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A constituição da clínica psicanalítica

A construção teórica que levou ao modelo metapsicológico do sonho trans-


formou-se no paradigma metodológico do saber psicanalítico. pois delineou a
possibilidade de interpretação sistemática das diversas formações do incons-
ciente. Nele, o pensamento freudiano foi inscrevendo as mesmas coordenadas
e as mesmas regras do funcionamento mental que circunscreviam as fronteiras
do recém-descoberto território do inconsciente, considerado o representante
básico da realidade psíquica e, portanto, o fundamento estrutural do aparelho
psíquico.
Assim, através de um fenômeno empiricamente circunscrito - ou seja, o
sonho -, Freud analisou uma forma de funcionamento psíquico que poste-
riormente pôde ser transposta para outras formações mentais. Além disso, ao
assinalar num fenômeno psíquico normal a presença de postulados teóricos
construídos no campo das estruturas patológicas, o pensamento freudiano
pôde transpor as fronteiras interditas entre o normal e o patológico. Com isso,
Freud teve condições de subverter o espaço epistemológico da psicopatologia,
passando a investigar a realidade psíquica num plano em que o universo da
normalidade e o das diferentes estruturas psicopatológicas eram perpassados
pelas mesmas regularidades.
Mas o modelo metapsicológico do sonho não foi a construção teórica que
deu origem ao discurso psicanalítico. As estruturas psicopatológicas, inse-
ridas no eixo metodológico da psicanálise em vias de constituição, foram as
condições de possibilidade de construção desse modelo metapsicológico. Só
depois ele ocupou um lugar epistemológico privilegiado, transformando-se no
paradigma metodológico do saber psicanalítico e permitindo transcender a
oposição entre o normal e o patológico pela delimitação de um espaço teórico
comum, do qual a normalidade e as diferentes estruturas da psicopatologia
seriam variantes possíveis. Nas primeiras linhas de A interpretação dos so-
136 Freud e a interpretação psicanalftica
r A constituição da clínica psicanalítica 137

nhos, Freud introduz essa problemática e ressalta a equivalência meta- conjunto de minuciosas rupturas teóricas e articulações conceituais, que resul-
psicológica dessas diferentes estruturas: taram na composição inicial do campo psicanalítico.
"Eu tentei expor, neste volume, a interpretação dos sonhos; e, fazendo Neste contexto histórico-epistemológico a figura da histeria ocupa um lu-
isso, não fui além do campo de interesse da neuropatologia. Pois a in- gar estratégico, como o ponto central de um cenário no qual foi subvertido o
vestigação psicológica mostra que o sonho é o primeiro termo de uma espaço da medicina e constituído o campo psicanalítico. Os outros elementos
série de fenômenos psiquicos anormais. Os termos posteriores, como as deste cenário se orie:ntam e se situam a partir do que ocorre na posição da
fobias histéricas, as obsessóes e os delírios. devem interessar os mé- histeria, eixo teórico que estruitura a dissolução do antigo espaço discursivo e
dicos por motivos prdticos. Como será visto em seguida, os sonhos não possibilita a constitiiição da nova forma de saber. Charcot foi o ponto de
podem pretender ter esta importância prática; mas o seu valor teórico partida, a orientação inicial, do percu rso freudliano. Mais, para restaurar a
como paradigma é proporcionalmente maior. Aquele que não consegue loucura no seu estatuto de ver,dade, Fre:ud precisOU se em:ancipar de Charcot,
explicar a origem das imagens do sonho pode esperar em vão para com- radicalizando as perspectivas entreabeirtas por e le. Apeni1s então a desorde-
- .. - -- - -.
nação corporal da histeria foi apreenaiaa na sua exprebbividade, inserida no
~ A

preender as fobias, as obsessões e os delírios, ou para exercer sobre eles


uma influência terapê~tica."~ contexto da realidade psíquica e definida como uma forma de linguagem,
capaz, portanto, de inscrever-se no campo da verdade.
