetivas análises.

Objetivos gerais:

No final deste tema deverá compreender e explicar:

§ compreender a natureza da antropologia no contexto das ciências sociais


§ entender as diferentes aceções do termo
§ analisar os vários campos de estudo
§ compreender a especificidade do processo de investigação em antropologia;
§ identificar os seus métodos e técnicas de investigação

2
Sousa (2010): durante o meu trabalho de campo em Tapo, uma pequena aldeia da região de Bobonaro em
Timor-Leste, a expressão “conversar a brincar” era usada pelos meus interlocutores para se referirem a uma
conversa sem compromisso, sem desvendar aspetos sensíveis do saber esotérico, sem revelar os segredos. Por
vezes este era um caminho, um prelúdio para uma entrevista formal, outras vezes era só isso mesmo, conversar e
conviver.

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Tema 1.1 A antropologia e a compreensão do mundo contemporâneo

Introdução

O que é a antropologia, para que serve, e qual o seu lugar nas ciências sociais? Neste capítulo
introdutório iremos examinar estas questões, procurando compreender o que é a antropologia, quem
nela participa e está envolvido, e as suas especificidades e diversidades.
Falar de antropologia no sentido geral implica compreender que o termo envolve um
conjunto de interesses e de práticas variados, mas que se integram enquanto temas de estudo. Numa
perspetiva ampla a antropologia desponta como o estudo da humanidade, das sociedades humanas e
das suas culturas. Apresentado desta forma este é um tema vasto, demasiado abrangente, para
poder ser abarcado por uma só pessoa.
Vamos analisar essa dimensão examinando o texto de Mércio Pereira Gomes sobre a
abrangência da antropologia:

Antropologia é uma palavra iluminante que chama a atenção pelos dois substantivos que a
compõem, ambos de origem grega: anthropos =homem; logos = estudo, e também “razão”,
“lógica”. “Estudo do homem” ou “lógica do homem” são duas possíveis definições distintas,
porém convergentes, daquilo que se entende por Antropologia. No primeiro caso, a
Antropologia faz parte do campo das ciências – ciência humana – tal como a Sociologia ou a
Economia; no segundo caso, ela está relacionada a temas que estão no campo da Filosofia, da
Lógica, da Metafísica e da Hermenêutica, como se fora uma coadjuvante mais sensitiva.

Apesar de sua etimologia, não foram os geniais gregos, criadores da filosofia, que
inventaram a Antropologia. Eles se consideravam tão superiores aos povos e nações vizinhos,
seus contemporâneos, a quem chamavam de “bárbaros”, que mal tinham olhos para os ver e
os apreciar. Para surgir a Antropologia – cuja característica mais essencial é mirar o Outro
como um possível igual a si mesmo – seria preciso um tempo de dúvidas e ao mesmo tempo de
abertura ao reconhecimento do valor próprio de outras culturas. Tal tempo só surgiria séculos
depois, quando a Europa, em vias de perder sua velha identidade medieval, ainda incerta sobre
o que viria a ser, duvidou de si mesma e pôde assim olhar e conceber outros povos, ao menos
teoricamente, como variedades da humanidade, cada qual com seus próprios valores e
significados. O pensar antropológico, o pensar sobre o aparente paradoxo de o homem ser um
só, como ser-espécie da natureza, e ao mesmo tempo ser múltiplo em suas expressões
coletivas, a cultura; o pensar sobre o diferente ser o mesmo; sobre as potencialidades reais e
recônditas de cada cultura – é fruto desse momento criativo do Iluminismo. Assim, no seu
primórdio iluminista, a Antropologia se situa no campo da Filosofia, da especulação sobre o
homem e suas possibilidades de ser e de agir. É um método de conceber o homem em sua
variedade cultural e reconhecer nessa variedade faces diferentes de um mesmo ser. Para falar
em termos filosóficos, a Antropologia é um modo de pensar a variedade do homem, outras
culturas, o Outro, num mesmo patamar em que se coloca a cultura de onde surge esse pensar,
a cultura européia, isto é, o Mesmo. Podemos, brincando com as palavras, dizer que, para a
Antropologia, o Mesmo e o Outro são o Mesmo; ou, o Outro e o Mesmo são o Outro.
Para se obter esse pensar é preciso ter-se ou criar-se a capacidade de sair ou tomar distância
de sua própria cultura, dos valores por ela cultivados, para daí penetrar e entender outras
culturas pelos valores dessas outras culturas, não de sua própria. Tal método de pensar é

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condição sine qua non para existir o pensamento antropológico; mas é um ideal a ser
alcançado, está em permanente construção, porquanto ele induz o homem a vivenciar uma
ética difícil de ser realizada plenamente. Como, diante das evidências gritantes das diferenças
e das desigualdades entre culturas, entre povos, podemos e devemos ver tais diferenças num
plano de igualdade e respeito? Em suma, a Antropologia nasceu como um modo
revolucionário e radical do homem pensar a si mesmo, que empurra o homem ao esforço de
superar seus preconceitos, sua própria cultura, para poder entender e vivenciar a cultura do
outro, ou seja, qualquer cultura.

Portanto, a Antropologia nasceu dentro do campo da Filosofia, como se fosse uma Filosofia
da cultura. Mais tarde, com a chegada retumbante da teoria da evolução, que integrava todos
os seres vivos numa escalada de transformações ao longo do tempo, motivada por um
processo de luta incessante pela sobrevivência, a Antropologia passou a ser pensada como
uma ciência que iria contribuir para enquadrar o homem e suas culturas num plano contínuo,
ou ao menos paralelo ao plano biológico. Desde então, o pensar antropológico tem se
desenvolvido tanto como ciência quanto como pensar filosófico; tanto como teoria quanto
como especulação; tanto como explicação quanto como interpretação. Antropólogos, os
praticantes da Antropologia, têm se pautado ora pelos cânones da ciência, adaptando-os para
a compreensão do ser humano e de suas culturas, ora pelas modalidades da filosofia, tentando
retirar desta os conceitos mais gerais da essencialidade humana e, ao mesmo tempo, tentando
injetar na filosofia os conceitos obtidos pela observação e pela prática nos trabalhos empíricos
que dão sustentação ao pensar antropológico.
Vejamos como essas duas perspectivas da Antropologia se desenvolvem, definem seu
objeto e se complementam na concepção desse objeto.

ANTROPOLOGIA COMO CIÊNCIA

Como “ciência do homem”, a Antropologia toma o homem, isto é, o ser humano, no sentido
integral de homem e mulher, de coletividade, mas também de espécie da natureza e de ser da
cultura e da razão, como um objeto de estudo. Isso quer dizer que o homem pode ser
objetivado, esquadrinhado, medido, calculado, dimensionado no tempo e no espaço, tal qual
outros objetos científicos, como o cosmo (cosmologia ou astronomia), a terra (geologia) e os
seres vivos (biologia). Grande parte dos antropólogos, no Brasil e mundo afora, trabalha no
entendimento de que são cientistas, definindo seu objeto de muitas maneiras, por muitos
ângulos, sempre no empenho de contribuir para ampliar, renovar em alguns aspectos,
consolidar em outros, o conhecimento sobre o homem. É nesse sentido que a Antropologia se
coloca como uma ciência lado a lado com a Sociologia, a Politicologia, a Economia, a
Psicologia e suas respectivas especialidades e subdisciplinas – todas agrupadas pelo termo
“ciências humanas” ou “ciências sociais”. As ciências humanas têm o ser humano como seu
objeto de estudo, mas cada qual o faz privilegiando ora um aspecto, ora uma parte, ora uma
dimensão.
[…]
Num sentido muito ambicioso, a Antropologia é a ciência humana que presume abordar um
pouco de tudo que cada outra ciência humana aprecia. Primeiramente, ela busca tratar da
questão básica da natureza do homem, de sua condição fundamental de ser uma espécie
biológica, localizada na ordem dos primatas, na subordem dos antropóides, na família
hominóidea, no gênero dos hominídeos, como a espécie Homo sapiens. Em segundo lugar,
essa ciência visa ao homem como ser de cultura, um modo de ser para além dos
condicionamentos da natureza, para o que se subentende uma inteligência capaz de encarar o
mundo através de convenções simbólicas, as quais são sistematizadas e transmitidas de
geração a geração não pelo instinto ou pela carga genética, mas pela linguagem, que é a
quintessência da comunicação humana. Num sentido metafísico, cultura é uma espécie de
“segunda natureza” do homem, uma mediação, uma qualidade de filtro ou lente que permite
ao homem formar noções sobre si mesmo e sobre o mundo e, ao mesmo tempo, agir. Num
sentido empírico, cultura é tudo que o homem faz parcialmente consciente e parcialmente
inconsciente, além daquilo que sua natureza biológica o permite fazer. Fazer significa não
somente produzir os meios de sua sobrevivência (Economia), mas também pensar (Filosofia),
desejar (Psicologia) e relacionar-se uns com os outros (Sociologia e Política). Adicione-se a

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esses atributos a idéia de que o homem, embora pense e faça as coisas como ser individual,
tem seu pensamento e seu comportamento condicionados por sua existência numa
coletividade, a sociedade. Tal explicação pode parecer autoevidente, mas serve para identificar
um dos temas mais importantes da sociologia, que é entender a relação do indivíduo com a
sociedade.
Dando conta dessa divisão de tarefas, entre entender o homem como ser da natureza e ser
da cultura, a Antropologia como ciência se apresenta nos currículos das universidades mundo
afora em quatro subdisciplinas: Antropologia Física ou Biológica; Arqueologia; Lingüística; e
Antropologia Cultural ou Social. A questão da posição do homem na natureza, que
compreende as temáticas de evolução, distribuição e adaptação pelos quatro cantos da Terra,
as características e os potenciais biológicos são estudados no âmbito da Antropologia
Biológica. A Arqueologia subsidia com dados essa questão, mas vai adiante ao auxiliar a
Antropologia Cultural na formulação dos processos das transformações da cultura ao longo do
tempo. Trataremos aqui também da Lingüística, como uma das subdisciplinas que subsidia o
conhecimento do homem como ser da cultura. Entretanto, deixaremos para tratar da
Antropologia Cultural por seu próprio mérito a partir do capítulo “Cultura e seus significados”,
reconhecendo que é essa subdisciplina que representa o grande esforço do pensamento
antropológico da atualidade. (Gomes. 2008, 11- 16)

Como podemos ver a diversidade da antropologia, no seu sentido lato, encontra-se


relacionada com a sua história e os interesses associados aos tempos em que se desenvolveu.
Todavia, nesta unidade curricular, iremos debruçar-nos especificamente sobre a Antropologia social e
cultural.

1.1.1 O que é a antropologia hoje e quem participa nela?

A especificidade do estudo antropológico e do seu objeto resulta do facto de este ser


abordado através de classificações que resultam de um ato interpretativo. Ao contrário de outras
ciências cujos objetos são tangíveis, a cultura e a sociedade são construções culturais, de fronteiras
porosas, em constante reformulação no tempo e no espaço. Nos seus primórdios, e limitando-nos
aqui ao século XIX, altura em que adquire um estatuto académico, a antropologia concentra-se
sobretudo nos povos distantes, ditos “primitivos”, “espólios” de uma humanidade muito diferente da
Ocidental, de onde eram originários os antropólogos. Eram também, na sua maioria, povos
submetidos ao poder colonial e a antropologia foi um dos instrumentos das políticas científicas
coloniais que visavam conhecer para dominar.
Após a II Grande Guerra, com a independência da maioria dos países colonizados, a
antropologia parece ter perdido o seu espaço de trabalho tradicional. Esta “crise” levou a que a
antropologia se recentrasse nas sociedades de que era originária (até então um reduto da etnologia e
do folclore), estudando quer a sua diversidade étnica quanto social, em contexto rural e,
progressivamente, em contexto urbano, considerando as culturas e subculturas que lhe são
específicas.
O que tem a antropologia de especial? O que estuda ou o como o faz? A resposta dada por
Tim Ingold é pertinente: “a antropologia não é o mero estudo das pessoas, mas o estudo com as pessoas
“(Ingold in Barnard, 2006, ix-xii). De facto, adquirimos o conhecimento do que investigamos da

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mesma forma que as pessoas que estudamos, participando no processo e vivência da sua experiência
de vida. Aprendemos assim a aprender, tal como se aprende e vive a cultura, enquanto processos
dinâmicos. Este facto obriga-nos a reconhecer que não é possível dar a conhecer, de uma forma
absoluta, tudo o que existe em antropologia através de um manual ou de uma unidade curricular.
A antropologia não é um conjunto de dados que se limite a uma retransmissão de saber, a
vivência é parte essencial do processo. Como refere Tim Ingold, a antropologia, será uma das poucas
ciências em que este processo de criação de ciência se desenvolve de forma partilhada. De facto,
sendo docente e estudante parte de uma sociedade ou cultura, ambos partilham similaridades e
diferenças, podendo dar contributos para a interpretação.
Então, porquê estudar a antropologia? Seguindo Barnard (2006, 3-4) poderemos dizer que esta
nos permite:

1. Adquirir uma compreensão da sociedade;


2. Conhecer melhor as sociedades do terceiro mundo3, obtendo assim uma mais-valia em
estudos relativos o desenvolvimento social;
3. Aperfeiçoar competências de raciocínio e de debate;
4. Como suplemento de outras áreas como a arqueologia, psicologia, sociologia, etc.;
5. Algo completamente diferente!

O estudo da antropologia permite-nos abordar a dimensão da alteridade*. O Outro foi, e é,


ainda, dada a imaginação, e plasticidade da cultura*, a referência da antropologia. No cerne da
antropologia está esta necessidade ou curiosidade em compreender o Outro, facto que não faz
somente com que possamos adquirir dados sobre este, mas também refletir sobre o Nós.
Esta dimensão reflexiva da antropologia, descurada por vezes, é essencial na possibilidade de um
diálogo intercultural. Esta relação entre o Outro e o Nós desenvolve-se numa dicotomia: diferença –
semelhanças. O mundo é classificado de diferentes formas de acordo com diferentes culturas.
A aprendizagem da língua e da cultura (enculturação*) é um processo comum a todas as culturas
e sociedades. Todavia, as categorias dadas às diferentes práticas e conceções podem variar. Por
exemplo as formas de cumprimento são variadas em diversas sociedades, mas todas manifestam
uma forma de estabelecer uma relação. Às formas comuns de práticas culturais são designadas de
universais de cultura, modos de pensar e de comportamento que são idênticos.
Retomando a frase de Ingold, e tentando agora discernir quem participa no trabalho
antropológico, somos tentados a dizer que a antropologia é o que os antropólogos/antropólogas
fazem… trabalham no “campo”, comparam culturas/sociedades, procuram compreender as suas
práticas de uma forma predominantemente indutiva, interpretativa, ao contrário da postura inicial

3
O conceito de “terceiro mundo” não é consensual e tem uma história própria, dividindo a humanidade
numa escala de desenvolvimento. Outros conceitos são “países subdesenvolvidos” e, ou, “países em vias
de desenvolvimento”, que mantém uma difícil dicotomia “desenvolvidos” - subdesenvolvidos/em vias de
desenvolvimento.

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dos evolucionistas do século XIX, eminentemente dedutiva, extrapolando da teoria e conformando os
factos a esta.
A antropologia tem também uma dimensão aplicada na qual os seus conhecimentos, teóricos e
metodológicos, são empregues por antropólogos na resolução de questões práticas fora do contexto
académico.
Esta divisão entre pesquisa fundamental, predominantemente académica, face à pesquisa
aplicada, predominantemente profissional, tende, cada vez mais, a esbater-se, como veremos
quando estudarmos a antropologia aplicada.

1.1.2 Antropologia geral e as suas especificidades

A noção de antropologia geral abarca um conjunto de áreas que exigem um esclarecimento


prévio. Como analisaremos no tema 2, em que iremos rever um pouco da história das teorias em
antropologia, a emergência da antropologia como ciência ocorre em meados do século XIX no
contexto específico da sociedade europeia e norte-americana. Os primeiros antropólogos dedicavam-
se um pouco a todos os temas trabalhados no âmbito da antropologia numa perspetiva denominada
evolucionista.
Todavia, a institucionalização da disciplina na academia vai promover os seus primeiros
profissionais com experiência de terreno e com preocupações em compreender as sociedades
contemporâneas e as suas interações, mais do que especular sobre a forma como estas se tinham
desenvolvido. Inicia-se assim uma especialização que assume duas facetas: especializações regionais,
ou de área, e as especializações teóricas. No primeiro caso temos antropólogos que se especializam
numa determinada região do globo ou grupos específicos: ex.: África, Sudeste asiático, bosquímanos
ou ciganos. No segundo caso, e conforme os ramos de estudo (que iremos analisar de seguida), a
especialização dedica-se a um tema particular, ou a uma abordagem específica, por exemplo:
etnicidade, relações de género, parentesco, antropologia económica, antropologia aplicada, etc.
A antropologia, na sua dimensão mais geral, engloba um conjunto de campos de estudo que
podem, ou não, ser desenvolvidos em comum de acordo com interesses temáticos e tradições
nacionais. A abordagem de caráter integrado mais conhecida é a que prevalece nos EUA, onde a
noção de antropologia, a nível de departamento académico, incorpora, em grande parte por
influência de Franz Boas, quatro campos de estudo: a arqueologia, a linguística, a antropologia física e
a antropologia cultural. A antropologia cultural é a denominação mais comum na América do Norte,
embora se observe atualmente designações aglutinadoras, como antropologia sociocultural4,
enquanto que a antropologia social, depurada da arqueologia, linguística e antropologia física, é a
designação mais comum no Reino Unido. Todavia, apesar desta diversidade de campos de estudo há

4
Exemplo: https://anthropology.columbia.edu/content/courses-fall-2021

15
uma inter-relação entre estas áreas, de caráter integrador e interdisciplinar, como podemos analisar
no excerto de um texto de Custódio Gonçalves (1997):

Destes campos de investigação, parece-nos ser de destacar cinco áreas principais da


antropologia estreitamente inter-relacionadas, para as quais o antropólogo deve estar
sensibilizado, embora se especialize profissionalmente numa delas.

A primeira destas áreas é a antropologia biológica, que estuda as variações dos caracteres
biológicos do homem no espaço e no tempo, interrogando-se sobre as relações do
património genético com o meio geográfico, ecológico, social e cultural e analisando as
particularidades morfológicas e fisiológicas ligadas ao meio ambiente, assim como a
evolução destas particularidades. A antropologia biológica interessa-se, sobretudo a partir da
segunda metade deste século, pela genética das populações quanto à interacção constante
da biologia e da cultura, do património genético e da cultura, do inato e do adquirido.
Compete-lhe, mais especificamente, ter em consideração os factores culturais que
influenciam o crescimento e a maturação do indivíduo, o que é que a cultura deve ao
património genético e o que é que este património que se transforma deve à cultura. Esta
antropologia biológica distingue-se da antropologia física, que consiste no estudo
comparativo quer da morfologia externa, descritiva e métrica, quer da morfologia histológica
e embriológica do homem. Distingue-se, igualmente, da antropologia fisiológica ou
seroantropologia, que se dedica aos estudos comparativos de grupos sanguíneos. A
antropologia física, assim compreendida, pertence, essencialmente, à área das ciências da
natureza. Distingue-se, ainda, da antropogénese que se ocupa do estudo dos tipos raciais
fósseis (paleontologia humana) e dos tipos raciais actuais (antropografia), retraçando os
processos de formação do homem ou de hominização. A antropologia biológica parece,
assim, assumir um papel de relevo nas relações entre investigações em ciências biológicas,
ciências da natureza e ciências humanas.

A segunda área é a da antropologia pré-histórica, que estuda o homem através dos


vestígios materiais e de todos os traços da sua actividade passada. 0 seu projecto, ligado à
arqueologia, visa reconstruir as sociedades desaparecidas, quer nas suas técnicas e
organizações sociais, quer nas suas produções culturais e artísticas. Assim como o
historiógrafo trabalha a partir do acesso directo aos textos, o antropólogo social beneficia de
testemunhos vivos, também o antropólogo da pré-história e o arqueólogo efectuam um
trabalho de campo, recolhendo pessoalmente os objectos no solo.

A terceira área é constituída pela antropologia linguística. A língua faz parte integrante do
património cultural de uma sociedade. Ela permite compreender como os homens pensam o
que vivem e o que experimentam, ou seja, as suas categorias psicoafectivas e psico-
cognitivas, o que constituí o campo específico da etnolinguística; como exprimem o universo
e o social através do estudo da literatura escrita e da tradição oral; e enfim, como
interpretam o seu saber e o seu agir, incluindo as técnicas modernas de comunicação de
massa.
A estas três áreas de investigação, consideradas, juntamente com a antropologia social e
cultural, como vectores constitutivos do campo global da antropologia, há que acrescentar a
dimensão da antropologia psicológica, não enquanto estudo do homem «moral» nas suas
invariantes e variações transculturais e transhistóricas, que relevam quer de uma orientação
genética e histórica, quer de uma perspectiva estática e descritiva, mais do domínio estrito
da psicologia e da psicanálise, mas enquanto observação e estudo dos comportamentos
conscientes e inconscientes dos seres humanos particulares, sem os quais não é possível a
análise do homem na sua totalidade e diversidade.

Finalmente, a última área é constituída pelo domínio específico da antropologia social e


cultural, designada, ao longo deste trabalho, pelo termo antropologia, sem outra precisão ou
especificação. O seu objecto específico é a análise dos modos de produção e de circulação
dos bens económicos, das técnicas materiais e culturais, da organização política, social e

16
jurídica, dos sistemas de conhecimento, das representações simbólicas e religiosas, da
língua, dos comportamentos e das criações artísticas de uma sociedade. A antropologia não
consiste só em descrever um inventário destes domínios, mas em analisar e explicar as
interrelações que os ligam, de modo a evidenciar a especificidade de uma sociedade. É,
justamente, esta perspectiva de totalidade, numa abordagem integrativa e interdisciplinar,
que a diferencia de outras perspectivas e abordagens sectoriais.

Perspectiva integradora e interdisciplinar In Gonçalves, Custódio. 1997. Questões de


Antropologia Social e Cultural. Edições Afrontamento. pp. 17-19

No contexto das ciências sociais a antropologia, e em particular a antropologia social e


cultural, sobre a qual nos iremos debruçar, tem, evidentemente, afinidades com as várias outras
disciplinas. Vamos de seguida listar algumas, seguindo Barnard (2006, 8-9):

1. Sociologia e antropologia social: ambas estão interessadas no estudo da sociedade. A


principal diferença decorre do facto da antropologia social enfatizar as diferenças
culturais, tendo assim subjacente uma visão mais comparativa e uma perspetiva
intercultural.
2. A antropologia social tem uma afinidade com a psicologia por partilhar, entre outros
aspetos, um interesse no estudo da relação entre a cultura e a personalidade (veremos
este aspeto mais à frente, quando falarmos do configuracionismo*).
3. Com a ciência política a antropologia social comunga o interesse pelo estudo das
relações de poder (objeto de estudo no tema 3.2).
4. A relevância da economia nas sociedades estudadas pelos antropólogos levou ao
desenvolvimento de uma área específica, a antropologia económica.
5. A relação entre a geografia e a antropologia social assenta no interesse semelhante
pelos padrões de fixação humana e os contatos culturais. Neste contexto, a ecologia
cultural é por vezes considerada como uma parte da antropologia.
6. Com a educação, essencialmente numa abordagem multicultural, e estudos
comparativos de sistemas educacionais.
7. Negligenciada por algumas escolas, como o funcionalismo* (que estudaremos no tema
2.1), a história adquiriu, cada vez mais um papel a antropologia, em particular a história
oral. A diferença essencial reside no facto de a história ter uma abordagem
eminentemente diacrónica enquanto a antropologia social tem sobretudo uma
perspetiva sincrónica.
8. A arte é igualmente relevante devido aos seus aspetos sociais5.

5
Exemplo: Silva, Kelly e Sousa, Lúcio (2015) Art, agency and power effects in East Timor: provocations, Cadernos
de Arte e Antropologia, Vol. 4, No 1 | 2015. URL: http://journals.openedition.org/cadernosaa/829 ; DOI:
https://doi.org/10.4000/cadernosaa.829 .

17
1.1.3 Antropologia, etnologia e etnografia

Antropologia | etnologia | etnografia: como refere Colleyn (2008) esta confusão de termos
resulta das várias designações da disciplina que podem ser entendidas de várias formas:
correspondem, como veremos, a diferentes etapas do processo de estudo ou são áreas estanques,
com diferentes tradições nacionais. Um pouco de tudo isto... Nos finais do século XIX e inícios do
século XX o estudo dos usos e costumes dos povos “primitivos” era efetuado pela etnografia. À
etnologia correspondia a compilação desses dados etnográficos. Nesta altura o conceito de
antropologia estava essencialmente associado às dimensões somáticas e biológicas da humanidade.
Ainda hoje, o termo antropologia compreende nos EUA ao estudo da evolução biológica e cultural da
humanidade. A designação antropologia cultural desenvolve-se como uma resenha comparativa dos
elementos facultados pela etnologia. Por sua vez, na Inglaterra, o termo que ganhou proeminência foi
o de antropologia social, uma vez que, como veremos, o seu estudo privilegiado é o dos factos sociais
e instituições.
Em França o termo etnologia predomina no sentido em que o atribuímos à antropologia
social e cultural. O conceito antropologia, compreendida como o estudo dos seres humanos em todas
as suas dimensões, foi introduzido por Claude Lévi-Strauss nos anos 50.
Outra perspetiva da etnografia, etnologia e antropologia reside na sua interpretação como
etapas da investigação antropológica. Como refere Lévi-Strauss (1996) a etnografia corresponde à
fase de investigação no terreno, a etnologia a uma primeira fase de comparação e síntese dos dados
num âmbito regional e a antropologia, social ou cultural, a uma última fase de síntese global.

1.1.4 Cultura e sociedade: conceitos chave

O conceito de cultura e de sociedade são duas pedras de toque na teoria antropológica,


entendidas como as duas fases de uma mesma moeda. O conceito de cultura disputa com o conceito
de sociedade a primazia, sendo por vezes considerados sinónimos, e noutras circunstâncias distintos.
O exemplo da relação entre ambas dado por Lévi-Strauss é interessante:
Num colóquio em Chicago no fim dos anos quarenta, Claude Lévi-Strauss intervindo
na discussão sobre o assunto resumiu o problema de forma sugestiva: comparou a questão
social e cultural a uma folha de papel químico. Ou seja, o verso da folha serve para escrever
enquanto o reverso destina-se a reproduzir o que foi escrito no verso. Os dois lados são
inseparáveis, se quisermos conservar a condição de papel químico. Segundo Lévi-Strauss,
acontece o mesmo com o social e o cultural. São dimensões inseparáveis da actividade
humana. (Santos, 2002, 55).

Todavia, o termo “cultura” apresenta outro dilema pois a sua utilização não é exclusiva da
disciplina, sendo muito associado ao senso comum. Alguns autores, sobretudo de tradição

18
funcionalista, não atribuíram qualquer valor ao conceito de cultura, tradicionalmente associado ao
debate na escola francesa e americana, e valorizando sobretudo o conceito de sociedade. Radcliffe-
Brown é um bom exemplo pois refutava qualquer valor ao termo, designando a cultura como uma
“abstracção vaga” (Barnard e Spencer, 2004, 140).
6
Entender o conceito na sua aceção antropológica é assim fundamental. Recorre-se com
frequência a metáforas para explicar o que é a cultura e a sua densidade. Uma das mais interessantes
a este respeito é a da cultura como um iceberg! A ideia é a de que, tal como um iceberg, aquilo que
vemos da cultura é somente a sua superfície, sendo por vezes difícil imaginar e conceber o que se
oculta por abaixo da linha de água.

Fonte: Indiana Department of Education, Language Minority and Migrant Programs,


www.doe.state.in.us/lmmp

A ideia de cultura antecede o surgimento da antropologia como ciência. No entanto as ideias


preexistentes não deixaram de marcar a conceção na perspetiva antropológica. Os antecedentes
históricos da cultura são analisados por Laraia:

No final do século XVIII e no princípio do seguinte, o termo germânico Kultur era utilizado para
simbolizar todos os aspectos espirituais de uma comunidade, enquanto a palavra francesa
Civilization referia-se principalmente às realizações materiais de um povo. Ambos os termos
foram sintetizados por Edward Tylor (1832-1917) no vocábulo inglês Culture, que "tomado em
seu amplo sentido etnográfico é este todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte,

6
Texto base usado neste tema: Sousa, Lúcio. 2009. Antropologia cultural. Caderno de Apoio. Lisboa: Universidade
Aberta. ISBN: 978-972-674-551-8

19
moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como
membro de uma sociedade" . Com esta definição Tylor abrangia em uma só palavra todas as
possibilidades de realização humana, além de marcar fortemente o caráter de aprendizado da
cultura em oposição à idéia de aquisição inata, transmitida por mecanismos biológicos. (Laraia,
1986, 25)

Com uma forte oposição à visão do racismo e etnocentrismo evolucionista, a ideia de cultura
em Boas assenta em três pontos fundamentais: a cultura é uma alternativa explícita à noção de raça
(características físicas) tanto na classificação como na explicação das diferenças humanas; a cultura
tem origem em histórias contingentes resultantes de elementos originários de tempos e lugares
diferentes; apesar desta origem histórica contingente os elementos da cultura são reunidos de acordo
com o “génio de um povo”. (Barnard e Spencer, 2004, 138).
Kroeber e Kluckhohn (1952) coligiram já nos anos cinquenta do século XX mais de uma centena
de conceitos de cultura, o que manifesta a ausência de um consenso aparente.

Mais de um século transcorrido desde a definição de Tylor, era de se esperar que existisse hoje
um razoável acordo entre os antropólogos a respeito do conceito. Tal expectativa seria
coerente com o otimismo de Kroeber que, em 1950, escreveu que "a maior realização da
Antropologia na primeira metade do século XX foi a ampliação e a clarificação do conceito de
cultura" ("Anthropology", in Scientific American, 183). Mas, na verdade, as centenas de
definições formuladas após Tylor serviram mais para estabelecer uma confusão do que ampliar
os limites do conceito. Tanto é que, em 1973, Geertz escreveu que o tema mais importante da
moderna teoria antropológica era o de "diminuir a amplitude do conceito e transformá-lo num
instrumento mais especializado e mais poderoso teoricamente". Em outras palavras, o
universo conceitual tinha atingido tal dimensão que somente com uma contração poderia ser
novamente colocado dentro de uma perspectiva antropológica.
(…) Kroeber acabou de romper todos os laços entre o cultural e o biológico, postulando a
supremacia do primeiro em detrimento do segundo em seu artigo, hoje clássico, "O
Superorgânico" (in American Anthropologist, vol.XIX, n° 2, 1917). Completava-se, então, um
processo iniciado por Lineu, que consistiu inicialmente em derrubar o homem de seu pedestal
sobrenatural e colocá-lo dentro da ordem da natureza. O segundo passo deste processo,
iniciado por Tylor e completado por Kroeber, representou o afastamento crescente desses dois
domínios, o cultural e o natural. (Laraia, 1986, 27-28)

Atualmente esta distinção reencontra críticas acérrimas que defendem a necessidade de ver o
Homem nesta dupla dimensão. Em Antropologia o conceito continua a ser frutífero, pelo menos nas
polémicas, nomeadamente com o discurso pós-moderno.
Um aspeto que tem gerado muito debate é a análise do nascimento da cultura, o momento em
que esta surge no universo humano. Roque Laraia sintetiza as principais posições, com destaque para
Claude Lévi-Strauss e Leslie White:

Claude Lévi-Strauss (…) considera que a cultura surgiu no momento em que o homem
convencionou a primeira regra, a primeira norma. Para Lévi-Strauss, esta seria a proibição do
incesto, padrão de comportamento comum a todas as sociedades humanas. Todas elas

20
proíbem a relação sexual de um homem com certas categorias de mulheres (entre nós, a mãe,
a filha e a irmã).”
“Leslie White (…) considera que a passagem do estado animal para o humano ocorreu quando
o cérebro do homem foi capaz de gerar símbolos. ´Todo comportamento humano se origina
no uso de símbolos. Foi o símbolo que transformou nossos ancestrais antropóides em homens
e fê-los humanos. Todas as civilizações se espalharam e perpetuaram somente pelo uso de
símbolos.... Toda cultura depende de símbolos. É o exercício da faculdade de simbolização que
cria a cultura e o uso de símbolos que torna possível a sua perpetuação. Sem o símbolo não
haveria cultura, e o homem seria apenas animal, não um ser humano.... O comportamento
humano é o comportamento simbólico. Uma criança do gênero Homo torna-se humana
somente quando é introduzida e participa da ordem de fenômenos superorgânicos que é a
cultura. E a chave deste mundo, e o meio de participação nele, é o símbolo”
Com efeito, temos de concordar que é impossível para um animal compreender os significados
que os objetos recebem de cada cultura. Como, por exemplo, a cor preta significa luto entre
nós e entre os chineses é o branco que exprime esse sentimento. Mesmo um símio não saberia
fazer a distinção entre um pedaço de pano, sacudido ao vento, e uma bandeira desfraldada.
Isto porque, como afirmou o próprio White, "todos os símbolos devem ter uma forma física,
pois do contrário não podem penetrar em nossa experiência, mas o seu significado não pode
ser percebido pelos sentidos". Ou seja, para perceber o significado de um símbolo é necessário
conhecer a cultura que o criou. (Laraia, 1986, 56-57)

O salto da natureza para a humanidade ou o ponto crítico da cultura é, no entanto,


considerado como uma impossibilidade científica (Laraia, 1986):

(…) a aceitação de um ponto crítico, expressão esta utilizada por Alfred Kroeber ao conceber a
eclosão da cultura como um acontecimento súbito, um salto quantitativo na filogenia dos
primatas: em um dado momento um ramo dessa família sofreu uma alteração orgânica e
tornou-se capaz de "exprimir-se, aprender, ensinar e de fazer generalizações a partir da infinita
cadeia de sensações e objetivos isolados".
Em essência, a explanação acima não é muito diferente da formulada por alguns pensadores
católicos, preocupados com a conciliação entre a doutrina e a ciência, segundo a qual o
homem adquiriu cultura no momento em que recebeu do Criador uma alma imortal. E esta
somente foi atribuída ao primata no momento em que a Divindade considerou que o corpo do
mesmo tinha evoluído organicamente o suficiente para tornar-se digno de uma alma e,
conseqüentemente, de cultura.
O ponto crítico, mais do que um evento maravilhoso, é hoje considerado uma impossibilidade
científica: a natureza não age por saltos. O primata, como ironizou um antropólogo físico, não
foi promovido da noite para o dia ao posto de homem. O conhecimento científico atual está
convencido de que o salto da natureza para a cultura foi contínuo e incrivelmente lento.
Clifford Geertz, antropólogo norte-americano, mostra em seu artigo "A transição para a
humanidade" como a paleontologia humana demonstrou que o corpo humano formou-se aos
poucos. O Australopiteco Africano (cujas datações recentes realizadas na Tanzânia atribuem-
lhe uma antigüidade muito maior que 2 milhões de anos), embora dotado de um cérebro 1/3
menor que o nosso e uma estatura não superior a 1,20m, já manufaturava objetos e caçava
pequenos animais. Devido à dimensão de seu cérebro parece, entretanto, improvável que
possuísse uma linguagem, na moderna acepção da palavra. O Australopiteco parece ser,
portanto, uma espécie de homem que evidentemente era capaz de adquirir alguns elementos
da cultura — fabricação de instrumentos simples, caça esporádica, e talvez um sistema de
comunicação mais avançado do que o dos macacos contemporâneos, embora mais atrasado

21
do que a fala humana, porém incapaz de adquirir outros, o que lança certa dúvida sobre a
teoria do ponto crítico.
O fato de que o cérebro do Australopiteco media 1/3 do nosso leva Geertz a concluir que
"logicamente a maior parte do crescimento cortical humano foi posterior e não anterior ao
início da cultura". Assim, continua: "O fato de ser errónea a teoria do ponto crítico (pois o
desenvolvimento cultural já se vinha processando bem antes de cessar o desenvolvimento
orgânico) é de importância fundamental para o nosso ponto de vista sobre a natureza do
homem que se torna, assim, não apenas o produtor da cultura, mas também, num sentido
especificamente biológico, o produto da cultura."
A cultura desenvolveu-se, pois, simultaneamente com o próprio equipamento biológico e é,
por isso mesmo, compreendida como uma das características da espécie, ao lado do
bipedismo e de um adequado volume cerebral. (Laraia, 1986, 58-59)

Laraia (1986, 2005) analisa em dois textos o que denomina as modernas teorias de cultura, no
que se revela como um esforço de síntese do conceito. Seguindo de perto Roger Keesing o autor
identifica duas grandes linhas epistemológicas: uma que privilegia a noção de cultura como sistema
adaptativo e outra que a observa como idealista.

As teorias que consideram a cultura como um sistema adaptativo foram iniciadas por neo-
evolucionistas como Leslie White, e reformuladas por Sahlins, Harris, Carneiro, Rappaport, Vayda e
outros que, apesar das discrepâncias que apresentam entre si, concordam em que:
1. (As) "Culturas são sistemas (de padrões de comportamento socialmente transmitidos) que
servem para adaptar as comunidades humanas aos seus embasamentos biológicos. Esse modo
de vida das comunidades inclui tecnologias e modos de organização econômica, padrões de
estabelecimento, de agrupamento social e organização política, crenças e práticas religiosas, e
assim por diante."
2. (A) “Mudança cultural é primariamente um processo de adaptação equivalente à seleção
natural." ("O homem é um animal e, como todos animais, deve manter uma relação adaptativa
com o meio circundante para sobreviver. Embora ele consiga esta adaptação através da
cultura, o processo ê dirigido pelas mesmas regras de seleção natural que governam a
adaptação biológica." B. Meggers, 1977)

22
3. "A tecnologia, a economia de subsistência e os elementos da organização social diretamente
ligada à produção constituem o domínio mais adaptativo da cultura. É neste domínio que
usualmente começam as mudanças adaptativas que depois se ramificam. Existem, entretanto,
divergências sobre como opera este processo. Estas divergências podem ser notadas nas
posições do materialismo cultural, desenvolvido por Marvin Harris, na dialética social dos
marxistas, no evolucionismo cultural de Elman Service e entre os ecologistas culturais, como
Steward."
4. "Os componentes ideológicos dos sistemas culturais podem ter conseqüências adaptativas
no controle da população, da subsistência, da manutenção do ecossistema etc." (Laraia, 1986,
60-61)

Relativamente às teorias idealistas de cultura há a reter três diferentes abordagens. A primeira


delas é a dos que consideram cultura como sistema cognitivo, produto dos chamados "novos
etnógrafos":

(…) Esta abordagem antropológica tem se distinguido pelo estudo dos sistemas de
classificação de folk isto é, a análise dos modelos construídos pelos membros da comunidade a
respeito de seu próprio universo. Assim, para W. Goodenough, cultura é um sistema de
conhecimento: "consiste em tudo aquilo que alguém tem de conhecer ou acreditar para operar
de maneira aceitável dentro de sua sociedade." Keesing comenta que se cultura for assim
concebida ela fica situada epistemologicamente no mesmo domínio da linguagem, como um
evento observável. Daí o fato de que a antropologia cognitiva (a praticada pelos "novos
etnógrafos") tem se apropriado dos métodos lingüísticos, como por exemplo a análise
componencial. (Laraia, 1986, 62)

A segunda abordagem é aquela que considera cultura como sistemas estruturais, perspetiva
desenvolvida por Lévi-Strauss,

(…) que define cultura como um sistema simbólico que é uma criação acumulativa da mente
humana. O seu trabalho tem sido o de descobrir na estruturação dos domínios culturais —
mito, arte, parentesco e linguagem — os princípios da mente que geram essas elaborações
culturais." (…) Lévi-Strauss, a seu modo, formula uma nova teoria da unidade psíquica da
humanidade. Assim, os paralelismos culturais são por ele explicados pelo fato de que o
pensamento humano está submetido a regras inconscientes, ou seja, um conjunto de
princípios — tais como a lógica de contrastes binários, de relações e transformações — que
controlam as manifestações empíricas de um dado grupo. (Laraia, 1986, 62-63)

A última das três abordagens é a que considera cultura como sistema simbólico. Esta posição foi
desenvolvida principalmente por dois antropólogos: Clifford Geertz e David Schneider. O primeiro

(…) busca uma definição de homem baseada na definição de cultura. Para isto, refuta a idéia de
uma forma ideal de homem, decorrente do iluminismo e da antropologia clássica, perto (na qual
as demais eram distorções ou aproximações, e tenta resolver o paradoxo (…) de uma imensa
variedade cultural que contrasta com a unidade da espécie humana. Para isto, a cultura deve ser
considerada "não um complexo de comportamentos concretos mas um conjunto de
mecanismos de controle, planos, receitas, regras, instruções (que os técnicos de computadores

23
chamam programa) para governar o comportamento". Assim, para Geertz, todos os homens são
geneticamente aptos para receber um programa, e este programa é o que chamamos de cultura.
E esta formulação — que consideramos uma nova maneira de encarar a unidade da espécie —
permitiu a Geertz afirmar que "um dos mais significativos fatos sobre nós pode ser finalmente a
constatação de que todos nascemos com um equipamento para viver mil vidas, mas terminamos
no fim tendo vivido uma só!" Em outras palavras, a criança está apta ao nascer a ser socializada
em qualquer cultura existente. Esta amplitude de possibilidades, entretanto, será limitada pelo
contexto real e específico onde de fato ela crescer.

Voltando a Keesing, este nos mostra que Geertz considera a abordagem dos novos etnógrafos
como um formalismo reducionista e espúrio, porque aceitar simplesmente os modelos
conscientes de uma comunidade é admitir que os significados estão na cabeça das pessoas. E,
para Geertz, os símbolos e significados são partilhados pelos atores (os membros do sistema
cultural) entre eles, mas não dentro deles. São públicos e não privados. Cada um de nós sabe o
que fazer em determinadas situações, mas nem todos sabem prever o que fariam nessas
situações. Estudar a cultura é portanto estudar um código de símbolos partilhados pelos
membros dessa cultura. (Laraia, 1986, 63-64)

Como refere Laraia, Geertz considera que a antropologia procura interpretações, abandonando
o otimismo de Goodenough “que pretende captar o código cultural em uma gramática ou a pretensão
de Lévi-Strauss em descodificá-lo. A interpretação de um texto cultural será sempre uma tarefa difícil
e vagarosa.”
Nos anos 1970 o florescimento das ideias pós-estruturalistas (Derrida e Foucaut) contribuiu
para aumentar ainda mais a suspeição relativamente a ideias hegemónicas de cultura como uma
explicação universal e valorizar a noção de contexto e de compreensão. O pós-modernismo na
antropologia, apesar das suas críticas iniciais, parece hoje ser cada vez mais um polo de discussão
autocrítico do que um novo campo ou proposta alternativa.
Apesar de toda a crítica desconstrutivista, a antropologia continua. Assim, não deixa de ter
acuidade analisarmos, ainda que sucintamente, de forma mais atenta a forma como a cultura tem
sido caraterizada e quais as suas componentes:

Entre as funções da cultura, Haviland (2005) identifica:


• Providenciar a produção e distribuição de bens e serviços que assegurem a subsistência
• Providenciar a continuidade biológica através da reprodução dos seus membros.
• Enculturar novos membros de modo a que estes possam tornar-se adultos capacitados.
• Manter a ordem entre os membros, assim como entre estes e os estrangeiros,
• Motivar os membros para sobreviver e envolvê-los nas atividades de subsistência
• Manter a capacidade para a mudança e permanecer adaptativo sob condições de mudança

Entre as caraterísticas (Haviland, 2007) ou essências (Marconi e Presotto, 1987) da cultura estes
vários autores identificam as seguintes:

24
• A cultura é partilhada
A cultura não pode existir sem sociedade, ela é aprendida socialmente.
Não há sociedades humanas conhecidas que não possuam cultura.
Nem tudo é uniforme dentro de uma cultura.

• A cultura é aprendida,
A cultura é aprendida através da aprendizagem social mais do que herdada biologicamente,
nomeadamente, através da linguagem.
O processo de transmissão de cultura de uma geração a outra designa-se enculturação.

• A cultura baseia-se em símbolos


A cultura é transmitida através de ideias, emoções e desejos expressos através da linguagem.
Através da linguagem, os humanos transmitem cultura de uma geração a outra.
A linguagem torna possível aprender através da experiência cumulativa partilhada.
O pensamento simbólico é exclusivamente humano. A capacidade para criar símbolos é só
humana. Um símbolo é aquilo que representa uma coisa, está em lugar de algo, e esta
conexão pode ser simbolizada de maneira diferente segundo as culturas

• A cultura é integrada
Todos os aspetos da cultura funcionam como um todo integrado.
A mudança numa parte de uma cultura usualmente afeta outras partes.
Um grau de harmonia é necessário em qualquer cultura que funcione, mas não é exigível uma
harmonia completa.
Há uma seletividade na seleção, consciente e desejada ou inconsciente, de padrões, de
valores, e a sua adoção numa determinada cultura.

• A cultura é geral e específica


A humanidade partilha a capacidade para a Cultura (tudo o criado pelos seres humanos), é
este um carácter inclusivo; porém, as pessoas vivem em culturas particulares (modos de vida
específicos e diferentes) com certa homogeneidade, uniformidade e harmonia internas, mas
também com condicionantes ecológicos e socio-históricos particulares.

• A cultura é uma estratégia


As pessoas podem manipular e interpretar a mesma regra de maneiras diferentes, utilizando
criativamente (ou como forma de resistência) a sua cultura.
Desde este ponto de vista podemos falar da cultura como produtora de mudança e conflito, mas
também como “caixote de ferramentas” (“tool kit”) de valor estratégico para a ação social
(Swidler, 1986).

