Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
nhos, Freud introduz essa problemática e ressalta a equivalência meta- conjunto de minuciosas rupturas teóricas e articulações conceituais, que resul-
psicológica dessas diferentes estruturas: taram na composição inicial do campo psicanalítico.
"Eu tentei expor, neste volume, a interpretação dos sonhos; e, fazendo Neste contexto histórico-epistemológico a figura da histeria ocupa um lu-
isso, não fui além do campo de interesse da neuropatologia. Pois a in- gar estratégico, como o ponto central de um cenário no qual foi subvertido o
vestigação psicológica mostra que o sonho é o primeiro termo de uma espaço da medicina e constituído o campo psicanalítico. Os outros elementos
série de fenômenos psiquicos anormais. Os termos posteriores, como as deste cenário se orie:ntam e se situam a partir do que ocorre na posição da
fobias histéricas, as obsessóes e os delírios. devem interessar os mé- histeria, eixo teórico que estruitura a dissolução do antigo espaço discursivo e
dicos por motivos prdticos. Como será visto em seguida, os sonhos não possibilita a constitiiição da nova forma de saber. Charcot foi o ponto de
podem pretender ter esta importância prática; mas o seu valor teórico partida, a orientação inicial, do percu rso freudliano. Mais, para restaurar a
como paradigma é proporcionalmente maior. Aquele que não consegue loucura no seu estatuto de ver,dade, Fre:ud precisOU se em:ancipar de Charcot,
explicar a origem das imagens do sonho pode esperar em vão para com- radicalizando as perspectivas entreabeirtas por e le. Apeni1s então a desorde-
- .. - -- - -.
nação corporal da histeria foi apreenaiaa na sua exprebbividade, inserida no
~ A
constatação deveria incentivar o estudo das neuroses, sobretudo da histeria, lidades metodológicas; outros queriam torná-la mais autônoma em relação a
cujo espaço de investigação volta a se abrir. este campo, hipostasiando o conceito de sugestão, transmutado às vezes para
As formulações fundamentais de Charcot implicam o reconhecimento par- I
uma auto-sugestão que adquiria características etiológicas. A sugestiona-
cial das impossibilidades colocadas pelo método anátomo-clínico, pelo menos bilidade seria a marca fundamental da histeria, decorrendo daí a eficiência da
no que se refere a diversas positividades pertencentes ao campo da clínica hipnose como método de cura.
médico-psiquiátrica. Aparece uma demanda explícita por outra metodologia Na condição de neurologista, Freud foi aluno de Charcot em Paris, numa
de pesquisa, cujo instrumento metodológico será a hipnose.
viagem que transformou seu destino. Tendo seguido para fazer estudos neu-
Essas proposições de Charcot tiveram efeitos marcantes no contexto ideo-
ropatológicos, ele concentrou toda a sua atenção na histeria, no hipnotismo e
lógico da medicina européia no final do século XIX. Com a força do seu
na sugestão. O prestígio do mestre, que decretara o limite teórico da neuropa-
prestígio científico, Charcot assinalou os limites do método anátomo-patoló- tologia e passara a investir na pesquisa da histeria, foi decisivo. Porém, na me-
gico e legitimou a importância teórico-clínica da histeria para o campo da
dida em que se aproxima deste campo de investigação, Freud começa também
medicina, trabalho que fora iniciado na tradição médica francesa pelo enorme
a se interessar pelas formulações de Bernheim. Depois de Paris, onde esteve
recenseamento clínico realizado por Briquet. em 1885-1886, foi a Nancy, em 1889, para assistir as curas de Bernheim.
Tanto do ponto de vista clínico quanto ético-social, a figura da histeria foi
Assim, entre Charcot e Bernheim circula o jovem Freud, que tenta partici-
parcialmente valorizada. O gesto teórico de Charcot resgatou do limbo esta
par do moderno empreendimento de explicação etiológica e de cura da histe-
figura, que deixou de ser considerada como típica de um universo de mentiro-
ria. Ele oscila entre uma tendência e outra, criticando aspectos de ambas,
sos e s i m u l a d o r e ~ . A
~ ~conseqüência
~~l~ dessa postura foi o desenvolvimento de
divulgando as suas obras numa Viena marcadamente hostil às transgressões
investigações etiológicas e clínicas sobre a histeria, principalmente por Char-
com o método anátomo-clínico. Assim, vai construindo o seu próprio objeto
cot e seus discípulos na Salpêtrière, mas não só por eles, nem só na França.