Essa articulação fundamental entre a estrutura dos sonhos e as diversas Vamos delinear a posição estratégica da histeria e as rupturas teóricas que
estruturas psicopatológicas indica a existência de um espaço psíquico originá- se realizara m atravé:; deste seu lugar pirivilegiado como operador concei tual.
rio, para onde deve convergir a genealogia das diversas estruturas mentais. A figura da histeria 1provocou uma evidlente rupt ura na racionalidade médica,
Derivações do mesmo campo psíquico de possibilidade, elas apresentam uma J - --
pois, apesar- uc: -
..*-,.-.L- A . ..-" .,,..
b e rrianifestar , i ~ i d ~ tUG
; s uiiia vaiiedade quase infinita de sin-
equivalência estrutural. tomas corporais muito complexos, não se deixava reduzir teoricamente pela
Além do texto acima, que abre a obra sobre os sonhos, Freud retoma sua racionalidade da medicina somática, que pretendia relacionar as diversas com-
formulação no capítulo metodológico de A interpretação dos sonhos, antes de posições sintomáticas com lesões anatômicas específicas. Historicamente, a
efetuai o modelar deciframento do sonho da "Injeção de Irma". Afirma que figura da histeria foi o ponto de falência do método anátomo-clínico que, no
estava apenas transpondo, para a análise sistemática dos sonhos, a metodolo- início do século XIX, marcou o advento da medicina moderna como um saber
gia que vinha usando no campo das p~iconeuroses.~ Assim, a construção meta- do individuaL4 Resistindo a esta redução explicativa e não se adequando ao
psicológica originária do saber psicanalítico se sustentou fundamentalmente registro da racionalidade médica, a histeria colocou em xeque a moderna
no campo da experiência da loucura, que foi inserida no espaço analítico em clínica constituída a partir da racionalidade anátomo-patológica.
constituição, antes de se transformar num paradigma para o modelo do sonho. Neste contexto histórico se destaca a figura de Charcot. Internacionalmente
Um longo percurso freudiano de construção teórico-clínica precedeu a reconhecido em sua autoridade, rigorosamente formado na tradição neuro-
formalização do modelo metapsicológico do sonho e tornou possível uma patológica do século XIX, ele propõe formulações fundamentais, dotadas de
I
série de rupturas epistemológicas com os saberes existentes sobre a loucura, relevantes efeitos teóricos. Enquanto saber, diz, a neuropatologia chegara ao
que funcionaram como condições de possibilidade para a constituição do carn- limite. Suas possibilidades de investigação teórico-clínica estavam esgotadas,
po psicanalítico. pois suas pretensões e seus pressupostos teóricos haviam sido, no fundamen-
tal, realizados. O processo de demarcação clínica da articulação entre as en-
Da lógica da anatomia a lógica da representação fermidades nervosas e as alterações anatômicas havia sido completado, de
acordo com os cânones do método anátomo-clínico.
A ruptura teórica do pensamento freudiano com o modelo médico-psi- A formulação de Charcot demarca explicitamente os limites da
quiátrico não se realizou de uma só vez. Durante anos Freud se afastou pro- neuropatologia e da sua metodologia de investigação. Porém, essa negati-
gressivamente do campo da neuropatologia e se voltou para os intrincados vidade teórica funciona como um operador epistemológico que também de-
problemas colocados pelas neuroses. Esse transcurso fÒi marcado por um fine um novo campo de positividades. Na perspectiva teórica de Charcot, esta
138 Freud e a interpretaçáo psicanalftica A constituiçáo da clfnica psicanalftica 139

constatação deveria incentivar o estudo das neuroses, sobretudo da histeria, lidades metodológicas; outros queriam torná-la mais autônoma em relação a
cujo espaço de investigação volta a se abrir. este campo, hipostasiando o conceito de sugestão, transmutado às vezes para
As formulações fundamentais de Charcot implicam o reconhecimento par- I
uma auto-sugestão que adquiria características etiológicas. A sugestiona-
cial das impossibilidades colocadas pelo método anátomo-clínico, pelo menos bilidade seria a marca fundamental da histeria, decorrendo daí a eficiência da
no que se refere a diversas positividades pertencentes ao campo da clínica hipnose como método de cura.