25
Algo externo que condiciona as nossas vidas ou algo que como sujeitos (pessoas) criamos em
coletividades – é um processo e um conjunto de estratégias.

• A cultura é dinâmica e contínua


Devido aos contactos e mudanças ocorridas
Mas o seu crescimento não é uniforme

É ainda possível classificar a cultura (Marconi e Presotto, 1987, 46-47) analisando a sua
existência sensível e ideal:

A cultura material (ergologia) consiste nas “(…) coisas materiais, bens tangíveis, incluindo
instrumentos, artefactos e outros objetos materiais, fruto da criação humana e resultante de
determinada tecnologia.”
A cultura imaterial (aspetos animológicos) refere-se aos “(…) elementos intangíveis da
cultura, que não têm substância material. Entre eles encontram-se as crenças, conhecimentos,
aptidões, hábitos, significados, normas, valores. (…)
A cultura real “é aquela em que, concretamente, todos os membros de uma sociedade
praticam ou pensam em suas atividades cotidianas (…)”. Ela “não pode ser percebida em sua
totalidade, apenas parcialmente (…) ” sendo difícil para o estudo científico a sua identificação pois
“(…) o real sempre é apresentado como as pessoas o conhecem ou pensam que seja”. Como referem
Hoebel e Frost (2001, 27): “ Deve-se (…) ter em mente que o que nos ocupa na Antropologia é a
construção de cultura e não a cultura real. A construção de cultura apresenta a cultura real com a
precisão que a metodologia científica permite.”

A cultura ideal (normativa) “(…) consiste em um conjunto de comportamentos que, embora


expressos verbalmente como bons, perfeitos, para o grupo, nem sempre são frequentemente
praticados.” Hoebel e Frost (2001, 27) comentam o caso da violação das regras de exogamia entre os
trobriandenses estudados por Maliwoski. Embora fossem objeto de normas que o vetassem e de
haver um aparente horror público perante o facto a sua prática não era de todo desconhecida.

26
Marconi e Presotto (1987, 47 -51) apresentam de forma sucinta os componentes que
constituem a cultura:

Conhecimentos: todas as culturas possuem conhecimentos que são transmitidos de geração em


geração. Estes conhecimentos são, de um modo geral, eminentemente práticos.

Crenças: a crença é a “aceitação como verdadeira de uma proposição comprovada ou não


cientificamente. Consiste em uma atitude mental do indivíduo, que serve de base à ação voluntária.
Embora intelectual, possui conotação emocional. Para Goodnegouh (1975), citado pelas autoras, há
três tipos de crenças:

a)“(…) pessoais – as proposições aceitas por um indivíduo como certas, independentemente


das crenças dos demais”.
b)“Declaradas – as proposições que uma pessoa aparenta aceitar como verdadeiras, em seu
comportamento público, e que as menciona apenas para defender ou justificar as suas ações
perante os outros”.
c)“Públicas – as proposições que os membros de um grupo concordam, aceitam e declaram
como suas crenças comuns”. (1987, 47-48)

Valores: o termo é empregue para indicar objetos ou situações consideradas boas, desejáveis ou
apropriadas. O valor expressa sentimentos e incentiva e orienta o comportamento humano. Há,
segundo as autoras, dois elementos no valor: um emocional e outro ideacional. Os valores variam de
acordo com a importância que lhes é atribuída pelos membros da sociedade pelo que a sua medição é
difícil, mas a sua existência é passível de ser reconhecida.

27
O significado específico adquirido em determinados contextos culturais por pessoas, coisas
ou ideias, faz com que estes se constituam símbolos. Os significados podem ser:

a) arbitrários – na (…) medida em que não têm relação obrigatória com as propriedades
físicas dos fenômenos que os recebem. Fora do campo linguístico, a ligação entre símbolo e
objecto caracteriza-se pela total ausência de afinidade intrínseca.

b) partilhados – quando o símbolo tem o mesmo significado para diferentes culturas (geral)
ou para determinada sociedade (particular).

c) referenciais – quando os símbolos se referem a uma coisa específica.” (Marconi e Presotto,


1987, 50)

Para analisar a cultura foram desenvolvidos, em particular pelos difusionistas*, os conceitos


de traços, complexos e padrões culturais. Embora tenham sido de certa forma objeto de ostracismo
por teorias posteriores, a verdade é que no contexto da globalização e mudança cultural se têm cada
vez mais utilizado, de novo, estes termos, explicados por Marconi e Presotto.

Traços culturais – são considerados os elementos menores que permitem a descrição da


cultura, ou a menor unidade ou componente significativo da cultura, que pode ser isolado no
comportamento cultural. Os traços podem ser materiais, como objectos, ou não materiais,
como atitudes, comunicação, habilidades. Nem sempre é fácil identificar os traços culturais e
o principal objectivo não é listar mas compreender o seu significado e a maneira como os
traços se integram numa cultura. (53)
Complexos culturais – consistem no conjunto de traços ou num grupo de traços associados,
formando um todo funcional; ou ainda um grupo de características culturais interligadas,
encontrado numa área cultural. Cada cultura engloba um número variável de complexos
culturais. Ex. O Carnaval com os diferentes traços interligados: carros alegóricos, música,
dança, instrumentos musicais, desfile, organização, etc. (54)

Padrões culturais – resultam do “agrupamento de complexos culturais de um interesse ou


tema central (…) que se torna num comportamento generalizado, estandardizado e
regularizado.” Nenhuma sociedade é totalmente homogénea, existem padrões de
comportamento distintos como por exemplo no caso do género e idade. O comportamento
dos indivíduos é influenciado pelos padrões culturais mas não é de todo determinante já que
o individuo, enquanto actor social pode alterar em determinadas circunstâncias as práticas e
consequentes padrões estabelecidos. (54-55)

Configurações culturais – consistem na integração dos diferentes traços e complexos de uma


cultura. Introduzido na antropologia por Ruth Benedict , a ideia de configuração cultural é
uma qualidade especifica que tem a sua origem no interrelacionamento das partes que
constituem uma cultura. Nesta aceção a cultura é vista como um todo. (55)

28
Áreas culturais – são territórios geográficos onde as culturas se assemelham e os indivíduos
compartilham os mesmos padrões de comportamento. (55-56)

A subcultura é considerada como um meio peculiar de vida de um grupo menor dentro de


uma sociedade maior. Apesar dos padrões da subcultura apresentarem algumas divergências em
relação à cultura central ou a outra subcultura, mantêm-se coesos entre si. Embora não haja, em
princípio, conotações valorativas, ocorrem situações em que tal acontece e a própria prática de alguns
as relacionarem com castas, grupos regionais, étnicos e classes sociais tende a passar uma imagem
pejorativa.
A diversidade cultural, a variabilidade das formas culturais, não esconde o facto de que
existem traços comuns entre todas as culturas. A antropologia estuda tanto esta diversidade como
esta identidade comum denominada universais de cultura7. Esta “tradição” antropológica de listar os
temas é antiga, mas foi objeto de uma sistematização por Murdock (1945) que identificou 67
universais de cultura: Entre estes incluem-se:

classificação por idade, desporto, adorno corporal, calendário, treinamento de limpeza,


organização comunitária, culinária, trabalho cooperativo, cosmologia, namoro, dança, arte
decorativa, adivinhação, divisão de trabalho, interpretação de sonhos, educação,
escatologia, ética, etnobotânica, etiqueta, cura pela fé, festa familiar, fogueira, folclore,
tabus alimentares, ritos fúnebres, jogos, gestos, dar presentes, governo, saudações, estilos
de cabelo, hospitalidade, habitação, higiene, tabus de incesto, regras de herança, piadas,
grupos de parentesco, nomenclatura de parentesco, linguagem, lei, superstições da sorte,
magia, casamento, horário das refeições, medicina, obstetrícia, sanções penais, nomes
pessoais, política populacional, cuidado pós-natal, uso de gravidez, direitos de propriedade,
propiciação de seres sobrenaturais, costumes de puberdade, rituais religiosos, regras de
residência, restrições sexuais, conceitos de alma, diferenciação de status, cirurgia, fabrico de
ferramentas, comércio, visitas, controle do clima e tecelagem8.

De uma forma mais sucinta podemos indicar:


1. A unidade psíquica dos humanos. Considerando que todos os seres humanos têm a
mesma capacidade para a cultura.
2. A linguagem.
3. A vivência em grupos sociais, como a família, e a partilha de alimentos.

7
Ler: Focalizar o que é comum aos seres humanos, Entrevista a Christoph Antweiler. Disponível online:
http://www.antropologi.info/blog/anthropology/pdf/Entrevista-Christoph-Antweiler.pdf
8
age-grading, athletic sports, bodily adornment, calendar, cleanliness training, community organisation, cooking,
co-operative labour, cosmology, courtship, dancing, decorative art, divination, division of labour, dream
interpretation, education, eschatology, ethics, ethnobotany, etiquette, faith healing, family feasting, fire-making,
folklore, food taboos, funeral rites, games, gestures, gift-giving, government, greetings, hair styles, hospitality,
housing, hygiene, incest taboos, inheritance rules, joking, kin groups, kinship nomenclature, language, law, luck
superstitions, magic, marriage, mealtimes, medicine, obstetrics, penal sanctions, personal names, population
policy, postnatal care, pregnancy usages, property rights, propitiation of supernatural beings, puberty customs,
religious ritual, residence rules, sexual restrictions, soul concepts, status differentiation, surgery, tool-making,
trade, visiting, weather control and weaving.

29
4. O tabu do incesto: regra que proíbe as relações sexuais e o casamento entre parentes
próximos 9
5. O matrimónio, entendido como relação social estável e duradoura entre pessoas e
grupos.
6. A divisão sexual do trabalho.
7. A família.
8. O etnocentrismo cultural.

É pertinente centrarmo-nos sobre o etnocentrismo, é uma visão do mundo e dos outros de


acordo com a qual o cada grupo se vê como o centro de tudo e todos os outros se medem por
referência a ele. Cada grupo fomenta o seu próprio orgulho e a sua vaidade, proclama a sua
superioridade, exalta as suas próprias divindades e descreve com desprezo os outros.
O Etnocentrismo é uma visão do mundo onde o nosso próprio grupo é tomado como centro
de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores, os nossos modelos, as
nossas definições do que é a existência. No plano intelectual, pode ser visto como a dificuldade de
pensarmos a diferença; no plano afetivo, como sentimentos de estranheza, medo, hostilidade, etc.
(Rocha, 1984, 7).
O etnocentrismo pode manifestar-se em diferentes níveis: tribo, aldeia, região,
nação/estado, minoria étnica, área cultural, classe ou indivíduo. O problema do etnocentrismo é a
intolerância cultural face à diversidade e o fechar as portas à curiosidade pelo conhecimento, sendo
uma atitude que pode resultar numa ideologia com práticas racistas.

No etnocentrismo temos o cerne de uma relação entre dois elementos: o “nós” e o os “outros”.
Todavia, este dualismo tem o seu reflexo, isto é, a simultaneidade de estes extremos comportarem o
seu oposto. Todavia, o reconhecimento de que o “outro” é igualmente um “nós”, e que “Nós”, somos,
igualmente o “outro” é intencionalmente negligenciado por aquele(s) que detêm o poder (maioria ou
minoria10) na relação. A relação considerada e valorizada é a deste “nós-motor”, que omite e esquece
o outro, justificando assim a sua própria ação, como no caso das situações coloniais (Sousa, 1987).

9
Há exceções ao tabu do incesto, como nos casos históricos conhecidos entre a realeza sagrada do Egipto, Hawai
e Incas. No Bali também há prerrogativas no caso dos irmãos gémeos, menino e menina, considerados já “íntimos”
no útero da mãe (Hoebel e Frost, 2001, 179)
10
Uma minoria pode deter o poder, como no caso da África do Sul, governada até 1994 por uma minoria de
brancos.

30
Quando esta postura adquire uma dimensão política estamos no domínio do que Iturra denomina
como “etnocentrismo racionalizador”: “(...) visão ideológico-política geradora de representações
redutoras que ainda povoam o imaginário social de muitas sociedades, grupos e indivíduos.” (1996,
13). No extremo esta visão assume-se como prática racista institucionalizada, na qual uma relação de
poder e de desigualdade se consubstancia em políticas ativas de opressão.
Só há pouco tempo é que começamos a ver, algo surpreendidos, a imagem que os “outros”
faziam de “nós”11, um processo a que não é alheia descolonização e a democratização.
O conceito considerado oposto ao etnocentrismo é o relativismo cultural, uma das ideias
centrais da antropologia:

O conceito de relatividade cultural afirma que os padrões do certo e do errado (valores) e dos
usos e atividades (costumes) são relativos à cultura da qual fazem parte. Na sua forma
extrema, esse conceito afirma que cada costume é valido em termos de sei próprio ambiente
cultural. (Hoebel e Frost, 2001, 22)

Todavia, e como no recorda Thomas Eriksen (2001), há uma tensão relativa ao uso desta
premissa teórica que resulta do facto do seu uso como pressuposto metodológico que nos ajuda a
compreender outras sociedades e, por outro lado, o seu emprego como princípio ético que, no seu
extremo pode levar ao niilismo12 (Eriksen, 2001, 7). Quais são então os limites do relativismo cultural?
Como estudar e compreender, por exemplo, regimes que praticaram ao genocídio com base em
ideais racistas, como a Alemanha nazi? Numa perspetiva relativista extrema a defesa deste regime
podia argumentar não há uma moralidade superior, internacional ou universal, e que as regras éticas
e morais de todas as culturas merecem igual respeito. Pode este ser o princípio para uma vivência
aceitável entre os estados e nações do mundo?
Talvez nenhum outro conceito antropológico seja tão pertinente para aferir as franjas entre o
mero academismo e a prática/responsabilidade política e social de uma ciência. Os direitos humanos13
e os seus instrumentos são uma das maiores conquistas da humanidade constituindo eles próprios um
ideal de cultura que é, infelizmente, pouco respeitado e praticado. Mas, esta questão coloca-se
também no dia-a-dia do antropólogo em tradições e costumes como o infanticídio, a infibulação
feminina e outras práticas rituais que envolvem punições físicas. Pode o antropólogo trabalhar sem
condenar tais práticas?
A complexidade do conceito de cultura é enorme, mas, como expõe DuBois (1959, 9), o seu
significado é profundamente humano: “é inconcebível um povo sem cultura, de forma similar a
cultura sem o Homem não tem significado. Ambos estão em contante interação.”

11
Consultar, por exemplo Amin Maalouf e As cruzadas vistas pelos Árabes, Difel, 1990, ou Ana Barradas, Ministros
da Noite – Livro Negro da Expansão Portuguesa, Antígona 1992
12
Ver conceito em: https://www.infopedia.pt/$niilismo
13
Consultar: https://dre.pt/declaracao-universal-dos-direitos-humanos

31
Vamos agora analisar o conceito de sociedade numa perspetiva antropológica, seguindo o
texto do antropólogo brasileiro Viveiros de Castro (2002, 297-298)14. Para o autor o conceito de
sociedade pode ser analisado em dois sentidos, o geral e o particular:

Em sentido geral, a sociedade é uma condição universal da vida humana. Esta


universalidade admite uma interpretação biológica (instintual) e outra simbólico-moral
(institucional). Por um lado, a sociedade pode ser vista como um atributo básico, mas não
exclusivo, da natureza humana: somos geneticamente predispostos à vida social; a ontogênese
somática e comportamental dos humanos depende da interação com seus semelhantes; a
filogênese de nossa espécie é paralela ao desenvolvimento da linguagem e do trabalho,
capacidades sociais indispensáveis à satisfação das necessidades do organismo. Por outro lado,
a sociedade pode ser vista como dimensão constitutiva e exclusiva da natureza humana (Ingold
1994), definindo-se por seu caráter normativo: o comportamento humano torna-se agência
social ao se fundar menos em regulações instintivas selecionadas pela evolução que em regras
de origem extra-somática historicamente sedimentadas. […]
Em sentido particular, (uma) sociedade é uma designação aplicável a um grupo humano
com algumas das seguintes propriedades: territorialidade; recrutamento principalmente por
reprodução sexual de seus membros; organização institucional relativamente auto-suficiente e
capaz de persistir para além do período de vida de um indivíduo; distintividade cultural.
Aqui a noção pode ter como referentes principais o componente populacional, o
componente institucional-relacional ou o componente cultural-ideacional do grupo (Firth 1951).
No primeiro caso, o termo é usado como sinonimo de '(um) povo' visto como um tipo específico
de humanidade. No segundo, em que é equivalente a 'sistema* ou 'organização* social, ele
destaca o quadro sociopolítico da coletividade: sua morfologia (composição, distribuição e
relações dos subgrupos da sociedade enquanto grupo máximo), o corpo de normas jurais
(noções de autoridade e cidadania, regulação do conflito, sistemas de status e papéis) e as
configurações características das relações sociais (relações de poder, formas de cooperação,
modos de intercâmbio). No terceiro caso — em que 'sociedade' é frequentemente substituída
por 'cultura* — visam-se os conteúdos afetivos e cognitivos da vida do grupo: o conjunto de
disposições e capacidades inculcadas em seus membros através de meios simbólicos variados,
bem como os conceitos e práticas que conferem ordem, significação e valor à totalidade do
existente.

Assim, no sentido geral temos a noção de sociedade enquanto dimensão universalista e


condição da vivência humana (mas não exclusiva aos humanos), e no sentido mais particular, as
múltiplas “sociedades” em que nos enquadramos enquanto membros de grupos particulares, cujas
distinções e particularidades culturais nos dão uma identidade particular.

14
Obra disponível aqui: https://archive.org/details/ViveirosDeCastroEduardoAInconstnciaDaAlbook4me.org

32
Tema 1.2 A metodologia de investigação antropológica

Iremos de seguida analisar os métodos de investigação em antropologia. A antropologia


desenvolveu-se tendo nos métodos que instituiu um dos alicerces da sua legitimidade no contexto
das ciências. Iremos analisar alguns desses métodos tradicionais e, de seguida, debruçar-nos-emos
sobre alguns dos que são empregues sobretudo no contexto da antropologia aplicada.
A forma como a metodologia de investigação antropológica se desenvolveu está muito
ligada à história do desenvolvimento da prática antropológica a ponto de esta ser um elemento
identitário, como se pode observar nesta definição de Thomas Eriksen “ A antropologia é o estudo
comparativo da vida cultural e social. O seu mais importante método é a observação participante, que
consiste num trabalho de campo prolongado num determinado contexto social.” (2001, 4). Este
caminho para o trabalho de campo, para o terreno, o “laboratório” por excelência da antropologia não
foi imediato. No século XIX a pesquisa era feita a distância, usando informações obtidas através de
terceiros. No início do século XX os antropólogos foram para o terreno e passaram a viver na
proximidade das comunidades que estudavam. A partir de meados do século XX, com o processo de
descolonização, a antropologia foca-se igualmente nas sociedades de origem dos antropólogos, quer
em meio urbano, quer rural, assim como presta uma maior atenção ao contexto de mobilidade.
Segundo Ervin (2000) 15 os principais métodos são a etnografia e a observação participante
(na qual se evidenciam as entrevistas e a recolha de histórias de vida), os grupos focais e as técnicas
de entrevista de grupo, estes são predominantemente qualitativos; e os indicadores sociais e os
questionários, predominantemente quantitativos. Ainda que o paradigma qualitativo seja
reconhecido como essencial para os estudos antropológicos, a dimensão quantitativa não pode ser
descurada, dependendo do estudo em causa e dos seus objetivos, o que leva à triangulação
metodológica, com o emprego de ambas as abordagens.
O trabalho de campo etnográfico é uma abordagem que inclui várias técnicas de recolha de
informação através de diversas formas de observação. Esta “aventura etnológica, no dizer de Claude
Rivière (2014:24) pressupõe que o “exílio cultural” (id.:24) a que o antropólogo se submete o
“predispõe para a tolerância, a rejeição de preconceitos ligados ao seu meio, à sua classe, à sua
formação e o liberta do etnocentrismo graças aos afastamento do sistema, que ajuda a comparar e a
exercer a sua faculdade crítica” (Rivière, 2014: 24-25). A observação participante é um processo
complexo cuja principal qualidade é o “mimetismo”, “fazer como os outros, para os levar a esquecer o
mais possível a sua diferença, enquanto se tenta comunicar, graças à aquisição da de elementos da
língua da terra e à expressão de calor humano.” (Rivière, 2014:25). O processo através do qual se
materializa esta vivência é complexo e pessoal. Os vários sentidos são convocados e o recurso a
gravadores, máquinas de filmar, máquina fotográfica, etc, ajudam a fixar certos momentos. As
técnicas envolvem por isso o registo de conversações informais, entrevistas formais a informantes-

15
Texto base: Sousa, Lúcio. 2007. A prática da Antropologia - Caderno de apoio. Lisboa: Universidade Aberta.

33
chave, a elaboração de mapas da organização da população, dos recursos naturais, sensos,
genealogias, e a aplicação de questionários. A aprendizagem da língua é um elemento essencial,
sobretudo em situações de longa permanência no terreno. Os pressupostos desta abordagem foram
instituídos sobretudo com a prática de Bronislaw Malinowski que analisaremos no próximo capítulo.
O trabalho de investigação no terreno não é linear havendo um elevado grau de flexibilidade
nesta abordagem que permite a inclusão de categorias locais de relevância que não tinham sido
antevistas no plano de pesquisa inicial. Por outro lado, a imersão do antropólogo numa rede de
relações sociais tem de ser gerida, quer no âmbito da validade da investigação quer da sua resistência
emocional aos problemas que este tipo de trabalho envolve. Como referem Beaud e Weber:

Você não sai de uma pesquisa sem ter mudado ou mesmo ileso. Você pode sair dela
transformado e verá, a seguir, coisas e pessoas de outra maneira. É claro que isso assim será
se você tiver levado a tarefa a sério e que não se tenha contentado com uma presença
pontilhada, não constante no compor ou com entrevistas do tipo “relâmpago”. (Beaud e
Weber, 2007, 15)

O tempo passado no terreno pode variar de acordo com o objeto e os objetivos da


investigação, mas, por norma, é considerado que um ano de terreno é essencial para acompanhar um
ciclo anual de atividades sazonais. A estadia depende também do facto de o antropólogo já conhecer
ou não o grupo ou comunidade em causa. Por outro lado, e sobretudo na prática antropológica
contemporânea, muitas investigações são multisituadas, isto é, envolvem mais do que um terreno,
como é o caso, por exemplo, de estudos de migrantes e comunidades transnacionais.
O trabalho de campo envolve um número de etapas que convém reter (Ervin, 2000, 143 –
146). Embora elas não sejam lineares e a reflexibilidade seja é importante reter os problemas
associados com cada uma das fases.
O início do trabalho de campo é crucial, não só pelo processo de escolha do local de trabalho,
como pela ansiedade que envolve (de parte a parte) a entrada num meio social novo. Há a
necessidade de obter a permissão para ali estar (da comunidade, das entidades locais e nacionais)16,
explicar a presença no terreno aos membros da comunidade e estar consciente de alguns fatores, a
saber: a resposta pode ser relutante, ou inexistente; a existência de resistências e dificuldades; o
delicado processo de ganhar, e gerir, a confiança por parte das pessoas da comunidade e conseguir
familiaridade com o local.
Nesta fase pode ocorrer um “choque cultural” dada a necessidade de reajustar
comportamentos a novos hábitos e modos de agir (tanto na linguagem como na postura corporal,
etc.). O stress pode surgir, sobretudo quando as resistências são maiores e não se vislumbra a

16
Traube (1986) é um exemplo de como o terreno pode fazer inverter ou alterar os projetos iniciais. A autora partiu
para Timor para trabalhar numa determinada zona e, durante a sua estadia acabou por, depois de passar ali algum
tempo, deslocar-se para a área Mambae onde desenvolveu o seu estudo. Em Sousa (2008 e 2010) poderão também
ter a perceção do acesso ao terreno e de como se desenvolvem expetativas mútuas em presença.

34
confiança da parte das pessoas da comunidade para iniciar o trabalho. Ervin (2000, 144) advoga que
se deve elaborar um pequeno texto de uma página no máximo para expor os objetivos da presença do
antropólogo e do estudo em curso. No fundo o autor reafirma os pressupostos éticos que devem
imperar na relação com a comunidade e que já analisamos igualmente com Willigen (1986).
Após o período de crise associado ao “choque cultural” e se esta fase for ultrapassada, com a
criação de laços de confiança é possível envolver-se no trabalho de recolha de dados, por norma mais
“factuais” no início de forma a não ferir suscetibilidades. Este período é mais produtivo e a
normalização da presença permite ganhar confiança e euforia por parte do investigador o que pode
levar a situações de identificação com o sujeito de investigação e a registar impressões e factos
enviesados. Alguns autores sugerem que o investigador deve retirar-se do campo durante um período
a fim de analisar os dados obtidos e reavaliar o trabalho a realizar.
As fases finais da estadia devem incluir a confirmação de certas hipóteses, o que no campo
aplicado pode ser feito com base em inquéritos, de forma a confirmar ou invalidar observações
realizadas. No campo da antropologia aplicada é usual que, após a retirada do terreno para a redação
do relatório, o antropólogo regresse ao terreno para o discutir com a comunidade.

Observação e registo

A observação é um processo denso e extenuante. A par da capacidade de observação é


necessária aptidão para descrever o que é observado. Este facto envolve a anotação atempada das
observações e a sua organização por assuntos. A forma como se organizam os registos pode variar de
investigador para investigador. As notas de campo e os diários são personalizados, mas há várias
indicações de como organizá-las de acordo com os propósitos do trabalho. A observação ocorre nos
mais ínfimos contactos sociais, de carácter interpessoal, e nos acontecimentos ou receções
organizadas. Estas experiências dizem-nos algo sobre os seus participantes e os grupos envolvidos
pela forma como interagem tendo como princípio identificar quem está a fazer o quê, com quem,
onde e quando. A observação participante permite dizer o que está a acontecer pelo facto de o
registar presencialmente, pelo facto de o observador estar mais perto da realidade. Gerir toda esta
vivência e informação pode ser extenuante.
No entanto, até que ponto o investigador participa? Há vários graus de envolvimento com os
sujeitos em estudo. A observação pode ser realizada sem que os sujeitos estejam ao corrente do
facto. Um exemplo desta técnica são as investigações realizadas em jardins infantis na qual as
crianças são observadas a interagir sem o investigador se envolver com elas. Uma situação imediata
ocorre em contextos em que o investigador partilha espaços com os sujeitos de observação sem ser
forçosamente reconhecido por estes. Por exemplo, em restaurantes ou bares.

35
Outra forma de participar é através do desempenho de papéis auxiliares que permitem o
convívio com os sujeitos.17 Esta questão depende do contexto. Nos campos mais tradicionais e nos
que se situam no âmbito da ajuda ao desenvolvimento em contexto rural, o antropólogo pode
encontrar muitas ocasiões para participar em acontecimentos sociais, privados ou públicos, desde
trabalhos de campo, da casa, caça etc. Como refere Ervin (2000, 149) é impossível ensinar esta
metodologia através de etapas precisas dada a necessidade de imersão direta com o terreno e os
imponderáveis que se lhe associam.

Entrevistas a informantes qualificados

A entrevista a informantes qualificados é um dos princípios essenciais da pesquisa


antropológica. A noção de informante qualificado é objeto de discussão. Por um lado, é relativamente
consensual que ele deve ocupar um lugar ou desempenhar um papel que o torne socialmente
significativo, mas o mesmo não se passa relativamente à sua capacidade de analisar a sua condição
de vida analiticamente.
Relativamente ao papel social desempenhado pelo entrevistado há que ter em conta que
nem sempre o desempenho de um papel visível é sinónimo de experiência ou de saber. Muitas vezes o
informante mais qualificado pode estar “oculto” pela sua condição social e não é imediatamente
identificado, sendo que aqui o tempo e confiança é condição essencial perceber quem é quem18 e para
obter empatia. Por exemplo, em Timor Leste, as autoridades oficiais “chefe de suco” que lidam com o
Estado e o exterior tem de reportar às autoridades tradicionais que lidam com o sagrado e o interior.
O acesso aos primeiros é, de uma forma geral, o mais fácil e o que se pratica na administração, mas o
contacto com os segundos pode ser muito mais difícil (Ospina e Hohe, 2001).
A capacidade de análise reflexiva por parte dos envolvidos, antropólogo e sujeitos, sobretudo
da parte destes tem que ser ponderada. Ervin (2000, 149) refuta a perspetiva de que o informante
deve ser não analítico. Na prática antropológica este tipo de informantes é altamente qualificado pois
possuem um conhecimento sobre o tempo e uma reflexão ponderada. Contestar um informante que
analise a sua própria condição de vida e que sobre ela tenha uma capacidade crítica é uma forma de
subestimar o sujeito.

A entrevista e as questões

17
Situação similar ocorreu durante a realização do trabalho de campo desenvolvido no mestrado do desempenho
do papel de auxiliar de “assistente social” numa organização de apoio aos refugiados. Ocorrência descrita em
Sousa (1999), ponto 1.2. Etapas da pesquisa.
18
Claudine Friedberg, antropóloga francesa, foi sujeita a esta “avaliação” em 1971, na altura no Timor Português.
Tendo chegado à aldeia Bunak de Oeleu foi apresentada a um conjunto de homens, tendo-lhe sido explicado quem
eram e o que faziam. Quando se sentavam para comer foi-lhe pedido que distribuísse a carne com ossos pelos
comensais (entre os Bunak o corpo animal remete para o “corpo social”, sendo cada parte do animal associada a
uma determinada função e cargo político-ritual). Ciente do teste a que estava submetida, procurou dar a carne
com osso de acordo com o que sabia das suas investigações noutros territórios Bunak. A distribuição foi aprovada
e a antropóloga tem a certeza de que tal facto ajudou a desanuviar o momento e a comunicar com os seus
interlocutores [comunicação pessoal].

36
A entrevista deve ser em larga medida uma conversação com um sentido preponderante, a
do informante em relação ao entrevistador. A gravação ou não da entrevista vai depender da
autorização do entrevistado19 e da disponibilidade do entrevistador em proceder posteriormente, se
necessário, à sua transcrição (uma transcrição poderá levar, dependendo da língua e das condições de
gravação, o dobro do tempo real da entrevista). A entrevista começa com comunicação da intenção e
a preparação do entrevistado. É importante esclarecer os objetivos da mesma de uma forma clara e
sucinta e estar pronto a responder a todas as questões que possam ser colocadas pelo entrevistado.
A preparação da entrevista incluirá a elaboração de um guião de entrevista que contemplará
os temas a serem desenvolvidos. Há que ter, no entanto, atenção que um longo guião pode ser
desmoralizador para o entrevistado. A forma como se abre o diálogo deve ser centrada em questões
sobre assuntos presentes e não controversos, questões mais genéricas, que permitam colocar o
entrevistado à vontade e ajudar a encaminhar o entrevistador. Ervin (2000, 153) sugere com base em
Patton (1980) tipos de questões que devem ser colocadas:

1. questões de experiência (experience questions): sobre o que a pessoa fez ou faz;


2. processo cognitivo e interpretativo (cognitive and interpretive process) – questões de opinião ou
valores:
3. questões emocionais (feeling questions): as respostas emocionais às experiências e
sentimentos;
4. questões de conhecimento (knowledge questions): para saber o que o informante sabe sobre
determinados factos;
5. questões sensoriais (sensory questions): o que é sentido ou percecionado;
6. questões demográficas e de antecedentes (background / demographic questions): questões que
enquadram o sujeito no grupo em estudo, como a idade, género, educação etc.

O mesmo autor, citado por Ervin (2000, 154) defende que as questões devem ser colocadas nos
três tempos verbais, no presente, no passado e no futuro, de forma a apurar o sentido que os sujeitos
pretendem dar à sua vida com a experiência adquirida.
As últimas recomendações de Ervin (2000, 154) sobre a formulação das questões são:

1. evitar questões dicotómicas que possam ser respondidas com sim ou não;
2. ter a certeza de que as questões são abertas de forma a possibilitar que o entrevistado
formule uma opinião sobre todos os potenciais pontos em estudo;
3. evitar questões que combinem muitas ideias, provocando confusão sobre o que responder.

19
Durante o meu trabalho de campo para a dissertação de mestrado sobre refugiados, alguns dos entrevistados
não permitiram a gravação da entrevista (Sousa, 1999).

37
Acabamos de descrever o que podemos designar de etapas e técnicas clássicas da investigação
antropológica. A investigação etnográfica é, cada vez mais, empregue por outras ciências, como a
sociologia. Todavia, também se observa que atualmente a antropologia, fundamental e aplicada,
emprega um conjunto de técnicas nas suas investigações. Destas registamos: os grupos focais, os
grupos nominais, e os Delphi Groups ou conferências.

Grupos focais

Segundo Ervin (2000, 156) os grupos focais consistem num grupo de pessoas, normalmente
de seis a doze, com um estatuto de uma forma geral equivalente, com interesses, características e
conhecimentos comuns. Na entrevista, gerida pelo entrevistador, cada participante deve ser capaz de
expor as suas opiniões sobre um tema proposto e dentro de um tempo definido. Esta abordagem é
uma ferramenta útil e adaptável que pode ser utilizada nas ciências sociais, aplicadas ou não. Em
antropologia aplicada e em particular na centrada em pesquisa de comunidades, é vantajosa em
levantamentos de necessidades, avaliação de programas e levantamentos de impactos sociais.

Grupos nominais

Os grupos nominais são uma forma mais estruturada de grupos focais, com os mesmos
princípios e com a mesma dimensão, mas com um controlo muito maior da interação dos
participantes por parte do moderador com o objetivo de estabelecer prioridades e consenso. Os
grupos nominais são úteis pois permitem ultrapassar algumas das dificuldades dos grupos focais,
nomeadamente, a possibilidade de existirem rivalidades interpessoais. Por vezes pode ser útil
combinar as duas abordagens.

Delphi Groups ou conferências

O grupo Delphi é um grupo nominal realizado através de correio (ou por meios informáticos).
É anónimo, mas interativo. É composto por participantes, até um número de 30, reconhecidos pelos
seus conhecimentos ou capacidade para comentar de forma pertinente o tema em investigação. É
particularmente útil quando os participantes vivem afastados uns dos outros, mas apresenta a
dificuldade de estes terem necessariamente a capacidade de expor de forma escrita as suas opiniões.

Os métodos clássicos da antropologia são predominantemente qualitativos. Todavia, as


metodologias de caráter quantitativo são igualmente pertinentes para o trabalho antropológico Ervin
(2000, 171-187), de que são exemplos os indicadores sociais e a aplicação de questionários.

Indicadores sociais

38
Os indicadores sociais são obtidos através da análise de estatísticas relevantes. Os
indicadores são números agregados escolhidos para representar tendências e assumidas como
medidas da uma região ou país. Entre as áreas passíveis de serem analisadas através de indicadores
estão a saúde e a habitação. Os dados demográficos são também valiosos para contextualizar as
características da população e a sua distribuição num determinado território. A combinação de vários
indicadores permite avaliar os indicadores socioeconómicos como o da pobreza.

Questionários

Os questionários têm vindo a ganhar uma maior aplicabilidade entre os antropólogos. No


entanto, dada a sua complexidade e onerosidade é necessário ponderar a sua realização e verificar se
a informação não pode ser obtida de outra forma. Assente a necessidade de realização do
questionário há que concebê-lo tanto no plano logístico (avaliando os custos associados à sua
aplicação) e no plano científico (concebendo a sua estrutura e validade).
Um dos principais desafios da aplicação de um questionário é a seleção da amostra. Esta
pode tomar duas formas: as amostras probabilísticas e as amostras não probabilísticas. As amostras
probabilísticas aumentam a validade do questionário e permitem a sua generalização. Trata-se de
amostras que pretendem assegurar que cada secção de uma determinada população esteja
representada na amostra. Considerando o estudo em causa e os critérios de seleção estabelecidos é
necessário que a população possa ser listada de modo a ser selecionada a amostra representativa. No
caso de não existirem listas exaustivas a amostra será feita de forma aleatória dentro de
determinados parâmetros que procuram assegurar a representatividade da população. São as
denominadas as amostras não probabilísticas. Entre estas amostras incluem-se:

1. casos típicos: seleção de casos que são mais bem conhecidos e representativos;
2. os casos mais similares e os menos similares: selecionando os que apresentam caraterísticas
mais comuns ou menos
3. bola de neve: contatando novos participantes referenciados por outros;
4. amostra por quota: selecionando pessoas ou unidades com base na sua proporção na
população;
5. casos críticos: selecionando casos que são chave e essenciais para a investigação.

No contexto específico da antropologia aplicada há ainda um conjunto de técnicas de trabalho


que iremos aqui listar de forma sucinta: as RAPs - Rapid Assessment Procedures, que podemos traduzir
como procedimentos de levantamento rápido, que procuram conciliar a natureza naturalista da
abordagem metodológica da antropologia com a necessidade de obter dados em contexto de
urgência, e a Participatory Action Research, Pesquisa de Acção/intervenção participativa, que pretende
envolver de forma mais direta os “sujeitos” de um processo de desenvolvimento na pesquisa e gestão
do próprio projeto.

39
“Rapid Assessment Procedures “ RAPs – Procedimentos de levantamento rápido

A questão do tempo é uma das mais prementes com que os antropólogos aplicados têm de
lidar. Nem sempre o tempo tradicional da pesquisa antropológica, de longa duração (exemplo de um
ano), é compatível com as necessidades das entidades que comissionam trabalhos de antropologia
aplicada. Neste contexto, alguns antropólogos tentaram desenvolver os parâmetros para uma
pesquisa rápida. Esta tem-se desenvolvido prioritariamente em trabalhos ligados às questões de
desenvolvimento nos países do “Terceiro Mundo”.
Este tipo de pesquisa funciona melhor quando há um claro entendimento do problema central e o
que se pretende é avaliar a sua contextualização local. Ervin (2000, 190) indica como exemplos os
estudos da epidemia de HIV/SIDA na área da saúde (ver o artigo de Bond, 1999) ou as questões da
seca na agricultura. Há uma perceção do problema geral, mas há que equacionar a dimensão humana
em contexto local e é esta a intervenção da antropologia aplicada. Por norma estes estudos
desenvolvem-se em períodos de uma a seis semanas.
Ervin (2000, 195) seguindo Harris et al. (1997) analisa os cuidados e critérios que devem estar
presentes neste tipo de estudo: fiabilidade, utilidade, viabilidade e propriedade.

1. fiabilidade (accuracy): a necessidade de manter uma descrição exaustiva do problema, do


contexto, das circunstâncias locais e dos serviços e programas existentes; assegurar a
validade das observações realizadas procurando que a realidade analisada seja
compreendida quer por pesquisadores quer por pesquisados; procurar formas de evitar
enviesamentos que possam impedir a generalização das descobertas à comunidade
(procurando obter diferentes entrevistas de diferentes sujeitos);
2. utilidade (utility): os resultados e recomendações devem ser úteis para todos os que tenham
um interesse neles;
3. viabilidade (feasibility): os RAPs devem ser apropriados, politicamente viáveis e fáceis de
implementar num dado contexto para serem executados;
4. propriedade (property): são os procedimentos éticos e justos para com os envolvidos? Podem
os princípios éticos ser assegurados dado o tempo disponível?

Dados os constrangimentos de aplicação dos RAPs Harris e tal. (1997) referido por Ervin
(2000, 197) defende que esta abordagem tem mais hipóteses de sucesso quando envolve um trabalho
de equipa multidisciplinar, envolvendo várias técnicas de recolha de dados e com alguns dos
membros da equipa originários da cultura em causa.

40
Participatory Action Research20 - Pesquisa de Acção/intervenção participativa

Cada vez mais o processo de pesquisa e a sua propriedade tem passado para as mãos de
comunidades ou grupos de cidadãos que procuram influenciar a definição de políticas. Ainda assim,
há um elevado número de pessoas que não dispõem do poder e capacidade organizacional para
melhorar a sua situação e que se encontram excluídas ou marginalizadas do processo de definição dos
seus próprios problemas.
Muitos antropólogos têm desempenhado junto destes grupos ou comunidades um papel
relevante, mas que é, simultaneamente, um desafio à sua prática tradicional pois os sujeitos de
investigação são os próprios proprietários e gestores da investigação. Em antropologia a tradição de
trabalho de parceria com os sujeitos teve início com Sol Tax nos anos quarenta que com os seus
alunos iniciou um trabalho nos EUA com os índios Fox e Moquawkie. Neste trabalho eram definidos
em conjunto os problemas que deviam ser abordados. Esta área relaciona-se também com a
antropologia e advocacia. Da mesma forma, no Brasil, Paulo Freire procurou na educação de adultos
consciencializar os camponeses para ultrapassarem a sua marginalidade e exploração (ver Carmo,
1999)

Ervin (2000, 200) identifica as principais características desta abordagem com o princípio de
que os seus proponentes acreditam que as pessoas mais afetadas por um determinado problema
devem ser aquelas que mais têm a dizer sobre ele e têm legitimidade para agir sobre ele. Neste
trabalho os participantes locais analisam a sua condição de vida e procuram meios para superar as
suas dificuldades. Este processo vai muito para além da investigação e muitos dos princípios
“científicos” podem não ser totalmente alcançados.

Os principais pontos a salvaguardar na pesquisa participativa são, segundo Ervin (2000, 200):

1. a comunidade define o problema, analisa-o e resolve-o;


2. as pessoas são donas da informação, analisam os resultados e chegam a conclusões;
3. só pode haver mudança nas suas vidas se todas se comprometerem a participar;
4. é um procedimento que cria um grande reconhecimento das capacidades da comunidade;
5. é um processo de investigação científica que representa a democratização da pesquisa;
6. os investigadores exteriores à comunidade também experimentam grandes mudanças no
seu papel;
7. a ação participativa está normalmente relacionada com a advocacia.

20
Também referida como Action anthropology “o ramo da antropologia aplicada, ou da antropologia aliada à
antropologia aplicada, que procura combater ameaças diretas a grupos populacionais. A Antropologia de ação
procura assim usar o conhecimento antropológico com objetivos políticos tendo por base um comprometimento
moral.” (Barnard e Spencer, 2002, 594)

41
Segundo o mesmo autor os principais desafios que a pesquisa participativa coloca ao
antropólogo são:

1. a dependência/instabilidade que resulta da possibilidade de poder ser colocado de parte do


projeto se a comunidade o entender;
2. a necessidade de qualidades pessoais, sobretudo paciência, para aceder às diretrizes do
grupo ou comunidade, que podem ser diferentes das estabelecidas pelo investigador;
3. a dificuldade em definir o seu lugar no processo, ganhar confiança e aceitação, tentar ajudar
sem ser muito assertivo;
4. a principal opção metodológica é a discussão de grupo, incluindo grupos focais. (Ervin, 2000,
201)

Concluída a esta apresentação como podemos condensar um conjunto de informação tão vasto e
pessoal? Apresenta-se de seguida uma sumula de dez mandamentos da observação participante
numa recensão de Lícia Valladares da obra de William Foote Whyte.

Os dez mandamentos da observação participante


William Foote WHYTE. Sociedade de esquina: a estrutura social de uma área urbana pobre e
degradada. Tradução de Maria Lucia de Oliveira. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2005. 390 páginas.

Licia Valladares

Enfim o leitor brasileiro tem acesso a Street corner society de William Foote Whyte, um clássico
dos estudos urbanos, obrigatório em todo curso de métodos qualitativos e pesquisa social.
Gilberto Velho, autor da apresentação e responsável pela coleção “Antropologia Social” da Jorge
Zahar, tomou a iniciativa de fazer traduzir a edição de 1993, comemorativa dos cinqüenta anos
da primeira publicação do livro. A primorosa tradução inclui anexos que o próprio autor foi
acrescentando nas várias reedições do livro, referentes à prática do trabalho de campo, ao
depoimento de um dos personagens e à sua lista de publicações. Além de um índice remissivo,
peça rara entre as publicações brasileiras, mas de uso fundamental quando se quer realizar uma
leitura compreensiva de uma obra.

Originalmente publicado em 1943, o texto é não apenas atual pela temática que aborda – a
juventude, a organização social das gangs e dos bairros pobres –, mas também um livro
fundamental para aqueles que fazem trabalho de campo nas cidades, realizando o que os norte-
americanos denominam anthropology at home. É também de grande importância para os
sociólogos urbanos que cada dia aderem mais aos métodos qualitativos e aos estudos de caso e
se interessam pelo tema das redes sociais, da juventude, da política local e da territorialização da
pobreza. O subtítulo – A estrutura social de uma área urbana pobre e degradada – chama a
atenção para a importância atribuída pelo autor aos temas da estrutura e da mobilidade social,
normalmente considerados temáticas próprias da sociologia.

William Foote Whyte, filho de classe média alta norte-americana, pesquisou nos anos de 1930
uma área pobre e degradada da cidade de Boston, onde morava. Conhecido como um dos slums
mais perigosos da cidade e sobre o qual circulavam várias idéias preconcebidas e
estigmatizantes, o bairro italiano é pouco a pouco “desbravado” pelo aprendiz de pesquisador

42
que apenas o conhecia por “ouvir dizer”. Ao mesmo tempo em que se insere na localidade e vai
redefinindo os objetivos de sua pesquisa, dá tropeços no convívio com os moradores,
aprendendo a pensar e a refletir sobre a natureza de suas relações com os informantes. Aos
poucos vai sendo aceito, muda-se inclusive para Cornerville, mas se dá conta de que é funda-
mental poder contar com um intermediário para realizar sua observação. “Doc”, termo que
define um informante-chave, simboliza esse mediador, que garante o bom acesso à localidade
e/ou ao grupo social em estudo. Desempenha também o papel de conselheiro e “protetor”,
defendendo o pesquisador contra as intempéries e os imponderáveis próprios ao trabalho de
campo. Após três anos de convívio e familiaridade com os diferentes grupos informais e
instituições que atuavam e estruturavam a área (clubes sociais, centro comunitário,
organizações informais etc.), Foote Whyte deixou o bairro para dedicar-se à difícil tarefa de
redigir sua obra. Saída difícil e dolorosa para o observador participante, mas facilitada pelo fato
de o jovem pesquisador mudar-se para Chicago, onde se inscreve como aluno de doutorado na
universidade onde Robert Park havia bem marcado sua passagem.