de investigação. A influência destas tendências fica marcada na sua leitura dos
Embora Charcot anunciasse os limites do método anátomo-clínico e privi-
fenômenos histéricos e nas traduções que faz para o alemão de algumas obras
legiasse a investigação hipnótica da histeria, sua ruptura com a ordem médica
destes autores.
foi apenas parcial, como mostra sua insistente busca de uma etiologia ana-
Com a legitimidade conferida pela ciência européia, Charcot cauciona a
tômica para a histeria. Se, ao contrário do que ocorria nas demais enfermida-
aproximação de Freud com a histeria e o hipnotismo. Com isso, Freud pode
des nervosas, não existia uma lesão localizada, deveria existir uma "lesão
prestar atenção em Bernheim, não compartilhando do desdém que os teóricos
- dinâmica", idiopática, sustentada numa hereditariedade familiar. ".I2 Enfim,
dos países de língua alemã manifestavam em relação aos fenômenos sugesti-
Charcot se manteve no interior da racionalidade médica, apesar do lugar que
vos e às démarches clínicas baseadas nele^.^^^'^^'^*'“^'^ Mas Freud transcende os
abriu para o reconhecimento da figura da histeria (e do seu discurso) na ins-
dois mestres. A partir da questão colocada pela figura enigmática da histeria,
tituição médica.
constitui uma problemática teórica original, embora mantenha certas exi-
Bernheim formulava justo o oposto. Com ele, a figura da histeria foi com-
gências metodológicas fundamentais, que não encontravam soluções teóricas
pletamente desarticulada da racionalidade anátomo-clínica, pois todos os
sólidas no contexto das investigações nem de Charcot, nem de Bernheim.
sintomas decorreriam de processos de sugestão, que adquiriam assim um pro- Da formulação de Charcot, Freud mantém fundamentalmente a demanda
digioso estatuto material. Ao situar-se nas bases dos efeitos corporais da his- para descobrir os pequenos meandros que conduzem à constituição do sin-
teria, a sugestão apontava o caminho racional para a sua terapêutica, pois a toma histérico, reconhecendo neste a presença de uma arquitetura complexa,
própria eficácia da hipnose seria decorrente de um efeito sugestivo. Neste que merecia ser desvendada nos seus menores detalhes. Acompanhando Char-
contexto teórico, portanto, o corpo da histeria se desarticula de qualquer mate- cot, Freud reconhece a especificidade do sintoma histérico, que não podia ser
rialidade anatômica. diluído na categoria geral de sugestão, mas, ao contrário, devia ser delineado
No fim do século XIX. entre as escolas de Salpêtrière e de Nancy se de forma rigorosa e específica. Mas Freud supera a perspectiva de Charcot, ao
polariza um conflito de tendências teóricas sobre a histeria. Alguns tentavam não reduzir esta singularidade do sintoma histérico à ordem racional da aná-
mantê-la no campo da patologia nervosa, apesar das reconhecidas impossibi- tomo-patologia. Em vez disso, desbasta as camadas estratificadas que formam
A constituição da clínica psicanalttica 141
140 Freud e a interpretaçgo psicanalftica
da teoria da sexualidade infantil em 1905, a formulação freudiana se desdobra sexual produzida no plano do corpo biológico não teria acedido ao corpo
ainda mais, chegando mesmo a uma inversão completa dos postulados de representado e, por isso, não circularia num quadro de representações. As
Beard. Em 1908. Freud formula que a "doença nervosa" dos "tempos mo- perturbações sintomáticas se originariam justamente desta impossibilidade,
dernos" não se devia primariamente ao impacto genérico do "processo civi- com os signos revelando o extravasamento, para o plano do corpo somático,
lizatório" sobre as pessoas. Esta incidência da "civilização" sobre os indivídu- do que não pode circular no plano psíquico, onde poderia haver um canal
os era intermediada pelas formas básicas de constrangimentos que o estilo adequado de descarga. Enfim, o mecanismo das neuroses atuais seria somá-
"moderno" da existência social impunha Ps demandas originárias da sexua- tico, inexistindo elaboração psíquica da excitação sexual.