médico-psiquiátrica. Aparece uma demanda explícita por outra metodologia Na condição de neurologista, Freud foi aluno de Charcot em Paris, numa
de pesquisa, cujo instrumento metodológico será a hipnose.
viagem que transformou seu destino. Tendo seguido para fazer estudos neu-
Essas proposições de Charcot tiveram efeitos marcantes no contexto ideo-
ropatológicos, ele concentrou toda a sua atenção na histeria, no hipnotismo e
lógico da medicina européia no final do século XIX. Com a força do seu
na sugestão. O prestígio do mestre, que decretara o limite teórico da neuropa-
prestígio científico, Charcot assinalou os limites do método anátomo-patoló- tologia e passara a investir na pesquisa da histeria, foi decisivo. Porém, na me-
gico e legitimou a importância teórico-clínica da histeria para o campo da
dida em que se aproxima deste campo de investigação, Freud começa também
medicina, trabalho que fora iniciado na tradição médica francesa pelo enorme
a se interessar pelas formulações de Bernheim. Depois de Paris, onde esteve
recenseamento clínico realizado por Briquet. em 1885-1886, foi a Nancy, em 1889, para assistir as curas de Bernheim.
Tanto do ponto de vista clínico quanto ético-social, a figura da histeria foi
Assim, entre Charcot e Bernheim circula o jovem Freud, que tenta partici-
parcialmente valorizada. O gesto teórico de Charcot resgatou do limbo esta
par do moderno empreendimento de explicação etiológica e de cura da histe-
figura, que deixou de ser considerada como típica de um universo de mentiro-
ria. Ele oscila entre uma tendência e outra, criticando aspectos de ambas,
sos e s i m u l a d o r e ~ . A
~ ~conseqüência
~~l~ dessa postura foi o desenvolvimento de
divulgando as suas obras numa Viena marcadamente hostil às transgressões
investigações etiológicas e clínicas sobre a histeria, principalmente por Char-
com o método anátomo-clínico. Assim, vai construindo o seu próprio objeto
cot e seus discípulos na Salpêtrière, mas não só por eles, nem só na França.
de investigação. A influência destas tendências fica marcada na sua leitura dos
Embora Charcot anunciasse os limites do método anátomo-clínico e privi-
fenômenos histéricos e nas traduções que faz para o alemão de algumas obras
legiasse a investigação hipnótica da histeria, sua ruptura com a ordem médica
destes autores.
foi apenas parcial, como mostra sua insistente busca de uma etiologia ana-
Com a legitimidade conferida pela ciência européia, Charcot cauciona a
tômica para a histeria. Se, ao contrário do que ocorria nas demais enfermida-
aproximação de Freud com a histeria e o hipnotismo. Com isso, Freud pode
des nervosas, não existia uma lesão localizada, deveria existir uma "lesão
prestar atenção em Bernheim, não compartilhando do desdém que os teóricos
- dinâmica", idiopática, sustentada numa hereditariedade familiar. ".I2 Enfim,
dos países de língua alemã manifestavam em relação aos fenômenos sugesti-
Charcot se manteve no interior da racionalidade médica, apesar do lugar que
vos e às démarches clínicas baseadas nele^.^^^'^^'^*'“^'^ Mas Freud transcende os
abriu para o reconhecimento da figura da histeria (e do seu discurso) na ins-
dois mestres. A partir da questão colocada pela figura enigmática da histeria,
tituição médica.
constitui uma problemática teórica original, embora mantenha certas exi-
Bernheim formulava justo o oposto. Com ele, a figura da histeria foi com-
gências metodológicas fundamentais, que não encontravam soluções teóricas
pletamente desarticulada da racionalidade anátomo-clínica, pois todos os
sólidas no contexto das investigações nem de Charcot, nem de Bernheim.