Para além do interesse temático, este livro constitui um verdadeiro guia da observação
participante em sociedades complexas. Minha opção será a de insistir na contribuição
metodológica do autor, tendo em vista a verdadeira “moda” no Brasil de estudos de caso em
“comunidades carentes” ou em territórios urbanos demarcados social e geograficamente.

Dez “mandamentos” podem ser depreendi- dos da leitura do livro:

1) A observação participante, implica, necessariamente, um processo longo. Muitas vezes o


pesquisador passa inúmeros meses para “negociar” sua entrada na área. Uma fase exploratória
é, assim, essencial para o desenrolar ulterior da pesquisa. O tempo é também um pré-requisito
para os estudos que envolvem o comportamento e a ação de grupos: para se compreender a
evolução do comportamento de pessoas e de grupos é necessário observá-los por um longo
período e não num único momento (p. 320).

2)O pesquisador não sabe de antemão onde está “aterrissando”, caindo geralmente de
“páraquedas” no território a ser pesquisado. Não é espera- do pelo grupo, desconhecendo
muitas vezes as teias de relações que marcam a hierarquia de poder e a estrutura social local.
Equivoca-se ao pressupor que dispõe do controle da situação.

3)A observação participante supõe a interação pesquisador/pesquisado. As informações que


obtém, as respostas que são dadas às suas indagações, dependerão, ao final das contas, do seu
comportamento e das relações que desenvolve com o grupo estudado. Uma auto-análise faz-se,
portanto, necessária e convém ser inserida na própria história da pesquisa. A presença do
pesquisa- dor tem que ser justificada (p. 301) e sua transformação em “nativo” não se verificará,
ou seja, por mais que se pense inserido, sobre ele paira sempre a “curiosidade” quando não a
desconfiança.

4)Por isso mesmo o pesquisador deve mostrar-se diferente do grupo pesquisado. Seu papel de
pessoa de fora terá que ser afirmado e reafirmado. Não deve enganar os outros, nem a si
próprio. “Aprendi que as pessoas não esperavam que eu fosse igual a elas. Na realidade estavam
interessadas em mim e satisfeitas comigo porque viam que eu era diferente. Abandonei,
portanto, meus esforços de imersão total” (p. 304).

5)Uma observação participante não se faz sem um “Doc”, intermediário que “abre as portas” e
dissipa as dúvidas junto às pessoas da localidade. Com o tempo, de informante-chave, passa a

43
colaborador da pesquisa: é com ele que o pesquisa- dor esclarece algumas das incertezas que
permanecerão ao longo da investigação. Pode mesmo chegar a influir nas interpretações do
pesquisa- dor, desempenhando, além de mediador, a função de “assistente informal”.

6)O pesquisador quase sempre desconhece sua própria imagem junto ao grupo pesquisado.
Seus passos durante o trabalho de campo são conhecidos e muitas vezes controlados por
membros da população local. O pesquisador é um observador que está sendo todo o tempo
observado.

7)A observação participante implica saber ouvir, escutar, ver, fazer uso de todos os sentidos. É
preciso aprender quando perguntar e quando não perguntar, assim como que perguntas fazer na
hora certa (p. 303). As entrevistas formais são muitas vezes desnecessárias (p. 304), devendo a
coleta de informações não se restringir a isso. Com o tempo os dados podem vir ao pesquisador
sem que ele faça qualquer esforço para obtê-los.

8)Desenvolver uma rotina de trabalho é fundamental. O pesquisador não deve recuar em face de
um cotidiano que muitas vezes se mostra repetitivo e de dedicação intensa. Mediante notas e
manutenção do diário de campo (field notes), o pesquisador se autodisciplina a observar e
anotar sistematicamente. Sua presença constante contribui, por sua vez, para gerar confiança na
população estudada.
9)O pesquisador aprende com os erros que comete durante o trabalho de campo e deve tirar
proveito deles, na medida em que os passos em falso fazem parte do aprendizado da pesquisa.
Deve, assim, refletir sobre o porquê de uma recusa, o porquê de um desacerto, o porquê de um
silêncio.

10)O pesquisador é, em geral, “cobrado”, sendo esperada uma “devolução” dos resultados do
seu trabalho. “Para que serve esta pesquisa?” “Que benefícios ela trará para o grupo ou para
mim?” Mas só uns poucos consultam e se servem do resultado final da observação. O que fica
são as relações de amizade pessoal desenvolvidas ao longo do trabalho de campo.

Outros “mandamentos metodológicos” poderiam ser inferidos. Gostaria apenas de insistir sobre
dois pontos. Da leitura do livro, fica claro que a observação participante não é uma prática
simples mas repleta de dilemas teóricos e práticos que cabe ao pesquisador gerenciar. A
experiência descrita e analisada pelo autor, numa linguagem que dispensa o jargão
especializado, mostra que a observação participante exige, sim, uma cultura metodológica e
teórica. Foote Whyte não vinha de uma formação em antropologia ou sociologia, mas havia
estudado na tradicional e bem cotada Universidade de Harvard. Havia lido Malinowsky,
Durkheim, Pareto, os Lynd (Middletown) e a literatura sobre communities. Teve contacto com
Elton Mayo, que o orientou no aprendizado das técnicas de entrevista, e com o antropólogo
Conrad Arensberg, com quem discutiu métodos de pesquisa de campo. Lloyd Warner, autor de
Yankee city, veio a ser seu orientador na Universidade de Chicago. Para a revisão do manuscrito,
contou com as sugestões de Everett Hugues. Como diz Gilberto Velho, na apresentação da
edição brasileira, o livro “como produto final traz inevitavelmente as marcas de sua passagem e
relações com alguns dos expoentes da Escola de Chicago dos anos 1940” (p. 12).

Outro aspecto importante diz respeito à atualidade do livro e sua pertinência para entender
áreas pobres e o mundo popular no Brasil de hoje. O diagnóstico oferecido pelo autor contra-
põe-se à imagem produzida pelo senso comum, que considera as áreas pobres exclusivamente
um problema: degradadas, homogêneas, desorganiza- das, caóticas e fora da lei, devendo
necessariamente ser “ajudadas” uma vez que “abandonadas à sua própria sorte” nunca se

44
desenvolverão. Vistas de dentro, e a partir do olhar arguto do cientista social, tem-se outra
visão: tais localidades corresponderiam a áreas onde coexistem espaços e grupos locais
diferenciados porém estruturados a partir de redes de relações sociais. A desorganização social
não é, portanto, a tônica geral – o que não significa negar a existência do conflito entre os
grupos. Foote White não tem, dessa forma, nem uma visão “miserabilista” nem populista dos
pobres. O autor insiste na importância da sociabilidade que ocorre no espaço público do mundo
popular, na “sociedade da esquina” para usar seu próprio linguajar. Pois é na esquina, no espaço
informal, que as decisões são tomadas, que os grupos se estruturam e que as relações sociais se
constroem e se destroem.
Que este livro sirva de “aviso” e inspiração a todos aqueles que queiram se lançar na aventura da
observação participante.

LICIA VALLADARES é professora de Sociologia da Universidade de Lille 1 e membro do


Laboratório Clerse/CNRS. No Brasil é pesquisadora associada do Iuperj.
In Revista Brasileira de Ciências Sociais - VOL. 22 Nº. 63, pp.153-155.

45
46
2.Teorias e práticas antropológicas

©Malinowski nas ilhas Trobriand, London School of Economics

Pressupostos do tema

Este tema pretende proporcionar uma visão panorâmica dos percursos teóricos da Antropologia
e discutir algumas das questões mais pertinentes no seu desenvolvimento. De seguida é analisada a
antropologia aplicada, identificando o seu propósito e o papel dos antropólogos.

Objetivos gerais:

No final deste tema deverá compreender e explicar:

§ o percurso histórico geral da antropologia social e cultural;


§ a contribuição das várias escolas, as suas diferenças e sobreposições teóricas;
§ a utilidade da antropologia aplicada;
§ aplicação prática da antropologia e questões éticas

47
48
2.1 Teorias clássicas e debates contemporâneos

As teorias e as escolas, tal como os micróbios e os glóbulos,


devoram-se mutuamente e asseguram, pela sua luta, a
continuidade da vida.
Marcel Proust, Sodome et Gomorrhe (in Colleyn, 2005: 53)

A “pré-história” da Antropologia

No seu estudo sobre a história da antropologia Mercier (1986) denomina o período anterior à
institucionalização da antropologia no campo académico como a sua “pré-história”. Nesta fase as
preocupações antropológicas com a descrição do Outro estão já presentes em obras clássicas de
várias civilizações. E, tal como na atualidade, este saber não era despiciendo, servindo para a
produção de discursos sobre as identidades em presença: nós e os outros.
Na tradição ocidental os trabalhos de Heródoto, Platão, Aristóteles entre outros,
demonstram a ambivalência etnocêntrica face à alteridade. Herdamos dos gregos essa designação do
Outro não grego: os “bárbaros”. Por seu turno, os Romanos e, posteriormente a europa medieval,
confrontam as fronteiras do seu mundo como locais de contato e absorção, porosidades marcadas
pelo anseio e temor face ao outro, fenotipicamente diverso, religiosamente diferente,
economicamente ambicionado (Marco Polo) que se pode conquistar ou que nos pode invadir.
A expansão da Europa pela via marítima, os Descobrimentos, iniciam uma fase de maior
proximidade e envolvimento entre todos os povos, mas, igualmente, a afirmação de um sistema
global de domínio económico e político da Europa que implicou a globalização a uma escala mundial
de relações e de subjugações entre os povos, de que o colonialismo e a escravatura são exemplos. Os
novos continentes e as novas humanidades são novos limiares de discussão da universalidade ou não
da espécie humana e do que a carateriza. Um episódio marcante desta relação foi a conferência de
Valladolid em 1550-1551 onde se decidiu se os índios, eram ou não homens. O debate opôs Frei
Bartolomeu de las Casas, dominicano e defensor dos “índios”, contra Ginés de Sepulvéda. Nos seus
argumentos os ameríndios eram tão homens quanto os da Europa e tinham direito à sua cultura e
terras. Tendo vencido o debate, o facto não ilibou os ameríndios dos piores atos de violência21.
O século das luzes e os seus autores do século XVII e o século XVIII vão marcar uma mudança
alimentada pelas novidades de um mundo mais aberto. As ideias florescem e a sociedade europeia
procura redescobrir as suas origens na história, mas também na comparação com o Outro. Para

21
Para saber mais ver a Fouques, Bernanrd (1997), «O índio da América latina ou a parte maldita», In História
Inumana – massacres e genocídios das origens aos nossos dias, sob a direção de Guy Richard. Lisboa, Instituto
Piaget. Um bom romance para aprender mais sobre estas matérias é O Sonho do Celta de Mario Vargas Llosa.

49
Barnard (2000, 18) as grandes questões antropológicas deste século eram: o que define a espécie
humana; o que distingue os humanos dos animais e qual é a condição natural da humanidade. Muita
do debate desenvolveu-se tendo por base três questões: as crianças selvagens, os “orang outang” e os
“selvagens” (os habitantes indígenas de outros continentes).
O tema das crianças selvagens adquire bastante notoriedade pública com alguns casos de
crianças que, encontradas isoladas, não tinham vivido em comunidades humanas e mostraram
diferentes reações ao convívio e aprendizagem humanos. Mais complexo, o caso do “orang outang”
(do malaio pessoa da floresta), acalentou discussões intensas sobre a natureza gregária ou solitária do
ser humano e a existência ou não de diferentes espécies e a sua relativa inferioridade. O conceito de
“selvagens” era, nesta época, conotado com a noção de liberdade, de que os nativos americanos
eram o principal modelo. A noção de “nobre selvagem” foi defendida por Rosseau, que fala de um
homem natural, ou homem selvagem no seu Discurso sobre a origem da desigualdade (1755).
A par desta discussão sobre a natureza humana o século XVIII também revela a presença de
uma tradição de cariz sociológico com autores como Montesquieu22 que discorre na sua obra “De
l'esprit des lois” a relação das leis com a cultura e advoga a existência de um “espirito geral” que é a
essência de uma dada cultura. Saint Simon e Auguste Comte, cujos contributos foram essenciais para
o desenvolvimento da sociologia.
Há várias formas de apresentar a progressão da história das teorias antropológicas.
Tradicionalmente são referidas quatro grandes perspetivas teóricas clássicas, que marcaram de forma
indelével a progressão da teoria em antropologia até aos anos 50-60 do século XX: o evolucionismo,
o difusionismo, o funcionalismo e o estruturalismo. Nos Textos iremos seguir estas grandes
abordagens teóricas promovendo em cada uma a análise da sua génese e preocupações teóricas.
Fazendo depois uma abordagem mais sucinta das tendências e desenvolvimentos mais atuais. Esta
progressão não é forçosamente sequencial. Há “saltos” e inovações, desafios epistemológicos e
confrontações, de que as abordagens pós-modernistas são as mais acutilantes.

22
Charles de Secondat, conde de Montesquieu (1689-1755) é igualmente o autor das Cartas Persas (Lettres
persanes), de 1721, uma obra que supostamente relata a correspondência em entre dois viajantes persas e os
seus conterrâneos sobre as suas experiências de viagem, em particular na Europa. Uma obra em que o autor se
coloca no papel do “outro” para analisar, e criticar, a sua sociedade.
http://athena.unige.ch/athena/montesquieu/montesquieu_lettres_persanes.html

50
2.1.1 Evolucionismo

O conceito de evolução precede a ciência antropológica23. Este é relativamente aceite desde


o Iluminismo e os filósofos do séc. XVIII já o incorporam nas suas conjeturas sobre a origem e
desenvolvimento da humanidade. Neste campo de debate em que emerge a antropologia digladiam-
se duas perspetivas: o poligenismo e o monogenismo. O poligenismo defendia que a humanidade
tinha várias origens e que as “raças” eram, na essência, diferentes espécies. Por seu turno, o
monogenismo defendia que a humanidade tinha uma única origem. É este pressuposto que vai
encorpar as ideias dos antropólogos evolucionistas24. Estas ideias vão ganhar forma tanto no campo
académico, quanto social. Por exemplo, a defesa do monogenismo foi suportada pela “Aborigines
Protection Society”, fundada em Londres em 1837, e a Ethnological Society of London, fundada em
1843.
O evolucionismo na perspetiva antropológica compreende quatro grandes linhas de
pensamento: o evolucionismo unilinear, o evolucionismo multilinear, o evolucionismo universal e o
neodarwinismo. O evolucionismo unilinear carateriza o evolucionismo antropológico do século XIX,
sendo os restantes desenvolvimentos posteriores, surgindo durante o século XX.
Os autores que suportam o evolucionismo unilinear consideram que a cultura se desenvolve
de uma forma uniforme e progressiva. Nesta aceção, todas as sociedades passariam por um conjunto
de estádios de desenvolvimento cultural até atingirem a civilização, o mais elevado grau de cultura
(sendo a sociedade Ocidental considerada a mais proeminente). Os principais temas trabalhados
pelos autores evolucionistas foram a família e o contrato social e as questões de religião, no qual o
totemismo* assumiu particular relevância.
Do ponto de vista metodológico os estudos evolucionistas baseavam-se numa abordagem
dedutiva e no método comparativo. A abordagem dedutiva resultava na aplicação de teorias gerais a
casos particulares. As sociedades primitivas existentes eram consideradas “fósseis vivos” de estádios
anteriores e defendia-se que o seu estudo permitiria facultar pistas para compreender a sociedade
Ocidental dos finais do século XIX. Esta ideia baseava-se no pressuposto da unidade psíquica da
humanidade: as sociedades simples e complexas eram comparáveis já que a mente humana se tinha
desenvolvido da mesma forma. Embora esta noção fosse relativamente vaga não se pode deixar de
creditar estes autores pelo facto de, como refere Mercier (1986, 41), terem dado ênfase à ideia de
unidade da “família humana”.

23
Como refere Barnard (2000, 27-28) a tradição medieval europeia advogava um fixismo dos seres vivos numa
escala imutável determinado pela criação original. O universo era classificado como um princípio ordenado “ a
grande cadeia do Ser”, tendo Deus no topo, seguido dos anjos e finalmente o homem, a este seguiam-se os
macacos e os outros animais até aos vermes.
Por seu turno, a teoria da evolução pressupunha a mudança e mutabilidade, no tempo e no espaço, da vida
biológica. Na análise da transposição das ideias de evolução da biologia para o campo social é necessário
relembrar que foi Herbet Spencer (1820-1903) e não Charles Darwin quem utiliza pela primeira vez a expressão
“sobrevivência do mais apto”.
24
Esta ideia continua a ser aquela que persiste na moderna antropologia, que defende que a humanidade é a
mesma, tanto biologicamente como psicologicamente.

51
Entre os autores que tentaram apresentar um esquema
evolutivo destacam-se Henry James Maine (1822-1888), John
Ferguson McLennan (1827-1881), Lewis Henry Morgan (1818-
1881), Edward Burnett Tylor (1832 – 1917) e James Frazer (1854-
1941).
Procedemos à recensão breve de Maine, McLennan e
Frazer. Maine analisou a evolução do Estado desde a organização Lewis Henry Morgan
1818-1881
baseada no parentesco até às estruturas complexas, defendendo
que a família patriarcal era a forma original e universal da vida Nasceu nos EUA. Formado
em Direito praticou
social. Por sua vez, McLennan, advogava a ideia de que o sistema advocacia. Como advogado
de descendência matrilinear precedia o sistema de descendência defende os iroqueses, por
quem se interessa e estuda
patrilinear e James Frazer estudou a religião, postulando três
a organização social. Em
etapas na evolução de todas as sociedades: magia, religião e 1847 foi formalmente
adotado pela tribo Seneca.
ciência25.
Os seus principais trabalhos
O americano Lewis Henry Morgan e o inglês Edward são "Sistemas de
consanguinidade e
Burnett Tylor merecem um destaque particular pelo papel que
afinidade da família
desempenham na afirmação da antropologia. humana” (1869) e
"Sociedade Antiga" (1871).
Os trabalhos mais importantes de Lewis Henry Morgan
foram Systems of Consanguinity and Affinity (1871) e Ancient
Society26 (1877). Em Systems of Consanguinity, um trabalho devotado às classificações do parentesco,
Morgan aprofunda o campo de estudo comparativo dos sistemas de parentesco. Nele introduz o
conceito de terminologias classificatórias e descritivas . No sistema classificatório um mesmo termo é
empregue para designar um conjunto variado de parentes, enquanto no sistema descritivo um
determinado termo é específico de uma relação.
Em Ancient Society, o seu livro mais famoso, Morgan delineou a evolução da sociedade desde
o seu princípio até à sua época (a sociedade Vitoriana, considerada o ponto mais alto da civilização). A
proposta contemplava a divisão do desenvolvimento cultural da humanidade em três estádios:
selvajaria, barbárie e civilização. Os primeiros dois estádios eram subdivididos em três fases: baixa,
média e alta. A ênfase desta evolução era no papel desempenhado pela tecnologia e economia. A
transição de um estádio para o outro significava progresso não só tecnológico, mas também moral.
Nesta obra Morgan desenvolve igualmente, na sequência do seu trabalho anterior, os conceitos de
parentesco, usando a terminologia classificatória e a descritiva.

25
Frazer é famoso pela sua obra monumental The Golden Bough. O prefácio da obra de Malinowski é redigido por
ele, embora a obra em si mesma seja uma reacção em parte às suas próprias teorias sobre a religião. Frazer é um
dos mais afamados “armchair anthropologists”, “antropólogos de secretária/cadeirão”, sendo famoso o episódio
em que, questionado se alguma vez tinha contactado com os “selvagens” sobre quem tanto sabia, afirmou: “Não,
Deus me livre!”.
26
O título completo da obra ilustra a perspetiva evolucionista do autor: “Ancient Society or Researches in the Lines
of Human Progress from Savagery through Barbarism to Civilization”. Pode consultar aqui:
http://classiques.uqac.ca/classiques/morgan_lewis_henry/ancient_society/ancient_society.html

52
Quadro 1: Esquema de Morgan
Estádios Fases Desenvolvimentos

Baixo Desde a infância da humanidade ex.: pré-hominídeos

Selvajaria Médio Desde a dieta do peixe e o uso do fogo ex.: Australianos

Alto Desde a invenção do arco e da flecha ex.: Polinésios

Baixo Desde a invenção da cerâmica ex.: Iroqueses

Desde a domesticação dos animais e das plantas; utilização de


Médio
Barbárie tijolos adobe e plantas ex.: Zunis
Desde a fundição do ferro com o uso de ferramentas ex.: Gregos
Alto
homéricos.
Desde a invenção do alfabeto fonético com o uso da escrita, até
Civilização
aos nossos dias ex.: as culturas modernas

Edward Tylor é conhecido principalmente pelo seu


trabalho: Primitive Culture (1871)27, onde apresenta ideias
essenciais que marcaram a teoria evolucionista. O autor, que
se consagrou sobretudo ao estudo da religião, defendeu a ideia
de que era possível reconstruir os estádios da evolução
humana através da análise das “sobrevivências”28. Para Tylor,
tudo o que existia na sociedade contemporânea que não
tivesse uma função era uma “sobrevivência” de um período Edward Tylor
anterior. Assim, era possível estudar os períodos passados (1818-1917)
através destes vestígios. Um segundo aspeto da sua teoria, É considerado o fundador da
relacionado com a religião, propunha a origem desta no antropologia cultural. O seu
trabalho mais importante é
animismo, que terá evoluído para o politeísmo e finalmente o Primitive Culture (1871).
monoteísmo. No entanto, uma das principais razões que Desenvolveu a teoria de uma
relação evolutiva progressiva
tornam Tylor famoso é a sua definição de cultura: do primitivo às culturas
modernas. A sua definição de
cultura é recorrentemente
“Cultura ou Civilização, tomada no seu sentido etnográfico usada como edificadora no
mais amplo é esse todo complexo que inclui campo antropológico.

conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou


qualquer outra capacidade e hábitos adquiridos pelo
homem enquanto membro de uma sociedade.” (Tylor,
1977(1871), 1)

27
A obra pode ser consultada em: https://archive.org/details/primitiveculture01tylouoft
28
O capítulo IV é dedicado às ciências ocultas, para o autor consideradas como “sobrevivências”. Volvidos 150 anos
e observadas as páginas de certos jornais, revistas, anúncios e programas televisivos o que diria o autor?

53
De facto, a noção de cultura deixa de estar associada exclusivamente com um saber
meramente livresco, relacionado a privilégios de educação e classe. Entendida nesta forma o conceito
revoluciona o status da época pois reconhece que toda a humanidade tem cultura. Embora ambos os
autores reclamassem o princípio da unidade psíquica da humanidade não deixaram de marcar as suas
posições por atitudes etnocentristas, a principal das quais decorria da estratificação que operaram na
humanidade contemporânea, já que era a sua sociedade, a ocidental, que se encontrava no topo da
escala evolutiva, fruto da evolução e progresso. Este facto permitiu justificar os processos coloniais
em curso.

2.1.2 Difusionismo

A ideia de que as culturas transmitem elementos umas às outras já se encontra em autores


evolucionistas, nomeadamente Tylor (por exemplo a sua noção de adesões – denominado pelos
difusionistas como complexos culturais) e Morgan (cujas terminologias de parentesco dependiam das
migrações e difusão).
No entanto, desde os finais do séc. XIX alguns autores vão sistematizar e enfatizar o princípio
da difusão como o elemento principal para aferir as semelhanças e diferenças entre culturas, por
oposição ao princípio de invenção que caraterizava os autores evolucionistas. Para os difusionistas as
invenções eram relativamente raras e o processo de difusão e “empréstimo” era o principal
responsável pelo desenvolvimento cultural. Até certo ponto o difusionismo foi uma reação ao
evolucionismo, mas não rejeitou totalmente as suas ideias.
Embora também seja conhecido como historicismo, vamos reservar este termo para o
difusionismo desenvolvido pela Escola Americana de Franz Boas (analisada mais à frente),
examinando neste capítulo o chamado difusionismo inglês e o difusionismo alemão-austríaco.

54
O difusionismo inglês

O difusionismo inglês apresenta duas facetas: por


um lado os autores da escola heliocêntrica, hiperdifusionista
ou “de Manchester”29 e, por outro lado, os autores como W.
H. R. Rivers (1864-1922) da Universidade de Cambridge. No
caso dos primeiros, a noção de criatividade humana era
Willian H. Rivers
rejeitada, caraterizando-se por um dogmatismo baseado na
1864 - 1922
especulação. Pelo contrário, Rivers é um autor muito mais
“The Todas”, 1906: investigador
respeitado pelos princípios de estudo que introduziu e pelo
eclético, Rivers escreve em 1906
facto de ter sido um formador de muitos dos antropólogos um livro que, em vários aspetos,
antecede o desenvolvimento da
ingleses da escola funcionalista.
moderna antropologia social
Os principais representantes da escola inglesa. Baseado em trabalho de
terreno, a obra é, como refere Hart
heliocêntrica30 foram Grafton E. Smith (1871-1937) e Willian
(s.d.), um exemplo pioneiro de
J. Perry (1887-1949). Influenciado pelas descobertas etnografia intensiva onde aplica o
seu método genealógico e
arqueológicas que na altura se realizavam no Egipto, Smith
desenvolve diagramas de
atribui a esta antiga civilização a origem da cultura, dando parentesco.
Para saber mais consulte a obra:
como exemplo costumes egípcios como o culto do sol, a
https://archive.org/details/todas01
mumificação, as pirâmides, entre outros, que teriam sido rivegoog
levados por esse povo nas suas digressões pelo mundo,
Fonte foto:
conceção que Perry desenvolve na sua obra The Children of http://en.wikipedia.org/wiki/W._H._R._Rivers

the Sun (1923). Embora o princípio do método histórico


defendido por estes autores seja aceitável, a extrapolação de conclusões não era demonstrável e esta
escola não se tornou frutífera, nomeadamente após as descobertas arqueológicas noutras regiões
demonstrarem que o Egipto não podia ser o centro exclusivo de origem da cultura31.

William Halse Rivers (1864 -1922) ocupa um lugar à parte no difusionismo inglês e o seu
trabalho vai ser mais profícuo no campo da antropologia. Em 1898-1899 ele fez parte da expedição ao
Estreito de Torres32, um empreendimento multidisciplinar (ele era médico) coordenada por Alfred
Haddon da Universidade de Cambridge e onde participou igualmente C.G. Seligman. No decurso da
estadia no terreno efetuou estudos de parentesco (dando origem ao método genealógico – processo

29
Não confundir com a Escola de Manchester, designação relativa ao trabalho desenvolvido já no século XX com o
antropólogo Max Glukman.
30
Heliocêntrico: na aceção do que tem o Sol como centro ou origem.,
31
No entanto, muitas das suas ideias continuaram a ter forte influência em exploradores como Thor Heyerdall,
que nos anos oitenta procurou demonstrar a difusão de ideias navegando em réplicas de barcos Sumérios e
Incas. Pode ler como exemplo “A Expedição do Tigris, - Círculo de Leitores.
32
A Expedição ao Estreito de Torres, localizado entre a Austrália e a Nova Guiné, é considerada a primeira grande
experiência de campo da antropologia inglesa, paradoxalmente realizada em grupo interdisciplinar, uma prática
escassa na antropologia, que se associará desde Malinowski à ideia de um/a antropólogo/a no terreno.

55
de estudo e indexação das relações de parentesco e afinidade) e a aplicação de testes psicológicos
entre os Papuas da Nova Guiné.
Como refere Langham (1981) estes três autores tiveram um papel fundamental na mudança
da antropologia inglesa do domínio evolucionista, constituído o “elo” que antecedeu Malinowski e
Radclife-Brown. Estes autores propunham o estudo das culturas concretas como totalidades
integradas, relacionando a antropologia com a psicologia e psicanálise, tornando-se assim um dos
precursores da Escola de cultura e personalidade (que analisaremos mais à frente).

O difusionismo alemão-austríaco

A escola difusionista alemã é também denominada histórico-cultural, histórica ou geográfica


e alemã – austríaca pelo facto de alguns dos seus representantes pertencerem à “Escola de Viena”. Ao
contrário da escola heliocêntrica, esta escola defende uma visão pluralista da origem da cultura,
assumindo a existência de vários locais de início da evolução. Os autores mais conhecidos desta
escola são: Friedrich Ratzel (1844-1904), Leo Frobernius, Willi Foy (1873-1929), Fritz Grabner (1877-
1934) e Pe. Wilhelm Schmidt (1868-1954).
Ratzel é considerado o fundador da antropologia geográfica desenvolveu o método
histórico-cultural. Para o autor o desenvolvimento da cultura efetuava-se através das migrações e das
conquistas de povos mais fracos por povos mais fortes e culturalmente mais avançados. O seu
exemplo mais famoso de similaridades entre culturas são os arcos de caça encontrados em África e na
Nova-Guiné.
As ideias de Ratzel, nomeadamente as noções incipientes de “áreas culturais” vão ser
desenvolvidas por Frobernius que trabalha a ideia de “círculos culturais”, áreas culturais que se
espalham pelo globo e que se sobrepõem a outras anteriores. Frobernius ficou conhecido pela sua
preocupação com a educação e a alma de uma cultura (que está na base da sua configuração). Um
exemplo concreto das ideias do autor, um africanista, é a divisão que faz entre a visão do mundo
Etiópica e a visão hamítica. A primeira é carateriza da pelo cultivo, patriliniaridade, culto aos
antepassados, culto da terra, etc. A segunda é carateriza da pela criação de gado, caça,
matrilinearidade, evitamento dos mortos.
Para Grabner a cultura humana ter-se-ia desenvolvido algures na Ásia – Urkultur (centro de
cultura) e daí se difundido através de migrações para o resto do mundo. Por sua vez, Schmidt
defende que a cultura moderna é o resultado de uma série de esquemas originais que apresentam três
fases:

a) primitivas ou arcaicas – representadas pelos pigmeus, esquimós e aborígenes


australianos;
b) primeiras – com os coletores e nómadas pastoris;
c) secundárias – com os agricultores.

56
A principal contribuição do difusionismo alemão-austríaco foi o debate em torno da noção de
círculos culturais: conjunto de traços associados a um sentido, podendo ser isolados e identificados
na história cultural, na insistência da historicidade do método e dos contactos culturais. Como refere
Barnard (2004, 54) apesar do difusionismo ter perdido grande parte da sua popularidade a sua
essência continua uma das mais atuais do mundo contemporâneo. Na realidade, no campo da
antropologia a especialização regional continua a ser uma marca no domínio etnográfico e as
abordagens regionais e de área cultural continuam vigentes (não nos referindo aqui a Boas e os seus
discípulos que se analisaram mais à frente).

O particularismo histórico (historicismo)

O particularismo histórico é também considerado um ramo do difusionismo, mas assume


uma individualidade decorrente, sobretudo do seu principal mentor: Franz Boas (1858-1942). Todavia,
outros autores se destacaram, como Clarck Wissler (1870-1947) e Alfred L. Kroeber (1876-1960).
Trata-se de uma reação ao evolucionismo baseado na crítica das suposições históricas
especulativas. Os autores defendiam que o inquérito histórico devia ser limitado a uma cultura
particular (ou área cultural) e que a história dessa cultura devia ser reconstruída com base em factos
tangíveis (incluindo aqui os linguísticos, arqueológicos e etnográficos – esta é uma abordagem
holística, caraterística da perspetiva de Boas, que se refletia igualmente no trabalho de terreno,
usualmente um empreendimento de equipa. Esta dimensão vai perdurar na academia americana
onde os departamentos de antropologia compreendem as várias áreas associadas.
O particularismo considerava a difusão como uma das formas de compor uma cultura, que se
assumia como uma entidade menos rígida do que nas versões evolucionistas. Cada cultura é única,
devendo ser compreendida na perspetiva do observador com base nos dados subjetivos: valores,
normas e emoções.
A vida social é comandada pelo hábito e costume (e não a razão e utilidade de Tylor). Uma
vez que cada cultura é única há uma ênfase no relativismo, pelo que é impossível proceder a
julgamentos de valores de outras culturas pois eles só podem ser compreendidos no contexto cultural
em que ocorrem. Como tal não se pode fazer generalizações, pelo menos enquanto não houver mais
dados. Para superar esta falha aposta no trabalho de campo para poder reunir elementos suficientes.
Esta abordagem do terreno era sobretudo indutiva, já que as explicações surgiriam dos dados
recolhidos.
Boas procurou dotar a antropologia americana de uma base sólida, assente no trabalho de
campo, tendo feito inúmeros trabalhos junto das comunidades nativas. Entre os seus estudos mais

57
conhecidos está a análise do potlash entre os Kwaktiul (uma
cerimónia que envolvia uma competição pelos status na qual
eram destruídos cerimoniosamente bens).
É apontado a Boas o facto de ter promovido a
culturologia, o argumento segundo o qual a cultura teria uma
vida própria, desprovido de sentido a interação humana, bem
como de evitar as generalizações teóricas. Franz Boas
1858 – 1942
A herança de Boas é, sobretudo, sentida nos EUA
onde promoveu a antropologia nos seus vários domínios (foi Para saber mais sobre este
antropólogo consulte o
um dos primeiros a defender a aprendizagem das línguas por artigo de Margarida Moura:
parte dos antropólogos) e, em particular, na museologia. Foi Franz Boas A Antropologia
Cultural e o seu
ainda, o principal professor de gerações de antropólogos nascimento, disponível
americanos. Acresce ainda que Boas, um autor hoje aqui:
http://www.usp.br/revistau
redescoberto, defendeu posições claras perante a sociedade, sp/69/12-margarida.pdf
nomeadamente a denúncia do nazismo.
Em inglês, o artigo de
Outros autores desta corrente foram Wissler e Herbert Lewis “ The
Kroeber. O primeiro formulou o conceito de padrão de cultura: passion of Franz Boas”, de
2001:
a cultura distribui-se por padrões resultado do agrupamento de http://www.anthropology.
traços e complexos que formam uma organização maior, de wisc.edu/pdfs/passion_of_f
ranz_boas.pdf
configurações distintas. Destacou também o facto de a cultura
ser um conjunto de reflexos condicionados que eram
apreendidos pelo indivíduo desde a sua infância. Sistematizou
ainda, na perspetiva histórica, a noção de área de idade associada a área cultural. Kroeber, o primeiro
aluno de Boas doutorado em Antropologia, vai aprofundar a temática dos traços culturais de forma a
definir uma área cultural.
Um interessante exemplo de difusionismo é proposto pelo antropólogo Ralph Linton no seu
livro “The Study of Man: An Introduction” de 1936, tomando como ponto de partida a experiência do
cidadão comum.

O cidadão norte-americano desperta num leito construído segundo padrão originário do


Oriente Próximo, mas modificado na Europa Setentrional, antes de ser transmitido à América. Sai
debaixo de cobertas feitas de algodão, cuja planta se tornou doméstica na Índia; ou de linho ou de
lã de carneiro, um e outro domesticados no Oriente Próximo; ou de seda, cujo emprego foi
descoberto na China. Todos esses materiais foram fiados e tecidos por processos inventados no
Oriente Próximo. Ao levantar da cama faz uso dos “mocassins” que foram inventados pelos índios
das florestas do Leste dos Estados Unidos e entra no quarto de banho cujos aparelhos são uma
mistura de invenções européias e norte-americanas, umas e outras recentes. Tira o pijama, que é
vestiário inventado na Índia e lava-se com sabão que foi inventado pelos antigos gauleses, faz a
barba que é um rito masoquístico que parece provir dos sumerianos ou do antigo Egito.
Voltando ao quarto, o cidadão toma as roupas que estão sobre uma cadeira do tipo
europeu meridional e veste-se. As peças de seu vestuário têm a forma das vestes de pele originais
dos nômades das estepes asiáticas; seus sapatos são feitos de peles curtidas por um processo

58
inventado no antigo Egito e cortadas segundo um padrão proveniente das civilizações clássicas do
Mediterrâneo; a tira de pano de cores vivas que amarra ao pescoço é sobrevivência dos xales
usados aos ombros pelos croatas do séc. XVII. Antes de ir tomar o seu breakfast, ele olha ele olha a
rua através da vidraça feita de vidro inventado no Egito; e, se estiver chovendo, calça galochas de
borracha descoberta pelos índios da América Central e toma um guarda-chuva inventado no
sudoeste da Ásia. Seu chapéu é feito de feltro, material inventado nas estepes asiáticas.
De caminho para o breakfast, pára para comprar um jornal, pagando-o com moedas,
invenção da Líbia antiga. No restaurante, toda uma série de elementos tomados de empréstimo o
espera. O prato é feito de uma espécie de cerâmica inventada na China. A faca é de aço, liga feita
pela primeira vez na Índia do Sul; o garfo é inventado na Itália medieval; a colher vem de um
original romano. Começa o seu breakfast, com uma laranja vinda do Mediterrâneo Oriental, melão
da Pérsia, ou talvez uma fatia de melancia africana. Toma café, planta abssínia, com nata e açúcar.
A domesticação do gado bovino e a idéia de aproveitar o seu leite são originárias do Oriente
Próximo, ao passo que o açúcar foi feito pela primeira vez na Índia. Depois das frutas e do café
vêm waffles, os quais são bolinhos fabricados segundo uma técnica escandinava, empregando
como matéria prima o trigo, que se tornou planta doméstica na Ásia Menor. Rega-se com xarope
de maple inventado pelos índios das florestas do leste dos Estados Unidos. Como prato adicional
talvez coma o ovo de alguma espécie de ave domesticada na Indochina ou delgadas fatias de
carne de um animal domesticado na Ásia Oriental, salgada e defumada por um processo
desenvolvido no norte da Europa.
Acabando de comer, nosso amigo se recosta para fumar, hábito implantado pelos índios
americanos e que consome uma planta originária do Brasil; fuma cachimbo, que procede dos
índios da Virgínia, ou cigarro, proveniente do México. Se for fumante valente, pode ser que fume
mesmo um charuto, transmitido à América do Norte pelas Antilhas, por intermédio da Espanha.
Enquanto fuma, lê notícias do dia, impressas em caracteres inventados pelos antigos semitas, em
material inventado na China e por um processo inventado na Alemanha. Ao inteirar-se das
narrativas dos problemas estrangeiros, se for bom cidadão conservador, agradecerá a uma
divindade hebraica, numa língua indo-européia, o fato de ser cem por cento americano33.

Podemos efetuar um exercício similar no momento presente, com base na nossa experiência de
vida?

Configuracionismo: a relação entre cultura e a personalidade

Esta escola de pensamento também ficou conhecida como culturalismo americano. Trata-
se de uma orientação teórica que emerge da insatisfação de vários dos discípulos de Boas com o
particularismo histórico. A sua caraterística principal reside no facto de, dando continuidade à
abordagem holística de culturas particulares, destacar a integração e singularidade do todo tendo por
base a relação psicológica da cultura com a personalidade dos membros dessa cultura.
A este desenvolvimento não é alheia a influência das ideias da psicanálise e psicologia,
nomeadamente Sigmund Freud (1856 – 1939) - que defende que certos processos psicológicos eram
respostas inatas e universais. Freud era fascinado pela história e antropologia e entre as suas obras

33
Citado em Laraia, Roque. 2003. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2003,
p.106-108

59
contam-se: Totem and Taboo – Some Points of Agreement Between the Mental Lives of Savages and
Neurotics (1913). As suas ideias eram evolucionistas, nomeadamente a noção de que os adultos nas
sociedades primitivas eram iguais às crianças nas sociedades desenvolvidas. Todavia, foi a sua ênfase
na relação entre as ideias culturais e símbolos – que refletem impulsos inconscientes – que teve
grande recetividade entre os antropólogos. Malinowski foi um dos primeiros a refutar a
universalidade de determinados processos, nomeadamente a ideia de que o complexo de Édipo era
universal. Como ele procurou demonstrar, nas Trobrienders, de matriz matrilinear, a tensão existente
era com o irmão da mãe, o tio materno, e não o pai, ou seja, a tensão existe com quem exerce a
autoridade (o pai é nestas ilhas, matrilineares, o companheiro de brincadeiras, sendo a autoridade
exercida pelo tio materno).
Em antropologia esta corrente vai examinar como os seres humanos adquirem a cultura e
como esta se relaciona com a personalidade individual. Entre os autores mais importantes desta
corrente contam-se Ruth Benedict (1887-1948), Margaret Mead (1901-1978), Edward Sapir (1884-
1939), Abram Kardiner (1891 – 1981) e Cora Du Bois (1903 – 1991). Há duas abordagens gerais desta
escola (McGee e Warms, 2004, 217): a relação entre a cultura e a natureza humana e a relação entre a
cultura e a personalidade individual. A primeira abordagem é representada pelo trabalho de Margaret
Mead Sex and Temperament in Three Primitive Societies (1935), enquanto a segunda abordagem é
característica da obra de Ruth Benedict.
Ruth Benedict, na esteira relativista, considerava que não havia culturas superiores ou
inferiores, mas apenas diferentes estilos de vida determinados culturalmente. A principal obra da
autora é Padrões de Cultura (1934), na qual defende que cada
cultura tem um padrão único, denominada configuração Enculturação: processo
de condicionamento
cultural, que determina as caraterísticas fundamentais da consciente ou
personalidade dos seus membros, processo que ocorre através inconsciente pelo qual
um indivíduo assimila, ao
da enculturação. Esta tese era exemplificada por três longo da sua via as
sociedades: os zuñi, os dobu e os kwakiutl. Para os descrever a tradições (normas de
comportamento) do seu
autora utiliza a distinção elaborada por Friedrich Nietzsche, o grupo e age em função
filósofo e crítico literário, para descrever a tragédia grega: delas.
In Panoff e Perrin (1999,
apolíneo e dionisíaco (o primeiro assenta no equilíbrio, ordem e 63)
harmonia, enquanto o segundo é emoção, paixão e excesso). A
estes princípios a autora acrescenta o paranóico. Assim, os zuñi eram identificados como apolíneos, a
sua vida é ordenada, tudo é feito de forma precisa e não entram em transe. Ao contrário, os kwakiutl
são dionisíacos, a violência e o transe são caraterísticos. Finalmente, os dobu são considerados
paranóicos sendo as suas caraterísticas a hostilidade e a traição. O que a autora pretende demonstrar
é que estas caraterísticas são consideradas como comportamentos normais em cada uma das
culturas.

60
Durante a 2ª Grande Guerra Mundial a Ruth Benedict
Para saber mais
escreve aquele que se torna o mais conhecido dos estudos de sobre:
carácter nacional: O Crisântemo e a Espada (1946), um estudo sobre
os japoneses, elaborado para o exército americano com o objetivo de
conhecer o inimigo. Impedida de fazer trabalho de campo a autora
recorre a bibliografia e aos japoneses aprisionados nos EUA para
obter os seus dados. Numa abordagem neo-freudiana, relacionando
práticas infantis com tipos de personalidades adultas, a autora Ruth Benedict
advoga que a preocupação com a obediência e a ordem advêm da 1887-1948
forma como os japoneses são ensinados a lidar com os seus dejetos. http://www.american
Este não é o único estudo realizado no âmbito do carácter nacional, ethnography.com/arti
cle.php?id=7#.UxYZ4
outra obra, menos conhecida é a de Gorer e Rickman The People of vl_tK0
Great Russia: A Psychological Study (1949). Nela os autores advogam
que o caráter nacional russo, supostamente o tipo de personalidade
maníaco-depressiva, se deve às práticas de enfaixar os bebés. Apesar
da popularidade que a obra de Benedict alcançou os estudos de
carácter nacional foram muito criticados e abandonados (embora as
Margaret Mead
representações sociais sobre esta matéria persistam). 1901-1978)
http://www.youtube.c
om/watch?v=2p113_9
Margaret Mead, aluna de Ruth Benedict, vai trabalhar o OQMw

tema da influência da cultura na personalidade e no desenvolvimento


social humano. As suas obras mais conhecidas são Coming of Age in Samoa (1928), Growing Up in New
Guinea (1930) e Sex and Temperament in Three Primitive Societies (1935). Mead tentou separar os
fatores biológicos e culturais que controlam o desenvolvimento e comportamento humano,
procurando, de forma comparativa, analisar as práticas nos EUA. Em Coming of Age in Samoa,
confrontou as ideias prevalecentes sobre os adolescentes, nomeadamente sobre a liberdade sexual
que caraterizaria as relações entre jovens antes do casamento, sem stress emocional, pelo que não
haveria rebeldia adolescente, resultando que esta não seria devido a fatores biológicos da puberdade.
No entanto, como refere Barnard (2000, 105) embora as suas ideias e generalizações, tenham sido
objeto de críticas severas, a sua principal influência resultou na análise da própria cultura dos EUA e o
seu trabalho marca o início da antropologia psicológica contemporânea.
Outra abordagem resultou do trabalho de Abram Kardiner (1891-1981), um psicanalista, em
colaboração com os antropólogos Cora DuBois (1903-1991), Edward Sapir (1884-1939) e Ralph Linton
(1893-1953). Kardiner, segundo Hoebel e Frost (2002, 68-69) procura estabelecer duas coisas: a
identificação da estrutura básica da personalidade e o processo de formação como uma reação aos
costumes de cuidar de crianças e, em segundo lugar o efeito posterior dos padrões básicos de
personalidade em certas estruturas institucionais da sociedade. Kardiner propôs a ideia de estrutura
de personalidade básica, um conjunto de traços fundamentais da personalidade partilhados pelos
membros normais de uma sociedade.