lidade. Enfim, a neurastenia de Bcard seria uma estrutura psicopatológica A oposição entre as neuroses atuais e as psiconeuroses, sustentada pela
privilegiada na história da modernidade, ao lado de outras organizações ptura epistemológica entre o corpo biológico e o corpo representado, indica
neuróticas, na medida em que remetia fundamentalmente à forma de orde- cisivamente a importância, no pensamento freudiano, do critério da repre-
nação da "moral sexual" dos "tempos moderno^".^^ ntação para as partilhas que se realizam no universo da loucura. Indica
Antes desse desdobramento, outros efeitos importantes foram produzidos ,,mbém que este critério funciona para estabelecer os limites epistemológicos
pelo deslocamento do espaço teórico em que se pensava a neurastenia. Inci- do campo psicanalítico e suas fronteiras com o campo médico-psiquiátrico. A
sões fundamentais não só construíram uma nova figura da neurastenia. Deram articulação entre essas formulações se torna ainda mais fundamental se consi-
origem a outra figura. a neurose de angústia. também situada no plano do derarmos que o critério epistemológico do corpo representado é o correlato da
corpo biológico mas caracterizada por outra forma de disfunção sexual. metodologia freudiana de investigação, baseada na análise de representações.
Na neurastenia haveria um "excesso de perda" da energia sexual somática, Com efeito, a psicanálise só pode examinar sintomas que se inscrevam no
produzindo conseqüentemente o esvaziamento sexual do indivíduo. Na neu- campo da representação, contribuindo para a sua superação e desaparecimento
rose de angústia existiria a "contenção excessiva" da excitação sexual so- através de uma análise de representações mentais, das forças nelas investidas
mática, ou a impossibilidade de incorporá-la no registro psíquico. Neste caso, e da dinâmica interna deste espaço de representações. Só são passíveis de
a excitação levaria à produção de sintomas somáticos pela impossibilidade de elucidação e de resolução clínica pela psicanálise os sintomas produzidos
através de mecanismos psíquicos. Entre, de um lado, a partilha, a ordenação e
Enfim, a oposição corpo represeniado/corpo biológico permite configurar a o estabelecimento de diferenças estruturais no campo da loucura e, de outro,
existência de dois grupos de neuroses - as psiconeumses e as neuroses o método freudiano de investigação em vias de constituição existe uma rela-
atuais. A histeria e a neurose obsessiva estariam entre as primeiras. enquanto ção fundamental, que marca inclusive os próprios limites epistêmicos de va-
a neurastenia e a neurose de angústia pertenceriam\ao segundo g r ~ p o . ~ ~ - ~ " lidade deste método.
Com isso, podemos delinear as incisões realizadas pela segunda operação Esse eixo teórico estará sempre presente no tratamento dado por Freud à
teórica. Nesta clivagem do território da loucura se insere também a sexuali- oposição entre grupos de neurose, que nunca é pensada como um sistema
dade, que circularia de diferentes mineiras no campo da representação e no metafísico de essências. O pensamento freudiano procura estabelecer relações
campo do corpo biológico, cujas relações são complexas, conforme assina- muito importantes entre as estruturas atuais e as representadas. Consideradas
laremos adiante. Cabe ressaltar, no entanto, que o corpo representado é sexua- de forma pura, as neuroses atuais e as psiconeuroses são construções teóricas,
lizado e que o seu investimento sexual não é o mesmo que estaria presente no tipos ideais. Mesmo assim, em certas situações limites, podem existir empi-
corpo biológico. A articulação entre corpo representado e traumatismo sexual, ricamente. Isso, no entanto, não é comum, já que na prática clínica as neuroses
que apontamos anteriormente, já indicava este investimento sexualizado do são principalmente mistas, apresentando características das neuroses atuais e
corpo representado. das psiconeuroses.
A sexualidade circulante no campo da representação é que estaria em Nesta perspectiva, as neuroses atuais são causas precipitantes das psico-
questão na produção dos sintomas das psiconeuroses, as únicas formas de neuroses, pois podem desequilibrar o campo da representação e levar à or-
neurose passíveis de uma psicanálise, justamente porque seriam constituídas denação da tessitura psíquica típica dos sintomas psiconeuróticos.37~Ba-
por mecanismos psíquicos. Nas neuroses atuais. ao contrário, a excitação seando-se nas associações presentes nos quadros clínicos ou na analogia sin-
146 Frcud c a intcrprclaçáo psicanalíiica A constiiuição da clfnica psicanalítica 147
tomática, Freud estabelece relações - inicialmente esparsas mas posterior- corpo biológico ao corpo erógeno
mente sistemáticas - entre os dois grupos: entre a neurose de angústia e a
histeria, e entre a neurastenia e a neurose obsessiva.