sintomas decorreriam de processos de sugestão, que adquiriam assim um pro- Da formulação de Charcot, Freud mantém fundamentalmente a demanda
digioso estatuto material. Ao situar-se nas bases dos efeitos corporais da his- para descobrir os pequenos meandros que conduzem à constituição do sin-
teria, a sugestão apontava o caminho racional para a sua terapêutica, pois a toma histérico, reconhecendo neste a presença de uma arquitetura complexa,
própria eficácia da hipnose seria decorrente de um efeito sugestivo. Neste que merecia ser desvendada nos seus menores detalhes. Acompanhando Char-
contexto teórico, portanto, o corpo da histeria se desarticula de qualquer mate- cot, Freud reconhece a especificidade do sintoma histérico, que não podia ser
rialidade anatômica. diluído na categoria geral de sugestão, mas, ao contrário, devia ser delineado
No fim do século XIX. entre as escolas de Salpêtrière e de Nancy se de forma rigorosa e específica. Mas Freud supera a perspectiva de Charcot, ao
polariza um conflito de tendências teóricas sobre a histeria. Alguns tentavam não reduzir esta singularidade do sintoma histérico à ordem racional da aná-
mantê-la no campo da patologia nervosa, apesar das reconhecidas impossibi- tomo-patologia. Em vez disso, desbasta as camadas estratificadas que formam
A constituição da clínica psicanalttica 141
140 Freud e a interpretaçgo psicanalftica

II Indo além de Charcot e sempre atento aos movimentos de Bernheim, o


a complexa arquitetura do sintoma, seguindo o caminho aberto pela revelação
discursiva do próprio histérico, até atingir o ponto culminante desse percurso pensamento freudiano especifica o seu objeto teórico de investigação e reali- i-
no momento histórico em que o sujeito constituiu o sintoma. za uma interpretação radical dos fenômenos histéricos, subvertendo não ape-
Para isso Freud teve que incluir a investigação do sintoma histérico num nas um fragmento da questão, mas o próprio espaço epistemológico em que
contexto intersubjetivo, enfrentando a evidente debilidade inicial desse eixo ela se situava. Freud propõe que a figura da histeria se articula no campo da
metodológico. Este caminho o leva a reconhecer a relevância da pesquisa de representação e não no campo do corpo anátomo-patológico. Este desloca-
Bernheim. Porém, atribuindo importância teórica fundamental ao desvenda- mento epistemológico rompe com a racionalidade médico-psiquiátrica e
mento da arquitetura do sintoma histérico. Freud critica Bernheim por reduzir constitui uma nova problemática teórica. A partir dela, ~re'udpode situar a
toda a questão da histeria à sugestionabilidade. A sugestão não seria uma figura da histeria no campo da verdade. Passa a existir algo a ser decifrado na
realidade primeira e demandaria uma interpretação teórica: própria histeria. O corpo do histérico não é originariamente defeituoso e, por
isso mesmo, suporte de anomalias a serem corrigidas e eliminadas como
"Mas, o que é de fato esta sugestão que está na base de todo o hipno- resíduos.
tismo, da qual todos estes resultados são possíveis? Levantando esta Com base neste postulado e levando adiante uma sugestão de Charcot,
questão nós tocamos num dos lados fracos da teoria de Nancy. Nos
recordamos involuntariamente da questão de onde São Cristóvão está
sustentado quando encontramos que o trabalho exaustivo de Bernheim,
i
entre 1883 e 18932223Freudempreende um estudo or'ginal para diferenciar as
paralisias orgânicas e as histéricas. Esse longo perío o, utilizado para a for-
malização teórica de proposições que já estavam indichas no estudo de 1888
que culmina na afirmação 'Tout esf dans la sugesfion',em nenhum lugar para a enciclopédia médica de Villaret, marca O tempo levado por Freud para
procura se perguntar sobre a natureza da sugestão, isto é, sobre a defi- realizar a ruptura teórica com a teoria de Bernheim e, principalmente, a de
nição do conceito ..."'8 Charcot. Não é casual que esse escrito tenha sido publicado originalmente em
O questionamento à formulação de Bernheim é bastante denso, pois Freud francês, destacando-se assim, de maneira simbólica, a ruptura teórica em vias
não indaga sobre o fundamento da sugestionabilidade para justificar o des- de constituição. Começa a se delinear com nitidez o momento da teoria catár-
carte desse conceito. Pretende ir além dele, interrogando-se sobre o que efe- tica na constituição do pensamento freudiano, cuja aventura teórica passa a ser
tivamente o sustentava. Desta inquirição teórico-clínica se constituirá poste- momentaneamente compartilhada com Breuer.