61
No seu trabalho conjunto com o antropólogo Ralph Linton – The Individual and his society
[1939] defenderam a ideia de que ainda que a cultura e a personalidade fossem similarmente
integradas, existiam relações causais entre ambas. Distinguiram assim entre as instituições primárias,
a estrutura básica da personalidade e as instituições derivadas ou secundárias. As instituições
primárias são as técnicas culturalmente determinadas de cuidar das crianças e que criam atitudes
básicas para com os pais e que perduram durante toda a vida do indivíduo. A estrutura básica da
personalidade é o grupo de “constelações nucleares” de atitudes e comportamentos formados por
padrões estandardizados numa determinada cultura. Para os autores, por meio dos mecanismos de
projeção as constelações refletem-se no desenvolvimento de outras instituições, como a religião, o
governo e a mitologia e ritual.
De modo a ter em conta algumas das críticas à existência de uma estrutura de personalidade
básica, comum a todos, Cora DuBois propôs o conceito de personalidade modal, o tipo de
personalidade que era estatisticamente mais comum na sociedade. Assim, numa sociedade, haverá
lugar à formação de um conjunto de caraterísticas básicas advindas das instituições primárias, mas
também a existência de variação individual na forma como essas personalidades se expressam. O seu
trabalho de campo foi junto dos alorenses, naturais da ilha de Alor, de que resultou o seu livro “The
people of Alor”, de 194434. Horticultores de floresta tropical, os homens estão muitas vezes ausentes
em viagens de trocas comerciais. Segundo o autor a criança alorense embora desejada é
negligenciada, mas não é rejeitada. É meramente descurada pela mãe que trabalha no campo e por
um pai muitas vezes ausente. Há pouco contacto físico com a criança que fica ao cuidado de outros
membros da família e não há o alívio de tensões ou carícias, nem aquando da alimentação da criança.
A criança é tímida e reservada, mas dada a enfurecimentos e insultos. Roubam e pilham com
naturalidade e desafiam os pais abandonando a casa e indo viver com parentes. Segundo o autor não
há solidariedade emocional na família, o desenvolvimento do ego e a consciência social do adulto são
muito fracos. As relações dos homens com as mulheres são uma projeção das suas infâncias, assim
como as instituições bélicas e religiosas: desorganizadas, irregulares e vingativas as primeiras,
relutantes face às segundas - culto dos antepassados irascíveis e vingativos para com os seus
descendentes a quem exigem comida.

34
A obra pode ser consultada em: https://archive.org/details/peopleofalor031909mbp

62
A escola sociológica – uma intrusão para falar da irmã da antropologia

No final do século XIX não havia uma distinção clara entre a antropologia e a sociologia.
Deste modo alguns autores deste período são considerados como “pais” de ambas as disciplinas e as
suas ideias fortificaram tanto uma como outra. Entre estes autores destacam-se Émile Durkheim
(1858-1917), Marcel Mauss (1872-1950) e Max Weber (1864-1920).

Durkheim é um autor fundamental na formulação de conceitos básicos da sociologia e da


antropologia (no caso da França ele é considerado o seu fundador). A sua abordagem do estudo da
sociedade é precursora da abordagem funcionalista, analisando o contributo das instituições sociais e
crenças para a coesão social (um aspeto determinante para
Bronislaw Malinowski e A. R. Radcliffe-Brown). No entanto, Para aprofundar as
muitas das suas ideias são também antecipadoras das principais obras de
Durkheim e Mauss
preocupações de estruturalistas (Leinden e França), da consulte:
etnociência e da antropologia cognitiva.
Positivista, considerava que a sociedade humana segue
leis, tais como as leis da natureza e da física, e que através do
estudo empírico essas leis poderiam ser descobertas. Um dos
seus principais interesses foi a solidariedade social: compreender
o que mantinha coesas as sociedades. A sua conclusão foi que Émile Durkheim
esta era o resultado de uma força advinda primariamente da 1858-1917
participação em comum num sistema de crenças e valores, que http://classiques.uqac.ca/clas
moldava e controlava o comportamento individual, que siques/Durkheim_emile/durk
heim.html
denominou consciência coletiva. A partilha da consciência
coletiva, os seus valores e crenças (designadas representações
coletivas), dava significado à vida.
Para Durkheim a consciência coletiva era uma entidade
psicológica, com uma existência superorgânica, pois embora
estivesse presente em cada membro da sociedade, ultrapassava a Marcel Mauss
sua existência individual, e não podia ser explicada pelo seu 1872-1950
comportamento pessoal. Assim, para estudar a vida em http://classiques.uqac.ca/clas
sociedade deviam-se estudar os factos sociais, as regras sociais e siques/mauss_marcel/mauss
_marcel.html
de comportamento que existem antes do individuo entrar na
sociedade e que permanecem após a sua morte.

63
Entre os seus principais trabalhos incluem-se A Divisão do trabalho social (1893) e As Formas
Elementares da Vida Religiosa (1912)35. Na primeira obra desenvolve os conceitos de solidariedade
mecânica, caraterística que considera própria das sociedades primitivas, e solidariedade orgânica,
exclusiva das sociedades industriais. Para Durkheim, nas sociedades primitivas a consciência coletiva
envolve totalmente o indivíduo, pelo que não há diferenciação interna entre este e a sociedade. O
parentesco é o laço essencial entre as pessoas. Por seu turno, as sociedades industriais caraterizam-se
pela separação parcial da consciência coletiva da consciência individual, ocorrendo uma
especialização ocupacional. Os laços entre os membros destas sociedades são, sobretudo,
económicos, ocupacionais e cooperativos. Durkheim acreditava que as sociedades evoluíam da
solidariedade mecânica para a solidariedade orgânica, um processo que conduzia a uma maior
diferenciação social e especialização, o que aumentaria a coesão social. Na sua obra As Formas
Elementares da Vida Religiosa (1912) o autor desenvolve as suas ideias relativas à forma como as
pessoas compreendem o mundo através de sistemas de classificação criados socialmente. Para
Durkheim, a natureza destes sistemas de classificação era, essencialmente, dualística, como procurou
demonstrar com a ideia de que há uma separação entre as esferas “sagradas” e profanas”36.
Na esteira de Durkheim, Marcel Mauss37, desenvolve uma obra que é, simultaneamente,
sociológica e antropológica. O seu trabalho mais conhecido é o Ensaio sobre a Dádiva: Forma e Razão
da Troca nas Sociedades Arcaicas 1925)38. Neste trabalho Mauss, utilizando um vasto conjunto de
fontes antigas e contemporâneas (nomeadamente os trabalhos de Boas sobre os Kwakiutl e de
Malinowski sobre os Trobriandeses), e desenvolve a ideia de que a troca de presentes nas sociedades
primitivas é muitas vezes parte fundamental das obrigações políticas e sociais, refletindo ou
expressando a estrutura social da sociedade em causa. A estes factos sociais, simultaneamente
múltiplos de sentidos, designou factos sociais totais. Nunca tendo efetuado trabalho de terreno é, no
entanto, o autor em 1926 de um manual de etnografia.39

A influência de Max Weber na antropologia da sua época é mais restrita quando comparada
com as dos autores referidos. No entanto, a presença das suas ideias tem-se afirmado na atualidade.
Ao contrário de Durkheim, Weber estava tão preocupado com a ação social dos indivíduos como os
grupos sociais. Para ele, a última base da ação social reside no comportamento individual perante os
outros. Este comportamento é passível de ser avaliado como sendo uma ação racional ou não. A sua
perspetiva do papel do indivíduo na sociedade é demonstrada na sua obra The Sociology of Religion
(1920) e no relevo dado ao carisma.
Weber foi influenciado por Marx, mas distanciava-se deste em aspetos essenciais. A classe
social estava relacionada com a posse e controle dos meios de produção, mas, acreditava que as

35
Tradução portuguesa: Durkheim, Émile (2002) As Formas Elementares da Vida Religiosa: O Sistema Totémico na
Austrália, Oeiras, Celta.
36
A crítica de Mary Douglas
37
Marcel Mauss é sobrinho de Durkheim e trabalhou com ele.
38
Tradução portuguesa: Mauss, Marcel (2001) Ensaio Sobre a Dávida, Lisboa, Edições 70
39
http://classiques.uqac.ca/classiques/mauss_marcel/manuel_ethnographie/manuel_ethnographie.html

64
classes por si próprias não podiam agir como tal e que o estatuto e honra podiam cruzar as linhas de
classe. De igual forma, Weber dá, ao contrário de Marx, uma maior ênfase ao papel desempenhado
pela ação individual e a ideologia. Um dos principais trabalhos de Weber é The Protestant Ethic and
the Spirit of Capitalism (1930). Nesta obra, Weber analisa o desenvolvimento do capitalismo, mas, ao
invés de Marx, ele considerou as causas materiais como insuficientes para explicar o seu
desenvolvimento. Assim, a par deste desenvolvimento material ele propõe como explicação o
desenvolvimento paralelo do Calvinismo e da sua moral de responsabilização e autodisciplina,
essenciais para assegurar a salvação pessoal e que em conjunto com as mudanças ocorridas nas
relações de produção potenciaram o desenvolvimento da burguesia capitalista.
Weber é um precursor do pós-modernismo. A sua noção de versthehen (compreensão) a
identificação com o observado de modo a compreender melhor os seus motivos e o significado das
suas ações é fundamental na antropologia simbólica, nomeadamente em Clifford Geertz e Renato
Rosaldo.

65
2.1.4 Funcionalismo (estruturo-funcionalismo)

Nos finais do século XIX a antropologia na Inglaterra desenvolve-se com a expedição ao


Estreito de Torres40, liderada por Alfred Haddon (1855-1940) e constituída por uma equipa
pluridisciplinar que incluiu William Rivers (1864 – 1940) e Charles Seligman (1973 – 1940) entre outros.
O seu objetivo principal consistiu em estudar as caraterísticas materiais, sociais, psicológicas e
fisiológicas dos povos mais do que em determinar o curso da sua evolução social, preocupação
característica dos evolucionistas. Esta viragem metodológica enfatiza a importância do trabalho de
campo, a que se junta, por parte dos seus discípulos o enquadramento teórico decorrente da
influência de Herbert Spencer e da sua analogia orgânica. Os funcionalistas tentavam descrever as
instituições que existiam na sociedade, explicar a sua função social e demonstrar a sua contribuição
para a estabilidade da sociedade.
O funcionalismo em antropologia é associado a duas escolas de pensamento, tutelada cada
uma por um autor de renome na antropologia: o funcionalismo psicológico de Bronislaw Malinowski
(1884 – 1942) e o funcionalismo estrutural de Alfred R. Radcliffe-Brown (1881 – 1955). Para os
funcionalistas psicológicos as instituições culturais funcionam de forma a responder às necessidades
físicas e psicológicas básicas das pessoas em sociedade. Para os funcionalistas estruturais o propósito
era compreender como as instituições mantinham o equilíbrio e coesão da sociedade (influência de
Durkheim). A Escola de Manchester, associada com Max Glukman (1911 – 1975), descende da sua
influência.
O funcionalismo psicológico enfatizava o facto de as instituições culturais terem por função
resolver as necessidades físicas e psicológicas das pessoas em sociedade. Por seu turno, o estruturo
funcionalismo, influenciado por Durkheim, procura compreender como as instituições mantêm o
equilíbrio e a coesão da sociedade. Enquanto a primeira escola atribui uma ênfase ao individuo, a
segunda está mais interessada no estudo das estruturas que são subjacentes a qualquer sociedade e
em descobrir as leis sociais resultantes do estudo comparativo de várias sociedades.
No plano teórico outra característica do funcionalismo era o seu limitado interesse pela
história, ao contrário da antropologia Boasiana que se fazia nos EUA na altura. Para os antropólogos
ingleses a reconstrução da história em sociedades sem tradição escrita era especulativa e o que
interessava era analisar a sociedade como ela se apresentava no momento do estudo (caraterizando-
se os seus trabalhos por uma “intemporalidade” dos dados).

40
O Estreito de Torres localiza-se no sudeste asiático, entre a Austrália e a Nova Guiné.

66
A tensão entre as duas escolas de pensamento era similar à tensão existente entre as duas
figuras que as criaram. No entanto, lentamente, a versão estruturo funcionalista ganhou ascensão no
plano teórico, fenómeno percetível pelo facto de muitos alunos de Malinowski terem aderido à escola
de Radcliffe-Brown, insatisfeitos com a resposta teórica da abordagem. A preocupação com a coesão
e equilíbrio vai ser a principal modelo desta escola e também uma das suas principais críticas. A
manutenção da ordem social e a regular vida da
sociedade estava de acordo com as preocupações O circuito kula
das autoridades coloniais em que muitos destes
antropólogos estiveram envolvidos, com a exceção
de Max Glukman.
Bronislaw Malinowski marcou
decididamente a antropologia ao sustentar a
estadia prolongada no terreno – observação
participante - como uma das suas marcas
distintivas, resultado na elaboração de uma
Malinowski (1966, 131)
monografia, de que a sua Argonauts of the Western
O kula é um sistema de troca “inter-
Pacific (1922)41 é o paradigma. A obra inicia-se com
tribal” entre as comunidades de um
a definição do sujeito, método e objetivos, bem conjunto de ilhas, constituindo um
circuito fechado. Dois tipos de bens
como a geografia da zona. Parte de seguida para a
são trocados, movendo-se em
problemática da troca Kula sobre a qual vai analisar direções opostas: na direção dos
ponteiros do relógio as soulava,
em detalhe todos os aspetos relacionados com a sua
pulseiras de conchas vermelhas. No
prática, tanto material como imaterial. A sua sentido oposto, as mwali, braceletes
de conchas brancas. Esta troca era
conclusão, mais do que teórica, é sobretudo um
feita entre parceiros que estavam
apelo à tolerância face a costumes estranhos42. obrigados a retribuir, usualmente de
forma diferida no tempo, os bens
descritos. Este processo poderia levar
anos até que os bens efetuassem o
circuito completo.

41
A obra pode ser consultada em: https://archive.org/details/argonautsofweste00mali
42
A obra de Malinowski vai ser objeto de uma revisão. A própria faceta aberta e tolerante é posta em causa anos
mais tarde quando o seu diário pessoal é publicado após a sua morte. A edição em português está disponível em:
Malinowski, Bronislaw (1997 [1967]) Um diário no sentido estrito do termo, Rio de Janeiro-São Paulo, Editora
Record.

67
Um dos contributos mais relevantes de Malinowski foi a sua análise das relações entre o pai e
filho. De acordo com a teoria psicológica freudiana ela seria conflituosa. Mas, Malinowski demonstra
que, numa sociedade matrilinear esta tensão existia entre o tio, irmão da mãe, e não em relação ao
pai biológico, o que vai pôr em causa a universalidade da teoria freudiana.
No plano teórico as propostas de Malinowski, sistematizadas sobretudo na sua Teoria
Científica da Cultura (1944), foram consideradas na altura limitadas, nomeadamente face ao seu
principal “rival” académico, Radcliffe Brown. Nesta obra, em que analisa o papel instrumental da
cultura na satisfação das necessidades humanas, a teoria das
Para saber mais:
necessidades. Existem para o autor três tipos de necessidades: as
básicas, as derivadas e as integrativas. O conjunto básico deriva de
impulsos biológicos e psicológicos: metabolismo, reprodução, conforto
corporal, segurança, movimento, crescimento e saúde. As
necessidades derivadas são sobretudo associadas à natureza cultural
do Homem: abastecimento, parentesco, abrigo, proteção, higiene e
Bronislaw Malinowski
exercício. Por fim, as necessidades integrativas revelam a dimensão (1884 – 1942)
simbólica das relações existentes: a tradição, os valores, a religião, a
http://www.aaanet.org/
linguagem e o conhecimento. committees/commissio
ns/centennial/history/09
Alfred Radcliffe-Brown disputou com Malinowski a primazia
5malobit.pdf
sobre a antropologia inglesa. E, em vida, a sua posição parece ter sido
ascendente. Indutivista acreditava que a antropologia poderia
descobrir, através da comparação, as “leis naturais da sociedade”.
Empirista, opunha-se a especulações sobre as origens e defendia que
os antropólogos deviam estudar aquilo que encontraram (não afasta a
ideia de História destas sociedades, de tradição predominantemente
oral, mas prefere mapear o que lhe é percetível). Alfred R. Radcliffe-
Brown (1881 – 1955)
O primeiro trabalho de Radcliffe-Brown é sobre os habitantes
das ilhas Andaman The Andaman Islanders (1922). Aqui surge a sua http://www.aaanet.org/
committees/commissio
preocupação centrada na sociedade e não no indivíduo, exemplificada ns/centennial/history/09
6rb.pdf
pelo estudo da função social dos rituais e não a sua função para o
indivíduo particular. Para o autor a preocupação sincrónica era sinónimo de preocupação sociológica
e esse era o seu propósito: analisar a forma como as instituições funcionam no sistema social e não
como mudaram ao longo do tempo. Para demonstrar a relação entre função e estrutura dá o exemplo
da concha: cada concha tem a sua estrutura, mas a estrutura de uma é similar à de outra, partilhando
assim aquilo a que chama “forma estrutural”. Na sua perspetiva a estrutura social corresponde à
observação concreta e a forma estrutural é a generalização a que o antropólogo chega após analisar
as suas inferências. A comparação de formas estruturais entre sociedades permitirá alcançar leis
gerais.
Como refere Barnard (2004) há duas críticas fundamentais: a confusão entre termos e sobre
o caminho para alcançar as generalizações. No primeiro caso o emprego de estrutura social para

68
designar aquilo a que outros antropólogos, contemporâneos e posteriores, chamam dados do
terreno, e denominar forma estrutural para aquilo que se denomina estrutura social. Relativamente às
generalizações universais, esta não são possíveis de se alcançar a partir da soma das observações
efetuadas, mas sim a partir de premissas lógicas – que vão ser a base da abordagem estruturalista de
Lévi-Strauss.
Comparado com outros autores Radcliffe-Brown escreveu relativamente pouco, no entanto o
seu percurso como professor foi vasto, ensinando na Austrália, na Africa do Sul, em Inglaterra, nos
EUA, etc. Os seus temas de estudo prediletos centraram-se nas questões de parentesco, politica e
religião, nomeadamente o totemismo. O seu maior contributo é a teoria da descendência43 (que
entrará em polémica com a teoria da aliança defendida por Lévi-Strauss analisada mais à frente)
segundo a qual os grupos de descendência patrilinear ou matrilinear formam a base de muitas
sociedades, sobretudo em África (continente em que muitos seus dos discípulos vão realizar trabalho
de campo com bolsas de estudo disputadas pelo tutor com Malinoswki, e que vão servir como base
parta a promoção da ligação da antropologia com a administração colonial)44.
O funcionalismo não se limitou à antropologia. Nos anos 50 dois sociólogos americanos
desenvolveram análises no seu âmbito procurando superar as suas limitações: Robert Merton (1910-
2003) e Talcon Parsons (1902-1980). Para Rivière (2014) Merton adopta um funcionalismo relativizado
face a Malinowski, nomeadamente à sua ênfase na unidade funcional da sociedade, a noção de
funcionalismo universal e o da necessidade. Para superar estas deficiências concebe três princípios
fundamentais:

1) conceito de equivalente ou de substituto funcional: um só elemento pode ter várias funções e


uma única função pode ser realizada por elementos intercambiáveis. Cada necessidade apela para
várias respostas (…) e cada resposta corresponde a várias necessidades; 2) conceito de dis-função
[sic], que incomoda a adaptação ou o ajustamento ao sistema (…); 3) conceito de função latente
não desejada pelos participantes, a distinguir da função manifesta ou intencional. Num rito de
cura, por exemplo, a finalidade explícita não é alcançada, mas outros efeitos, tais como o conforto
psicológico e a coesão social, procedem certamente das intenções subjacentes ao rito. (Rivière,
2014, 53)

Parsons aproxima-se muito mais de Radcliffe-Brown, embora a sua perspetiva tenha sido mais
usada por sociólogos que por antropólogos. Rivière evoca criticamente a sua “visão sistemática,
conservadora e contestada”, resumindo os quatro imperativos (pré-requisitos funcionais) que as
funções devem satisfazer em todo o sistema social: “1) manutenção dos modelos de controlo, que
asseguram estabilidade cultural e reprodutiva dos valores; 2) integração interna das unidades

43
O texto fundamental desta teoria encontra-se na Introdução da obra: Radcliffe-Brown, A. R. e Forde, Daryll (1982
[1950] Sistemas Políticos Africanos de Parentesco e Casamento, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian.
44
As peripécias desta disputa entre os autores maiores da antropologia inglesa e a sua competição e interesse em
implicar a antropologia na administração colonial inglesa são abordados na obra de Kuper (1993).

69
constitutivas do sistema social; 3) realização dos fins coletivos; 4) adaptação às condições do
ambiente.” (2000, 56).
Apesar de o estruturo-funcionalismo ter perdido grande força após a II Grande Guerra, a sua
influência contínua e como referem McGee e Warms “a maioria dos antropólogos é provavelmente
mais funcionalista de que geralmente admite.” (2004, 156). Na verdade, a insistência nas relações que
se observam no terreno continua a ser relevante.

70
2.1.5 Estruturalismo

O estruturalismo, enquanto campo de teorização antropológico, é associado sobretudo a


Claude Lévi-Strauss (1908 - 2009). No entanto, esta imagem, na perspetiva temporal não é correta. O
estruturo-funcionalismo de Radcliffe-Brown, herdeiro da escola sociológica francesa e Durkheim em
particular, é concomitante, embora a sua abordagem seja diferente. Todavia, também há outra
abordagem estruturalista que antecede a obra do autor francês: o estruturalismo holandês45 também
conhecido como a Escola de Leiden. A particularidade desta abordagem reside no facto de estes
estudos comparativos se realizarem num denominado campo de estudo etnológico, com um
conjunto de caraterísticas referidas como núcleo estrutural. O campo de estudo central desta escola
são as Índias Ocidentais Holandesas, atualmente a Indonésia (incluindo a Ilha de Timor), e o núcleo
cultural incluía o sistema de casamento. A principal obra desta escola, é Types of social structure in
Eastern Indonesia, de Van Wouden, publicada em 1935, mas somente traduzida para inglês em 1968.
Este facto explica a ignorância de Lévi-Strauss deste estudo que desenvolve ideias que o autor
apresenta em 1949 na sua obra maior As estruturas do Parentesco. Não deixa de ser interessante este
facto pois quer os autores da Escola de Leiden, quer Lévi-Strauss, tem como referência Émile
Durkheim e Marcel Mauss.
Barnard (2004, 120) define o estruturalismo como “as perspetivas teóricas que dão primazia
ao padrão sobre a substância”. Para Lévi-Strauss, o importante não era estudar a forma com as
pessoas categorizavam o seu mundo, mas os padrões de pensamento subjacentes que produziam
essas categorias. Embora seja influenciado por Freud, ele não acredita que a estrutura psicológica
determine a cultura. Para o autor os processos lógicos subjacentes que estruturam todo o
pensamento humano operam em diferentes contextos culturais, assim, os fenómenos não são
idênticos, mas são o produto de padrões universais de pensamento inconsciente.
O principal campo de inspiração para Lévi-Strauss foi a linguística, nomeadamente Saussure
e a escola de Praga da linguística estrutural, com Jakobson e Troubetzkoy. A linguística operou uma
transformação que ele valorizou: deixou de se preocupar unicamente com as origens da língua e
passou a preocupar-se com a forma como funcionava assente no contraste entre sons ou fonemas. A
linguística advogava que todas as línguas eram compostas por fonemas, que por si só não têm
significado. É somente quando são combinados em unidades maiores, morfemas, palavras, frases,
etc., de acordo como certos padrões (regras de sintaxe e gramática) é que eles se tornam
significativos: o discurso. A maioria dos falantes de uma língua, apesar de a falarem, não sabem
identificar as regras que subjazem à elaboração do discurso. Assim, a um nível subconsciente todos
devemos saber quais estas regras são, sendo o objetivo da linguística descobrir estes princípios
inconscientes.

45
Entre as obras de referência consultadas somente Barnard (2004) faz alusão a este facto.

71
Com base nas ideias da linguística, Lévi-Strauss procurou
desenvolver um meio de estudar os princípios inconscientes que Para saber mais:

estruturam, segundo ele, a cultura humana. Esta, como a


linguagem, é composta por uma coleção arbitrária de símbolos (os
fonemas da linguística) que não lhe interessam individualmente mas
sim o padrão de elementos, a forma como os elementos culturais se
relacionam (comunicam) para formar o sistema - um dos principais
contributos da escola de Praga foi o contraste entre as oposições
Claude Lévi-Strauss
binárias dos fonemas, ideia que Lévi-Strauss vai aplicar no estudo da 1908 – 2009
cultura, propondo que o padrão de pensamento humano também
Uma entrevista sobre
usa contrastes binários como branco e preto, dia e noite e quente e o antropólogo que
frio (um desenvolvimento da ideia de Durkheim sobre o sagrado- odiava viajar…

profano, ou de Hobert Hertz`s (1880-1915) sobre a oposição entre a http://www.uc.pt/en/cia


46 /publica/AP_artigos/AP
mão esquerda e esquerda ).
24.25.01_Leme.pdf
Um resumo das ideias de Lévi-Strauss, numa obra vasta e
prolífica, de certeza que deixam de parte grande número de elementos.47 Os fundamentos das ideias
de Lévi-Strauss articulam três áreas: uma exegese do empirismo, a valorização do estruturalismo
como modelo e o primado do intelecto. A rejeição do empirismo funda-se na rejeição da possibilidade
de conhecer através da observação de uma sociedade os “motivos universais”, pelo que rejeita a
importância dos conceitos indígenas. Como refere Dubuisson, citado por Deliège (2001) o real é para
o autor confuso e desordenado, competindo ao antropólogo colocar ordem intelectual nesta
desordem aparente, desvendando as leis e regras imutáveis. É neste contexto que advoga que a
análise pretende alcançar as estruturas inconscientes de cada instituição48, consideradas de forma
genérica como o não-consciente, não-explicito. Então o que é a noção de estrutura? Para o autor: “a
noção de estrutura social não se refere à realidade empírica, mas aos modelos construídos em
conformidade com esta (…) As relação sociais são a matéria-prima empregada para a construção dos
modelos que tornam manifesta a própria estrutura social.” (Lévi-Strauss, 1996 [1952], 315-316).
Quais são então as caraterísticas que os modelos devem ter para “merecer o nome de estruturas”? O
autor (1996 [1952], 316) indica que:

Em primeiro lugar, uma estrutura oferece um caráter de sistema. Ela consiste em


elementos tais que uma modificação qualquer de um deles acarreta uma modificação de todos
os outros.

46
Considerado um dos mais brilhantes autores da época, o autor morreu, em combate, no decurso da 1ª Grande
Guerra. Para saber mais sobre o autor e a usa obra, compilada em “Sociologie religieuse et folclore” (1928),
consulte: http://classiques.uqac.ca/classiques/hertz_robert/hertz_robert_photo/hertz_robert_photo.html
47
Este resumo segue a síntese de Deliège (2001). No entanto, as citações recorrem às obras originais citadas
quando disponíveis.
48
A noção de inconsciente não é clara em Lévi-Strauss e foi objeto de crítica.

72
Em segundo lugar, todo modelo pertence a um grupo de transformações, cada uma
das quais corresponde a um modelo da mesma família, de modo que o conjunto destas
transformações constitui um grupo de modelos.
Em terceiro lugar, as propriedades indicadas acima permitem prever de que modo
reagirá o modelo, em caso de modificação de um dos seus elementos.
Enfim, o modelo deve ser construído de tal modo que seu funcionamento possa
explicar todos os fatos observados.

Como refere Deliège (2001, 46) esta afirmação é menos uma definição do que um conjunto de
traços essenciais. Todavia, persiste alguma ambiguidade: por um lado pode-se igualmente dizer que
“a estrutura é um modelo que oferece o carácter de sistema”, por outro lado, não é a modificação dos
elementos, ou termos, que acarreta a modificação, mas sim a modificação de uma relação entre esses
elementos (tema desenvolvido em Antropologia Estrutural dois).
Finalmente, Lévi-Strauss, privilegia o primado do intelecto, do espírito, sobre o social, o que
teve como corolário a sua busca da origem simbólica da sociedade. O sistema social é a concretização
das capacidades do espírito humano, um aparelho intelectual que o leva a agir dessa forma
(explicação que se aplica tanto às formas de casamento preferencial como ao mito, ao ritual, etc.).
Uma propriedade fundamental do espírito humano é a dicotomização do pensamento em sistemas
de oposição binária. O exemplo do cru e do cozido na sua análise da mitologia mostra como esta
oposição expressa, para o autor, a diferença entre a natureza e a cultura. A análise estrutural de mitos
vai levar o autor a elaboradas análises que deixam ainda hoje incrédulos alguns autores pelo facto a
sua consistência depender mais da capacidade do analista do que de excluir outras possibilidades.
A história é negligenciada, o estruturalismo não tem como objetivo a análise da mudança
social. O estruturalismo analisa sistemas que assentam a suas proximidades em bases intemporais, o
sistema é concebido como em equilíbrio, não se pode transformar e impõem-se aos homens.
O primeiro grande trabalho de Lévi-Strauss foi no campo do parentesco: As Estruturas
Elementares do Parentesco (1949)49. Neste estudo combinou a noção de oposição binária com o
conceito de reciprocidade na troca, herdado da obra de Mauss. A tese principal da obra reside no
facto de as mulheres, nas sociedades primitivas, serem consideradas como um tipo de bem que pode
ser trocado. A oposição binária essencial da espécie humana reside na distinção que opera entre os
parentes e não parentes. Através do tabu do incesto o grupo está impedido de se casar com as suas
próprias mulheres pelo que tem que estabelecer relações com outros grupos a fim de obter esposas.
Esta troca recíproca é o sistema mais simples de aliança, termo que vai ter uma expansão com o
estruturalismo. Apesar de pretender trabalhar o campo do parentesco nas sociedades complexas o
autor nunca o chegou a fazer.

49
http://classiques.uqac.ca/collection_methodologie/levi_strauss_claude/structuralisme_rapports_sociaux/struct
uralisme_rapports_sociaux_texte.html

73
A obra mais conhecida do grande público é os Tristes Trópicos (1954), um libelo da crítica da
modernidade, reflexiva, alusiva da única experiência de contacto, fugas, que o autor teve com o
“outro”. A critica do progresso e a defesa do bom selvagem na linha de Rosseau, que também não
teve de ver o selvagem para compreender que a sua vida social depende do contrato e do
consentimento.
As obras subsequentes centraram-se sobretudo na análise das classificações simbólicas, como
o totemismo, e os mitos, acreditando que o estudo da mitologia permitiria aceder aos padrões
inconscientes. Na sua obra sobre os mitos Lévi-Strauss acaba por propor a hipótese de uma
característica do pensamento humano residir na procura de um ponto intermediário entre as
oposições binárias. Os elementos do mito, como os fonemas, só adquirem significado quando
organizados de acordo com certas relações estruturais. São estas relações que ganham ênfase na
análise. Neste contexto é de mencionar a polémica que envolveu o autor com Lévy-Bruhl. Este autor
defendia a tese de que o pensamento selvagem era pré-lógico, não racional. Lévi-Strauss opôs-se a
esta visão e defendeu a ideia de que a mentalidade das sociedades selvagens não era inferior, não
racional. Para ele o pensamento selvagem era o fruto de uma herança intelectual e classificatório, em
que a utilização de espécies animais para definir relações não são arcaísmos, mas sistemas complexos
de pensamento lógicos. Neste sentido os seus estudos dos mitos procuram demonstrar esta
complexidade.
O estruturalismo de Lévi-Strauss vai influenciar em França um conjunto de autores, mesmo
que por reação, como é o caso do estruturalismo marxista (que falaremos mais à frente e cujo autor
mais ilustrativo é Maurice Godelier) e Louis Dumont (que, todavia, nunca abandona as realidades
empíricas, nomeadamente a Índia). No campo anglo-saxónico Rodney Needham em Oxford e
Edmund Leach em Cambridge). Victor Turner e Mary Douglas.

74
2.1.6 Sinopse de “neo”abordagens e “pós”perspetivas: reinvenção, críticas e reações

As quatro escolas identificadas foram estruturantes do pensamento antropológico. Todavia,


novas escolas surgiram das quais daremos aqui uma sinopse.
A redescoberta das ideias evolucionistas, agora matizadas por análises sustentadas, são
observáveis nos denominados neo-evolucionistas. Nos anos 40 e 50 do século XX o evolucionismo
ressurge e o método comparativo, como princípio de pesquisa, ganha novos adeptos. Este
renascimento ocorre sobretudo nos E.U.A. com Julian Steward (1902-1972), Leslie White (1900-1975)
e George Peter Murdock (1897-1985). Os dois primeiros desenvolveram uma abordagem técnico-
ambiental à mudança cultural inspirada no pensamento de Karl Marx50. Steward elaborou uma
abordagem ecológica enfatizando a forma como cada cultura se adapta às circunstâncias ambientais,
ideia que ficou conhecida como evolucionismo multilinear. White, numa perspetiva mais unilinear,
concebeu uma teoria geral da evolução da cultura baseada no controlo da energia.
Ambos os autores tiveram como preocupação central a cultura material, ignorando aspetos
da estrutura social, como o parentesco, que vai ser o objeto de estudo privilegiado por Murdock,
também conhecido como o precursor dos estudos interculturais “cross-cultural studies”, com o
recurso ao método comparativo em larga escala, exemplificado pela criação dos Human Relation
Áreas Files (HRAF)51.
Outra abordagem “neo” que vai ganhar folgo é a neofuncionalista, também designada
materialista. O neofuncionalismo tornou-se um dos campos mais frutuosos pelos estudos de Roy
Rappaport (1926-1996) e de Marvin Harris (1927-2001), que reivindica, todavia, para si a denominação
de materialismo cultural. Os neofuncionalistas consideravam que a: “organização social e a cultura
são adaptações funcionais que permitem as populações explorar com sucesso o ambiente sem
exceder a capacidade de sustentação dos seus recursos ecológicos” (Applebaum, citado em McGee e
Warms, 2004, 285).
Roy Rappaport representa uma tendência mais ecológica, pelo que o seu trabalho também é
inserido na denominada ecologia cultural. O antropólogo defende que as leis da biologia ecológica
podem aplicar-se ao estudo das populações humanas. Adaptando da cibernética a noção de retorno

50
Embora nenhum deles, nos EUA dos anos 40, década de 50, se pudesse referir diretamente a esta fonte de
inspiração. De facto, a situação política decorrente da Guerra Fria, e o temor da perseguição de elementos
conotados como comunistas, no contexto das medidas tomadas pelo Senador Joseph McCarthy, limitava esse
reconhecimento.
51
A comparação como método não cessou com evolucionistas e difusionistas. Sarana (1975) citado por Barnard
(2004, 57) identifica três tipos de comparação em antropologia: ilustrativa, global e controlada (incluindo a
comparação regional). A comparação ilustrativa envolve a escolha de exemplos etnográficos para explicar
diferenças e similaridades (por exemplo comparar os Nuer e os Trobrianders, como exemplos de sociedades
matrilineares), a comparação global implica comparações estatísticas de sociedades de todo o mundo, cujo
melhor exemplo é o HRF de Murdock. Finalmente, a comparação controlada restringe o seu âmbito a áreas
restritas e limita o número de variáveis em análise. Foi empregue por difusionistas, funcionalistas e
neoevolucionistas como Julian Steward. Um outro exemplo desta abordagem é a que foi desenvolvida pela
Escola de Leiden, na Holanda.

75
(feedback) para explicar a estabilidade cultural, o autor procurou demonstrar no seu estudo de 1967,
Pigs for the Ancestors, como uma comunidade da Nova Guiné, estabelece através do ritual um
mecanismo de retorno que regula as relações ecológicas entre os homens, os porcos, os alimentos
disponíveis e a guerra.
Marvin Harris é, sem dúvida, um dos autores mais profícuos da Antropologia. Um dos seus
primeiros estudos de terreno foi em Moçambique, na altura colónia portuguesa52, e foi justamente
essa experiência que o levou a valorizar a perspetiva materialista, nomeadamente o facto de o
controlo sobre os sistemas de produção ser essencial para compreender a cultura. Nesta perspetiva,
influenciada pela teoria marxista, o autor desenvolve um sistema de análise com três níveis:
infraestrutura, estrutura e superestrutura. No entanto, a primazia é dada ao primeiro nível onde se
articulam os modos de produção e de reprodução da sociedade.
Harris escreveu muito (algumas das obras estão traduzidas em português), sendo dele uma das
mais famosas e polémicas histórias da antropologia: The Rise of Anthropological Theory (1968), outras
como Cows, Pigs , Wars and Witches (1974) e Cannibals and Kings: The Origins of Culture (1977). O
materialismo cultural foi acusado por alguns autores modernistas de ser uma forma de positivismo,
determinista, na qual o ser humanos tem pouco a dizer sobre a sua sorte. No entanto, mesmo os seus
mais fervorosos críticos nunca conseguiram desmontar totalmente a pertinência de estudos como
“The cultural Ecology of Índia`s Sacred Cattle” (1966), na qual Harris defende que a sacralidade da vaca
não resulta da determinação religiosa, mas da sua importância produtiva, material e ecológica, no
contexto indiano.
Outra “neo” corrente é o neomarxismo que é, na origem, eminentemente europeia, e
sobretudo de ascendência francesa. Ao contrário dos colegas americanos, os autores franceses não
tiveram no pós-guerra as limitações de expressão políticas e académicas. Por esta razão enquanto os
materialistas americanos enfatizavam os mecanismos de retorno e a adaptação estável ao ambiente,
os autores franceses usaram de forma mais direta a contradição dialética das análises marxistas –
criticando as abordagens materialistas americanas pelo facto de estas minimizarem o papel do
conflito. Estes autores são também designados como dinamistas, por analisarem a dinâmica das
sociedades.
Nos anos sessenta os dois principais autores desta corrente foram Maurice Godelier (1925 –) e
Claude Meillassoux (1925 - 2005). O trabalho de Godelier53 é definido como estruturalista marxista.
Uma das suas obras mais relevantes data de 1982, e resulta do seu trabalho de campo continuado
com os Baruya da Nova Guiné é: La production des Grands Hommes. Pouvoir et domination masculine
chez les Baruya de Nouvelle Guinée. A perspetiva do autor, que incorpora a análise marxista no seu
trabalho, é a de que, ao contrário da ideia defendida pela teoria clássica marxista e pelos neo-

52
Marvin Harris seria expulso de Moçambique pelas autoridades portuguesas. Para saber mais sobre o autor e a
sua visão critica pode consultar MACAGNO (1999), em:
http://www.lusotopie.sciencespobordeaux.fr/macagno99.pdf
53
Para saber um pouco mais sobre o autor e as suas ideias leia a entrevista feita por Bernardo Hollanda e Rodrigo
Ribeiro para a revista Estudos Políticos, nº 2, 2011 (01), disponível em: http://revistaestudospoliticos.com/wp-
content/uploads/2011/04/2p2-20.pdf

76
evolucionistas, a superestrutura é fundamental. Godelier, privilegiava as relações de produção (as
relações sociais) sobre a tecnologia e atividades individuais. De facto, para este autor os aspetos
considerados como pertencendo à superestrutura, como a religião ou o parentesco) são elementos
fundamentais para a infraestrutura de qualquer sociedade (desta forma pode se percecionar como
estas ideias estão afastadas das noções de Marvin Harris).
Claude Meillassoux (1925-2005) 54 foi outro autor essencial. Não perfilhava totalmente a
admiração estruturalista de Godelier, era aliás crítico do estruturalismo pelo facto de este não analisar
a questão da exploração e das causas materiais da transformação dos sistemas de parentesco. Um
exemplo desta perspetiva é a ideia defendida pelo autor, em contraposição à noção meramente
comunicacional de Lévi-Strauss, e simultaneamente diferente da inspiração marxista quanto aos
termos, de que é o domínio sobre o controle de “reprodução” (as mulheres) e não o controle sobre os
meios de produção, que é o mais importante numa sociedade. Para estes autores, a visão da
sociedade era baseada na luta de diferentes grupos sociais pelo controlo dos meios de produção e
poder. Nesse âmbito, ao contrário da maioria dos antropólogos da época, eram críticos dos efeitos do
colonialismo e das transferências económicas internacionais. A este respeito Meillassoux defende que
o capitalismo não destrói os modos de produção pré-capitalista, mas que os mantêm em articulação
com o modo de produção capitalista, em seu proveito.

Em meados dos anos setenta as ideias de Darwin são retomadas pela sociobiologia. Esta não
é uma abordagem exclusivamente antropológica, mas, sobretudo, biológica. Trata-se de uma
explicação do comportamento humano com base na teoria evolucionista de Darwin, razão porque
também é denominada como neodarwinista. Segundo esta corrente, os diferentes sucessos
reprodutivos moldam a evolução do comportamento de todos os organismos, incluindo o humano.
Como todos os seres humanos são organismos biológicos estão sujeitos às mesmas leis da evolução.
É esta componente genética do comportamento que leva a que os padrões de comportamentos que
aumentam as possibilidades de adaptação do organismo ao seu ambiente sejam selecionados e
reproduzidos nas gerações futuras.
No entanto, os sociobiologistas estão longe dos evolucionistas culturais pois, ao contrário
dos antecessores do século XIX, a sua preocupação não é com a evolução de padrões de cultura, mas
sim com a transmissão dos mecanismos de comportamento humano na perspetiva darwinista e
genética. Por outro lado, enquanto os evolucionistas clássicos defendiam que a progressão evolutiva
tendia a desenvolver sociedades perfeitas, os sociobiologistas usam simplesmente a linguagem do
sucesso reprodutivo.
A sociobiologia é influenciada pelos estudos de comportamento animal que se difundiram
nos anos 50 e 60 com investigadores, como Konrad Lorenz. O autor mais divulgado desta corrente é
Edward O. Wilson (1929 -) com a publicação em 1975: Sociobiology: The New Syntesis e de Richard
Dawkins (1941 - ) com The Selfish Gene de 1976. Nesta perspetiva o comportamento humano é

54
Para saber um pouco mais sobre o autor, consulte, em francês: http://lhomme.revues.org/1795

77
controlado por genes particulares e a evolução ocorre quando o sucesso reprodutivo permite a
transmissão de determinados genes à geração futura: a guerra, a seleção sexual, o desenvolvimento
da organização política, a arte, rituais e mesmo a ética são a expressão desse desejo55.

Pós-estruturalismo

Como refere Barnard (2004) o pós-estruturalismo ocupa uma posição ambígua na


antropologia. Por um lado, é uma crítica do estruturalismo, feita por estruturalistas (nem todos
antropólogos), por outro apresenta um conjunto de propostas que visam explicitar a ação social, o
papel do poder e a desconstrução do autor como um criador de discursos. Nesta aceção o pós-
estruturalismo apresenta relação com as preocupações dos transacionalistas, marxistas e feministas e
pós-modernistas (que alguns autores só associam ao pós-modernismo56). Para Barnard “ (…) o pós-
estruturalismo é uma forma de pós-modernismo, tal como o estruturalismo é uma forma primária de
“modernismo tardio” na antropologia” (2000, 139) .
A principal caraterística do pós-estruturalismo é a relutância em aceitar a distinção entre
sujeito e objeto – princípio implícito no pensamento estruturalista – defendido por Saussure. Entre os
mais destacados pós-estruturalistas encontram-se: Derrida, Althusser, Lacan e Foucault. Este último
e Bordieu foram os que tiveram um papel mais ativo no campo da antropologia.
Os filósofos hermenêuticos57 Jaques Derrida (1930 -2004 ) e Michel Foucault (1926 – 1984)
desempenham o papel de mentores desta posição. Derrida é sobretudo reconhecido pela sua
abordagem deconstrutivista. Defende que todas as culturas constroem mundos de significados
estanques e que a descrição etnográfica distorce a visão nativa através da imposição das formas de
conceptualização do mundo do observador, assim, o significado nunca pode ser traduzido.
Foucault trabalhou a ideologia, nomeadamente no seu discurso de poder. Para o filósofo as
relações sociais entre os povos são assinaladas pela dominação e subjugação. Os povos ou classes
dominantes controlam as condições ideológicas em que a verdade e a realidade são definidas58 .
Transposto para o campo da ciência o modernismo – crente da possibilidade de alcançar uma verdade
objetiva – é considerado uma construção histórica produto da sociedade.
Bordieu pretende, mais do que compreender os modelos (perspetiva estruturalista)
compreender o desempenho (performance) pois para o autor a compreensão objetiva não alcança a
essência da prática do ator social. Mais do uma visão estática da noção de estrutura assente nas
regras o autor pretende enfatizar a teoria da prática. A estrutura deixa de ser constrangedora, mas

55
O que leva McGee e Warms (2000) a afirmarem criticamente que, nesta perspetiva, os humanos pouco mais são
do que meros veículos utilizados pelos genes na sua reprodução.
56
É o caso de Warms e Mgee (2003) que na sua obra não dão grande destaque ao pós-estruturalismo.
57
Hermenêutica – o estudo da interpretação do significado, perspetiva que não aceita a possibilidade de o
observador poder obter um conhecimento neutral e objetivo do mundo. Heidegger (1889-1976) o conhecimento é
condicionado pela cultura, contexto e história.
58
Relembra a afirmação de que a história é feita pelos vencedores.