Subjacente às relações de oposição estrutural e de articulação clínica entre
O pensamento freudiano sempre sustentou esta articulação, num quadro de
diferentes tipos de neurose, o pensamento freudiano discute algo mais funda-
oposições básicas. Em Para introduzir o narcisismo, de 1914, Freud postula
mental: a forma de articulação entre o corpo biológico e o corpo representado.
a existência de uma terceira neurose atual - a hipocondria - que estaria
Esse pensamento não se ocupa do corpo anátomo-patológico, marcando
articulada à genealogia das psiconeuroses narcísicas, mantendo as mesmas
assim sua ruptura epistemológica com a ordem médica. Superado, o corpo
articulações ante ri ore^.^^ Porém, a existência da articulação entre grupos di-
anatômico se encontra com o corpo biológico, que está inserido na problemá-
ferentes de neuroses não significa absolutamente o fim da oposição estrutural
tica de um campo teórico original, que pretende estabelecer as relações funda-
entre duas ordens diversas de realidade.
mentais entre o este corpo e o corpo representado. Assinalamos anteriormente
A articulação entre diferentes tipos de neurose permite apreender a com-
que desde 1891, quando estava trabalhando na temática da afasia, Freud se
plexidade da realidade clínica, mas nem por isso a diferença estrutural desa-
encontrava na trilha dessa reformulação teórica fundamental, na medida em
parece. A análise das representações mentais permanece como um procedi-
mento válido apenas para os sintomas que se situam no campo da represen- que superava a teoria localizadora da afasia e postulava que a especificidade
deste fenômeno estava numa relação original entre o corpo funcional e o corpo
tação, e a psicanálise como método de investigação nada pode fazer diante dos
represen tad~.~O
sintomas da neurose atual: como qualquer médico, o psicanalista pode "dar
Nesse momento do seu percurso, o pensamento freudiano se mantém na
conselhos" sobre a prática sexual desses pacientes, sem situar-se no entanto
linha de interpretação inaugurada em Sobre a afasia, mas, sem dúvida, de
no campo psicanalítico propriamente dito, já que se trata de fenômenos que
forma mais ousada, pois agora a relação entre o corpo biológico e o corpo
estão inscritos numa outra ordem de realidade.
representado está sendo pensada num nível mais genérico e, portanto, mais
Reconhecendo-se a existência desse sistema básico de oposições, pode-se
fundamental. Mas, para que se pudesse circunscrever de maneira rigorosa o
acrescentar outra nota nestas relações entre diferentes tipos de neurose, tor-
campo da psique como objeto de investigação, seria preciso encontrar a arti-
nando mais complexa e mesmo invertendo a genealogia já referida, como fez
culação teórica entre os planos biológico e representado.
o próprio Freud num momento posterior. Se a neurose atual é capaz de de-
Por isso, a função sexual - e não todas as funções biológicas do orga-
sequilibrar o sistema psíquico de representações e levar à emergência da psi-
nismo humano - é o que interessa especificamente a Freud na relação entre
coneurose, a articulação inversa também é possível. Com efeito, uma forma de
corpo biológico e corpo representado. Em primeiro lugar, na configuração
psiconeurose pode estar na base de uma neurose atual, não como a sua causa
clínica e na etiologia das neuroses é esta função que aparece como uma temá-
precipitante mas como uma estrutura mental que funciona como sua condição
tica empiricamente relevante. Além disso, por suas características especifica-
de possibilidade.
mente humanas, a função sexual do sujeito parece ser a única, entre as diver-
Tomando novamente como exemplo a figura da neurose de angústia, re-
sas funções biológicas, cuja realização funcional no organismo depende de
cordemos que um de seus eixos de estruturação é a impossibilidade de incor-
uma passagem pelo registro da representação psíquica! Revela-se assim a
porar a excitação sexual ao plano da representação, o que pode ocorrer por
singularidade do organismo humano no plano biológico e finalmente se en-
várias razões, até mesmo por uma psiconeurose. Então, o recalcamento sexual
contra a via privilegiada para investigar esta passagem do registro corporal
pode funcionar como condição de possibilidade de uma neurose atual que,
para o registro psíquico.
com a estase da economia sexual, fornece em contrapartida novos elementos
A inquirição teórica decisiva se realiza em torno do sexual - especial-
para o intrincado sistema de representações da psiconeurose. Enfim, pelo
mente, de sua passagem do plano funcional para o da representação psíquica4'
mesmo caminho demonstrativo, poderíamos assinalar outros pontos no que se
-, na medida em que apenas por este canal pode emergir e ser delimitada a
refere à neurastenia: algo situado no campo da representação mental impos-
problemática humana original e específica. Esta maneira de colocar a questão
sibilita a incorporação psíquica da excitação sexual do corpo biológico e sua
das relações entre corpo biológico e corpo representado abre a via metodo-
transformação.
lógica para constituir o conceito de pulsão (Trieb), que na economia interna da