riormente, no percurso freudiano, o conceito de transferência, através do qual No escrito de 1893, Freud formula algo fundamental para a sua interpre-
o discurso psicanalítico vai conseguir articular a exigência charcotiana tação da histeria e provoca perplexidade entre os médicos: os sintomas corpo-
reconhecimento da singularidade do sintoma histérico e a racionalidade rais da doença, aparentemente caóticos, não podiam ser explicados pela racio-
gestiva de Bernheim. Para isto, será necessário transcender os contextos nalidade anátomo-clínica, pois estavam centrados num corpo representado, e '
óricos que deram origem a estas exigências e constituir uma outra meto- não na estrutura do corpo anatômico. Portanto, a confusão teórica provocada
dologia de leitura do sintoma, de modo a inseri-lo definitivamente no registro pela figura da histeria desaparece quando deslocamos nosso quadro de refe-
do sentido. rência de uma lógica da anatomia para uma lógica da representação, com
Em 1904, Freud destaca como Bernheim ocupou um lugar importante em todas as conseqüências desta passagem.24
seu próprio percurso, ao sublinhar o poder curativo da sugestão apesar de toda Na interpretação freudiana. os sintomas histéricos se articulam num sis-
a oposição que essa abordagem provocava na mentalidade médica de então. tema coerente, fundado na imagem do corpo e não na estrutura do corpo,
Formula que o fenômeno transferencial estaria na base da sugestionabilidade l9 subordinada esta última às leis da distribuição anatômica dos Órgãos e dos
e, com isso, define a genealogia conceitual da transferência, que passa a ocu- * sistemas funcionais. O importante passa a ser como o histérico vivencia a sua - -
par um lugar fundamental na metodologia psicanalítica. De A psicoterapia da corporalidade, ou seja, de que maneira investe as diferentes partes do seu
histeriaz0 até o estudo monográfico sobre D ~ r a , as
~ ' novas modelagens que corpo e as interpreta como superfícies dotadas de significação. Por isso é
sofre o conceito de transferência definem o alcance do discurso psicanalítico inviável qualquer tentativa de articulação entre composições sintomáticas e
e a distância que toma em relação às suas origens. lesões anatômicas. I
142 Freud e a interpretaçso psicanalftica A constituição da clínica psicanalítica 143

O postulado teórico que afirma a existência de um corpo representado


como eixo de sustentação da histeria é a primeira construção positiva que A lógica da representação e a
define a possibilidade de existir outra ordem corporal, diferente daquela cir- cartografia do universo da loucura
cunscrita pelos cânones da anátomo-clínica. Além dessa conseqüência, fun-
damental para a constituição de outra problemática teórica. a formulação Este delineamento do campo da representação e a construção do seu corpo
freudiana apresenta implicações que se situam no plano dos fundamentos: correlato servem como eixo epistemológico para uma dupla operação teórica
confere à anatomia e à patologia uma configuração imaginária, na medida em que faz um mapeamento particular do universo da loucura.