78
sobretudo facultativa, opcional, pelo menos para aqueles que a sabem aproveitar (o que vai levar ao
autor a analisar a teoria do poder).
Para distinguir a perspetiva pessoal o autor avança com a noção de habitus, uma espécie de
estrutura da ação social incorporada culturalmente pelos agentes sociais. São formas de pensar, agir
e sentir relativamente estáveis, resultantes do processo de socialização. Uma espécie de segunda
natureza que influência os gostos e escolhas, sem que por vezes tenhamos a necessidade de pensar
sobre estas.

Antropologia e Género (Antropologia feminista)

De particular importância no desenvolvimento da antropologia do género (ou feminista)


Jacques Lacan (1901 – 1981), um psicanalista chama a atenção para a linguagem na definição da
identidade e a complexidade da identidade sexual. Por sua vez, para Althusser, numa perspetiva
marxista e estruturalista, o discurso e poder sustentam a reprodução através das gerações dos modos
da produção (e o seu controlo)59.
De certa forma a antropologia não escapou a esta problemática, dando primazia a um
discurso e imagem predominantemente masculino, uma forma de “etno-androcentrismo” (Casares,
2008) que, não sendo exclusivo da antropologia, tem repercussões na forma como entendemos o
mundo e a própria prática antropológica. O androcentrismo, no contexto da antropologia, emerge
como uma postura etnocêntrica que se manifesta “na atitude que consiste em identificar o ponto de
vista dos homens com o da sociedade no seu conjunto.” (Casares, 2008:20). Segundo esta mesma
autora podem ser identificados três níveis de androcentrismo: a) o androcentrismo do antropólogo ou
antropóloga; b) o androcentrismo dos/as informantes e c) o androcentrismo intrínseco à antropologia
(ibidem, p.21). O androcentrismo do antropólogo/a advém da visão pessoal do/a investigador/a
acerca da relação entre homens e mulheres. O androcentrismo dos/as informantes pode, por sua vez,
induzir o antropólogo/a nas perspetivas sobre as relações de género, especialmente nas sociedades
em que as mulheres estão subordinadas aos homens, a denominada “visão viciada”, segundo Casares
(2008:21). Por fim, o androcentrismo intrínseco à antropologia, que se relaciona com a “parcialidade
própria da cultura ocidental”, que pode levar a que as relações assimétricas existentes nas sociedades
estudadas sejam equiparadas às que subsistem nas sociedades de origem.
Uma das facetas onde se observa esta postura na antropologia é no reconhecimento do
papel das antropólogas, por norma omisso. Um dos exemplos paradigmáticos é o de Dina Lévi-
Strauss, a primeira mulher de Claude Lévi-Strauss. Embora seja este autor que é citado de forma
recorrente, e sem dúvida que o seu papel é relevante, o trabalho da sua mulher é praticamente
desconhecido. No entanto, como refere Mariza Corrêa, o papel de Dina foi essencial no
desenvolvimento da antropologia brasileira, nomeadamente através da sua obra Instruções práticas
para pesquisas de antropologia física e cultural de 1936 (Corrêa, 2003).

59
Recensão da obra: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/S0104-026X2003000200028/9214

79
Nos anos setenta muitas antropólogas começaram a pôr em causa as perspetivas masculinas
prevalecentes na disciplina (incluindo aquelas que as precederam). Na realidade o papel das mulheres
era normalmente relegado para capítulos sobre o casamento, família e parentesco. Desde então
desenvolveram-se os estudos sobre o papel do género e o género e sexualidade numa dimensão
intercultural colocando em causa as assunções preexistentes. A antropologia feminista passou de
uma antropologia da mulher para uma antropologia da representação da mulher.
Nos anos setenta a antropologia feminista concentrava-se em documentar a vida e o papel
das mulheres em sociedades em todo o mundo – postura assimétrica – isto é, a subordinação mundial
da mulher – e procuravam explicar esta questão de várias perspetivas teóricas. Ao mesmo tempo a
investigação de antropólogas físicas e arqueólogas colocou em causa a visão do homem caçador
como a base da evolução e enfatizaram, entre outras, o facto de a recoleção e a criação dos filhos
exigir uma comunicação complexa, cooperação e construção de ferramentas, a versão da mulher
recolectora obrigou a rever a evolução.
Nos anos oitenta a pesquisa começou a afastar-se da temática da assimetria entre géneros e
passou a abordar outros temas, nomeadamente: a construção social do género, a explicação das
diferenças do estatuto, papel e poder da mulher com base em abordagens materialistas e a
especificidade da identidade da mulher. A primeira abordagem procurou analisar como a categoria de
género é feita de forma relacional e imposta. A segunda abordagem privilegiou a explicação
materialista, nomeadamente as relações de classe, de poder e mudanças de modos de produção para
explicar a opressão das mulheres. Um dos estudos mais conhecidos é o de Leacock, que defende que
em sociedades antes do contacto com o ocidente eram igualitárias e que a sujeição das mulheres se
deve à imposição de formas de produção capitalistas. A terceira perspetiva procurou afastar-se da
ideia de “mulher” no geral para analisar de que forma a raça, a classe e o género estruturam as
instituições culturais.
As teorias feministas colocaram as noções antropológicas em causa; levaram a disciplina a
enfatizar a multivocalidade, dando uma variedade de pontos de vista à escrita etnográfica e
enfatizando a experimentação com formas não convencionais de escrita antropológica, como a
poesia e ficção, reclamando que todas as formas de saber são subjetivas, promovendo uma maior
ênfase na auto-etnografia – autobiográfica.

Pós-modernistas, crítica, reflexibilidade e reconstruções

As ideias pós-modernistas emergem já em linhas de investigação antropológica como as de


Evans-Pritchard, Geertz e Raymond Firth, que enfatizam a ação individual perante a estrutura social –
ideia derivada da abordagem inicial de Malinowski.
No entanto, o pós-modernismo é uma corrente de pensamento que não se confine ao campo
antropológico, ele emerge do estudo da literatura e arte, e vem colocar em causa o princípio da
objetividade e da ciência em antropologia: de forma sucinta os pós-modernistas afirmam que a

80
antropologia não é uma ciência social. Todavia, apesar desta postura, é importante ter presente que o
pós-modernismo não veio desmembrar as outras correntes de pensamento no seio da antropologia,
pelo contrário (ver Harris, 1999).
Em antropologia as perspetivas hermenêuticas e desconstrutivista (herança de Derrida e
Foucault) levaram alguns antropólogos a questionar a sua prática, nomeadamente sobre a forma
como o trabalho de campo é efetuado (questões de legitimidade e validade das vozes em presença),
as técnicas literárias para escrever as monografias e a validade das interpretações de um autor sobre
outras análises. O pós-modernismo é uma crítica ao modernismo, a rejeição da possibilidade de
grandes teorias e da ideia da completude da descrição etnográfica, enfatizando a reflexibilidade. De
certa forma esta abordagem é o resultado do relativismo e do interpretativismo (o relativismo pode
ser traçado a Boas, o interpretativismo aos autores do simbolismo antropológico e a Geertz,
considerado por muitos como um dos primeiros pós-modernistas). Como refere Barnard (2004, 169)
para os pós-modernistas não há a verdade, uma declaração (statement) que possa ser feito acerca da
cultura.

Aquele que é considerado um dos primeiros textos pós-modernistas é Writing Culture


(Clifford e Marcus, 1986) e reúne os textos resultantes de uma conferência realizada em 1984. As
ideias deste trabalho incluem: a antropologia desloca-se do campo (ou devia-se deslocar) da
etnografia científica para o estudo dos próprios textos etnográficos (a sua desconstrução – no caso
dos antigos – e a sua elaboração), a contextualização e reflexibilidade face à metanarrativa decadente
(a ideia da grande teoria), a tensão relativa ao papel do antropólogo face às suas lealdades. A
evolução recente, pelo menos de Marcus é o envio da antropologia para os estudos culturais.
O trabalho de campo é considerado pelos pós-modernistas como um momento fulcral. O
antropólogo não é um observador neutro, pelo que a situação do tempo e lugar da investigação tem
de ser claramente identificada. A escrita antropológica é também objeto de crítica, pois se a forma de
recolha dos dados é subjetiva estes não podem ser analisados de forma objetiva. A própria validade
da interpretação é questionada pelo facto de, no terreno, o antropólogo trabalhar com um conjunto
limitado de informantes, colocando-se assim a questão de saber até que ponto as suas ideias são
representativas de toda a sociedade.
Outra crítica relaciona-se com a forma como o antropólogo redige o seu texto, qual narrador
omnisciente, considerado uma forma de objetividade científica projetada no texto, mas que cria, no
entanto, uma dificuldade de perceção relativamente aquilo que o antropólogo observou60. Desde os
anos sessenta que alguns antropólogos tinham escrito textos sobre a sua experiência na primeira
pessoa61. Entre as obras mais conhecidas está a de Paul Rabinow Reflections on Fieldwork in Marocco,

60
Adaptando um pouco o exemplo de Warms e Gees, diríamos que uma coisa é alguém se deslocar a uma loja de
comida rápida e dizer eu vi o meu informante comer uma piza e outra é dizer que as pessoas de Lisboa comem
piza.
61
Nos anos oitenta foi grande a surpresa sobre a forma como Malinowski se desvenda no seu diário no sentido
estrito do termo, relativamente à forma como descreve os nativos na sua obra.

81
de 197762. Outra crítica que surge na linha da perspetiva desconstrutivista é a que alude ao facto de o
próprio texto etnográfico ser o resultado de múltiplas interpretações, às quais não está ausente a
capacidade estilística63 Nesta abordagem à que desconstruir o texto pois como defende Crapanzano
(cit Warms e Gee, 2000) os dados são mudos e os antropólogos constroem significados à medida que
redigem os seus textos, pelo que há que analisar os enviusamentos que os elaboram.
Uma das críticas mais fortes aos pós-modernistas prende-se com a interpretação que é feita
pelos antropólogos. Pois se o texto é o resultado da interpretação e se esta for autoritária então a sua
visão é única e tende a ocultar interpretações diferentes. Para os pós-modernistas a interpretação que
vigora é o resultado das condições de poder e riqueza que imperam e que é necessário proceder à
desconstrução deste discurso para que outras vozes, as das mulheres, minorias e dos pobres possam
ser ouvidas.
Nesta altura o que permanece da abordagem antropológica? Tudo, como referem Warms e
Gee “o pós-modernismo não é a culminação lógica de toda a antropologia”, e na realidade, a maioria
da antropologia que se fazia e se faz atualmente não é “pós-modernista” no sentido de ser
meramente desconstrutivista de tudo o que foi feito (chegaria um ponto em que os antropólogos já
não teriam mais nada a fazer, ou então, qual cadeia entrópica, passariam o resto do tempo a
desconstruírem os seus/outros discursos…).
Na sua faceta mais extrema o pós-modernismo levaria a antropologia a ser um campo menor
da literatura pois se tudo é interpretação e ficção não se poderiam chegar a conclusões. Há, no
entanto, outra forma de ver esta perspetiva, naquilo que tem de positivo e autorreflexivo, algo que se
pode vislumbrar desde Boas, na perspetiva interpretativista. Ela não substituiu as abordagens
positivistas em antropologia. Mas, contribuiu para que os antropólogos estejam mais conscientes de
aspetos como os estilos retóricos, questões de autoridade e de vozes.
Uma das maiores controvérsias dos pós-modernistas com outros autores prende-se com o
facto de no extremo o proselitismo desconstrutivista levar ao niilismo e assim, se todas as vozes
devem ser ouvidas, como articular as vozes daqueles que são oprimidos com aqueles que oprimem,
como defender os direitos humanos e ao mesmo tempo desconstruir a noção de humanidade? Não
será o pós-modernismo o reflexo do modernismo, no melhor e no pior? Não criará as condições para
legitimar o discurso daqueles que mais oprimem?64

62
Paradoxalmente, ainda que mundialmente conhecido por esta obra, muitos autores não referem o facto de que
esta resulta de um processo posterior à elaboração da tese monográfica clássica que o autor defendeu dois anos
antes: Symbolic Domination: Cultural Form and Historical Change in Marocco (University of Chicago Press,
Chicago, 1975)
63
Já Malinowski pretendia ser o Joseph Conrad da antropologia (Malinowski s.d.) . Joseph Conrad, também de
origem polaca, escreveu em 1902 o romance Heart of Darkness (O Coração das Trevas).
64
Como compreender que Heidegger fosse um apologista dos Nazis durante a II Grande Guerra.

82
2.2 Antropologia aplicada: entre a academia e a prática65

A antropologia, enquanto ciência, produz um conhecimento que muitos consideram


somente académico. É um saber que, de uma forma geral, pretende compreender o Outro e traduzir
essa realidade múltipla e diversa que constitui a Humanidade na sua dimensão social e cultural.
Todavia, desde a sua constituição este mesmo saber foi aproveitado com propósitos e interesses
práticos, quer por antropólogos quer por não antropólogos.

Tradicionalmente, o campo privilegiado de atuação e saída profissional em antropologia foi o


domínio académico. Todavia, com a formação crescente de um número cada vez maior de licenciados
o acesso profissional à academia diminuiu e muitos antropólogos começaram a desenvolver as suas
carreiras fora do quadro institucional académico.

Esta transferência não é pacífica e o desafio epistemológico que coloca torna pertinente
questionarmo-nos, como faz Pereiro (2005) se a

antropologia é um saber aplicável? Deve a antropologia ser aplicada? É a antropologia aplicada


diferente da antropologia? É uma disciplina ou subdisciplina com métodos e teorias
diferentes? Ou o que mudam são só os agentes de aplicação? Se é diferente, o que o faz
diferente? Acaso na história da antropologia, a produção de conhecimento antropológico não
teve a sua aplicação? É a antropologia aplicada o mesmo que antropologia implicada? É a
antropologia aplicada o “patinho feio” da antropologia? Torna-se necessário fazer da
antropologia aplicada uma segregação da antropologia? Se a antropologia deve entender cada
cultura nos seus próprios temos (sic), que justifica que um antropólogo de outra cultura diga
aos membros dessa mesma cultura o que devem fazer? (2005, 3)

Como refere o autor a desconfiança perante a tarefa da antropologia e a sua aplicação tem
sido recorrente, nomeadamente pela possibilidade, aplicada ou implicada, de através dela se
participar na dominação do “Outro”. Será então a antropologia aplicada um “patinho feio”, ou como
refere Campêlo (s.d.), o “parente pobre da antropologia geral”? Embora a relação entre a prática
“académica” e a prática aplicada do conhecimento antropológico não seja recente tem uma crescente
aplicabilidade e visibilidade social que analisaremos de seguida.

A delimitação dos campos teóricos e aplicados faz parte já dos principais manuais académicos
de referência. Por exemplo, Kottak (2007), reconhece na Antropologia estas duas dimensões: 1)
antropologia teórica ou académica e 2) antropologia aplicada ou prática. O autor expõe num quadro

65
Texto que tem por base Sousa (2008) revisto em Sousa (2014).

83
comparativo o relacionamento dos quatro campos tradicionais da antropologia66 com as áreas usuais
de aplicação (Quadro 2).

Quadro 2

A antropologia aplicada refere-se, para o autor, à utilização dos dados, perspetivas, teorias e
métodos antropológicos para identificar, avaliar e resolver problemas sociais contemporâneos (2007:
16). Para Kottak, os campos de aplicação do conhecimento antropológico fora do domínio académico
são variados:

Os antropólogos (...) aplicam os seus conhecimentos para o estudo da dimensão humana de


degradação ambiental (por exemplo, a desflorestação, a poluição) e as mudanças climáticas
globais, examinando como a ambiente influência os seres humanos e como as atividades
humanas afetam a biosfera e a própria terra. (…) Antropólogos físicos aplicados relacionam
padrões de feridas na análise de erros de conceção de aeronaves e veículos. Etnógrafos têm
influenciado a política social mostrando que existem fortes laços de parentesco nos bairros das
cidades, cuja organização social era anteriormente considerada como "fragmentada" ou
"patológica". Algumas sugestões para melhorias no sistema educacional vêm de estudos
etnográficos em classes da escola e comunidades (…). Antropólogos linguísticos mostram a
influência das diferenças de dialeto na aprendizagem em sala de aula. (Kottak, 2007: 16-17).

Esta descrição das múltiplas possibilidades do trabalho aplicado em antropologia continua, no


entanto, a enfatizar a ligação com antropólogos académicos, sedeados em universidade, e que
desdobram a sua atividade em parcerias com a sociedade civil. Todavia, a evolução recente é,
sobretudo, para uma autonomização destes papéis sociais pois muitos antropólogos formados
desempenham as suas funções exclusivamente fora do contexto universitário. Analisaremos, mais à
frente, como evoluiu este processo.

66
Estes quatro campos da antropologia espelham, sobretudo, a herança da antropologia nos Estados Unidos da
América, em que se inclui, usualmente, a arqueologia no departamento antropológico (na Europa a arqueologia
está sobretudo associada à História).

84
O conceito de Antropologia aplicada

A introdução proposta com base em Kottak (2007) revela a dimensão “utilitária” da


antropologia que é fundamental aprofundar. Para Willigen (1986: 7) a antropologia aplicada é a
“antropologia colocada a funcionar…”. Isto é: “(…) uma rede de processos, baseada em pesquisa e
métodos instrumentais que produzem mudança ou estabilidade em sistemas culturais específicos
através do fornecimento de dados, de ação direta e / ou a formação de políticas.” (1986: 8). Por sua
vez, Ervin considera que a antropologia aplicada não é uma:

pesquisa passiva ou mera crítica social. É quase sempre encomendada por uma organização
fora da academia. O objetivo pode ser o fornecimento de informação que enquadre o contexto
social e cultural e as circunstâncias de populações particulares, mas normalmente os clientes
esperam recomendações concretas para fins específicos. (2000:4)

Outra noção associada é a de “antropologia prática” (practicing anthropology), usada


comummente, reflete a dimensão exterior ao mundo académico. Segundo Ervin (2000) esta vertente
desenvolveu-se sobretudo a partir dos anos setenta do século XX para designar os antropólogos que
trabalham fora da esfera universitária. Estes, mais do que empenhados em reflexões de carácter
teórico, estão envolvidos na ação, administração e implementação de programas ou projetos, não só
como funcionários públicos, mas como consultores ou assessores, quer em entidades públicas ou
privadas, como empresas ou organizações não-governamentais.

Apesar desta vocação prática e política, persiste uma ligação entre a antropologia académica e
a aplicada consentindo o desenvolvimento de novas abordagens teóricas e procedimentos
metodológicos. De facto, como refere Ervin (2000) é possível estabelecer uma relação de
continuidade entre ambas. Um continuum no qual o eixo axiológico se transmuta com a presença do
domínio das políticas, isto é medidas concretas para a ação pública (Quadro 3).

Quadro 3

O acervo de dados obtidos pelos estudos teóricos e etnográficos é imenso e a reflexibilidade


entre os polos deste contínuo alimentam continuamente a produção de novo saber, teórico e
aplicado. Contudo, o reconhecimento desta dimensão política das medidas e ações dos antropólogos,
académicos ou não, obriga a uma nova postura epistemológica e ética.

Alguns antropólogos trabalharam, sobretudo a partir dos anos sessenta do século XX, temas
eminentemente sociais estabelecendo uma ponte que viria a ser atravessada através do polo

85
axiológico definido pela análise de políticas. Embora este trabalho tenha sido desenvolvido
inicialmente em contexto académico, cada vez mais tem como origem o exterior da academia:
solicitado por alguém, comunidade ou instituição, com o objetivo de obter elementos que sustentem
tomadas de decisão relativas a problemas sociais concretos e não para questões teóricas (postura que
tende a esbater-se com a criação de pontes entre ambas, em congressos, associações e revistas como
a Human Organization).

Atualmente, observa-se que muitas universidades procuram estabelecer meios de


providenciar esta relação com a sociedade, constituindo centros de pesquisa que visam desenvolver
estudos relacionados com problemáticas específicas da sociedade.

O desenvolvimento da antropologia aplicada

Uma breve resenha das fases do desenvolvimento histórico da antropologia aplicada ajuda-
nos a compreender a sua evolução, mas também os interesses aplicados. Seguiremos de perto nesta
recensão Ervin (2000) e Baba e Hill (2006).
Ervin (2000: 14-26) identifica cinco fases de desenvolvimento da antropologia aplicada que
adotaremos nesta exposição: as origens no século XIX, o período entre as duas guerras mundiais, a
Segunda Grande Guerra e o período imediato do pós-guerra, o período entre 1950-1970 – no qual
domina uma antropologia aplicada académica e consultadoria para o desenvolvimento. Numa última
fase emerge uma “nova antropologia aplicada” de política e prática dos anos setenta até ao presente.

A Antropologia Aplicada no século XIX

A dimensão aplicada da antropologia em questões sociais está presente no início da


disciplina. A Ethnological Society of London (1843) e a Anthropological Society of London (1863),
associações fundacionais da antropologia no século XIX, havia já a preocupação em promover a
emancipação da sociedade da época de ideias preconcebidas, dominadas pelas questões de raça e de
pobreza. A vertente mais académica da antropologia desenvolve-se com a Royal Anthropological
Society of Great Britan and Ireland em 1883 e a nomeação no mesmo ano de Edward Tylor, para a
regência da disciplina em Oxford. A antropologia era considerada na época como uma disciplina
fundamental na educação dos funcionários coloniais sobre os costumes nativos. Esta associação com
o colonialismo vai ser objeto de crítica posterior.
Enquanto no Reino Unido a preocupação era sobretudo com as colónias, nos Estados Unidos
da América, o interesse dominante provinha da aplicabilidade do saber antropológico no
conhecimento e resolução de problemas decorrentes da incorporação das comunidades nativas
americanas, usualmente designadas “índios”, na agenda política da época. Desde cedo esta foi uma

86
área de conflito entre os antropólogos e os políticos, cujos objetivos imediatos se contrapunham à
necessidade de tempo e às visões dos antropólogos 67.
Todavia, é nos Estados Unidos da América que desponta a figura de Franz Boas, o pai da
antropologia norte americana, que desenvolve uma antropologia aplicada, procurando salvaguardar a
riqueza das populações nativas americanas. Foi igualmente um dos primeiros a desenvolver a
advocacia antropológica defendendo argumentos que negavam as teorias migratórias restritivas
vigentes na época e que impediam a proveniência de populações de outros pontos da Europa que não
as do Norte da Europa.

A antropologia aplicada entre as duas Guerras Mundiais

Este período corresponde à afirmação da antropologia na Universidade. Na Inglaterra


desenvolveu-se o funcionalismo com Bronislaw Malinowski e Radcliffe-Brown, enquanto nos EUA se
desenvolve a escola de aculturação, influenciada por Franz Boas. Ambas as escolas abordavam as
sociedades na sua contemporaneidade e manifestam preocupações aplicadas. No caso inglês esta
preocupação era vocacionada para as populações do império e, no caso americano, para com as suas
populações nativas.
Em 1929 Malinowski68 escreve o artigo Practical Anthropology, no qual defende a utilidade
prática da antropologia na administração colonial, proporcionando dados sobre as populações nativas
e ajudando assim as administrações na sua governação e no processo de mudança a que estavam a
ser sujeitas. No entanto, advoga que as mudanças, políticas ou económicas, devem ser feitas de
acordo com os princípios locais, contanto que estes não choquem com as leis britânicas. De igual
forma defende que nos locais onde se encontrem poucos funcionários ingleses a administração local
deve ser conferida às populações autóctones. Defende que os antropólogos devem estar envolvidos
no trabalho com a administração e procura que os seus estudantes obtenham colocações nestas áreas
(tal como Radcliffe-Brown irá procurar obter para os seus alunos).
Nos Estados Unidos da América os antropólogos estiveram envolvidos no Bureau of Indian
Affairs durante a política do New Deal que se segue à Grande Depressão de 1929. Muito deste
trabalho foi relacionado com a problemática da posse das terras. Por seu turno, no Bureau of
American Anthropology foi criada uma unidade específica, a: Applied Anthropology Unit. Todavia, esta
participação foi marcada por conflitos entre as necessidades dos políticos e as posturas dos
antropólogos, nem sempre concordantes. Segundo Julian Steward (1969) referido por Ervin (2000) as

67
Para saber mais: Bieder, Robert. 1989. Science Encounters the Indian, 1820-1880: The Early Years of American
Ethnology. University of Oklahoma Press. Acessível parcialmente:
http://books.google.pt/books?id=ChvKnFayeB8C&pg=PA149&lpg=PA149&dq=Indian+policy+Henry+Schoolcraft
&source=bl&ots=UcXZgg8-jw&sig=GQOaz0aYmRszINX2n31OvuGZ238&hl=pt-
PT&sa=X&ei=JpWXUMK2D86Thgfb3IGYDg&redir_esc=y#v=onepage&q=Indian%20policy%20Henry%20School
craft&f=false
68
http://pt.scribd.com/doc/87349764/PracticalAnthropology-Malinoswki

87
visões políticas eram paternalistas e românticas e estas ideias enformavam muitas das medidas
políticas entrando em contradição com a realidade e diversidade local dos grupos afetados.
A participação da antropologia durante este período foi objeto de crítica posterior sobre o
seu papel quer nas políticas de governação colonial indireta dos ingleses quer nas políticas
assimilacionistas americanas. A partir dos anos 30 também se procurou aplicar a antropologia aos
negócios e indústria em estudos sobre a motivação e produtividade dos trabalhadores de que são
exemplo os estudos de Lloyd Warner na Harvard Scholl of Human Relations.

A antropologia aplicada durante a Segunda Grande Guerra e no pós-guerra

O esforço de guerra durante a Segunda Grande Guerra Mundial vai suscitar o envolvimento
de múltiplas áreas científicas e, entre estas, a antropologia, no qual muitos antropólogos estiveram
envolvidos, direta ou indiretamente. Nos Estados Unidos da América e na Inglaterra realizaram-se
estudos sobre o inimigo para que os militares pudessem saber com quem se estavam a confrontar. O
mais conhecido destes estudos é o de Ruth Benedith sobre os japoneses: O Crisântemo e a Espada.
Outros estudos versaram acerca das populações amigas onde um elevado número de soldados
americanos estavam destacados, como no caso da Inglaterra, de forma a se elaborarem guias de
contato. Finalmente registe-se os estudos sobre a gestão de campos de concentração de populações,
como foi o caso dos americanos de origem japonesa nos EUA.
Dada a extensão da guerra foram desenvolvidos estudos de áreas para conhecer os locais e
as populações em teatros de guerra, como no caso da Ásia e do Pacifico. Estes dados vieram a ser
utilizados durante a guerra, mas também após, nomeadamente na governação de áreas que ficaram
sobre a dependência de uma das potências vencedoras. Em alguns casos o saber dos antropólogos
em determinadas áreas foi crucial para o seu direto aproveitamento para o esforço de guerra. Um dos
casos mais conhecidos será o de Edmund Leach, que desempenhou um papel ativo no teatro de
guerra na Birmânia69 país sobre o qual viria a escrever o seu principal trabalho: Sistemas Políticos da
Alta Birmânia.

A Antropologia Aplicada Académica e a consultoria para o desenvolvimento: 1950-1970

Após a guerra dois factos contribuíram para uma primeira retração da antropologia aplicada
e um reflorescimento da antropologia académica: a expansão do ensino universitário permitiu que um

69
Para saber mais: Tambiah, Stanley. 2001. Edmund Leach: An Anthropological Life. Cambridge University Press.
Disponível parcialmente:
http://books.google.pt/books?id=WBfBkGvRmowC&pg=PA43&lpg=PA43&dq=edmund+leach+army+officer&so
urce=bl&ots=Bzz-2ROkcJ&sig=ZExEhV5i19q_Fjc9BrT6csMaLiQ&hl=pt-
PT&sa=X&ei=B5qXUI25IMS4hAf7s4GQAw&redir_esc=y#v=onepage&q=edmund%20leach%20army%20officer
&f=false

88
maior número de antropólogos obtivesse uma colocação académica, por outro lado, muitos cientistas
sociais temeram a utilização do conhecimento científico gerado na sequência da utilização desse
conhecimento na produção de bombas atómicas.
No entanto, a antropologia aplicada não desapareceu, sendo desenvolvida a partir do
contexto académico. Entre os temas de trabalho a questão dos índios americanos foi defendida por
Sol Tax que viria a incrementar com os seus estudantes uma corrente denominada antropologia de
ação (intervenção) (Willigen, 1986), em que as preocupações de investigação não se centravam tanto
na questão académica, mas sim nas necessidades das populações com que se trabalhava,
consideradas co investigadoras com os universitários.
Um tema que se tornou recorrente neste período pós-colonial foi o do desenvolvimento
relativo às populações nativas americanas bem como às populações dos novos países emergentes da
descolonização em curso. Allan Holmberg (1958) desenvolve um projeto sustentado no método de
“Pesquisa e Desenvolvimento”. Denominado Projecto Vicos, tinha como princípio a ideia de que é
possível utilizar o conhecimento científico na valorização da dignidade humana. A comunidade de
Vicos fica situada numa fazenda do Peru que foi comprada com fundos da Universidade de Cornell.
Pretendia-se que o poder e conhecimento resultantes da investigação fossem usados para melhorar a
vida dos seus participantes70.
Muitos programas internacionais começaram neste período a ser apoiados por antropólogos
sedeados em universidades. Entre os mais conhecidos citamos George Foster e Ward Goodenough.

A emergência de uma “Nova Antropologia Aplicada”: dos anos 70 até à atualidade

Este período assenta na utilização da antropologia centrada na política e na prática. Embora


se desenvolva a partir dos anos setenta as suas origens estão nas preocupações sociais dos anos
sessenta, um período de lutas anticoloniais, novos nacionalismos a emergência dos novos Estados
africanos, a Guerra Fria e as guerras nacionalistas como a do Vietname. Tornou-se claro ao longo
deste período que os antropólogos não poderiam estudar as comunidades isoladas do contexto
político e social em que se inserem, nem podiam os cientistas fazer o seu trabalho sem ter em conta
as situações delicadas em que muitas dessas populações se encontravam.
Durante este período muitos antropólogos foram contratados para trabalhar em
organizações governamentais e não-governamentais internacionais e, de forma crescente, para
grupos locais. Este facto ocorre ao mesmo tempo que siem da universidade um cada vez maior
número de formandos com graus académicos de mestrado e doutoramento que não encontram nesta
uma saída profissional. A advocacia tornou-se cada vez mais importante à medida que alguns
antropólogos começaram a usar o seu conhecimento para sustentar e defender posições de
populações e comunidades que se organizaram para obter direitos sobre terras, bens ou controlo de

70
https://courses.cit.cornell.edu/vicosperu/vicos-site/cornellperu_page_1.htm

89
atividades económicas. Estas comunidades tanto podiam ser isoladas e remotas como urbanas, em
que os problemas de racismo e pobreza se tornaram urgentes.
O conhecimento antropológico passou a fazer parte de outras disciplinas que procuraram
nele a abordagem que lhes faltava para se confrontarem com a prática e resolução dos problemas
sociais. A importância desta área observa-se pelo desenvolvimento de programas de antropologia
aplicada em instituições académicas ao longo dos anos setenta, ligando níveis académicos, como
mestrados e doutoramentos, a estudos concretos de terreno e formando estes um trampolim para a
empregabilidade dos antropólogos fora da universidade. Ao mesmo tempo, este campo desenvolve-
se e criam-se publicações próprias da área interligando praticantes, permitindo partilhar experiências,
exemplo das Society for Applied Anthropology e a sua revista Human Organization ou Practicing
Anthropology na Universidade da Florida. Na década de 80 a American Anthropological Association
criou a unidade National Association for the Practice of Anthropology.

Modelos de trabalho e funções desempenhadas em antropologia aplicada

Feita uma recensão breve da evolução da antropologia aplicada iremos agora proceder a
uma análise das suas potenciais aplicabilidades. A proposta de Chambers (1989, 17-18), que resume
em quatro os seus diferentes estilos ou modelos de trabalho, é relevante neste contexto. Para o autor
a antropologia aplicada poderá desenvolver:

1. pesquisa básica: direcionada para problemas genéricos de mudança social e cultural, e de forma
crescente para as temáticas que envolvem a transferência de conhecimentos (embora mais associada
à pesquisa tradicional a sua produção é resposta direta a um pedido ou necessidade sentida e
manifestada).

2. pesquisa aplicada: que tem por objetivo a resolução de questões concretas, sendo sujeito por isso
não só a critérios científicos como a validade e a fiabilidade, mas também a critérios de utilidade,
como a relevância, o significado e a credibilidade;

3. transferência de conhecimento: nesta área o objetivo não é a produção de novo conhecimento,


mas a sua transmissão no ensino como professor ou formador ou no planeamento, avaliando
determinados parâmetros de qualidade de projetos com base nos conhecimentos antropológicos;

4. tomada de decisão: ocorre quando o antropólogo participa no processo de tomada de decisão


relativa a determinada área do projeto, sendo mais recorrente a que envolve a determinação do tipo e
qualidade de cuidados a tomar para com clientes sobretudo em quadros sociais de diversidade
cultural. (exemplo, uma enfermeira especializada em antropologia).

90
Estas quatro áreas envolvem, como podemos observar, os antropólogos em diversos
momentos do processo de formulação de políticas de desenvolvimento e, em particular,
desenvolvimento comunitário.

Quais as funções desempenhadas pelos antropólogos fora do contexto académico? Estas são
variadíssimas segundo Willigen (1986). O autor lista um conjunto de funções especializadas aplicadas
desenvolvidas por antropólogos. Nestas funções a sua formação teórica e metodológica adquirida
constitui uma mais-valia no desempenho de tarefas a que, usualmente, não se associam estes
profissionais:

•Politólogo – providência dados culturais para que os decisores políticos possam tomar
decisões informadas;
•Avaliador – efetua pesquisa para determinar se um programa teve sucesso;
•Responsável por estudos de impacto – analisa os efeitos de um projeto, programa ou
política numa comunidade local;
•Responsável pelo levantamento de necessidades – efetua pesquisa para determinar se um
projeto ou programa é necessário;
•Programador – ajuda a conceber programas ou políticas;
•Responsável pela análise dos resultados da pesquisa – interpreta resultados de pesquisa de
modo que decisores políticos, programadores e administradores possam tomar decisões
tendo em conta questões culturais sensíveis;
•Advogado – apoia ativamente um grupo ou comunidade;
•Formador – dá formação profissional em contextos interculturais sobre a cultura de uma
comunidade ou sobre técnicas de investigação;
•Mediador cultural – atua em ligação entre a entidade que fornece o programa e a
comunidade local;
•Testemunha qualificada – provê dados de pesquisa relevantes como parte de um processo
judicial;
•Promotor de campanhas públicas – promove educação pública sobre a temática usando os
média e encontros públicos;
•Administrador / gestor – não sendo comum, alguns antropólogos participam diretamente
como responsáveis de programas assumindo funções diretivas;
•Agente de mudança – usualmente desempenhado como parte de outras tarefas, esta
função ocorre sobretudo no contexto de Antropologia de ação/intervenção ou Antropologia
do desenvolvimento;
•Terapeuta – é um papel raro, também designado como antropólogo clínico, envolve o
conhecimento especializado de terapias específicas.

Esta lista assenta sobretudo em antropólogos formados no âmbito da antropologia cultural


ou social. Não são incluídas os formados em áreas como a antropologia biológica ou médica, ou áreas
confluentes com outras ciências como a etnobotânica, cujo campo especializado constitui uma área

91
de interesse teórico e prático em muitas atividades e projetos fora da académia. Todavia, muitas das
vezes, a formação de base em antropologia é combinada com outras temáticas específicas,
antropológicas ou não, como a formação em recursos humanos, de gestão, etc.

O potencial político da antropológica aplicada e o grande desafio ético

Feita uma análise descritiva de modelos e funções cumpre questionar que desafios éticos
suscitam o desempenho destas atividades. As questões éticas, e as suas implicações, são
preocupações prementes pois colocam-se a montante e a jusante de qualquer prática antropológica,
académica ou aplicada (Laraia, 1994). Todavia, se no quadro académico há um conjunto de normas
relativamente estabelecidos sobre a conduta da pesquisa e a divulgação dos resultados, esta matéria
é mais complexa em relação aos praticantes da antropologia fora do quadro académico. Segundo
Doughty (2005) as considerações éticas preocupam profundamente os antropólogos pois as
responsabilidades são acrescidas tendo presente a proximidade e intimidade como, no contexto da
pesquisa, a informação obtida resulta de um relacionamento de confiança.
Quais são então os princípios essenciais da ética antropológica? Podemos distinguir na
antropologia a existência de princípios éticos que se cingem à atividade académica e os princípios
éticos que se aplicam no contexto da antropologia aplicada? Estes últimos não são uma mera
extensão daqueles e pode dizer-se que ambos se influenciaram tendo mesmo a prática antropológica
aplicada motivado uma maior reflexibilidade no domínio académico.
Segundo Ervin (2000, 30), há quatro princípios essenciais que têm que ser assegurados no
desempenho de uma atividade antropológica aplicada são:

1. o consentimento informado

2. o modelo “clínico” de consentimento na informação

3. a confidencialidade e direitos pessoais à privacidade

4. s disseminação do conhecimento

O consentimento informado consiste no princípio de que se assume que a comunidade


estudada/analisada deve estar consciente do trabalho em curso, os seus objetivos, quem o solicitou e
porquê bem como os riscos e benefícios que dele poderão advir. Como afirma Ervin (2000, 30) “O
trabalho antropológico não pode ser clandestino”. Este princípio é dos mais controversos tanto na
antropologia académica como na aplicada. O princípio descarta imediatamente determinadas
práticas de investigação recorrentes na antropologia académica e na sociologia como a pesquisa
encoberta do investigador. É um aspeto crucial pois a resposta da comunidade pode ser determinante
na prossecução do trabalho.

92
Por modelo “clínico” de informação consentida considera-se que em algumas situações é
exigido que determinados estudos se realizem tendo por base um contrato legal que vincule
antropólogo e cliente face à comunidade em estudo, ou o individuo que providencia a informação.
São estudos que se baseiam em indivíduos e que por isso seguem de perto os princípios de técnicas
de investigação experimental ou clínica. O compromisso assenta em dois tipos de contrato: um
explica os objetivos, métodos e plano, o que é esperado dos participantes bem como os riscos e
benefícios que estes poderão correr; o segundo documento, muitas vezes elaborado como uma ficha,
será preenchido pelo participante que reconhece ter conhecimento dos objetivos, riscos e benefícios
da sua participação.
A noção de confidencialidade e direitos pessoais à privacidade é fundamental. O antropólogo
deve assegurar que os nomes verdadeiros dos participantes ou informantes não sejam usados nos
relatórios ou publicações por esse facto permitir a identificação da comunidade ou grupo estudado.
Esta prática não isenta que a comunidade/organização não seja reconhecida por terceiros, sobretudo
se o caso obtiver muita exposição pública. Todavia, é essencial que, a ocorrer essa divulgação pública,
a comunidade possa validar esse facto.
A disseminação de conhecimentos é um processo essencial. Ao contrário do estudo
académico o trabalho aplicado realizado pelo antropólogo destina-se a ser devolvido não aos seus
pares mas às pessoas que serão as beneficiárias do seu estudo. Não deve haver secretismo sobre os
resultados da pesquisa e a comunidade deve ter acesso aos resultados do estudo. O próprio
antropólogo poderá participar em apresentações/discussões públicas sobre o seu trabalho.
Por sua vez, Willigen (1986, 44) enuncia a privacidade, o consentimento, a utilidade e a
comunicação como princípios éticos fundamentais. Embora haja uma continuidade entre os
princípios de ambos os autores a noção de utilidade empregue por este tem uma relevância semântica
particular pois coloca a ênfase na questão: quem lucra com o trabalho? Este enunciado alerta para o
facto de ser necessário tornar claro quem é que beneficia com o estudo. Como o autor alerta a
informação pode ser usada para controlar pessoas, isto é: conhecimento é poder. Assim, é necessário
identificar claramente quem é o cliente e quais são os seus representantes (a existência de subgrupos
dentro da comunidade pode levar a uma utilização abusiva de informação) e o que estes pretendem
fazer como estudo
Um exemplo atual que ilustra bem este dilema envolve a polémica associada com a utilização
de antropólogos pelo exército americano em vários cenários de guerra, como o Afeganistão71.
Todavia, esta não é uma prática recente, basta para tal relembrar o trabalho já mencionado de Ruth
Benedict “O Crisântemo e a Espada”, publicado originariamente em 1946, com a diferença que agora
os antropólogos fazem parte direta das unidades de combate.
A formação de associações profissionais de antropólogos vocacionadas para a antropologia
aplicada manifesta o crescimento desta área de trabalho. Uma das preocupações de muitas destas

71
Ver: Globo.com: EUA recorrem a antropólogos para resolver conflitos no Afeganistão 05/10/07
http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL145075-5602,00-
EUA+RECORREM+A+ANTROPOLOGOS+PARA+RESOLVER+CONFLITOS+NO+AFEGANISTAO.html

93
organizações foi o estabelecimento de códigos éticos. Apresentam-se de seguida (Quadro 4) dois
exemplos de códigos de duas das maiores entidades na área: a Nacional Association for the Practice of
Anthropology (NAPA)72 e a Society for Applied Anthropology (SFAA)73, ambas sedeadas nos Estados
Unidos da América:

Quadro 4

NAPA SFAA
Respeitar os direitos humanos e o bem-estar Para com as pessoas que estudamos temos a
dos grupos afetados por decisões, programas ou obrigação de revelar os objetivos, métodos e
pesquisas nas quais os antropólogos tomam patrocínio da pesquisa.
parte.
A obrigação de informar atempada e Para com as comunidades afetadas pelas
perfeitamente os sujeitos de investigação dos nossas atividades devemos respeito pela sua
objetivos, métodos e patrocínios das atividades. dignidade, integridade e valor.

Para com os empregadores há a obrigação de Para com os colegas temos a


prover competência, eficiência, competências responsabilidade de não empreender ações
profissionais e técnicas, realizadas que possam impedir as suas atividades
atempadamente e comunicadas de uma forma profissionais.
compreensível.

Na relação com estudantes ou formandos Para com os nossos estudantes, estagiários


manter uma atitude séria, justa, não ou formados, temos a obrigação de não
discriminatória e não exploratória. discriminar o seu acesso aos nossos serviços.

Para com os colegas, antropólogos e outros, há Para com os nossos empregadores e outros
a responsabilidade de desenvolver o trabalho de patrocinadores devemos apresentar de
forma a facilitar as suas atividades e não forma correta as nossas qualificações e
comprometer as suas possibilidades de desempenhar de forma competente,
trabalho. eficiente e atempadamente os trabalhos
solicitados.

Para com a disciplina há a responsabilidade de Para com a sociedade temos a obrigação de


agir de forma a apresentar a disciplina ao providenciar o benefício dos nossos
público e a outros profissionais de uma conhecimentos e capacidades em
perspetiva favorável. interpretar sistemas socioculturais

Podemos observar nas diferentes formulações os princípios enunciados pelos autores


analisados. É interessante a ressalva relativa aos direitos humanos e bem-estar formulada pela NAPA.
Obrigações, compromissos e responsabilidade parecem ser os princípios essenciais em relação aos
grupos sociais com quem se trabalha, os empregadores, colegas e a sociedade em geral. É evidente
que se trata de um guião genérico de princípios. Cada caso concreto tem idiossincrasias próprias que

72
http://practicinganthropology.org/
73
http://www.sfaa.net/

94
requerem uma abordagem específica e a ênfase num ou noutro dos domínios enunciados. Por último,
a postura do antropólogo pode afirmar-se pela simples recusa de desenvolver um trabalho. Para além
de questões legais, estas atitudes resultam igualmente de resoluções morais.

A Antropologia Aplicada: Brasil e Portugal – realidades diferentes

A Antropologia Aplicada tem uma dimensão nacional considerando os problemas específicos


que emergem em cada país. Iremos ilustrar estas diferenças com base em dois exemplos: o Brasil e
Portugal.

Moonen (1988) indica que a antropologia é uma disciplina nova no Brasil mas que desde cedo
se notou a preocupação por parte de alguns autores com a ética profissional face às populações
estudadas, nomeadamente as populações indígenas. Deve igualmente colocar-se ao serviço de
grupos considerados marginais e minoritários (“negros, camponeses, trabalhadores rurais e urbanos,
favelados, menores abandonados, delinquentes juvenis, mendigos, domésticas e outros grupos
oprimidos ou marginalizados” 1988,59)
Tradicionalmente, os índios são aqueles que mais captaram a atenção dos antropólogos
embora o autor critique severamente a universidade por não preparar os antropólogos para lidar
numa postura crítica com estes temas, mas somente a sua capacidade de analisá-los
“cientificamente”.
Já em 1977 Ribeiro e Davis, citado por Moonen (1988, 58) listavam as preocupações éticas e
profissionais que os antropólogos deviam ter para com estes:

(1) denunciar frente à opinião pública cada atentado contra os grupos indígenas;
(2) buscar formas de devolver aos índios e outras populações que estudamos aquela
parte do conhecimento que deles alcançamos, que lhe possa ser útil em seus esforços
para sair da situação dramática em que se encontram;
(3) incluir na temática dos nossos estudos, com marca de prioridade, os problemas de
sobrevivência, de libertação e de florescimento dos grupos indígenas;
(4) montar uma campanha agressiva contra todas as tentativas de remoção ou relocação
compulsória de povos indígenas de seus territórios e terras originais;
(5) documentar publicamente o papel dos poderosos interesses econômicos, muitas
vezes internacionais ou multinacionais, que são envolvidos directamente na
expropriação maligna e ilegal da terra;
(6) denunciar as várias ideologias disfarçadas de aculturação forçada, denominadas
eufemisticamente “programas de integração nacional” “(Ribeiro e Davis in Moonen,
1988, 58)

95
A estas o autor acrescenta:

(7) “devolver aos índios o seu passado histórico, contado do ponto de vista indígena, de
tal maneira que possa ser útil, principalmente para a recuperação dos seus territórios
e a conquista da sua libertação;
(8) orientar os índios quanto ao funcionamento da sociedade nacional, seus direitos e
deveres, os perigos e as possibilidades que a mesma oferece;
(9) assessorar os índios em projectos de “desenvolvimento comunitário” e outros
elaborados por eles mesmos;
(10) assessorar os índios sobre as possibilidade, estratégias e consequências de uma
verdadeira “libertação indígena”, incluindo a assessoria e análise crítica dos
movimentos indígenas locais, regionais e nacionais.” (Moonen, 1988, 58/59)

A questão indígena coloca sérios desafios à Antropologia no Brasil, como refere Azanha (s.d.)

Para a política indigenista oficial, o ponto de vista da Antropologia deve, sempre, ser
“neutro”, não pode “incitar a ação” sob pena de repressão. É o caso de nos
perguntarmos o que teme o Estado, já que ele controla muito mais o nosso trabalho de
antropólogos de que a ação dos garimpeiros, fazendeiros e salesianos. Teme – e sempre
temeu – que o nosso envolvimento com as “razões subjetivas” dos índios possa
acarretar ações que levem a contestações do seu poder. E foi isto o que, acreditamos,
ocorreu e tem ocorrido de 1975 para cá: o “envolvimento” dos antropólogos com a luta
dos índios.
Hoje, o maior envolvimento de muitos antropólogos com as “razões subjetivas”, dos
índios levou, pensamos, a uma mudança na qualidade da observação etnológica – que,
ao invés de ter a “assimilação ou extinção” como seu horizonte, descobre que as
sociedades indígenas guardam a capacidade de reagiram à situação de expropriação e
dominação conforme seus próprios parâmetros (é a chamada “resistência”). E descobre
porque esta observação se fez crítica em relação ao futuro destas sociedades e tornou-
se atenta aos seus motivos.

A Antropologia Aplicada em Portugal

No artigo de Afonso (2006) é identificado o desenvolvimento da antropologia em Portugal


em três estádios. O primeiro, a que denomina proto-antropologia, desde o século XIX até à segunda
Guerra Mundial caracteriza-se pelo domínio da corrente Romântica. A partir dos anos quarenta e
sobretudo por influência de Jorge Dias, desenvolvem-se os estudos de comunidades e culturas, quer

96
nacionais quer coloniais. A institucionalização lenta da antropologia só ocorre após a revolução de
1974. É também neste período que a autora identifica a emergência de uma Antropologia Aplicada.
Isto não quer dizer que a antropologia não tivesse anteriormente uma dimensão prática. Em
Portugal a relação da antropologia e a sua aplicabilidade no domínio colonial ficou vincada com a
relação da Escola Superior Colonial, criada em 1906 (posteriormente Instituto Superior de Estudos
Ultramarinos, e atualmente Instituto de Ciências Sociais e Políticas). A existência da Escola não é um
caso isolado, ela insere-se no quadro europeu da época em que surgiram várias escolas com o mesmo
propósito.
O Primeiro Congresso Nacional de Antropologia Colonial realizado nos anos quarenta
estabeleceu e firmou propósitos claros de contribuir através dos seus estudos como base para:

(…) qualquer plano racional de organização e aproveitamento das colónias. Assim os assuntos
de que vai ocupar-se o congresso revestem, além do seu grande interesse científico, uma alta
importância nacional. (Moonen, 1988, 23)

Neste âmbito desenvolveram-se várias missões às colónias no sentido de coletar dados tanto
físicos como culturais sobre as suas populações (ver o artigo de Sholten indicado em Fonte de Estudo
on-line).
Jorge Dias desenvolveu também trabalho com a sua equipa em Moçambique junto dos
Maconde, afastando-se do modelo antropobiológico. O seu trabalhado representou, segundo a
autora, o reconhecimento político da importância da disciplina. No seu relatório o autor foi crítico de
certas práticas racistas na colónia nunca deixando, no entanto, de ressalvar o aspeto civilizador que a
presença portuguesa tinha. Segundo Afonso (2006, 160) o criticismo aproxima Dias das estratégias de
antropologia-advocacia.
No período pós 1974 observou-se a institucionalização da antropologia em Portugal com vários
cursos a surgirem em Portugal e a absorver um primeiro grupo de formandos nesta disciplina. Esta
tendência em breve se esgotaria conjugada com a dificuldade em obter lugares na academia e no
ensino secundário (onde a antropologia era ensinada como opção). Neste período inicial as
antropologias académica e aplicada não se dissociam, mas com a crescente saída de licenciados em
antropologia muitos antropólogos encontram-se, por necessidade ou escolha, a trabalhar em áreas
novas. Os cursos começaram a incorporar disciplinas com uma dimensão mais prática e num caso
particular, um curso foi criado na Universidade de Trás-os-Montes: Antropologia Aplicada ao
Desenvolvimento. A esta dimensão junta-se a criação na Universidade Fernando Pessoa de um
Centro de Antropologia Aplicada. Algumas universidades procuram ainda aumentar a
empregabilidade dos seus licenciados através da realização de estágios (caso do ISCTE - Instituto
Superior de Ciências do Trabalho e do Emprego).
Afonso (2006, 164) reclama que ainda não se pode falar da Antropologia Aplicada em Portugal
como um campo subdisciplinar autónomo. Há, no entanto, um conjunto de áreas onde é possível
observar a emergência de prática antropológica. Prática que ainda se encontra para muitos associada

97
com uma imagem negativa da antropologia nas colónias e por outro lado é ofuscada pela presença e
apelo de outras ciências sociais mais conhecidas como a sociologia.

Entre as áreas onde se tem desenvolvido trabalho antropológico aplicado a autora menciona
(2006, 166-169) a Antropologia do Trabalho, Estudos ambientais, Análise de Impacto Social,
Migrações, Antropologia e Educação, Antropologia Médica, Minorias Étnicas, Estudos pós-coloniais,
Antropologia Urbana, Antropologia do Turismo, etc. Entre os exemplos apontados a autora refere o
trabalho de Paulo Granjo no âmbito da Antropologia do Trabalho realizado nos anos noventa e que
procurou relacionar as questões das relações no trabalho e o de risco. No campo dos Estudos
Ambientais de referir o trabalho realizado pelo CEAS – Centro de Estudos de Antropologia Social,
ligado ao ISCTE, no âmbito do estudo desenvolvido na costa algarvia com o projeto “Gestão Social
dos Recursos Naturais no Sotavento Algarvio”.
Outro estudo que contou com a presença de antropólogos foi o Plano de Minimização de
Impactes do Alqueva, vocacionado em particular para a povoação alentejana Aldeia da Luz que foi
submersa pela barragem. No campo das migrações o estudo “Presentes e Desconhecidos: uma
análise antropológica sobre mobilidade e mediação com populações migrantes no Concelho de
Loures” realizado também pelo CEAS, envolvendo sociólogos e antropólogos, mostra o interesse de
alguns municípios em lidar com as novas realidades multiculturais. Exemplo comentado também é o
do trabalho desenvolvido pela autora em Setúbal no Bairro da Bela Vista com o título “Antropologia e
Desenvolvimento local: um estudo piloto no bairro da Bela Vista”.

98
3.Campos e objetos da antropologia social e cultural

Tapo, Timor-Leste: refeição final após a reconstrução da Casa Opa,


junto à Casa aliada Bosokolo. As Casas sagradas são um bom exemplo
da interação entre parentesco e poder. 2004. L.Sousa.

Pressupostos do tema

Os campos de investigação em antropologia social e cultural são variados. Neste capítulo iremos
estudar dois dos temas tradicionais: a antropologia do parentesco e a antropologia política.

Objetivos gerais

No final deste tema deverá compreender e explicar:

• a construção social do parentesco;


• a diversidade de sistemas de parentesco existentes;
• a relevância da antropologia política
• a dimensão social do poder

99
100
3.1 Antropologia e parentesco

©Tei (dança) durante o Il po`ho (buscar a água sagrada) envolvendo


todos os responsáveis cerimoniais das 18 Casas sagradas, 2005.
LSousa

Pressupostos do tema

O parentesco é um tema clássico dos estudos antropológicos. Emerge com os evolucionistas a


questão da origem da família e das relações sociais dai decorrentes. Trata-se, apesar das
significativas diferenças existentes, de um universal de cultura, pelo que o seu recenseamento e
análise se tornou desde cedo um dos desafios principais da antropologia.

Objetivos gerais

No final deste tema deverá compreender e explicar:

• a relativa base biológica na construção social do parentesco;


• a diversidade dos sistemas de parentesco;
• os determinantes sociais da aliança matrimonial;
• as caraterísticas dos diferentes sistemas de filiação.

101
3.1.1 O parentesco no ciclo da vida

Os estudos do parentesco foram considerados por muitos como a especificidade própria da


antropologia, dotados de aspetos teóricos e jargão técnico, e constituindo o tema mais esotérico da
disciplina. Todavia, os temas associados ao parentesco estão intimamente associados à vida pessoal
de cada pessoa e à sua sociedade. Neste capítulo introdutório iremos ver alguns domínios
relacionados com o parentesco ao longo do ciclo de vida.

Antes de começar: guia de instruções para escrita antropológica

A demonstração visual das relações de parentesco sempre foi um desafio para os


antropólogos. Tratando-se de uma convenção este processo teve várias propostas. Repare, por
exemplo, neste diagrama, reproduzido da obra de Morgan de 1870: Systems of consanguinity and
affinity of the human family74.

Figura 1: Diagrama de parentesco em Morgan

Fonte: Morgan. 1871, 38


Somente com a proposta de Rivers, e o seu método genealógico, se observa alguma
sedimentação dos símbolos convencionados. Na sequência da sua participação na expedição às
Torres Straits, o autor desenvolve um método de recolha genealógico que vai constar da edição de
1912 da Notes and Queries on Anthropology75:

74
Pode consultar um exemplar da obra aqui: https://archive.org/details/systemsofconsang00morgrich
75
As Notes and Queries on Anthropology, editado pelo Royal Anthropological Institute of Great Britain and Ireland;
British Association for the Advancement of Science, foram publicados pela primeira vez em 1874. Serviam
fundamentalmente administradores, missionários ou viajantes procederem à recolha de informações etnográficas
de uma forma sistemática. A obra sofreu uma evolução e a edição de 1912 já era essencialmente vocacionada para
antropólogos. Pode consultar o exemplar da 6ª edição aqui:
https://ia700303.us.archive.org/2/items/NotesAndQueriesOnAnthropology.SixthEdition/NotesAndQueriesOnAn
thropology.pdf

102
Para poderem analisar os diagramas que vão ser apresentados listam-se de seguida os
principais símbolos, seguindo (Santos, 2002, 127-128; 2006, 30-31) e Ghasarian (1999, 35-36).

indivíduo de sexo indiferente76

indivíduo de sexo masculino indivíduo de sexo feminino

indivíduo falecido

+ primogénita/irmã/filha mais velha


+ primogénito/irmão/filho mais velho

+ benjamim /irmão/filho mais novo - benjamim /irmã/filha mais nova

ou casamento

casamento polígamo

segundo casamento de um homem

divórcio

76
Usado sobretudo em explicações hipotéticas ou exercícios em que é indiferente o género do termo/alter.

103
filiação

germanidade (relação entre irmãos)

marido e mulher
com filho (procriação/descendência)
irmão e irmã

A aparente complexidade destes esquemas tem alguma utilidade para além dos antropólogos
que trabalham questões de parentesco? Um dos usos mais recorrentes destes esquemas, para
além do interesse crescente que do seu uso nas “árvores” genealógicas, é na medicina.
Designados por genogramas estes esquemas permitem analisar a história médica de uma
família através das suas gerações. Veja um exemplo aqui:
http://www.actamedicaportuguesa.com/revista/index.php/amp/article/viewFile/3676/2943

As abreviações de parentesco são também um tema complexo em antropologia embora haja


um maior consenso, pelo menos em língua inglesa. Foi a partir desta que foram efetuadas um sistema
de abreviações que foi usado regularmente, quer pelos autores ingleses quer de outras
nacionalidades. Todavia, há tradições nacionais, como a francesa, que usam a sua. Em Portugal
ocorre o mesmo. Santos (2002, 132-133; 2006, 37) procurou sistematizar uma proposta em língua
portuguesa.
Consanguíneos:
Pai P
Mãe M
Filho Fo
Filha Fa
Irmão Io
Irmã Iã
Tio IoP/IoM (irmão do pai/da mãe)
Tia IãP/M (irmã do pai/mãe)
Sobrinho FoIo/FoIã (filho do irmão/da irmã)
Sobrinha FaIo/FaIã (filha do irmão/da irmã)
Primo FoIoP/FoIoM/FoIãP/FoIãM (Filho do irmão do pai/
/do irmão da mãe/da irmã do pai/da irmã da mãe
Prima . FaIoP/FaIoM/FaIãP/FaIãM (filha do irmão do pai/do irmão a mãe/ etc.
Primogénito Pgt
Benjamim Bjm

104
Afins:
Marido Mdo
Esposa/Mulher Esp/ Mer
Cunhado IoMdo/IoMer/MdoIã/MdoIãMdo/MdoIãEsp (irmão do marido/irmão da
mulher/marido da irmã/marido da irmã do marido/marido da
irmã da esposa.
Cunhada IãMdo/IãEsp/EspIoMdo/EspIoEsp (irmã do marido/irmã da
esposa/esposa do irmão do marido/esposa do irmão da esposa.

Os primos paralelos definem-se pelo facto de serem indivíduos descendentes de irmãos


do mesmo sexo. Por seu turno, os primos cruzados são descendentes de irmãos de sexo
diferente. Os primos do lado paterno designam-se ainda “patrilaterais” enquanto do lado
materno se designam matrilaterais (diagrama 1).

Diagrama 1: Primos cruzados e primos paralelos

primos cruzados primos paralelos Ego primos paralelos primos cruzados

patrilaterais matrilaterais

Ego: da palavra latina “eu”. Termo convencional pelo qual se designa o individuo
escolhido como ponto de referência na notação e descrição de um sistema de
parentesco.

Alter: da palavra latina “outro”. Termo convencional pelo qual se designa o


individuo escolhido como ponto de comparação de Ego.

Princípios gerais de classificação de parentesco: guia rápido

As sociedades distinguem as relações de parentesco de formas diferentes. Há princípios que


são essenciais reter:

Geração: este princípio permite a Ego distinguir as gerações ascendentes das descendentes.

105
Linear versus colateralidade: este princípio permite a Ego distinguir os parentes que estão na mesma
linha (avô-pai-filho/avó-mãe-filha) dos parentes colaterais, i.e.: os que são descendentes de um
antepassado comum com Ego mas que não são seus ascendentes ou descendentes diretos. Ex:. os
irmãos e irmãs (germanos) e os primos são colaterais.

Género: alguns termos diferenciam o género (tio/tia) mas há outros em que tal não é percetível (ex.:
cousin em inglês).

Idade relativa: em alguns sistemas de parentesco há um princípio diferenciador dos termos


relativamente à idade, diferenciando os mais velhos dos mais novos, primogénitos e benjamins
respetivamente. Ex. entre os Bunak, de Timor-Leste, o irmão mais velho é denominado “ka`” e o mais
novo “kau”.

Consanguinidade versus afinidade: a distinção entre os parentes de Ego relacionados com Ego por
“sangue” (consanguinidade – todavia, o “sangue” não é forçosamente o elemento equacionado em
todas as situações, veja-se o caso das adoções). O termo consanguinidade tem uma forte conotação
europeísta). Os parentes por afinidade são adquiridos sobretudo por via do casamento. No entanto,
há formas de aquisição diferentes: ex:. apadrinhamento.

O sexo dos parentes pode ser um elemento diferenciador. Um exemplo que analisaremos de seguida
é a diferenciação entre primos paralelos e primos cruzados que depende do sexo dos seus
progenitores.

Bifurcação: relativo ao lado da família, com base neste princípio os termos de parentesco distinguem
os parentes do lado da mãe dos do lado do pai. Exemplo, caso do sistema iroquês, em que há uma
diferenciação.

O ciclo de vida: o(s) corpo(s) e a sociedade77

Vamos de seguida proceder ao estudo do ciclo de vida, usando este conceito como um
dispositivo para relacionar, analisar e interpretar as incidências que envolvem o ciclo biológico
comum e as diferenças socioculturais que caracterizam a forma como cada sociedade interpreta e
constrói esse processo.
O ciclo de vida é marcado por quatro momentos essenciais: nascimento, maturidade,
reprodução e morte (Hoebel e Frost, 2001,160). Esta perspetiva, eminentemente reprodutiva, por ser
complementada por outra, mais vocacionada para o quadro temporal e correspondentes expetativas
sociais: nascimento e infância, puberdade e adolescência, maturidade e casamento e velhice e morte
(Titiev, 1985, 313). Estes são momentos de crise com respostas variadas por parte de diferentes
culturas.

77
Na tradição dos estudos do Sudoeste Asiático, nomeadamente da Indonésia e Timor-Leste, a gestão e
manutenção destes momentos críticos da vida social tem a feliz designação de “fluxo de vida”, título da obra
“The Flow of Life- Essays on Eastern Indonesia”, editada por James Fox, em 1980.

106
Figura 2: ciclo da vida

Nascimento Puberdade e Maturidade Velhice


e infância adolescência e casamento e morte

Fonte: adaptado de Titiev (1985)

Nascimento e infância

A montante do nascimento, o “ciclo vital” (Hoebel e Frost, 2001, 160-174) inicia-se com a
conceção. Este ato não é em todas as culturas veiculado ao ato sexual, nem em todas é reconhecido a
ambos os progenitores um papel fundamental. De igual forma, o anúncio do estado de gravidez, não
é um evento que se limite aos cônjuges, a comunicação do estado da mulher tem importância para
ambas as famílias.
Em algumas sociedades a conceção é considerada milagrosa, enquanto noutras ela é vista
como a reencarnação do espírito de um antepassado, exemplo dos trobriandenses estudados por
Malinowski, ou dos Baruya, estudados por Godelier (2003). Fortune refere em relação aos habitantes
de Dobu:

Em Dobu não se ignora o papel do elemento masculino na procriação. Crêem que o sémen
é leite de coco que passou pelo corpo do homem até ser expelido no momento do
orgasmo. Pensam que este leite de coco expelido fertiliza a mulher, fazendo com que
dentro dela o sangue – que quando não está fertilizado sai todos os meses no fluxo
menstrual – coagule e forme o feto. (Fortune, 1977, 327-328)

A paragem do fluxo menstrual é determinante para o reconhecimento da gravidez, entre


outros sinais fisiológicos (aumento dos seios, crescimento abdominal, enjoo, etc.). Este fato vai
estabelecer para a mulher e o seu parceiro um conjunto de obrigações ou restrições, muitas vezes
impostos por uma série de tabus pré-natais que procuram salvaguardar o processo de gestação
(exemplo de proibições alimentares ou de contacto sexual).
No entanto, entre os Baruya, estudados por Godelier (2003), a continuidade de contacto sexual
do homem com a mulher é determinante para assegurar a força e saúde do ser em gestação pois
considera-se que o sémen do homem é fundamental na formação do corpo do ser em gestação78.
A conceção pode ainda ser tomada como uma reprodução das relações e categorias culturais
da sociedade em causa relativamente à ideologia da procriação. Em algumas, como no caso dos

78
Estas conceções devem ser vistas de uma forma mais holística pois esta ideologia ajuda a cimentar a luta que
os homens Baruya têm para manter a hegemonia sobre as mulheres. Para compreender melhor esta questão
consulte Godelier (2003).

107
Bunak79, a mulher é associada à terra mãe e o ato sexual é o encontro do frio (feminino) com o quente
(masculino) à imagem da terra (feminina) que recebe as sementes e a fertilização das chuvas
(masculinas) Friedberg (1980)

Parto (descendência e filiação)

O momento do parto é precedido de diferentes formas de preparação. Sendo um momento


predominantemente feminino, em pequenas comunidades, as parteiras, as mães ou grupos de pares
asseguram-no, por norma no domicílio. Este pode ser precedido de invocações específicas de carácter
mágico ou religioso. Nos países ditos desenvolvidos existem cursos de preparação específicos,
ocorrendo os partos em ambientes hospitalares havendo, no entanto, uma cada vez maior procura do
parto em casa, facto que encontra oposição entre elementos da classe médica80.

O recolhimento
O período pós-parto é marcado por um período de recolhimento, ou reclusão. Durante este
tempo a mulher e o recém-nascido são objeto das mais diversas atenções. Entre os Bunak do distrito
de Bobonaro a reclusão da mulher é feita na “cozinha”, uma parte da casa ou anexo próprio, onde vai
estar durante cerca de mês um tronco “oto po`” – fogo sagrado (que foi recolhido pelo pai da criança
como preparativo para o parto) que vai “aquecer” a mulher e o recém-nascido, sujeitos a banhos de
água quente para recuperar o corpo, no caso da mulher, e formar o do recém-nascido.

Bunak -visita de parentes, ao centro o oto po` - tronco de


madeira que arde continuamente, 2005. LSousa.

79
Os Bunak são um povo de língua não austronésia que habita a parte central da ilha de Timor. Encontram-se
divididos entre o Estado de Timor-Leste e Timor Ocidental, Indonésia (para saber mais consultar Sousa, 2010).
80
“Público - 24 Dez 03, Partos em Casa Estão a Aumentar em Portugal Por Catarina Gomes “(…) Depois de
durante dois anos ter estabilizado na casa dos 500, no ano passado os partos domiciliários subiram para 751.
Uma proposta do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses lançou recentemente o debate: a forma de fazer face à
falta de médicos nas maternidades e de combater "a medicalização" de um ato que é natural passa por
incentivar esta prática. (…) Levar adiante a proposta seria "um desastre" e "um retrocesso de 50 anos", defende
por sua vez o presidente da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Ginecologia. (…)”

108
Em alguns casos após o parto a mulher retoma a suas atividades sendo o homem quem vai
para a cama para recuperar do parto. Esta prática designa-se couvade, ou falsa- gravidez, e é
praticada em algumas culturas da Ásia, América do Sul e mesmo na Europa até recentemente junto
dos Bascos (Akoun, 1983). Esta prática consiste em o pai se deitar junto do recém-nascido para o
“chocar” (couver), recebendo as felicitações e votos habitualmente destinados à mãe.
Por este gesto simbólico, o pai participa socialmente no nascimento do filho. Semelhante rito
parece ser atribuído sobretudo a certas sociedades matrilineares (…) O recurso a este costume
permitiria assim que o marido recuperasse os seus direitos de paternidade sobre o filho da sua
mulher. (Akoun, 1983, 132). Este é um período de intensa atividade social com a visita de familiares e
aliados que vêm conhecer o novo membro da família pois este membro vem repor nas relações de
aliança, numa perspetiva estruturalista, mais um elemento de troca social. Entre os Bunak durante
esta fase inicia-se a procura o nome da criança (o nome “gentio”), que é revelado em sonhos entre os
parentes uterinos da mãe.
Por norma o parto é um momento fundamental para muitas sociedades, que consideram o
nascimento como essencial para dar continuidade aos grupos sociais envolvidos, mas também, a um
título pessoal, reconhecer o papel social da mãe e pai. As relações de parentesco estão fortemente
associadas a uma componente biológica. Todavia, parentesco pode ser classificado em “real” e
“fictício”. O parentesco “real” é usualmente derivado e uma relação biológica, mas este não é um
facto universal.
Um exemplo clássico é o de Malinowski em “A vida Sexual dos Selvagens”. Este autor refere
que os trobrianders não acreditavam que o pai tivesse algo a ver com a conceção da criança. Para
estes, a geração de uma criança estava associada a um espírito do clã da mulher.
O parentesco fictício associa-se a relações no qual as pessoas se tratam por termos de
parentesco, mas, de facto, não estão relacionadas. Neste contexto, a terminologia de parentesco
assume-se com um elo de ligação e marcador de obrigações sancionadas socio religiosamente pelo
grupos. O exemplo deste tipo de parentesco é o atributo de denominação de “irmãs” e “pai” entre
movimentos religiosos ou outros.
Por descendência é usualmente reconhecido o conjunto de pessoas que têm origem em
determinado individuo, Ego (e para quem este é o seu ascendente). Todavia, o termo filiação81,
compreende uma dimensão mais social pois constitui a regra através da qual um determinado
individuo adquire82 parentesco na sociedade em causa. Nesta aceção a filiação implica direitos e
deveres por parte do novo membro. Uma definição de trabalho pode ser avançada: “Conjunto de
direitos e obrigações que resultam da inclusão num determinado grupo pela transmissão de posições
filiativas de uma geração a outra”. (Barry et al, 2000.725).

81
Não analisaremos aqui a controvérsia de tradução existente entre a tradição inglesa, que usa o termo
descendência no sentido em que, usualmente, se emprega, na tradição francesa o conceito de filiação.
82
A filiação é, por norma, atribuída (sobretudo nos sistemas unilineares). Todavia, pode ocorrer situações em que
a filiação é objeto de aquisição por escolha ou opção (sobretudo nos sistemas de filiação indiferenciados).

109
Como refere Ghasarian (1999) “A filiação é o princípio que governa a transmissão do
parentesco”, através do qual é atribuído o estatuto de pertença a um determinado grupo de filiação.
Este princípio está relacionado com uma determinada ideologia de descendência que a sociedade em
causa veicula como preceito, a que Gasahrian (1999, 50) denomina “ ideologia da procriação”83.
De facto, é importante não associar filiação exclusivamente a relações de consanguinidade.
Como refere Santos: “(…) a filiação define relações de consanguinidade reais ou fictícias que separam
de outros grupos de consanguíneos diferentes e os torna possíveis aliados, segundo a seleção imposta
pelo tabu do incesto.” (2002, 153).
O exemplo mais concreto desta situação é a que advém da relação de adoção. O “pai” e a
“mãe” são reconhecidos socialmente como detentores de um papel e estatuto perante o “filho” ou
“filha”, embora não estejam a ele/a ligados por laços de consanguinidade. Esta diferenciação é
relevante pois, como refere Santos (2002) procede à distinção essencial entre genitor e pai/mãe
social, realidades que nem sempre coincidem84. No entanto, esta distinção não implica o
desconhecimento do papel biológico das partes envolvidas. O exemplo dado por Santos (2002) é o
dos Nayar, do sul da Índia, que distinguem três papéis sociais: o papel de pai social, de genitor e
detentor da autoridade.
Qual é a relevância da filiação? A filiação é essencial porque ela determina, em cada sociedade,
o conjunto de parentes com quem se pode ou não casar (seguindo as regras de incesto) e, por outro
lado, define as condições particulares em que se limitam os direitos e obrigações decorrentes da
herança e sucessão. Estes aspetos são essenciais na atribuição do papel e estatuto social de cada
individuo na sociedade em causa.
George Murdock (1967 [1949], 59) no seu estudo clássico comparativo de 250 sociedades
indica os seguintes dados para a distribuição das regras de filiação: A filiação unilinear por via
patrilinear é a mas comum, seguida da filiação bilateral (indiferenciada). A matrilinear registava-se
em 52 sociedades e finalmente, com menor representatividade a dual.
Regra de
Número %
filiação
Patrilineal 105 42%
Matrilineal 52 21%
Dual 18 7,2%
Bilateral 75 30%
Total 250 100

83
Esta tensão não pode ser dissociada da ideologia dominante sobre o papel do homem e da mulher na
sociedade em causa, assim como das relações de poder e de autoridade que lhes estão atribuídas. Este aspeto é
sobretudo comentado no caso do sistema matrilinear, que não se pode confundir de forma direta com
“matriarcado”. De facto, mesmo nas sociedades matrilineares o papel e o poder dos homens (enquanto irmãos
das mulheres e tios dos filhos destas) são determinantes.
84
Relembramos que podem ocorrer duas situações possíveis aquando da reprodução biológica e a sua
articulação com o reconhecimento social do mesmo. Assim, há o genitor (reconhecido como pai biológico) e a
genetrix (reconhecida como mãe biológica) que podem ou não coincidir com o pater (pai reconhecido
socialmente, incluindo o caso da adoção) e a mater (mãe reconhecida socialmente, nomeadamente em situação
de adoção).

110
Teoria da filiação:

foi desenvolvida no contexto do estruturo-funcionalismo. Esta teoria privilegia as relações de filiação entre os
grupos de filiação (e no seu seio), definidos como pessoas morais. Este modelo foi sobretudo aplicado no contexto
de sociedades segmentárias.

A esta teoria opôs-se a teoria da aliança, proposta estruturalista de Lévi-Strauss (1949), que privilegia a análise
das redes de afinidade que se estabelecem entre os grupos, enfatizando este propósito como primordial nas
relações de parentesco.

Existem três grandes tipos de organização do parentesco com base na filiação:

1. As sociedades de sistema de filiação unilinear (patrilinear ou matrilinear);


2. As sociedades de sistema de filiação bilinear (também denominada como dupla ou dual);
3. As sociedades de sistema de filiação indiferenciada (bilateral ou cognática).

Figura 3: tipos de filiação

Filiação

unilinear bilinear indiferenciada

patrilinear matrilinear

Filiação unilinear

A filiação unilinear carateriza -se pelo facto de um individuo pertencer exclusivamente a um


grupo de parentesco: ou o grupo de filiação do seu pai, à linha paterna (filiação patrilinear) ou ao
grupo de filiação de sua mãe, à linha materna (filiação matrilinear).

Filiação patrilinear (ou agnática85)

Nestas sociedades a pertença ao grupo de parentesco obtém-se exclusivamente pelo pai e a sua
associação é vinculada ao grupo paterno. Entre os filhos o de sexo masculino será aquele que irá dar
continuidade à linha paterna. As filhas não transmitem este laço pois os seus filhos irão pertencer à
linha paterna dos seus futuros maridos.

85
De agnatos, “(…) indivíduos que descendem de um mesmo antepassado exclusivamente pelo lado dos
homens.” (Panoff e Perrin, s.d., 14).

111
Diagrama 1: filiação patrilinear

Observe agora com atenção o Diagrama 2. A filiação de Ego atravessa a linha 1 (bisavô
paterno) – 7 (avô paterno) – 16 (pai). Ego partilha a filiação com os seus germanos, 24 (irmão) e 25
(irmã) mas como podem observar somente ele e o seu irmão podem transmitir a filiação patrilinear. A
sua irmã não a transmite aos seus filhos pois estes receberão a filiação por via do seu marido (omisso
neste quadro por efeitos de simplificação)

Diagrama 2: exemplo de filiação patrilinear

3 4 5 6
1 2

9
7 8 10 11 12

13 14 15 16 17 18 19 20 21

22 23 24 25 26 27 28
29 30 31 32 33 34 35 36

37 38 39 40 41 42 43 44

Como refere Santos (2002, 157) os muçulmanos são caracteristicamente patrilineares pelo que
os filhos de um casal têm o estatuto de pertença ao grupo de parentes do pai. Sendo a que mais
representatividade tem entre os princípios de descendência podemos encontrar vários exemplos
etnográficos para além dos citados. Historicamente os princípios patrilineares eram os usados entre
as “tribos” bíblicas de Israel e entre os Gregos e Romanos.
Os Kemak, ou Ema, de Timor-Leste, são outro exemplo de filiação patrilinear, este último com

112
base na patrilinhagem da Casa86 (Clamagirand, 1980). Tal como no caso muçulmano emergem
atualmente tensões relativas à pertença dos filhos em caso de divórcio87. Tradicionalmente estes são
da Casa do marido, norma que é estabelecida pelo contrato de casamento tradicional, assinalado por
um conjunto de prestações e contraprestações pecuniárias e de bens materiais e animais entre as
famílias.
O exemplo Kemak é igualmente relevante para analisar o papel da mulher neste sistema. De
facto, a irmã de Ego no diagrama tem um estatuto de relevo sobretudo se permanecer solteira. O que
ocorre em muitas das situações, como os exemplos em causa, é que através do casamento esta passa
a pertencer ao grupo do marido. Nestas condições, por norma associadas a padrões de residência
patrilocais, o poder da mulher no seu grupo de origem enfraquece.

Filiação matrilinear (ou uterina)

Neste sistema de filiação o parentesco é transmitido exclusivamente pelas mulheres, pelo


que as filhas são essenciais na continuidade do grupo materno. Neste sistema os homens, ao
contrário das suas irmãs, não transmitem a sua pertença aos filhos, que pertencerão ao grupo
materno das suas esposas.

Diagrama 3: filiação matrilinear

Observe com atenção a Diagrama 4. A filiação de Ego atravessa a linha 6 (bisavó materna) –
10 (avó materna) – 17 (mãe). Ego partilha a filiação com os seus germanos, 24 (irmão) e 25 (irmã) mas,
como podem observar, nem ele (nem o seu irmão) transmite a filiação materna, o que sucede
somente com a sua irmã.

86
As sociedades de Casas foram mencionadas por Claude Lévi-Strauss, como referido por Santos (2002).
Analisaremos melhor estas de seguida.
87
Este é um aspeto que entra em confronto com a implementação de normas de Direito. A relação entre este e o
denominado direito costumeiro é um polo de tensão e negociação na construção do Estado.

113
Diagrama 4: exemplo de filiação matrilinear

3 4 5 6
1 2

9
7 8 10 11 12

13 14 15 16 17 18 19 20 21

22 23 24 25 26 27 28
29 30 31 32 33 34 35 36

37 38 39 40 41 42 43 44

Um exemplo clássico de sociedade matrilinear é o dos


naturais das ilhas Trobrianders, estudadas por Bronislaw
Matrilinearidade e
Malinowski (1966). O sistema matrilinear ocorre igualmente entre matriarcado.
os Bunak de Timor-Leste (Sousa, 2010). Nesta sociedade os filhos
Não confundir
e filhas pertencem à Casa da mãe. Os bens imóveis, como a terra matrilinearidade /
são passados pela via feminina, que recebe também cargos rituais matrilinhagem com
matriarcado. A noção de
que competem somente à mulher. Por seu lado, os filhos irão matriarcado refere-se a um
receber os cargos e funções dos seus tios, os irmãos da mãe. sistema jurídico- político
assente no exercício do
O caso dos Bunak é interessante pelo facto de demonstrar poder na sociedade por
a possibilidade de coexistência dos dois sistemas de filiação numa parte das mulheres.
mesma sociedade, ainda que em tempos diferidos, e de como a Este termo é também, por
persistência dessa memória é essencial para a continuidade do vezes, confundido com
matrifocalidade, conceito
grupo. A sociedade Bunak está organizada em “Casas”, entidade centrado no papel da
simultaneamente física (existente como tal na povoação em mulher na casa.
causa) e sociológica, já que pressupõe que todos os seus membros
descendem de um casal originário que fundou a Casa.
O casamento comummente realizado é denominado ton terel que significa “em comum”.
Neste casamento o princípio de filiação consagrado é o matrilinear. Os filhos pertencem sempre à
Casa da mãe. Os casos de divórcio são resolvidos de forma expedita com a saída do marido de casa.
Todavia, subsiste na memória coletiva local, passada pelos lal gomo, os “senhores da palavra” de cada
Casa, a noção do casamento sul sulik “lança e sabre”, correspondente a um casamento efetuado há
gerações, por norma cimentando aliança com Casas de povoações vizinhas, pelo qual a mulher é
incorporada na Casa do marido, perdendo a sua filiação de origem, passando a constituir nesta um dil,

114
uma matrilinhagem específica, a que os seus filhos e descendentes irão pertencer. Nos casos de
divórcio os filhos do casal são pertença da casa da mãe e é nesta que vão assumir os seus deveres.
Todavia continuam a reconhecer e a participar nas tarefas da Casa do pai (por exemplo aquando da
construção de casas novas ou na reconstrução da casa sagrada).

Filiação bilinear (ou dupla filiação)

A filiação bilinear, ou dupla filiação, combina as duas filiações unilineares, reconhecendo


ambos os lados (paterno e materno) mas com propósitos distintos.

Diagrama 5: exemplo de filiação bilinear

3 4 5 6
1 2

7 8 9 10 11 12

13 14 15 16 17 18 19 20 21

22 23 24 25 26 27 28
29 30 31 32 33 34 35 36

37 38 39 40 41 42 43 44

Exemplos deste sistema são, como refere Santos (2002, 159), os yakö da Nigéria, que (…)
herdam os bens fundiários do pai e prestam culto aos ancestrais paternos enquanto recebem os bens
móveis e dinheiro da parte da mãe (do tio uterino concretamente). Nos ashanti do Gana, o pai
transmite o espírito (o "ntoro") enquanto o sangue (o "abusua") é transmitido pela mãe.

Filiação indiferenciada (bilateral ou cognática)

A filiação indiferenciada, denominada ainda bilateral ou cognática corresponde à modalidade


que vigora na maioria das sociedades ocidentais. No entanto está longe de ser exclusiva destas
sociedades, sendo um tipo de filiação bastante comum em toda a humanidade.

115
Nas sociedades de filiação indiferenciada, ego pertence indiferenciadamente à linhagem do
seu pai e da sua mãe e desde logo às quatro linhagens ascendentes da linha reta (9-10 e 11-12). Por
norma, os direitos, deveres e obrigações são os mesmos em relação a ambas as linhas de
descendência.

Diagrama 6: exemplo de filiação indiferenciada

3 4 5 6 7 8
1 2

9 10 11 12 13 14

15 16 17 18 19 20 21 22 23

24 25 26 27 28 29 30
31 32 33 34 35 36 37 38
29
39 40 41 42 43 44 45 46
9

Filiação paralela

Na filiação paralela o reconhecimento social é efetuado pelas linhas sexuais. Os filhos pertencem
à linha do pai e as filhas pertencem à linha da mãe (ver Heritier, 2002).

Diagrama 7: exemplo de filiação paralela

3 4 5 6
1 2

9
7 8 10 11 12

13 14 15 16 17 18 19 20 21

22 23 24 25 26 27 28
29 30 32 33 34 35
31

36 37 48 39 40 41 42

116
No diagrama podemos observar que Ego “ 24” está associado ao seu pai (16), avó (7) e bisavó
(1). Por seu turno, a sua irmã, “25”, filia-se na linha da sua mãe (17), avó (10) e bisavó (6).

O nome – identidade pessoal e reconhecimento social

Na sociedade portuguesa a escolha do nome é feita pelos progenitores ou familiares


próximos que podem dar a sua opinião. Do ponto de vista jurídico a criança torna-se membro da
sociedade com o registo na conservatória. No entanto, tradicionalmente, a principal forma de
imposição e reconhecimento social e salvaguarda espiritual efetua-se com o batizado (salvaguarda
cada vez mais protelada uma vez que parece que o tempo entre o nascimento e o batizado é cada vez
maior). O isolamento físico a que a mulher é sujeita bem como o seu filho é quebrado com a
apresentação da criança aos elementos naturais e à comunidade, momento em que para algumas
sociedades a criança se torna efetivamente membro da “casa” e da “comunidade”.
Entre os Bunak um pequeno ritual é feito uma semana após o nascimento da criança
denominado aru po` – cabelo sagrado. Consiste no corte do cabelo e unhas da criança que serão
levados pelo pai (ou avô) e depositados na base de uma árvore determinada como “fria”, caso do
coqueiro ou de uma bananeira. Neste ritual, a criança é trazida pela primeira vez para fora do local
abrigado e quente que é a cozinha. Embora possa variar de família para família há o hábito de colocar
nas mãos da criança objetos que sejam determinantes para o seu futuro (no caso ilustrado pela foto
foram colocados um caderno e uma caneta).

Foto: Bunak – aru po` - o pai corta o cabelo do


recém-nascido sob o olhar da mulher e da mãe da
mulher (que tem a criança ao colo)

117
As cerimónias para dar o nome são momentos cruciais da vida social. Hoebel e Frost (2001,
164) ilustram este momento entre os índios omahas com invocação feita pelo sacerdote oito dias
após o nascimento e do qual apresentamos o excerto inicial:

“Ó Vós, Sol, Lua, estrelas, todos vós que vos


moveis no céu,
suplico que me ouçais!
Uma vida nova chegou para o meio de vós,
Imploro-vos que o consintais!
Tornai o seu caminho plano para que ela possa
alcançar o cume da primeira colina!
Ó Vós, ventos, Nuvens, Chuva, Névoa, vós todos
que vos moveis no ar, suplico que me ouçais!
Uma vida nova chegou para o meio de vós,
Imploro-vos que o consintais!
Tornai o seu caminho plano para que ela possa
alcançar o cume da segunda colina! (…)

Como referem os autores este ritual não assegurava só por si à criança o estatuto de membro
real da tribo, transição que só se operava posteriormente quando esta caminhasse.

Infância e puberdade

Na adolescência ou puberdade ocorrem alterações essenciais no desenvolvimento biológico


do indivíduo, sobretudo na maturação da capacidade sexual e a assunção da corresponde alteração
de estado social. Este período é marcado por ritos de puberdade e transição de status. No caso das
raparigas este momento é assinalado de forma clara pelo aparecimento da menstruação, cujo
significado simbólico é variado. Às mudanças biológicas registadas no corpo acrescem as inscrições
culturais realizadas com o objetivo de marcar essa mudança. O corpo torna-se um espaço simbólico
onde é exercida uma violência simbólica e física (alguns rituais de iniciação são considerados hoje
como ilegais). O status social é culturalmente atribuído por cada cultura e no caso deste período de
transição é sobretudo relevante para os rapazes. A transição social é marcada pela realização de ritos
que marcam de forma simbólica a mudança de status, sobretudo nas sociedades que utilizam o status
de idade.
Os momentos de reclusão marcados pelos rituais permitem a incisão do prepúcio ou a
realização de escarificações, cicatrização e a linhagem ou extração de dentes ou outras formas de
marcar no corpo essa mudança, de a tornar socialmente visível e para o individuo a interiorizar. Estes
momentos são também autênticas escolas formais de aprendizagem das normas e valores da tribo.
Como Godelier refere em relação aos baruya as cerimónias dos jovens homens são muito mais
exigentes do que as das raparigas.

118
Os ritos de puberdade são momentos de incorporação na sociedade com uma forte
componente psicológica de interiorização de novos papéis sociais bem como a aceitação de status
atribuídos e a possibilidade de obter outros com o novo estatuto. Pode ser, neste sentido, um fator de
independência social. Citando Cohen, Hoebel e Frost (2001) classificam dois tipos de sociedades:

1. as que treinam para a independência social, isto é, aquelas cujo fulcro e identificação se
encontram na família nuclear, e
2. aquelas nas quais as crianças são educadas para a independência sociológica, isto é, o
fulcro e o apoio do indivíduo estão em grupos de parentesco mais amplos, como
linhagens ou clãs. (2001, 169)

Maturidade

O período associado com a maturidade é marcado, sobretudo, pelo casamento e o


desempenho das funções de trabalho e reprodução que cada sociedade valoriza. O casamento é por
isso, numa perspetiva materialista, a criação de uma nova unidade de produção, assente nas tarefas
complementares entre homem e mulher. Na perspetiva estruturalista é o momento fundamental de
alicerce da aliança, na aceção definida por Lévi-Strauss. Paradoxalmente, estas visões não estão
muito distantes de conceções locais sobre o que é/deve ser um casamento.
Para Titiev (1985, 314) este período de vida apresenta um conjunto de problemas a resolver,
nomeadamente a virgindade da noiva (quando tal é exigido), a necessidade dos recém-casados de se
adaptarem um ao outro e aos respetivos parentes por afinidade, a relutância em admitir um estranho
na intimidade de um grupo de parentesco consanguíneo, o receio de que o casal possa não ter filhos e
a preocupação em criar convenientemente os filhos. Acresce a necessidade de os recém-casados
solucionarem a questão da sua residência comum.
No entanto, como refere o autor mencionado, há um problema que não tem uma solução
universalmente aceite ou perfeita: a estabilidade dos casamentos. Este facto pode variar entre
sociedades com tipos de filiação matrilinear ou patrilinear, sendo aparentemente, mais complicados
nestas últimas devido ao pagamento do “preço-da-noiva” que são difíceis de restituir em caso de
rutura. Entre as sociedades matrilineares parece ser mais fácil a rutura (o caso dos bunak). As causas
da rutura são tanto pessoais quanto sociais, podendo haver pressões várias que se exercem
decorrentes das expetativas. A título individual um dos principais problemas é a infertilidade, tanto da
mulher quanto do homem. Em certas sociedades a idade etária não é similar à idade social. O
casamento e, sobretudo, o nascimento do primeiro filho, é determinante para o reconhecimento
pessoal da maturidade e a possibilidade de o homem poder desempenhar determinados papéis.