que o histérico produz os seus sintomas somáticos e sofre as suas dores na Examinemos esquematicamente as incisões realizadas pela primeira ope-
imagem do corpo, e não na materialidade de sua estrutura anatômica. Neste ração. Ao penetrar na investigação da histeria, Freud se defronta simultane-
contexto pode-se enunciar que "é sobretudo de reminiscências que sofre o amente com patologias próximas a ela, situadas nos limites do seu campo
hi~térico",~~conferindo assim materialidade legítima ao campo da represen- clínico e também irredutíveis ao domínio da neuropatologia e da racionalidade
tação, com todas as conseqüências que isto terá para a constituição de um anátomo-patológica. Encontra-se com a neurastenia, definida nosologica-
novo espaço clínico e para a realização da cura catártica. mente pelo norte-americano Beard, dotada de grande importância médico-
A existência de um corpo representado é uma formulação teórica que in- social nesse contexto histórico, por sua enorme ocorrência, e caracterizada
fluencia de forma bastante concreta a leitura que Freud realiza sobre o en- como uma resultante do esforço exigido pelo processo "civilizatóno". Freud
caminhamento clínico da histeria e sua terapêutica. Freud pôde superar o começa por discriminá-la da histeria pelo duplo caráter de presença/ausência
esquema semiológico da crise histérica, ordenado por Charcot em quatro fa- de representação na produção do sintoma e pelo tipo de economia sexual que
ses, destacando a terceira destas, denominada de "fase das atitudes passio- lhe era subjacente. Ao estudar a experiência neurastênica. ele não realiza a
nais". Ela conduziria ao eixo teórico do corpo representado, enquanto as de- mesma operação metodológica que o levara a inserir a histeria no plano do
mais estariam circunscritas ao registro do corpo anátomo-funcional. 26 corpo representado. A neurastenia é articulada no plano do corpo biológico,
No plano da leitura clínica da crise histérica, o destaque atribuído ?i sendo apresentada como a resultante de uma certa disfunção da economia
passionalidade alucinatória é o correlato do destaque conferido à temática do sexual.
trauma na constituição da histeria, de maneira que o eixo teórico do corpo Utilizando o novo eixo epistemológico como critério teórico de diferen-
representado se articula intimamente com a questão do trauma. As marcas da ciação, Freud procura delinear os contornos do corpo representado, estabe-
experiência traumática incidem sobre a imagem do corpo do histérico - lecendo sua oposição e seus limites face ao corpo biológico. Com isso, o
corpo representado, essencialmente inserido na temporalidade da história do pensamento freudiano se afasta de sua concepção primeira, de uma psico-
sujeito -, e niio sobre a do corpo a n a t ô m i c ~ Assim,
. ~ ~ a figura da histeria se gênese generalizada e absoluta, que em verdade se sustentava na teoria da
desloca do plano biológico e se inscreve no registro da história do sujeito, s~gestão.~' Manejando esse quadro mais complexo de oposições, Freud pode
marcada pela escala do tempo e pela constituição de uma estrutura que se estabelecer outras clivagens fundamentais no temtório da loucura.
ordena no plano do sentido. A neurastenia de Beard é deslocada do lugar onde se inseria e passa a
Em 1905, com a formulação da teoria da sexualidade infantil, a psicanálise articular-se num outro espaço, que se sustenta em novas coordenadas teóricas.
encontra um novo desdobramento, com a descoberta de um corpo erógeno que Sua figura se remodela e recebe novo traçado. Sua etiologia se transforma de
se constitui a partir deste corpo representado originário.28Com isso, o corpo maneira radical, não sendo mais pensada como sendo o produto do "esgota-
representado da histeria adquire uma singularidade e uma complexidade inau- mento" provocado pelo processo "civilizatóno", mas como o resultado pri-
ditas. A passionalidade alucinatória da crise histérica se transforma em signo mário de uma disfunção da economia sexual, no interior do qual o citado
de uma luta gigantesca entre posições sexuais no contexto fantasmático do "esgotamento" poderia eventualmente funcionar como causa,precipitante para
sujeito. Na histeria, as posições masculina e feminina dos fantasmas sexuais a sua eclosão no plano clínico.