119
O conceito de família e aliança

A maturidade é um conceito relativo. A maior parte das sociedades considera que esta está
associada a um determinado momento etário (na nossa é aos 18 anos). Noutros casos, é o casamento
que marca esta etapa, a constituição de uma família. Noutras ainda, mesmo que casado, é o primeiro
filho que marca a maturidade de ambos os progenitores, mas sobretudo dos homens.
O conceito de família é um dos mais empregues em antropologia no contexto dos estudos
de parentesco. No entanto é um termo controverso, onde se manifesta a noção de alteridade face à
diversidade de situações existentes e passíveis de serem definidas como “família”. As tipologias
existentes sobre “famílias” são disso um exemplo e poderemos encontrar várias conforme os autores
e entre diferentes áreas das ciências sociais e humanas (psicologia, política social) e outras (como a
medicina).
As origens teóricas e os debates sobre o conceito de família são recorrentes desde a
fundação da antropologia como ciência no século XIX, registando-se de uma forma interessante um
alinhamento entre diferentes perspetivas teóricas sobre a evolução monogâmica da família e o seu
papel reprodutivo (biológico e económico e cultural, enquanto núcleo de enculturação/socialização
(Barnard e Spencer, 2004), sobretudo nas sociedades ocidentais onde este desenvolvimento se
associa à emergência do capitalismo industrial e às transformações operadas nos modos de produção
e na organização socioeconómica (Batalha, 2005). O debate sobre o conceito de família é motivado
por fortes cargas emotivas e ideológicas resultantes das perceções que sobre este tema têm
confissões religiosas e defensores de direitos humanos.
Considera-se que Morgan foi o iniciador destes estudos em antropologia com a sua obra
Sistemas de consanguinidade e de afinidade na família humana (1871). O autor instaura como condição
do reconhecimento de família a existência de relações de consanguinidade entre os membros em
presença. A existência exclusiva desta “comunidade de sangue”, suportada por uma narrativa que
valoriza estes laços foi contestada fortemente. Um dos principais autores a propor uma visão mais
cultural e social do parentesco, e da família, foi David Schneider, que advoga que a família é uma
unidade cultural particular que compreende diversos tipos de parentes, e se estrutura em diversas
formas, não exclusivamente consanguíneas. Uma das suas obras centrais foi American Kinship a
Cultural Account, de 1968.
Todavia, será pertinente registar que, relativamente às funções da família persiste, apesar
dos anos e polémicas, o referencial estabelecido por Murdock em 1949 (citado em Bernardi, 1988,
288). Segundo o autor as funções da família são quatro: sexual, económica, reprodutiva e educativa.
A função sexual deriva do facto de através do casamento serem instituídas as relações sexuais
consentidas e socialmente aceite. Por outro lado, a família é uma unidade económica no sentido em
que desempenha uma comunidade de interesses. É ainda no seio da família que são expectáveis a
gestão da reprodução. Por fim, a função educativa resulta do facto de a família ser, em primeira
instância, a instituição responsável pela educação dos seus descendentes, através do processo de
enculturação/socialização primária.

120
A família nuclear

A família nuclear (também designada como restrita/elementar/conjugal) é considerada a


“menor unidade social ligada por laços biológicos de consanguinidade e sociais, de afinidade e
adoção” (Melo, 2001, 327). A família nuclear opõe-se à família extensa, que reúne várias famílias
nucleares (a família nuclear ou composta pode ser monogâmica ou poligâmica). A sua constituição
básica inclui os cônjuges e os seus filhos, não casados (Diagrama 8). Este facto levanta uma questão
essencial: os cônjuges sem filhos são uma família? Ghasarian (1999) refere que nos EUA esta díade
(conjunto de dois elementos), não é considerada família88.
Os funcionalistas consideraram desde cedo a “(…) família nuclear com um dado fundamental
e universal.” (Gasharian, 1999, 39). Todavia, como refere o autor indicado, não há um consenso sobre
a matéria pois em algumas sociedades não é dado relevo a este núcleo (que pode nem existir). Um
bom exemplo disso é a proposta de Meyer Fortes (citado por Barnard e Spencer, 2004) e de Robin
Fox89 (1986) que sustentam que a unidade essencial da família é a díade composta pela mãe e as
filhas/filhos (Diagrama 10).

A noção de família nuclear, que em Direito é também definida como família natural, está
associada à teoria da filiação, segundo a qual o principal objetivo da família é justamente promover a
procriação e salvaguardar a o processo de regulamentação da filiação. Todavia, Lévi-Strauss,
apresentou uma proposta diferente, introduzindo no que denominou “átomo do parentesco”
(Diagrama 9) um 5º elemento: o irmão da esposa. Desta forma ele procurou demonstrar a
importância e relevância da aliança na constituição das famílias e dos grupos de parentesco.
As sociedades ocidentais, nomeadamente a europeia, têm também uma prevalência deste tipo
de família, carateriza da pela habitação em comum deste grupo restrito. Nestas sociedades a
tendência é a “decomposição” progressiva da família, associada a cada novo casamento dos filhos,
persistindo a díade como elemento base (todavia, como refere Ghasarian (1999). Esta situação
demonstra a relevância dada na continuidade assegurada pela descendência.

88
De facto, se analisarmos o Direito da família em Portugal este também apresenta o mesmo pressuposto uma
vez que distingue “casal”, formado pelo casamento, de família – associada à noção de descendência e a sua
regulação.
89
Para saber mais sobre Robin Fox consultar: http://robin-fox.com/home.htm

121
1. Família de orientação e família de procriação

Dois conceitos operativos que descrevem a evolução progressiva do ciclo de vida da família
são os de famílias de orientação e famílias de procriação (Diagrama 11). Quando os descendentes já
constituíram as suas próprias famílias há uma dupla pertença. Por um lado, na qualidade de filhos e
germanos subsiste uma relação com a família onde ego nasceu (a família de orientação), por outro,
enquanto cônjuge e pai/mãe, ego cria uma nova família (família de procriação).

Diagrama 11: famílias de orientação e família de procriação

Se considerarmos a composição das famílias quanto à presença ou ausência de um dos


elementos descritos poderemos descrever como monoparentais aquelas em que o grupo residencial
é composto somente por um dos pais e os seus filhos. Este conceito é usualmente matricentrado
(focalizado na mãe/mater90) e tem um papel de destaque nos debates atuais sobre as mães solteiras,
nomeadamente as mais jovens.

2. Famílias poligâmicas

Se considerarmos como critérios de análise o número


Exemplo: para além das sociedades
de nubentes poderemos distinguir entre as famílias ocidentais já referidas as famílias nucleares
monogâmicas e as famílias poligâmicas. No primeiro caso só têm nos esquimós, ou inuit, um dos
exemplos etnográficos mais pertinentes.
existe a possibilidade legal de constituir família com uma única
pessoa. Na outra vertente do espectro temos as famílias
poligâmicas (ou compostas). Estas ocorrem em situações em que o grupo residencial é formado por

90
É importante ressalvar o facto de que, como veremos na filiação, podem ocorrer duas situações possíveis
aquando da reprodução biológica e a sua articulação com o reconhecimento social do mesmo. Assim, há o
genitor (reconhecido como pai biológico) e a genetrix (reconhecida como mãe biológica) que podem ou não
coincidir com o pater (pai reconhecido socialmente, incluindo o caso da adoção) e a mater (mãe reconhecida
socialmente, nomeadamente em situação de adoção).

122
mais do que uma família nuclear, centradas na figura de um elemento que se encontra casado com
mais do que uma pessoa.
Conforme a organização social da sociedade poderemos ter uma prevalência de famílias
poliginicas, situação em que um homem tem mais do que uma esposa (Diagrama 12), ou poliândricas
(casos, mais raros, em que uma mulher tem mais do que um marido).

Diagrama 12: famílias poligínicas

3. A família extensa

Outra faceta de abordar família consiste em analisar a forma como se congregam no grupo
residencial grupos de gerações (princípio vertical) por oposição a um princípio mais horizontal de
associação. No primeiro caso temos a família extensa (Diagrama 13) que apresenta este princípio
vertical e no qual um grupo de consanguíneos, aliados e descendentes, registando um mínimo de 3
gerações, vivem em comum. Usualmente esta noção de família extensa é, por alguns autores,
associado igualmente à existência de um único filho/a, casado/a, habitando com a esposa/esposo e
respetivos filhos na companhia dos seus pais.

Diagrama 13: família extensa

123
4. A família indivisa ou alargada

Por outro lado, a família indivisa ou alargada (Diagrama 14) é constituída por um grupo
residencial que reagrupa várias famílias nucleares da mesma geração ou de gerações diferentes,
apresentando uma dimensão mais horizontal, ou lateral, do que a família extensa.

Diagrama 14. Família indivisa ou alargada

Exemplo: Um exemplo etnográfico da família extensa pode ser encontrado entre os Kalinga
(Filipinas) (Marconi e Presotto, 1987). Pesquise na web e apresente os resultados da sua
investigação no Fórum.

Outro conceito associado a este é o de família recomposta: grupo residencial que se


reestrutura em função do ajuntamento na mesma família de elementos sobrevivos de situações de
viuvez, ou de processos de divórcio, e a respetiva prole.

Diagrama 15. Família recomposta

Na Diagrama 15 podemos observar que Ego masculino está divorciado, tendo-se casado com Ego
feminino (viúva), vivendo os filhos de ambos em conjunto.

Exemplo: os Baganda (Uganda) e Tanala ( Madagascar). O caso das famílias poliândricas tem no Nepal e
Tibete alguns exemplos. Explore a web para saber mais, indique os resultados dessa investigação no
Fórum.

124
A residência matrimonial (quem casa quer casa… ditado popular português)

A residência matrimonial, a casa ou lar, para além da sua dimensão física, espacial, e
arquitetónica, representa um núcleo central de sociabilidade e de estruturação das relações sociais
resultantes da constituição de um determinado grupo familiar. A sua relevância social, económica,
religiosa (ritual) e mesmo política, é fundamental em todas as sociedades. Existem diferentes regras
que estipulam o local onde um casal de recém-casados deve habitar, definindo quem deve mudar e
para onde. Estas opções diferem de sociedade para sociedade, mas também podem ser objeto de
mudança na mesma sociedade, ao longo do tempo com a alteração de condições socioeconómicas91.
Santos (2002, 162-164) identifica uma tipologia com nove modelos de residência matrimonial:
1) a residência patrilocal; a residência virilocal; a residência matrilocal; a residência uxorilocal; a
residência bilocal (ou ambilocal) ; a residência alternada; a residência duolocal (ou natolocal); a
residência avuncolocal e a residência neolocal. Vamos resumir estas cruzando com dados de Panoff e
Perrin (1979) e exemplos etnográficos de Ghasarian (1999).
A regra neolocal (do grego neós, novo) consiste no casal constituir uma casa independente do
local onde habitam os correspondentes progenitores. É característica dos Inuit, organizados em
famílias nucleares, mas das sociedades ocidentais, em que a mobilidade, por motivos de estudo ou
trabalho, é elevada.
Há um conjunto de regras que se carateriza m pelo facto de somente um dos cônjuges ter que
se deslocar. É a chamada regra unilocal de residência, característica da residência patrilocal,
matrilocal, virilocal e uxorilocal.

A residência patrilocal (do latim patri, pai) resulta da regra que impõe aos dois cônjuges a
residência na casa pai do marido. Ou, de outra forma, a regra que leva a noiva a ter que que
abandonar a casa dos seus progenitores e ir viver na casa do pai do seu noivo, futuro marido. O
padrão patrilocal não é forçosamente coincidente com o sistema de filiação patrilinear, mas é o mais
característico. Exemplos etnográficos deste padrão podem ser encontrados nas zonas rurais da
Turquia e entre os Igbo, os Haussa, os Matis e os Peul.

A residência matrilocal (do latim matri, mãe) pressupõe a regra que obriga os dois cônjuges a
residir junto da mãe da esposa. Assim, aquando do casamento a esposa permanece na residência da
sua mãe enquanto o marido tem de abandonar a residência dos seus progenitores. Exemplo desta
prática encontra-se entre os Hopi e os Iroqueses.

As regras viriolocal e uxorilocal são variantes das precedentes e alguns autores (Schwimmer,
2003) não as distinguem. A regra virilocal (latim vir, viri: homem, marido) especifica que aquando do

91
Têm sido recorrentes as notícias que dão conta de que muitos casais jovens que tinham sua própria casa, de
cariz neolocal, o usual na sociedade portuguesa, regressaram a casa de um dos progenitores devido às
dificuldades económicas

125
casamento a esposa tem que ir viver nas terras ou proximidade do pai do marido. Exemplo da prática
desta regra são os Wolof e os Tâmules da Ilha da Reunião, estudados por Ghasarian.

Por seu lado, a regra oposta, a uxorilocal (latim uxor, -oris, mulher, esposa), define que aquando
do casamento, o marido tem que ir morar nas terras ou proximidade da mãe da sua esposa. O
exemplo dos Hopi pode de novo ser dado uma vez que ilustra a dinâmica assocada a estas regras.
Embora o padrão inicial possa ser, como referido, matrilocal, as tensões decorrentes de residir na casa
materna com um elevado número de parentes, leva a que o casal construa uma casa nas terras da
mãe da esposa, passando ao regime uxorilocal.

A residência bilocal (ou ambilocal) é baseada na regra que concede aos recém-casados a
hipótese de optarem por estabelecer a sua residência quer junto dos progenitores da esposa ou do
marido. O critério de escolha deriva da conjugação estratégica de interesses pessoais de ambos os
elementos do casal. O exemplo dos Iban de Borneu é ilustrativo desta prática.
A residência alternada pressupõe que, de acordo com intervalos de tempo convencionados, a
domiciliação do casal e filhos se faça entre a residência uxorilocal e a residência virilocal. Um exemplo
deste tipo de prática são os habitantes da ilha de Dobu.

A residência duolocal (ou natolocal) consiste em que cada um dos cônjuges resida
separadamente, com a sua família. Esta separação pode ser sazonal, ocasional ou permanente.
Ghasarian (1999, 135) dá o exemplo dos Hopi, onde entre os quais o jovem marido pode permanecer
várias semanas na casa da sua mãe enquanto a sua esposa fica em casa dos seus próprios pais. Entre
os Haussa, aquando do batismo, a mãe vai com o filho para casa dos pais por um período de seis
meses. Entre os Tuaregues o casal habita durante um período pós casamento neste regime durante
um ano, com o marido a visitar ocasionalmente a sua esposa, após o que se estabelecem
patrilocalmente.

Foto: Hopi, Dança da Borboleta © Kyle Knox,


Fonte: http://nmai.si.edu/exhibitions/circleofdance/hopi.html

126
Na residência avunculocal (do latim avunculus – timo materno) o casal vai viver em casa do
irmão da mãe do marido. Nas ilhas Trobriand, com um regime de filiação matrilinear, o casal reside
durante algum tempo em casa dos pais do esposo, após o que os cônjuges vão viver em casa do timor
materno do marido. Entre os tuaregues, aquando do falecimento do pai, a residência passa a ser
avunculocal.

Residência amitalocal (do latim amita – irmã do pai): trata-se do inverso da


residência avunculocal, e de acordo com a qual os cônjuges vão viver em casa
da irmã do pai da mulher). Trata-se de um princípio puramente teórico, sem
registo etnográfico.

Morte (rituais, herança e sucessão)

Como descrevem Hoebel e Frost (2001, 172) a morte é universalmente considerada como um
acontecimento socialmente significativo, sendo assinalada com um ritual e confirmado pela
sociedade. É o “rito de passagem final”. Se tal facto não deixa de ser verdade para a existência
corporal e individual de cada um de nós, para a sociedade a morte pode ser o início de um novo ciclo
de obrigações sociais no quadro das relações de aliança e parentesco, envolvendo os vivos e os
mortos.
Os autores citados referem que os ritos mortuários têm cinco funções básicas:
1. A participação nas cerimónias mortuárias, pela dramatização habitual da fé na
imortalidade prepara os vivos para a morte que os espera. (…)
2. Os ritos funerários servem basicamente para garantir a separação da alma do seu corpo,
para guiar o defunto com segurança e devidamente, através da suprema transição.
3. Os ritos servem para readaptar a comunidade depois da perda de um membro e para
regularizar os distúrbios emocionais resultantes do rompimento dos hábitos afetivos em
relação ao morto.
4. Onde os rituais mortuários incluem banquetes e doações de bens, realizam uma
redistribuição de riqueza e status.
5. Finalmente, os ritos emprestam cor, riqueza e profundidade à vida, por meio do drama
da sua realização. (Hoebel e Frost, 2001, 174)

127
Fotos: Bunak: 1. velar o corpo e 2. receber o “bem”, o fresco:
familiares passam por debaixo do caixão do falecido. 2005. LSousa.

Se as funções são individuais ou sociais, a morte é um dos campos mais fascinantes da


antropologia, quer pelas conjeturas que são feitas relativamente ao que acontecerá ao morto,
mas sobretudo pela forma como as diferentes sociedades continuam a interagir com estes, quer
no domínio físico (o corpo como objeto), quer “espiritual” – o corpo, o ser como “alma” e social –
pelos efeitos da sua ausência e das relações que perduram e renovam as interações sociais
(relembramos por exemplo o luto), como por exemplo, as cerimónias fúnebres, a gestão das
heranças ou o ressarcimento de compensações no caso de o falecido ter deixado “obrigações”
por cumprir como o preço-da-noiva.

A definição da herança e a sucessão são aspetos sociais fundamentais. Dependendo do


estatuto e posição social da pessoa, assim que esta ocorre são despoletados os meios de
redistribuir pelos sobrevivos os bens e cargos que o falecido tinha na sociedade.
Conforme refere Ghasarian (1999) a filiação
estipula por norma a sucessão e a herança. Impõem-se a Primogenitura: regra
que define uma
distinção entre herança e sucessão na perspetiva
prioridade, na
antropológica. A herança diz respeito aos bens - móveis e herança ou sucessão,
ao mais velho dos
imóveis – e encargos que um indivíduo deixa após a sua
germanos
morte e que serão objeto de partilha/assunção, de acordo (decrescendo o
estatuto entre estes
com as regras em vigor na sua sociedade. No caso da
de acordo com a
sucessão o que está em causa não é a eventual partilha de ordem de
nascimento)
bens materiais, mas o legado de estatuto - relativamente a
direitos, deveres e obrigações, posição social (autoridade
política) e funções cerimoniais. Os direitos inerentes à sucessão e herança diferem usualmente de
acordo com o sexo ou idade (a regra de primogenitura). Entre os Hopi a sucessão relativa à
transmissão dos estatutos e posições nos campos político e religioso passa do tio-avô materno (o
tio da mãe), chefe e sacerdote do clã materno, para o seu sobrinho-neto (filho da sobrinha)

128
Diagrama 16: exemplo Hopi: herança e sucessão (Ghasarian, 1999, 81)

herança

sucessão

Entre os Bunak de Timor-Leste (Sousa, 2010) a sucessão de cargos é efetuada por via
matrilinear. O chefe de uma casa designa-se “matas” (que significa igualmente “velho”). Este
chefe está casado com uma mulher que é, forçosamente de outra Casa. Sendo a regra de filiação
matrilinear os seus filhos nunca poderão suceder como chefe da Casa. Assim, aquando do seu
falecimento é entre um homem da sua casa que terá de ser encontrado o seu sucessor.

Para finalizar: os principais tipos terminológicos

A terminologia é um importante instrumento de análise dos sistemas de parentesco. Todavia,


atualmente, e ao contrário do que se pensava (ex. Morgan) não há um paralelismo absoluto entre os
termos usados e os sistemas de comportamentos. Todavia, reconhece-se que há correspondências
entre a terminologia e as práticas sociais. Como refere Gasharian (1999, 171) a terminologia é uma
linguagem, etiqueta, que classifica os parentes em categorias e subcategorias. A criança que os
aprende adquire supostamente um determinado comportamento apropriado para com aquele que
designa. De igual forma, os termos de parentesco podem conter indicações culturalmente associadas
relativas aos parceiros com que, numa determinada sociedade, se pode ou não casar (ou definir
campos de interdição das relações sexuais devido ao incesto).

Os principais tipos de terminologias de parentesco foram sistematizados por Murdock (1949).


Os seus nomes refletem a sociedade ou área geográfica a que se associam. Os seis tipos principais
são:
• terminologia esquimó;
• terminologia iroquesa;
• terminologia hawaiana;
• terminologia crow;
• terminologia omaha;
• terminologia sudanesa

A terminologia de tipo esquimó é por norma associada ao regime de filiação indiferenciado.


Neste os primos cruzados, patrilaterais ou matrilaterais, são designados pelo mesmo termo

129
empregue para com os primos paralelos. Todavia, os irmãos são distintos. De igual forma se pode
observar que há uma equiparação entre os parentes por aliança com os parentes consanguíneos,
revelando desta forma o papel central da família conjugal.

Diagrama 17: terminologia tipo esquimó

tia tio pai mãe tia tio

primos irmão Ego irmã primos

A terminologia iroquesa associa-se sobretudo com os regimes de filiação matrilinear, nos


quais as irmãs e primas paralelas de Ego são denominadas pelo mesmo termo, mas distinguidas das
respetivas primas cruzadas bilaterais.

Diagrama 18:terminologia tipo iroquesa

tia pai pai mãe mãe tio

primos irmãos irmão Ego irmã irmãos primos

A terminologia hawaiana carateriza grande parte da área malaio-polinésia. Neste sistema de


parentesco é dado revelo à distinção entre as gerações, pelo que também é designado de “sistema
geracional”. É usualmente associada a sociedades com um sistema de filiação indiferenciado e
usualmente organizado em famílias extensas. Os parentes, em linha direta ou colaterais, são
classificados por geração e um único termo designa os elementos desse sexo, nessa geração.

130
Diagrama 19: terminologia tipo hawaiana

mãe pai pai mãe mãe pai

irmãos irmão Ego irmã irmãos

filhos/as
As terminologias Crow e Omaha ignoram as gerações para certos parentes, sendo estas
definidas “verticalmente”. Entre os Crow o sistema de filiação é matrilinear, mas o padrão de
residência é patrilocal. Os primos paralelos são designados pelos mesmos termos que os germanos,
mas os primos cruzados são diferenciados. Os primos cruzados matrilaterais “descem”, sendo
tratados por filhos pois não desempenham um papel relevante na continuidade da linhagem, já que
não a transmitirão. Por seu turno, os primos cruzados patrilaterais “sobem” uma vez que a irmã do pai
é, depois da mãe, considerada a pessoa mais importante do lado paterno dado que é ela que
transmite a linhagem.

Diagrama 20: terminologia tipo crow

131
A terminologia dos Omaha é o “espelho” dos Crow, com o seu sistema de filiação
patrilinear e o padrão de residência matrilocal.

Diagrama 21: terminologia tipo omaha

A terminologia sudanesa é a mais descritivas das listadas. Carateriza-se por um sistema


de filiação patrilinear na qual as irmãs, primas paralelas e cruzadas são todas designadas por
termos diferentes (como pode ser observado no diagrama, em que cada parente tem, para ego,
uma denominação diferente exemplificada pela letra – que não se repete).

Diagrama 22: terminologia tipo sudanesa

132
A linhagem, a linhada e o clã

O clã, do Gaélico clann, é um “grupo formado por uma ou por várias linhagens. Pode ser
localizado ou não, exógamo ou não. Por norma os membros do clã são incapazes de estabelecer a
ligação genealógica ao antepassado original, que pode ter uma dimensão simbólica (totemismo).
Todavia este sentimento de pertença e uma solidariedade ativa entre os seus membros carateriza o
grupo.
A linhagem é um grupo constituído por indivíduos que se reclamam de um mesmo
antepassado comum, do qual descendem por filiação unilinear. Ao contrário dos membros do clã, a
linhagem consegue estabelecer a relação genealógica com o antepassado fundador.

Como refere Santos (2002, 160) a linhada “representa um segmento de linhagem de


indivíduos primogénitos e benjamins, independentemente da regra de filiação e da linha, reta ou
colateral.”

A parentela

A parentela designa mais uma “categoria” de que um grupo. Congrega os parentes,


consanguíneos ou não, que, conseguem estabelecer um lado de parentesco com Ego. Todavia, este
pressuposto pode ser diferente em diversas sociedades, privilegiando umas a via agnática, outras
indiferentes na maior parte das sociedades (parentela bilateral).

O elemento central deste conceito reside no facto de, por oposição à linhagem e clã, que se
definem pela ligação, real ou hipotética, a um antepassado comum, e sua existência não depende do
individuo singular que lhe pertença, a parentela se constitui em torno de Ego, sendo por isso um
agrupamento egocêntrico e circunstancial, dependendo de um determinado evento do ciclo de vida
ou circunstância social. Cada individuo tem assim a sua parentela, que pode partilhar com outros
(caso dos irmãos) mas nunca totalmente. Todavia, Ego está limitado nas suas escolhas pela dinâmica
parental que o antecedeu. A sua potencial parentela resulta da que foi estabelecida pelos seus
antepassados e familiares.
Qual é então a sua utilidade? Entre algumas sociedades estes potenciais parentes podem ser
um recurso mais vasto do que a mera linhagem, constituindo assim uma possibilidade de agregação
social. Um exemplo da sua utilidade pode ser visto em situações de conflito ou de processos políticos
de arregimentação de afiliados. Ghasarian (1999) dá alguns exemplos do uso da parentela. Robin Fox
refere que nas ilhas Tory, no Noroeste da irlanda, a constituição das equipas para os barcos de pesca
assenta na parentela, baseada na filiação e aliança. Um exemplo clássico é o que Evans-Pritchard

133
entre os nuer, que tinham a obrigação de reparar, por pagamento ou guerra, o assassínio de um
membro da comunidade, processo similar ao que se passava na Córsega com a vendetta.
Uma forma de parentesco relacionado com a parentela é a instituição de relações de
parentesco que não são forçosamente biológicas e genealógicas. Ghasarian (1999, 162) explica de que
forma este parentesco fictício” ou “pseudoparentesco” é apropriado pelo parentesco espiritual,
instituído pelas relações de apadrinhamento, concretizadas no momento do batismo. Este ato ritual
cria dois sistemas de relações de parentesco: o apadrinhamento e o de compadrio, que trazem para o
seio familiar potenciais amigos, ou detentores de reconhecimento social (em muitas comunidades
rurais portuguesas dos anos 40 era comum o apadrinhamento por parte da figura politica/económica
mais importante da aldeia).

134
3.2 Antropologia e poder

20 de maio de 2002, Bobonaro: autoridades tradicionais e modernas


em parada. LSousa.

Pressupostos do tema

O campo de estudo da antropologia política é uma especialização da antropologia.


Como refere Santos (2002, 172) a pertinência desta área de estudo é reconhecida, embora se
tenha dividido teoricamente entre os que, como Radcliffe-Brown (1981 [1940]), tinham como
ponto de referência as “sociedades mais simples” e aqueles que, como Balandier (2007 [1967]),
procuraram demonstrar que a antropologia política é uma ciência que procura “as propriedades
comuns a todas as organizações reconhecidas na sua diversidade histórica e geográfica”. Esta
última perspetiva vingou sendo claro que o fenómeno pode e deve ser estudado em todas as
sociedades.

Objetivos gerais

No final deste tema deverá compreender e explicar:


• os objetivos da antropologia política;
• a diversidade dos tipos de organização política;
• a perspetiva de alguns antropólogos acerca do assunto;
• a relação entre organização social e política em determinados grupos;
• a noção de Nação e de Estado;
• as diferentes formas de Estado;
• as diferentes formas de controlo social.

135
3.2.1 A organização política das sociedades: política e poder

A luta pelo poder é o tema central da vida política. No entanto, a própria noção de poder é
ambígua pois se, por um lado ele é aceite como garante da ordem e segurança, por outro lado é
contestada já que sustenta desigualdades. A noção de política implica poder, mas este não se limita à
ação política pois o poder pode ser familiar, económico ou religioso. O poder político reporta-se ao
processo e à tomada de decisões (e sua execução) de forma coerciva ou não em relação a todo um
grupo.
A ciência política (Pilon-Le, 1979) aborda a noção de poder através de três perspetivas:

• substancialista - o poder é uma possessão que consiste em benefícios passível de ser


dissipado;

• institucionalista – o poder designa os governantes, os detentores do poder, os poderes


públicos. Nesta perspetiva a usufruto de poder é sinónimo de direito de sanção (positiva
ou negativa), capacidade de coerção legítima perante aqueles que não o detêm;

• interaccionista – o poder é a capacidade individual ou coletiva de mobilizar recursos


humanos para fazer face a uma decisão ou posição oposta.

Por sua vez, Claessen (1979, 7) define o poder, enquanto conceito geral, como a capacidade
para impor aos outros a vontade própria, incluindo no seu campo de aplicação uma variedade de
conceitos que na prática não são fáceis de distinguir, sendo problemático dizer onde começam e
terminam as suas fronteiras:

• a coerção: a capacidade de fazer-se obedecer por meio da força.


• a ameaça: a capacidade de fazer-se obedecer ameaçando com o uso da força.
• a manipulação: a capacidade de fazer-se obedecer ao não proporcionar uma orientação
suficiente sobre a situação em questão (ou, adicionando ao autor, informação
deturpada).
• a influência: a capacidade de fazer-se obedecer recorrendo a valores que para o
indivíduo têm uma importância positiva.
• a autoridade: a faculdade de fazer-se obedecer ao aceitar como justificado o desejo do
mandante.

Para se poder efetivar, o poder é objeto de legitimação. Existem três formas de sancionar esta
legitimidade. No entanto, elas não são exclusivas, podendo ser empregues de forma concomitante.
Weber (2005, [1922]) trabalhou este tema identificando três tipos:

136
Poder legal – “ em virtude de estatuto. O tipo mais puro é o poder burocrático. A ideia
fundamental é que, através de um estatuto arbitrário formalmente correcto, se podia criar
qualquer direito e alterar [opcionalmente o existente].” (2005 [1922], 2)

Poder tradicional - “em virtude da fé na santidade dos ordenamentos e dos poderes


senhoriais desde sempre presentes. O tipo mais puro é a dominação patriarcal. A
associação de poder é a agremiação, o tipo de quem manda é o “senhor”, o corpo
administrativo são “servidores”, os que obedecem são os “súbditos”.” (2005 [1922], 4)

Poder carismático - “mediante a dedicação afectiva à pessoa do senhor e aos seus dons
gratuitos (carisma), em especial: capacidades mágicas, revelações ou heroísmo, poder do
espírito e do discurso.” (2005 [1922], 9)

Algumas das principais caraterísticas do poder incluem o facto de este se exercer num quadro
territorial (contíguo ou disperso), ser institucionalizado, assente numa constituição (escrita ou oral)
que se estabelece como força autónoma e fonte de legitimidade. As suas funções são a manutenção
da ordem e a presença de uma administração.

As diferentes formas de poder:

• centralizado ou descentralizado: a forma como se exerce e se reconhece a autoridade


central: por todos os grupos ou somente em grupos distintos
• grau de especialização para uma função específica: o poder central pode não
corresponder a um poder total igualmente distribuído no território, podendo ser objeto
de divisão ritual e religiosa. Ocorrem situações em que o poder central detém uma
proeminência espiritual sobre todos os grupos embora em cada região o poder executivo
não lhe seja reconhecido.
• concentração ou dispersão de poder: o poder executivo, legislativo e jurídico pode ou
não se concentrar na pessoa do chefe, podendo haver corpos específicos – como
conselhos de anciãos – que assumem componentes específicas.
• necessidade de fazer reconhecer a palavra do chefe: em certas sociedades há a figura
do emissário ou representante, investido da função de comunicar a palavra do chefe.
• recrutamento dos governantes: os cargos podem ser eletivos ou hereditários. Embora
aparentemente estes se excluam pode ocorrer uma combinação entre ambos os
processos. Assim, o chefe pode ser designado pelo seu predecessor, por um conselho ou
por cooptação. Caso seja eleito há que ter em atenção à forma como se procede a essa
eleição. Finalmente pode ser objeto de devolução: hereditário por primogenitura ou por
germanidade (ou competição).

137
3.2.2 Perspetivas teóricas sobre a organização política

Várias perspetivas, ou abordagens teóricas, sobre a organização política podem ser


recenseadas. Seguindo Pilon-Le (1979), que vamos sintetizar, podemos reconhecer na história da
antropologia 5 abordagens: genética (associada ao evolucionismo); funcionalista; estruturalista;
dinamista e marxista.

- a abordagem genética tem as suas origens no evolucionismo. Questiona a problemática da


origem (mágica, religiosa) da autoridade e a passagem das sociedades construídas na base do
parentesco para as organizações políticas propriamente ditas, constituídas com base na ocupação
comum de um território. Os evolucionistas interrogam-se sobre a origem do Estado e os estádios
evolutivos que o precedem. Tendo como exemplo paradigmático a Europa o evolucionismo
unilinear tem implícito o pressuposto teórico de que as sociedades não europeias representavam
estádios anteriores de desenvolvimento da humanidade.
Maine (1861) elabora uma tipologia identificando as sociedades sem Estado e as sociedades com
Estado. No primeiro tipo de sociedade as relações sociais eram regidas pelo princípio de
parentesco sendo o estatuto transmitido hereditariamente e a política não existia como tal. A
passagem às sociedades com Estado operava-se através do contrato que, com base no
consentimento ou associação voluntária, ligava grupos humanos a um território.
Morgan (1877), na esteira de Maine, estabelece uma sequência de estados evolutivos: selvajaria,
barbárie e civilização que se opõem com base numa dicotomia assente na contraposição entre
sociedades com base nas relações de parentesco versus Estado. Uma vez mais, os primeiros estão
destituídos de ação política, reservada somente às sociedades com Estado.

- a abordagem funcionalista faz da organização política um aspeto da organização total da


sociedade. Através da diferenciação dos papéis sociais, entre pessoas e entre grupos de pessoas,
são criados um certo número de papéis exclusivos (chefes, reis, juízes, administradores, etc.) aos
quais se atribuem direitos e privilégios (estatuto político). O trabalho de Fortes e Evans-Pritchard
(1981 [1940]) Sistemas Políticos Africanos marca profundamente a revolução da perspetiva sobre
as sociedades tradicionalmente estudadas pelos antropólogos. Os autores classificam os sistemas
políticos africanos em três tipos: aqueles dotados de uma autoridade central, as sociedades
linhagísticas na qual a linhagem e organização política se entrecruzam e as sociedades de
dimensão muito reduzida e na qual a organização política de confunde com o parentesco.

Para os autores o cerne da política nestas sociedades é passível de ser observado a partir das
funções que lhe são atribuídas. Nestas sociedades duas funções, uma interna e outra externa,
possibilitam definir a política: fundar e manter a ordem social gerindo a cooperação interna,
garantir a segurança salvaguardando a defesa da unidade política. Nesta perspetiva a política
decorre, numa visão abrangente, da regulação e controlo da ordem social num determinado

138
território. A perspetiva funcionalista contribuiu para fazer reconhecer a existência da política para
lá do Estado. No entanto, a sua análise sincrónica limitou muito a sua capacidade explicativa.

- a abordagem estruturalista tem nos modelos estruturais o seu principal contributo para a
análise antropológica. Sendo as análises dos princípios estruturais tal como são descobertos no
domínio do parentesco e da análise do simbólico. As estruturas políticas são sistemas abstratos,
“tipos ideais” tal como reportados pelos próprios ou reconstruídos pelo antropólogo. O que se
pretende é analisar o “modelo ideal” e não a realidade concreta em toda a sua diversidade. Para os
estruturalistas a compreensão de um sistema social opera-se através da descoberta das regras
subjacentes aos princípios operantes – a um nível superficial – na sociedade.

Um exemplo é o trabalho de Leach (1973)92 sobre os Katchin da Birmânia. Na sua análise do


sistema político Katchin o autor detecta uma contradição estrutural nesta sociedade - que embora
surja como coerente, estável e equilibrada - os dados etnográficos revelam uma instabilidade
inerente ao sistema político real. Para explicar esta contradição o autor elabora dois tipos de
sistemas políticos ideais, o tipo “gumlao” de sociedade igualitária e o de tipo “gumsa” de carácter
feudal, que se interligam e sucedem no tempo.

No campo do parentesco a troca restrita ou generalizada preconiza modelos políticos distintos,


sendo o segundo caraterístico das sociedades hierarquizadas do sudeste asiático, tal como a dos
Katchin. Mas, a melhor contribuição dos estruturalistas no campo da antropologia política prende-
se com a análise simbólica do poder, do ritual e dos mitos – áreas determinantes no campo
político, por exemplo, como fonte de legitimação. As limitações desta abordagem resultam da sua
ênfase sincrónica, negligenciado a perspetiva histórica, bem como a redução dos sistemas a uma
conceção ideal, subtraindo-se ao estudo das estruturas tal como existem.

- a abordagem dinamista mostra a profunda ligação existente entre história liberta dos
preconceitos evolucionistas e uma análise política em profundidade. Balandier, um dos principais
proponentes desta abordagem, põe em realce a força da mudança contida nas sociedades
rotuladas de “sem história”. Balandier define a política pelos seus dinamismos, assentes no
conflito e competição entre grupos e indivíduos, sendo o conflito inerente à estrutura da
sociedade. Para o autor antropologia política consiste em estudar as transformações dos sistemas
políticos elucidando o seu processo de formação histórica.
Na esteira dinamista, Gluckman e Boahnnan, herdeiros da tradição da antropologia jurídica,
chegam às mesmas conclusões quando produzem uma “antropologia dos conflitos” onde os
aspetos de transformação-readaptação dos sistemas políticos ocupam um lugar fundamental.

92
Disponível em língua portuguesa: Leach, Edward (1995) Sistemas Políticos da Alta Birmânia, edusp

139
Gluckman analisa os rituais de rebelião, mostrando como as formas de contestação
institucionalizada em Estados africanos são uma condição da sua própria legitimação.

- A abordagem marxista compreende o trabalho de Engels no final do século XIX e os autores


neomarxistas dos anos 60` do século XX. Engels, que parte da hipótese de que as primeiras
sociedades humanas possuem uma organização social igualitária constituída por parentes
consanguíneos e exógamos, pretende averiguar quais as transformações que possibilitaram a
emergência do Estado.

Para o autor a dissolução do modelo anterior decorre do desenvolvimento da divisão social do


trabalho sob a impulsão das forças produtivas, que deu origem a uma sociedade de classes. A luta
de classes coloca a necessidade do Estado, que em última instância corresponde à organização da
classe que possui o poder para se proteger da classe que deste está destituída. O estado define-se
com quatro critérios: o território, a presença de um aparelho repressivo, de um aparelho
administrativo e da recetação de impostos.

A partir nos anos 60 do século XX um conjunto de autores, Meillassoux, Terray, Rey, Suret-canale,
etc, começou a utilizar a perspetiva marxista nos seus trabalhos. Foi um período marcado por uma
nova reflexão sobre o marxismo após o desaparecimento de Estaline e pela independência de ex-
colónias, lutas de libertação, emergindo o conceito de terceiro mundo e as novas políticas de
exploração económica.

Nesta perspetiva existe um sistema mundial capitalista que se funda na divisão internacional do
trabalho entre países capitalistas avançados e os países da periferia. Neste sistema hierarquizado
existem uma ou duas nações que assumem um poder hegemónico – imperialista - e impõem a sua
dominação aos países da periferia, cujas economias são destes dependentes. Assim, para analisar
a condição neocolonial (sobretudo em contexto africano onde se desenvolveram a maioria destes
estudos) havia a necessidade de estudar o modo de produção e a estrutura económica tradicional
de modo a medir a penetração do capitalismo e as transformações operadas. Esta abordagem
opera assim em duas dimensões, uma local procurando explicar a estruturas sociais tradicionais
em termos materialistas (desigualdades, exploração, modos de produção); e por outro lado outra
que procura situar as formações sociais no conjunto social mais vasto constituinte do sistema
mundial e interpretado em termos de imperialismo.

Uma boa resenha das principais abordagens teóricas é feita por Lewellen (2008) que sintetiza as
principais teorias em dois grandes grupos: o estruturo–funcionalismo e o enfoque processual:

140
Três perspetivas teóricas em antropologia política (traduzido de Lewellen, 2008, 116)

Enfoque processual
Estruturo- funcionalismo Teoria processual Teoria da ação

Demonstrar como as instituições Definir os processos que Descrever estratégias individuais


Objetivos concretas servem para manter o intervêm nas lutas políticas para obter e manter-se no poder
equilíbrio da sociedade e na obtenção dos objetivos
públicos

A sociedade, a tribo, o grupo O “âmbito político”, uma A “arena” política, uma área em
social, etc, tratado como um conceção flexível e relativa que os protagonistas individuais ou
conjunto ideal; este grupo foi que faz referência a toda a pequenos grupos lutam pelo poder
considerado, por razões analíticas, área onde possa ter lugar a político; as arenas políticas podem
Unidade de como um sistema fechado na interação política, pode estar constituídas todas ou em
análise medida em que se minimizava o incluir uma parte da parte por fações, relações patrão-
meio mais amplo sociedade ou transcender as cliente, partidos, elites e outros
fronteiras étnicas ou sociais grupos para-políticos informais

Sincrónica; a sociedade era vista Diacrónica, ou “temporal”; a Diacrónica; mas centra-se nas
como se estivesse fora do tempo, análise pode centrar-se na ações dos indivíduos dentro dos
Perspetiva
num presente ideal história real ou em limites da duração do trabalho de
analítica do
processos históricos de campo do antropólogo.
tempo
mudança ao longo da
história

Em algumas obras o interesse pela Conflito, tensão e mudança A mudança dentro da arena
mudança primava pela ausência; a constituíam a condição política é praticamente constante,
sociedade era manejada de uma normal da sociedade ainda que possa existir uma
Atitude face forma meramente estrutural; relativa estabilidade do sistema
à mudança noutras obras a mudança era como tal
colocada em relevo (considerada
como ajustamentos adaptativos
das partes), mas o todo era visto
em contínuo equilíbrio

Conceitos - Estrutura, função, equilíbrio, Processo, competência, Estratégia, manipulação, tomada


chave integração conflito, poder, de decisões, papéis, objetivos,
legitimidade, apoio jogos, regras

African Political Systems, Fortes e Political Systems of Higland Schism and continuity in an African
Evans-Pritchard93 Burma, Leach society, Turner
The Nuer94, Evans-Pritchard Political Anthropology, Luigbara Religion, Middleton
Exemplos
Swartz, Turner e Tuden «Political Anthropology:
manipulative Strategies»
Vincent, in annual Review of
Anthropology, 1978

93
Disponível em língua portuguesa, indicado na Bibliografia final.
94
Disponível em língua portuguesa: Evans-Pritchard, E (1999) Os Nuer, Editora Perspetiva
3.2.3 Sistemas de organização política

A classificação dos sistemas políticos implica sempre uma redução da realidade, que por vezes
é mais complexa do que as tipologias permitem desenhar. No entanto, a sua utilidade, quer descritiva
quer explicativa, permite uma aproximação e interpretação desses sistemas. Entre as tipologias
funcionalistas (analisadas no manual adotado) os critérios de construção estipularam: a presença ou
ausência de Estado centralizado, o grau de centralização do aparelho de Estado e a especialização das
funções políticas.

Southall (Pilon-Le, 1979, 25) define uma tipologia tripla: as sociedades segmentárias, os
Estados segmentários e as sociedades com Estado centralizadas. Por seu lado, Beattie desenvolve
apresenta uma proposta com seis subtipos:
Tipologia de Beattie

I. Sociedades descentralizadas: funções políticas assumidas por:

1. os mais velhos (caçadores-recolectores)


2. os conselhos locais
3. as classes de idade
4. as linhagens

II. Sociedades centralizadas: Estado fundado com base em


1. linhagens
2. um sistema de dependência pessoal

Fonte: Pilon-Le (1979, 25)

Nos anos sessenta desenvolveram-se nos EUA correntes de pensamento denominadas neo-
evolucionistas ou materialistas culturais (Sahlins, Service, Fried, Stewart e Whyte). Os seus
pressupostos teóricos defendem que a evolução das sociedades humanas tem por modelo a evolução
dos organismos vivos, procedendo do simples para o complexo por diferenciação funcional; a evolução
das sociedades baseia-se na mudança técnica e tecno-ecológica.

Service (1962) é o autor de uma das mais recorrentes tipologias que analisa as caraterísticas de
cada uma destas organizações com base em seis parâmetros: estabelecimento, estratégia de
subsistência, economia, estrutura social, descendência e sistema político.
Tipologia de bandos, tribos, chefaturas e estados (traduzido de Service, 1962)
Bandos Tribos Chefaturas Estados

População 25-50 100 a 1000 1000 100.000

Mobilidade, baixa Mais do que


Muitas
densidade de semi- uma
Estabelecimento comunidades
população permanente comunidade
permanentes
permanente
Agricultura
Estratégias de Horticultura, Agricultura não
Recolha de alimentos intensiva,
subsistência pastorícia mecanizada
comércio
reciprocidade,
Economia reciprocidade alguma redistribuição mercado
generalizada redistribuição
Igualitária Diferenças de Classes
Sem uma estatuto claramente
Linhagens
Estrutura social estrutura incipiente, mas definidas;
ordenadas
político-legal não rígidas ou altamente
institucionalizada permanentes estratificadas
Cognática
Descendência Cognática Linhagem Linhagem
linhagem
Não
centralizado; Centralizado Autoridade
alguns mas com centralizada,
responsáveis a autoridade com
Não centralizado;
tempo parcial geral; baseado responsáveis
decisão por
como o “big- no nascimento formais e
Sistema Político consenso; poder por
men” ou classes com múltiplos
influência; líderes
de idade; poder legitimidade corpos
informais e
por perícia, divina; governativos,
temporários
conhecimento; “estatuto poder baseado
“estatuto atribuído” na lei
alcançado”
Socieda des de
Trobrianders da A maioria dos
big-man na
Papua Nova países,
Melanésia;
Exemplos Dobe Ju/hoansi Guiné; incluindo os
Yanomamo da
(!Kung). Inuit Polinésia, Estados Unidos
Venezuela e
incluindo o e os
Brasil
Hawaii camponeses

Fonte: Service (1962)

O bando dispõe de um governo mínimo. Trata-se de grupos de pequena dimensão que se


deslocam num território de dimensões variáveis de acordo com as estações do ano. Vivendo da caça e
recoleção o bando não dispõe de reservas acumuláveis95, os seus membros não possuem estratificação

95
Este facto não invalida que haja formas de guardar bens, como água, em pequenas quantidades.
143
social pois não têm nada a redistribuir. Os bens obtidos são por norma partilhados entre todos os
membros do grupo.

O bando pode compreender várias famílias nucleares e o parentesco é tendencialmente


cognático. São caraterizados por um igualitarismo entre os seus membros. A existência de um chefe é
contextual pois a sua ação é temporária e a sua atuação política resulta do conhecimento e capacidade
de liderar o grupo, sobretudo nas deambulações em busca de caça e recoleção. A sua função é
sobretudo a de um guia e pacificador dos conflitos internos. A sua principal vantagem é a possibilidade
de, em contrapartida poder possuir várias mulheres. O seu poder provém do grupo e não do
parentesco, embora a tentativa de tornar a sua função hereditária, legando-a a um filho, possa
desenvolver a emergência de um poder difuso.

As denominadas tribos96, designação que está em desuso,


são carateriza das como sociedades com um poder difuso ou
Exemplos destes vários tipos de anárquico. A subsistência é assegurada pela agricultura extensiva, a
organização política podem
ser consultados em: pastorícia e a horticultura. A liderança é assegurada pelos
http://anthro.palomar.edu/po representantes de grandes famílias e o parentesco assenta num
litical/default.htm
sistema linear.

A terra é possuída de forma coletiva pelos grupos de


parentesco. A integração na sociedade é feita através das classes de idade e o papel do chefe é limitado
pela existência de um conselho de anciãos que reúne os representantes de todos os grupos familiares
existentes. Esta limitação de poder estende-se ao seio da família onde a liderança é, por norma,
atribuída ao mais velho. Por norma as decisões deverão ser obtidas por consenso entre todas as partes
envolvidas.

No entanto, há uma hierarquia resultante da ocupação e constituição original dos grupos que
ocupam o território. Esta pode-se basear na força dos primeiros ocupantes ou na dos migrantes
posteriores (que ocuparam pela força o papel executivo). Todavia, na maioria dos casos aos primeiros
a chegar ao território são atribuídos os poderes mágico-religiosos associados à condição de “senhores
da terra”, sendo responsáveis por dirimir conflitos que envolvam derramamento de sangue
(vinganças). O sistema não possui uma estabilidade entre as partes que o compõem, que no entanto,
se aliam em torno do parentesco para resolver ameaças comuns.

96
Este conceito tem sido alvo de inúmeras críticas pela sua incapacidade de descrever a realidade. Sahlins, referido
por Pilon-Le, 1979) usa o termo no contexto de “tribos” e chefaturas” mostrando assim que o conceito abarca uma
multiplicidade de situações. O seu emprego pode assim conduzir a uma falsa interpretação da realidade (Pilon-Le,
1979, 28)
144
Figura 4: Sistemas segmentários e a importância da profundidade genealógica no
controlo do território: exemplo dos Tiv (Nigéria) estudados por P. Bohannan e citados
em Colleyn (2005, 161)

As chefaturas caraterizam-se pela existência de um chefe ou líder que regula os assuntos


coletivos e cuja legitimidade resulta de um conjunto de fatores entre os quais se poderá incluir o
parentesco, mas não como elemento exclusivo. Por norma o termo aplica-se a comunidades cuja base
territorial apresenta uma dimensão regional e não meramente local.

Esta dimensão territorial é importante pois liga todos os elementos do grupo associados pela
existência de uma convicção de ordem sobrenatural na sua relação com esse território. O poder do
chefe ou líder é determinado pela força, nomeadamente a capacidade de exigir tributo que pode ou
não ser redistribuído pelos elementos da comunidade. A autoridade resulta de uma combinação de
elementos como o parentesco, o prestígio, o sagrado e uma capacidade limitada de exercer a coerção.
Nestas sociedades opera-se uma distinção entre o aparelho político e as hierarquias sociais.
O chefe, representante da unidade do grupo, é associado à continuação da harmonia com o
cosmos, o que lhe confere uma dimensão sagrada (legitimada pela descendência e ligação aos
antepassados fundadores). É um regulador do conflito e dispõe de vantagens económicas (prestação de
bens e serviços), sociais (casamento com mais do que uma mulher), morais, etc. A transmissão de
poder opera por norma através das regras de parentesco (filho no caso de sistemas patrilineares,

145
sobrinhos no caso dos matrilineares). Nos sistemas de chefaturas pode ocorrer um poder paralelo ou
dual resultante da existência de chefes da terra que possuem um papel religioso e económico.
As caraterísticas principais do Estado são: um governo centralizado e de segmentação piramidal, a
existência de um território, a presença de um corpo administrativo e de instituições especializadas e o
monopólio do emprego da força.
Um dos temas que suscita mais debate é a origem do Estado. Embora atualmente haja um
relativo consenso de que várias formas de Estado surgiram em diferentes contextos sociais Barnard
(2006, 63-64) lista quatro grandes teorias que procuraram explicar como o Estado se formou:

1. Teoria hidráulica: o Estado emerge devido à invenção e divulgação de sistemas de


irrigação que implicaram o controlo do trabalho de um grande número de pessoas. Tese
defendida por Karl Wittfogel em Oriental Despostism: A comparative Study of Total Power
(1957). (exemplo do Império Chinês).

2. Teoria coerciva: defendida por Robert Carneiro (1970), a tese argumenta que o Estado
desponta devido à guerra que ocorre em locais com escassa terra arável. O conflito entre
povoações de pequena dimensão alcança um ponto em que aqueles que vencem os
oponentes assumem o controlo sobre estes (ex.: Incas).

3. Teoria de classes: esta teoria tem origem nos trabalhos de Marx e Engels, nomeadamente
o trabalho deste último: The Origin if the Family, Private Property and the State (1884). Esta
tese defende que a origem do Estado deriva do antagonismo entre classes sociais. Nesta
aceção o Estado é um “mito” perpetuado pela classe dirigente para preservar a ordem e o
poder.

4. Teoria do contrato social: as origens desta teoria remontam a Hobes, Locke e Rosseau nos
séculos XVII e XVIII. De acordo com esta tese algures na história da humanidade, os povos
primitivos decidiram prescindir da liberdade de forma a obterem a ordem social – e esta
tornou-se o Estado.

146
3.2.4 O processo político e o controlo social

Todos os sistemas políticos funcionam com constrangimentos e interdições. Trata-se de um


instrumento de poder que permite ao chefe ou ao Estado legitimar o uso da violência.
Segundo Marconi e Presotto (1987, 158) as funções do processo político consistem em:

a) definir as normas comportamentais de conduta aceitável;


b) atribuir força e autoridade;
c) decidir disputas;
d) redefinir as normas de conduta;
e) organizar os trabalhos públicos grupais (caçadas tribais, construções, consertos, hortas,
etc.);
f) ocupar-se do mundo sobrenatural através do controle religioso (rituais e cerimoniais);
g) organizar a economia (manter mercados e desenvolver o comércio);
h) responsabilizar-se pela defesa do território e promover a guerra contra o inimigo.

Segundo as mesmas autoras (1987, 159), os atributos específicos que permitem a fácil
identificação do processo político são:

a) “público e não privado – sua ação atinge toda a sociedade, amplamente considerada, tendo
poder de decisão nas ocorrências de âmbito público, não sendo, portanto, um assunto
nem individual, nem familiar.
b) orientado para uma finalidade – tem por objetivo satisfazer os interesses públicos em
detrimento dos interesses individuais ou grupais. Preocupa-se com os meios e os fins para
atingir os seus propósitos, ou seja, compete à política a tomada de decisões pertinentes,
de definições das normas sociais e dos valores da cultura.
c) atribui e centraliza o poder – as pessoas que tomam decisões e exercem o poder na esfera
pública estão investidas de autoridade política, presente mesmo nos grupos mais
primitivos. É a autoridade que obriga ao cumprimento das normas estabelecidas; para
tanto, lança mão de sanções e de coerções.”

O controlo social concretiza-se de várias formas, nomeadamente através das normas sociais.
Todavia, no contexto do controlo social e organizações políticas, a principal forma de efetivação é a lei.
Segundo Hoebel e Frost (2001, 303) a lei distingue-se das normas sociais gerais por três caraterísticas:

1. O uso legítimo da privação económica ou da coerção física.


2. A designação da autoridade oficial.
3. O elemento de regularidade (consistência).

147
A ameaça da lei nem sempre é impedimento suficiente para evitar a sua infração. Neste contexto a
lei tem um efeito de impedimento psicológico, como orientação do comportamento para finalidades
sociais. Todavia, em última instância, a lei age através de sanções como a confiscação de propriedade
ou de privação física direta.
A coerção não é exclusiva do poder estatal (a máfia, os yakuza, e outras associações criminosas
também a exercem) mas, a diferença essencial que distingue a coerção legal das demais é a aceitação
geral da sua aplicação de modo legítimo por uma parte específica da sociedade dotada de meios para a
efetuar.
A regularidade remete para o que a lei compartilha, na sua natureza, com as normas sociais. A
regularidade deve permitir a previsão, embora não seja imutável pois as leis podem ser objeto de
alterações. No entanto, a regularidade faculta à lei o seu atributo de certeza.

Com base no comentado podemos definir a lei como:

(…) norma social da qual se pode predizer com razoável probabilidade que a sua violação
além dos limites da margem permissível evocará uma resposta processual formal, iniciada
opor um individuo ou por um grupo que possua o direito-privilégio, socialmente
reconhecido, de determinar culpa ou de impor sanções económicas ou físicas ao
transgressor. (Hoebel e Frost, 2001, 305)

A lei pode ser distinguida em lei substantiva e lei adjetiva e entre lei orgânica e lei tirânica. A lei
substantiva identifica as normas que devem ser sancionadas por ação legal enquanto a lei adjetiva ou
processual designa a pessoa, ou as pessoas, que podem de direito aplicar o castigo relativo à violação
de uma lei substantiva.
A capacidade de coerção que a lei aufere representa um perigo uma vez que pode incorrer em
subjugação de uma maioria por uma minoria que se apropria do poder e do exercício da lei. Assim,
quando a atribuição da lei não é reconhecida socialmente, mas imposta pela força, estamos perante um
sistema de lei tirânico. Pelo contrário, a lei orgânica remete para um sistema legal em que há um
reconhecimento e aprovação social das leis vigentes.
A lei desempenha, segundo Hoebel e Frost (2001, 306-307) quatro funções essenciais para
manutenção das sociedades: substantivas, adjetivas, mediadoras e readaptativas:

1. substantivas - a definição de relações obrigatórias entre os membros de uma


sociedade com a finalidade de afirmar que atividades são permitidas e que atividades
não o são e para manter pelo menos uma integração mínima entre as atividades dos
indivíduos e as dos grupos dentro da sociedade. (…)

148
2. adjetivas – a atribuição da autoridade e a designação da pessoa que tem o direito-
privilégio, reconhecido socialmente, de iniciar e levar a efeito ações corretivas
legítimas que levem a sanções económicas ou físicas quando são violadas as normas
substantivas, de modo que a força seja controlada e dirigida para fins sociais.
3. mediadoras – a decisão de casos de distúrbios, quando acontecem; acabar com as
desordens sociais (reivindicações descabidas, brigas e lutas, mortes e ferimentos) de
modo que as pessoas possam desempenhar as suas funções na vida cotidiana com
uma certeza razoável e com segurança.
4. readaptativas - a redefinição contínua das relações entre os indivíduos e os grupos
quanto às condições de mudança de vida, para manter a adaptabilidade e flexibilidade
tanto na resposta da lei substantiva, quanto da lei processual aos valores instáveis e às
novas tecnologias.

As funções indicadas podem ser aplicadas com maior ou menor habilidade, podendo o sistema
legal assegurar a aplicação da lei de forma suave e eficiente ou de forma rígida e brutal – caso da
imposição da ordem pela tirania e sem a menor justiça:

• Privação de liberdade;
• Penas físicas, sanções corporais,
• Pena de morte
• Exílio (imposto ou não)

A detenção por parte do Estado da prerrogativa da violência é uma imposição e ao mesmo tempo
um impedimento a outros grupos de a exercer (ex: justiça popular). O Estado não pode, no entanto,
impedir outros grupos de, no plano moral, sujeitarem os seus membros a penas (ex. a sanção do Inferno
por parte da Igreja). O Estado, dependendo do regime, garante a liberdade de expressão, mas controla
a forma como a informação é divulgada: exemplo da censura ou da espionagem. No entanto, há outras
formas de controlo da informação como o controlo por parte do Estado de meios de comunicação.

149
150
3.3 Antropologia e Economia

Cerimónia funerária em Marobo, Timor-Leste.


Momento em que, ente os aliados, se efetua o saldo
das prestações em dívida pela realização da cerimónia,
parte integrante do ciclo da vida. Lúcio Sousa, 2003.

Pressupostos do tema

O tema pretende analisar o papel da antropologia económica, a forma como de iniciou o debate
sobre a temática, as principais orientações teóricas que emergiram ao longo do tempo e os temas
essenciais de estudo, a produção e distribuição, assim como o papel da dádiva e da reciprocidade nas
sociedades contemporâneas.

Objetivos gerais:

No final deste tema deverá compreender e explicar:

• a emergência da antropologia económica;


• as principais orientações teóricas;
• a produção e distribuição de bens na perspetiva antropológica;
• o papel dos mercados sociais, a dádiva e a reciprocidade

151
3.1 A emergência da antropologia económica

A antropologia económica afirma-se no século XX. Todavia, as práticas económicas foram,


desde cedo, um dos elementos essenciais que diferenciaram o “outro”, sobretudo em contexto de
contacto colonial. A dimensão “irracional” de muitas dessas práticas, a sua faceta aparentemente não
económica, levou a que se manifestasse o etnocentrismo do observador, considerando-as como
próprias de uma “mentalidade religiosa e de um infantilismo congénito” (Colleyn. 2005, 131). A esta
perspetiva não era alheio o corolário que resultava da expansão colonial: o pressuposto económico
vigente no século XIX assentava na ideia de que a ação económica ocidental era a medida universal
(Hann e Hart. 2011).

A antropologia económica adquiriu um espaço próprio no domínio da antropologia social e


cultural pelo facto de ser um tema central à vivência social humana. A relação humana com o mundo
material é fundamental para que o Homem possa assegurar a sua sobrevivência. No entanto, é
igualmente através desta relação que se interligam os grupos sociais. A abordagem antropológica
insere exatamente o estudo do económico no seu contexto holístico.

Tal como a economia, a abordagem antropológica debate-se com a perspetiva macro e a


dimensão micro, isto é, a grande dimensão que envolve sistemas complexos e, por outro lado, a
proporção humana, pessoal, da experiência e estratégias de cada individuo para lidar com esta matéria.
Gudeman (2004, 172) refere que todas as economias combinam duas práticas, embora com padrões
diferentes: ou os humanos vivem com o que produzem ou então trocam com os outros, assegurando
assim a sua sobrevivência.

O que o Homem faz para sobreviver, numa interação estreita com o ambiente que o rodeia, é
variado: agricultura, pastoreio, pesca, caça e recoleção e produção industrial são algumas dessas
atividades. O comércio assume um papel charneira, assegurando a troca e é, igualmente, uma
atividade produtiva. A antropologia, sobretudo após a instauração da sua dimensão etnográfica por
Bronislaw Malinowski chamou a atenção para um conjunto de outras extensões sociais das práticas
económicas que não a mera sobrevivência. Como veremos, nomeadamente pelo trabalho de Sahlins
(1972, apud Barnard, 2006), as opções dos agrupamentos humanos podem compreender outras
variáveis.

152
Embora se encontrem preocupações com o domínio
Rever a matéria sobre
económico nos autores evolucionistas, é principalmente com Malinowski no Tema 1 e
Malinowski e a sua obra Os Argonautas do Pacífico Ocidental, e análise o destaque dado ao
circuito Kula.
do Kula, esse comércio entre ilhas de bens e estatutos, que suscitou
um interesse pelas práticas económicas e as suas relações com outros domínios da vida social. O
trabalho de Marcel Mauss sobre a dádiva irá, por sua vez, reunir os elementos existentes na altura sobre
o fenómeno da troca e dádiva nas sociedades “primitivas”. Com os funcionalistas dos anos 40 surgem,
por fim, as preocupações sistematizadas com o domínio económico, assente na dialética entre a
produção e benefício.

3.1.1 As fases da antropologia económica

Feliciano e Casal (2006) referem que a antropologia desde a sua emergência no século XIX,
procurou “(…) identificar e explicar a diversidade das práticas económicas em sociedades primitivas e
camponesas que, embora estivessem sendo integradas no sistema económico mundial, possuíam
configurações económicas não dominadas pela economia de mercado, mas “incrustadas” noutras
instituições sociais plurifuncionais.” (2006, 56)

Os autores referidos identificam três fases do desenvolvimento da antropologia económica: A)


do começo do século XX até aos anos 60, B) a partir dos anos 60; C. desde os anos 90 do século XX.

O primeiro período é caracterizado pelas análises sobre as trocas, as tecnologias e as relações


com o meio natural, as mudanças urbanas e a pobreza. Os autores centrais nestas análises foram F.
Boas (1858-1942), B. Malinowski (1884-1942) e M. Mauss (1872-1950). Foi um período de emergência de
três abordagens que analisaremos melhor em seguida: os formalistas, os substantivistas e a corrente
dinamista, de inspiração marxista, liderada por G. Balandier. No domínio da tecnologia cultural
destacam-se A.Leroi-Gourhan (1940-1960). Uma abordagem concomitante com a antropologia
económica, reveladora das preocupações da época, foi a antropologia ecológica (também designada
Humana ou Cultural). Outra ciência afim foi a Sociologia, em particular as inspirações de Max Weber e
E. Durkheim. A Escola de Chicago nos anos 20 em diante levou a cabo estudos transdisciplinares,
passando a centrar-se igualmente em temas das sociedades urbanas. Um dos desenvolvimentos destes
estudos foram os trabalhos de O. Lewis sobre a cultura da pobreza.

Na década de 60 as preocupações centrais serão sobre a produção económica, retomando uns


a tradição formalista e desenvolvendo outros, com base nas heranças tanto da sociologia como da
antropologia, da escola racionalista, de Chicago, uma antropologia industrial que se vai desdobrar nos

153
anos seguintes em campos especializados: antropologia das organizações, antropologia das empresas
e antropologia das associações.

Esta especialização continua nos anos 90 com a antropologia económica informal e economia
social, que procuram analisar as vias não formais de organização do trabalho e das trocas. De certa
forma, esta linha leva à procura redobrada dos estudos dos consumo e dos valores simbólicos
associados ao seu uso.

Como conceito operacional de trabalho poderemos afirmar que, atualmente, o objeto da


antropologia económica é a “(…) análise das relações económicas como parte de sistemas mais amplos,
quer sejam redes (sociais) locais, quer sejam sistemas globais que integram os universos económicos
nacionais.” (Feliciano e Casal.2006, 59)

154
3.2 As principais orientações teóricas

Seguindo Francis Dupuy (2004) há três grandes teses ou escolas de pensamento na


antropologia económica: os formalistas, os substantivistas e os marxistas.

formalistas substantivistas marxistas

Os formalistas, entre os quais de incluem autores como Melville Herskovits, Edward LeClair,
Harold Schneider, Robbins Burling, entre outros, têm como pressuposto uma abordagem próxima a
formulação clássica de economia: “ a ciência que estuda o comportamento humano como uma relação
entre os fins e os meios raros que têm usos alternativos” (Robbins, 1947 apud Dupuy. 2004, 13). A
antropologia económica visa assim “estudar a variedade de comportamentos humanos que consistem
em combinar o melhor possível meios determinados e raros para alcançar fins específicos” (Godelier.
1973 apud Dupuy.2004, 13).

Nesta aceção está subentendido que os dois elementos centrais assentam na raridade e na
noção de escolha, forçosamente limitada entre os meios disponíveis para fins ilimitados. A limitação
dos meios disponíveis induz a uma forte competição e concorrência na procura da vantagem máxima, a
premissa básica que norteia o homos economicus. Trata-se de uma perspetiva que configura a economia
de mercado, como característica da sociedade ocidental onde esta se desenvolveu, e cujos processos
seriam, para os autores, universais.

As críticas feitas a esta escola, considerada por Dupuy (2004, 14-15), como redutora e
etnocêntrica, podem ser repartidas entre as seguintes: a ausência de uma explicação do domínio da
história para compreender as origens e os fundamentos dos sistemas e comportamentos económicos,
incluindo aqui as contingências fortuitas que possam ter estado na origem de determinado tipo de
relações económicas; o facto de não se considerar que a competição e concorrência podem variar de
sociedade para sociedade conforme a ordem social, nomeadamente a estratificação social, regime de
propriedade da terra, etc.; e por fim, o facto de não ser levado em conta a dimensão inconsciente na
tomada de decisões e ação económica.

A segunda escola de pensamento é a substantivista, tutelada por duas figuras essenciais: Karl
Polanyi (1886- 1964) e George Dalton (1926 – 1991). Estes autores foram críticos da escola formalista,
nomeadamente a sua pretensão universalista. De facto, para estes autores, a análise económica
clássica promovida pelos formalistas deveria ser limitada às sociedades ocidentais modernas.

155
Para o Polanyi, em numerosas sociedades, ditas primitivas ou camponesas, as relações sociais
englobam a economia, i.é., a posse da terra e a regulamentação do trabalho. Esta não se esgota
exclusivamente no mercado, mas recria-se na reciprocidade e pela redistribuição, isto é, os princípios
da simetria ou centralidade. A função económica encontrasse “incrustada” noutras dimensões da
organização social, de um conjunto de “instituições plurifuncionais”, com referem Feliciano e Casal
(2006, 60), como o parentesco, a política e a religião. A expansão de uma economia assente sobretudo
no mercado vai “desincrustar” a terra e o trabalho das relações sociais referidas e torná-las bens de
troca e venda. Fenómeno que teve, para o autor, uma proeminência na experiência do Ocidente, e que
designa a “grande transformação”.

A corrente marxista teve base sobretudo entre autores franceses, como C. Meillassoux, M.
Godelier, P. Ph. Rey, E. Terray, mas também J. Friedman e M. Sahlins. A sua especificidade decorre da
recusa da abordagem formalista, a crítica ao substantivismo e a adoção das ideias de K. Marx. O centro
de atenção passa a ser, não a circulação, mas a produção.

Tendo por base um materialismo histórico e dialético, o princípio básico da perspetiva marxista
defende que cada sociedade (entendida como uma formação económica e social) só pode ser
compreendida na sua especificidade e dinâmica com base nas configurações dos modos de produção
(cada sociedade combina um ou mais modos de produção). De facto, para Marx “O modo de produção
da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual (fuma formação económica
– social) no seu conjunto”. (Feliciano e Casal. 2006. 63).

Gudeman (2004) indica que há uma quarta abordagem teórica sobre a vida material: a
economia cultural. Promovida sobretudo por antropólogos culturais, esta abordagem analisa como as
pessoas comunicam através de bens e serviços que produzem (desenvolvendo as ideias de Mauss sobre
as prestações e reciprocidade); como as comunidades desenvolvem modelos económicos locais,
conjugando as características e perceções sociais locais sobre a produção, como a ligação das boas
práticas rituais e os antepassados de linhagens na fertilidade agrícola.

156
3.3 A produção e distribuição de bens

4.3.1 Produção e sobrevivência

De facto, um pressuposto antigo, presente ainda em alguns manuais de antropologia, é o da


luta pela sobrevivência de pequenas comunidades que vivem da caça e recoleção. Desde o estudo de
Sahlins (1972) Stone Age Economics (apud Barnard, 2006, 43) que esta visão foi colocada em causa.

Com base em dados etnográficos o autor defende que:

1) os caçadores recolectores despendem menos tempo em atividades de subsistência do


que a maioria dos agricultores, dando enfase à obtenção de tempo livre, por oposição
à acumulação de riqueza;

2) em algumas situações os caçadores recolectores poderiam obter um excedente,


todavia, decidem não o fazer, obtendo somente o que necessitam do seu ambiente, e
gerindo assim a sua relação e estabilidade.
Para saber mais:

Estes factos não inibem que haja atualmente uma Sobre adaptabilidade
humana às condições
intensa interação das comunidades ainda existentes com a
ecológicas e mudança social,
sociedade envolvente, marcadas muitas vezes por historiais nomeadamente dos Inuit e
Lapões, consultar:
de subjugação e domínio forçado, exploração e escravatura.
Algumas sociedades, como os Inuit (esquimós) estudados por Moran, Emilio. 1994.
Adaptabilidade Humana: uma
Franz Boas, adotam novas formas de produção ou mantêm
Introdução à Antropologia
as suas tradições em coabitação com outras estratégias de Ecológica. São Paulo. EDUSP.
sobrevivência (exemplo igualmente dos Lapões).
Disponível parcialmente em
books.google.pt

3.3.2 Os modos de produção

A produção foi, como observado, uma preocupação dos marxistas, tendo por base a ideia de
qua os modos de produção se relacionam sobretudo com os processos de trabalho. Godelier (apud
Dupuy. 2004, 20-22) procura superar esta relação limitada definindo o processo de produção não
somente como um processo de trabalho (relação dos homens entre si nas suas relações materiais com
um determinado ambiente, tendo por base uma determinada tecnologia) mas numa relação entre os
homens, produtores e não produtores, na apropriação e controlo dos meios de produção (terra,

157
ferramentas, matérias primas, força de trabalho) e dos produtos de trabalho (produtos da colheita, da
caça, da pesca, da agricultura, da criação de animais, do artesanato, etc).

Estas relações de produção podem se apresentar sobre a forma de relações de parentesco ou


de relações de subordinação política e religiosa, e a reprodução destas relações de produção
implicam assim a reprodução destas relações de parentesco, de subordinação política e
ideológica. Godelier (apud Dupuy. 2004, 21).

O papel do modo de produção é central na teoria marxista pois, segundo Marx, apud Feliciano
e Casal, 2006, 63): “o modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e
intelectual (duma formação económico-social no seu conjunto”. Nas sociedades capitalistas o modo de
produção capitalista, assente na força de trabalho paga dos proletários, os produtos incorporam os
preço do salário pago. Pelo facto, o produto é alienado de quem o fez e pertence a quem pagou a sua
produção, sendo uma mercadoria, objeto de troca num circuito controlado igualmente pelo
proprietário dos meios de produção. Os dois grupos, as duas classes: “proprietários e proletários”, têm
assim diferentes posições perante os meios de produção e o produto resultante.

Os principais conceitos em torno desta matéria podem ser analisados no quadro que
reproduzimos aqui de Dupuys (2004, 20). Como se pode observar é essencial distinguir no modo de
produção o sentido restrito e o sentido lato, ou amplo.

Modo de produção (II)97

Forças produtivas

Modo de produção
infraestruturas
(sentido restrito)

Modo de produção
(sentido alargado)
Relações de produção

Relações políticas, superestruturas


ideológicas, etc.

A forma como ambos os modos de produção (restrito e lato/alargado) operam de forma


articulada pode ser percecionada no diagrama II proposto por Dupuys (2004, 20). Como se observa o

97
As forças produtivas, segundo Feliciano e Casal. 2006, 62) “(…) integram a articulação entre os diversos fatores
de produção (recursos, terra e força de trabalho) no quadro das unidades de produção.”
158
domínio restrito opera sobretudo no contexto das infraestruturas das sociedades. A sua conjugação
com as superestruturas, as relações políticas, ideológicas, etc., enforma o modo de produção no seu
sentido alargado.

Marx propõe na sua análise, para além do modo de produção capitalista, vários modos de
produção: primitivo, esclavagista, feudal, asiático, africano, aldeão, tributário, doméstico, linhageiro,
etc. que culminariam, em termos evolutivos, no comunista. As suas ideias eram baseadas no
pressuposto que advogava um início baseado na posse coletiva da terra. Todavia, a etnografia cedo
demonstrou que em muitas sociedades é o “uso” e não a “posse” da terra, que é efetuada.

De facto, dos anos sessenta até aos anos oitenta, decorre, em relação às sociedades
usualmente estudadas pelos antropólogos, um debate em que se opõem concetualmente o “modo de
produção doméstico e familiar” com o modo de produção linhageiro. O primeiro defendido por Sahlins
e o segundo pelos autores franceses de inspiração marxista. Como referem Feliciano e Casal (2006, 64)
a questão central foi: “são as relações de produção que são determinantes das relações sociais de
parentesco - como fora identificado por Marx para o caso do modo de produção capitalista – ou, no
caso das sociedades primitivas e camponesas, pelo contrário, são as relações sociais de parentesco que
são determinantes das relações de produção económicas?”

Para Meillassoux e Godelier, “(…) as relações de parentesco funcionam como relações de


produção quando servem de quadro (modelo) e incitamento para a cooperação no trabalho. São fontes
de “direitos e obrigações, “ representem a organização do processo económico (Sahlins) e se tornam
factores estratégicos de reprodução do modo de produção (Godelier)” (Feliciano e Casal. 2006, 64).

A produção é, segundo Meillassoux e Godelier, orientada para a subsistência e a satisfação de


necessidade (privilegiando o uso) e não tanto pelo mercado e a procura do lucro (valor de troca). Este
facto exprime por isso outra lógicas de organização social, não tanto de classes, quanto de grupos de
parentesco, mas que não deixam de exprimir diferentes formas de posse dos fatores de produção e de
reprodução, como é o caso da posse da terra, e desigualdade, dominação e exploração entre os grupos,
porquanto a acumulação é, sobretudo, um investimento em capital político (Feliciano e Casal. 2006,
64).

3.3.3 Da produção à distribuição

Segundo Gudeman (2004) há um continuum entre a produção feita para si próprio e a produção
feita para outros. No primeiro caso estamos perante uma produção de sustento e no segundo caso

159
numa ênfase na troca, e nomeadamente na aquisição. A primeira é, sobretudo vocacionada para uma
dimensão comunitária, enquanto a segunda caracteriza uma economia de mercado.
Na prática, como refere o autor, as economias concretas combinam em determinado grau
ambos os extremos, embora diferentes autores possam enfatizar um ou outro dos ideais em presença.
O exercício que vamos fazer de seguida enfatiza as diferenças. Todavia, é essencial ter presente que
não há comunidades/sociedades isoladas, estando todas inseridas na economia de mercado
contemporânea, com a qual se articulam de diferentes modos.

O ideal do mercado assenta no pressuposto da competição entre indivíduos: os compradores


competem pelos produtos e serviços dos vendedores e estes competem por compradores. As
atividades de produção têm como objetivo a acumulação de bens ou o lucro. As relações são baseadas
no contrato. Os participantes estão envolvidos numa relação de eficiência. A ideia de um equilíbrio
entre vendedores e compradores parece ser mágica.

O ideal de uma economia de comunidade baseia-se num grupo de pessoas que vivem num
determinado ambiente, usando as suas ferramentas e herança cultural. Os processos económicos são
cíclicos ou reprodutivos e nenhuma troca ocorre fora da comunidade. O sustento material visa somente
a continuidade do modo de vida. A suficiência da comunidade relaciona-se com o sustento material
adequado que extraem do seu ambiente. Todavia, este equilíbrio é feito à custa de regulação de
produção, distribuição consumo e troca.

A oposição entre o ideal comunitário e o ideal de mercado pode ser analisado tendo por base a
relação de ambos os termos com o espaço. Uma económica comunitária assenta sempre na ocupação
efetiva de um determinado espaço. Todavia, o “mercado não tem localidade” (175). A acumulação de
ganhos não tem limites e não há respeito pelas fronteiras sociais. A participação neste ideal cumulativo
cria uma identidade própria assente no consumo espetacular e no exercício de controlo financeiro.

Os recursos são usados de forma diferente conforme cada uma das situações. A economia de
mercado assenta nos mercados de valores e nos fatores de produção: terra, trabalho e capital. Todos
estes bens são possuídos de forma privada e mensurados através do dinheiro. A acumulação de
dinheiro, do capital financeiro, é a base para a aquisição de mais bens e valores. Por seu turno, numa
economia de comunidade, existem bens comuns, partilhados, bens “incomensuráveis” (175), porque
herança comum, caso da terra, água, direitos de pesca, ferramentas, antepassados, espíritos,
performances cerimoniais, etc.. Todavia, como refere Gudeman, estes bens não são estáticos,
podendo a comunidade criar inovar tecnologias, inventar costumes e obter mais terra (175).

160
A distribuição dos bens é um processo diferente em ambas as sociedades. Na economia de
comunidade a partilha, cuidado e a confiança entre os seus membros é essencial e expressa-se na
comensalidade e a comunhão de bens. Trata-se de uma economia de confiança e apoio que inclui a

1. 2.

Ukon lae – impor a interdição [comunidade de língua bunak, Timor-Leste]

A posse, coleta e (re)distribuição de bens pode ser objeto de performance ritual destinada a
sancionar publicamente o ato, simultaneamente económico e social .

O ritual ukon lae (em Tétum tara bandu) é uma das práticas recorrentes em Timor-Leste e pode
ser empregue para impor a interdição de consumo de determinados bens. Tem assim uma força
legal e é imposta pelas autoridades político-rituais locais.

O exemplo em concreto diz respeito ao uso do oza mil – “coqueiral”, da comunidade de Tapo,
no distrito de Bobonaro. No dia aprazado, os responsáveis políticos tradicionais, bem como os
responsáveis locais do suco e da povoação, acompanham o grupo composto por representantes
de todas as casas sagradas e respetivos proprietários dos coqueiros. O local fica no extremo do
território do tas, próximo da povoação do suco vizinho de La’o. Alguns dos seus habitantes
abriram campos nesta parte do território de Tapo e esta deslocação serve para que aqueles
paguem uma taxa pela utilização dos terrenos, uma quantia, sobretudo simbólica, que varia com
a dimensão do terreno.

Após a chegada, os responsáveis rituais, liderados pelo bei Júlio da Casa Opa, o ukon gomo,
ordenam que se inicie a apanha dos cocos. Cada família dirige-se, então, para as suas árvores
(um bem que pode ser herdado por via feminina ou por via masculina). A manhã decorre com a
apanha dos frutos, alguns dos quais são imediatamente consumidos; outros são armazenados,
de forma a serem transportados para casa. Entretanto, cada proprietário envia três, ou quatro,
cocos para serem armazenados [foto.1] à guarda do makleat [responsável pela vigilância dos
campos] e bei presentes [responsáveis políticos da comunidade]. Quando termina a apanha,
procede-se a uma bai lika [distribuição hierárquica] com os frutos, que são nominalmente
distribuídos, pelos três campos correspondentes aos três doen, e, de seguida, são repartidos
pelos hima gonion, bei engoni’il e restantes detentores de funções rituais.

Posteriormente, sacrifica-se um pequeno porco, na base de um coqueiro, com o propósito de


dar “frescura” às árvores desgastadas. Segue-se o sacrifício de um bode, animal “quente”;
sendo-lhe retirados os chifres, que são levados por um pequeno grupo que se desloca para
jusante da campina e coloca, num local de acesso, o ukon: uma haste de bambu, na qual são
postas folhas de kabouke, de bananeira e os chifres do animal sacrificado. Este é um sinal da
proibição [foto 2], que deve ser acatado por todos. Por fim, efetua-se uma bai lika com a carne
dos animais sacrificados; ao fim da tarde tem lugar o regresso.

Para saber mais, consultar: Sousa, Lúcio. 2010. An tia : partilha ritual e organização social entre os
Bunak de Lamak Hitu, Bobonaro, Timor-Leste. Lisboa. Universidade Aberta. URL:
http://hdl.handle.net/10400.2/1703

161
convocação de pessoas, antepassados, animais e a terra. Todavia, esta partilha não é sinónima de
equidade e igualdade de poder. A organização social da comunidade dita a forma como o acesso,
distribuição e redistribuição de bens é efetuada, sustentando pela própria forma ritual de partilha a
estrutura da sociedade, as funções e papéis sociais em presença.

Mesmo na sociedade de mercado persistem formas sociais de relacionamento económico, não


produtivas, como é o caso dos presentes, caridade corporativa e altruísmo [mesmo que estas práticas
possam ser usadas como formas encapuzadas de promoção das empresas].

Como referimos no início, estes dois modelos só têm validade heurística, permitindo
descortinar caraterísticas específicas de cada um dos tipos ideais. Na atualidade os dois modelos estão
interligados e, sobretudo no caso da economia de comunidade, o mercado desempenha um papel
fulcral na sua continuidade. A expansão da economia de mercado, associada historicamente com a
expansão decorrente dos descobrimentos, resultou na ocupação militar, política e económica das
variadas partes do mundo e a sua inclusão, voluntária ou involuntária, em circuitos de mercados [referir
o comércio triangular e a escravatura].

Mesmo nos locais mais remotos do planeta a presença da economia de mercado pode afetar
comunidades isoladas. Seja pela exploração mineira de minerais ou pedras preciosas, a exploração
agrícola e agropecuária industrializada com culturas de plantação e criação de gado, a construção de
barragens que afetam e obrigam à deslocação das comunidades (veja-se o exemplo dos designados
“povos indígenas”).

Para saber mais sobre as condições que afetam povos indígenas consulte:
http://www.culturalsurvival.org/

Se quiser saber mais sobre populações afetadas pela construção de grandes barragens,
consulte o artigo de Renata Silva Nobrega. 2011. Os atingidos por Barragem:
refugiados de um guerra desconhecida. Rev. Inter. Mob. Hum., Brasília, Ano XIX, Nº 36, p. 125-
143, jan./jun. 2011. URL: http://remhu.csem.org.br/index.php/remhu/issue/view/12

162
3.4 Os mercados sociais, a dádiva e a reciprocidade98

Conforme Meunier (1978, 240) o termo mercado exprime duas entidades distintas: um
conceito de cariz económico e uma realidade empírica. O conceito económico abrange a noção de um
espaço de formação de preços, realizados através de trocas que envolvem determinada área
geográfica. Todavia, o termo mercado também corresponde a uma realidade empírica, um local onde
se efetuam transações de diversos tipos, não exclusivamente económicas. A forma como ambas as
realidades interagem não é, forçosamente, direta99.

A ideia de mercado social assenta na noção de que o “mercado” não é somente um espaço de
compra e venda. Por norma, ele é antecedido pela troca, que coabita, em diferentes graus, na
contemporaneidade, com os sistemas capitalistas. Como referem Marconi e Pressoto (1987, 139) a
troca tem diversas funções:

“a) facilitar o processo de produção;


b) complementar os recursos do grupo;
c) valorizar as relações definidas ou laços de parentesco e de matrimônio;
d) apaziguar brigas;
e) compensar crimes;
f) diversão, etc. “

Temos assim um sistema de circulação de bens ou serviços, associado a uma divisão do


trabalho e de direitos de propriedade, que faculta a posse de bens escassos ou considerados valiosos, e
que se trocam em redes de parentesco ou de aliança política e que desempenham um papel essencial
no funcionamento das sociedades.

As trocas podem efetuar-se, segundo Marconi e Pressoto (1987, 140), de quatro formas:
a) trocas internas ou externas (quando se realizam no interior ou no exterior do grupo);
b) trocas mudas ou silenciosas;
c) relações comerciais simbióticas;
d) trocas rituais.

98
Não analisaremos em detalhe nesta versão a questão do “dinheiro”. Todavia, como refere Barnard (2006, 49)
convém ter presente que o dinheiro é uma mercadoria cujo valor não está dependente do que é, mas sim no que
representa. Historicamente houve várias formas de “dinheiro”; etnograficamente existem formas alternativas,
como os Lele, que antes da presença belga no Congo, usavam roupas de rafia como unidade de troca. O “dinheiro”
na sociedade contemporânea é igualmente mais do que as moedas e notas em circulação, mas, uma mercadoria de
valor universal com uma natureza abstrata no manuseio (veja-se as Bolsas), mas, concreta na vida das pessoas.
99
A relevância dos mercados como instrumentos de poder económico e político pode ser analisada, por exemplo,
no contexto histórico, com o “bazar colonial”. Para saber mais consultar o texto de Sousa (2018) “O bazar colonial
no Timor Português: a submissão dos “comerciantes selvagens”. Para uma versão mais desenvolvida deste texto
pode consultar Sousa (2023).
163
Vamo-nos agora centrar na análise de duas propostas de interpretação dos conceitos de troca
com base em dois autores: Polanyi e Sahlins.

Com base no pressuposto substantivista, Polanyi (apud Depuyis. 2004, 16-17) reanalisa o
conceito de economia, realinhando este com a dimensão ambiental e social (e não só material) que
permitem à humanidade obter a sua subsistência. Tendo por base este eixo de análise, Polanyi
distingue três tipos principais de princípios económicos que fundam três diferentes perspetivas
económicas: a reciprocidade, a redistribuição e a troca.

A economia assente na reciprocidade ocorre nas sociedades em que os movimentos entre os


grupos se desenrolam de forma simétrica. Trata-se de sociedades sem classe, onde as relações se
baseiam prioritariamente em relações de parentesco e em outras instituições não económicas
(exemplo dos bosquímanos)

As economias assentes nas relações de redistribuição operam em sociedades em que os


movimentos de apropriação se desenvolvem em direção a um centro, e na sequência, para o exterior.
São sociedades que dispõem de uma autoridade central para onde afluem prestações diversas, que
após serem processadas, são redistribuídas, em parte, pela sociedade. São sociedades com castas ou
classes, submetidas a uma chefatura ou a um Estado.

As economias reguladas pelos mecanismos da troca são aquelas onde de desenvolvem


movimentos vários entre as partes, características de uma economia de mercado. São economias
“integradas” pela função de uma instituição “desincrustada” de outras relações sociais (parentesco,
políticos ou religiosos).

Por seu turno, Sahlins (apud Barnard, 2006, 44-45), identifica três formas de reciprocidade: 1)
reciprocidade equilibrada; 2) reciprocidade generalizada e 3) reciprocidade negativa. Visualmente estas
correspondem a:

A reciprocidade equilibrada ocorre quando cada uma das partes envolvidas na transação
ganham de forma igual, quer através de compra e venda ou pela dádiva mútua de prendas. A troca
pode ser imedaita ou diferida no tempo (o que assinala igualmente a relvância da continuidade de
relações futuras). Esta forma de transação é a mais próxima da reciprocidade mútua. Um exemplo
deste tipo de troca ocorre entre os !Kung (bosquimanos).
164
A reciprocidade generalizada está associada à dação sem a espetiva de receber nada em troca.
Exemplos deste tipo de prática são as prendas que os pais dão aos filhos ou as “esmolas” dadas, ou
diretamente ou através de instituições de caridade (ex. possibilidade de onsignar 0,5% do IRS a uma
instituição de cariz social, humanitária).

A reciprocidade negativa ocorre quando, numa transação, uma das partes procura obter mais
do que aquilo que oferece. Sahlins inclui nesta categoria a permuta, o regatear, o jogo ou o roubo.

A dádiva é uma categoria da troca cujo estudo foi sobretudo estimulado pelo ensaio de Marcel
Mauss de 1925 “Essai sur le don”, traduzido para português como Ensaio sobre a dádiva. O argumento
de base de Mauss assenta na ideia da centralidade nas sociedades “arcaicas” da troca através da
dádiva. Esta implica três obrigações: dar, receber e retribuir. Estas obrigações não são exclusivas do
plano económico. O domínio moral e social estão intimamente ligados. Os exemplos etnográficos do
autor são o kula dos Trobriandeses, estudados por Malinowsky, e o potlach dos Kwaktiul, estudados,
entre outros, por Franz Boas.

Para relacionar com o tema:


Denúncias boas. MIGUEL ESTEVES CARDOSO 24/05/2015 - 03:55 Público
http://www.publico.pt/sociedade/noticia/denuncias-boas-1696673
(…) Francisco Alves Rito contava várias versões da história de Andreia Branco, a mãe que se queixou de ter
recebido leite fora de prazo dum banco alimentar e que ouviu dizer "por causa disto nunca mais cá vens
buscar nada". Felizmente a mãe queixou-se no Facebook e, mais uma vez, graças aos protestos acumulados
(e às perguntas de jornalistas do PÚBLICO), tudo indica que o Rotary Club de Sesimbra e a Câmara Municipal
de Sesimbra vão pedir desculpa à Andreia Branco e garantir-lhe que o direito de queixar-se é tão importante
como o direito de ir receber alimentos doados pelos hipermercados. Quem recebe uma dádiva está a dar a
recompensa de uma boa acção a quem dá. São os dadores que deveriam agradecer a oportunidade. Quem
recebe tem duplamente direito de se queixar. Hoje em dia denunciar vai resultando. É uma novidade.
(bold e itálico nosso)

Para saber mais e ver descrições etnográficas: duas pertinentes análises sobre o trabalho de
Mauss podem ser encontradas nestes dois recursos essenciais, em português:

Lanna, Marcos. 2000. Nota sobre Marcel Mauss e o ensaio sobre a dádiva. In Revista de
Sociologia e Política., Curitiba, 14: 173-194. URL:
http://www.scielo.br/pdf/rsocp/n14/a10n14.pdf

Sabourin, Eric. (2008). Marcel Mauss: da dádiva à questão da reciprocidade. In Revista Brasileira
de Ciências Sociais, 23(66): 131-138. URL: http://dx.doi.org/10.1590/S0102-
69092008000100008

A obra original de Marcel Mauss, Ensaio dobre a dádiva (Essai sur le don) pode ser acedida na
integra aqui, neste espaço onde encontra ainda mais recursos:
http://classiques.uqac.ca/classiques/mauss_marcel/socio_et_anthropo/2_essai_sur_le_don/ess
ai_sur_le_don.html

165
166
Bibliografia

Esta bibliografia identifica as obras que serviram de base à elaboração destes Textos (sempre que
disponíveis usaram-se as fontes primárias).

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Lúcio Sousa, setembro 2023.

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