lutam pela posse do corpo r e p r e s e n ~ a d o . ~ ~ - ~ ~ Se nesse momento do percurso freudiano a transformação das coordenadas
teóricas de Beard sobre a neurastenia já se coloca de maneira fundamental,
posteriormente essa transformação se torna mais radical. Com a constituição
144 Freud e a interpretaçáo psicanalfiica
1 A consiituição da clfnica psicanalftica 145

da teoria da sexualidade infantil em 1905, a formulação freudiana se desdobra sexual produzida no plano do corpo biológico não teria acedido ao corpo
ainda mais, chegando mesmo a uma inversão completa dos postulados de representado e, por isso, não circularia num quadro de representações. As
Beard. Em 1908. Freud formula que a "doença nervosa" dos "tempos mo- perturbações sintomáticas se originariam justamente desta impossibilidade,
dernos" não se devia primariamente ao impacto genérico do "processo civi- com os signos revelando o extravasamento, para o plano do corpo somático,
lizatório" sobre as pessoas. Esta incidência da "civilização" sobre os indivídu- do que não pode circular no plano psíquico, onde poderia haver um canal
os era intermediada pelas formas básicas de constrangimentos que o estilo adequado de descarga. Enfim, o mecanismo das neuroses atuais seria somá-
"moderno" da existência social impunha Ps demandas originárias da sexua- tico, inexistindo elaboração psíquica da excitação sexual.
lidade. Enfim, a neurastenia de Bcard seria uma estrutura psicopatológica A oposição entre as neuroses atuais e as psiconeuroses, sustentada pela
privilegiada na história da modernidade, ao lado de outras organizações ptura epistemológica entre o corpo biológico e o corpo representado, indica
neuróticas, na medida em que remetia fundamentalmente à forma de orde- cisivamente a importância, no pensamento freudiano, do critério da repre-
nação da "moral sexual" dos "tempos moderno^".^^ ntação para as partilhas que se realizam no universo da loucura. Indica
Antes desse desdobramento, outros efeitos importantes foram produzidos ,,mbém que este critério funciona para estabelecer os limites epistemológicos
pelo deslocamento do espaço teórico em que se pensava a neurastenia. Inci- do campo psicanalítico e suas fronteiras com o campo médico-psiquiátrico. A
sões fundamentais não só construíram uma nova figura da neurastenia. Deram articulação entre essas formulações se torna ainda mais fundamental se consi-
origem a outra figura. a neurose de angústia. também situada no plano do derarmos que o critério epistemológico do corpo representado é o correlato da
corpo biológico mas caracterizada por outra forma de disfunção sexual. metodologia freudiana de investigação, baseada na análise de representações.
Na neurastenia haveria um "excesso de perda" da energia sexual somática, Com efeito, a psicanálise só pode examinar sintomas que se inscrevam no
produzindo conseqüentemente o esvaziamento sexual do indivíduo. Na neu- campo da representação, contribuindo para a sua superação e desaparecimento
rose de angústia existiria a "contenção excessiva" da excitação sexual so- através de uma análise de representações mentais, das forças nelas investidas
mática, ou a impossibilidade de incorporá-la no registro psíquico. Neste caso, e da dinâmica interna deste espaço de representações. Só são passíveis de
a excitação levaria à produção de sintomas somáticos pela impossibilidade de elucidação e de resolução clínica pela psicanálise os sintomas produzidos
através de mecanismos psíquicos. Entre, de um lado, a partilha, a ordenação e
Enfim, a oposição corpo represeniado/corpo biológico permite configurar a o estabelecimento de diferenças estruturais no campo da loucura e, de outro,
existência de dois grupos de neuroses - as psiconeumses e as neuroses o método freudiano de investigação em vias de constituição existe uma rela-
atuais. A histeria e a neurose obsessiva estariam entre as primeiras. enquanto ção fundamental, que marca inclusive os próprios limites epistêmicos de va-
a neurastenia e a neurose de angústia pertenceriam\ao segundo g r ~ p o . ~ ~ - ~ " lidade deste método.
Com isso, podemos delinear as incisões realizadas pela segunda operação Esse eixo teórico estará sempre presente no tratamento dado por Freud à
teórica. Nesta clivagem do território da loucura se insere também a sexuali- oposição entre grupos de neurose, que nunca é pensada como um sistema
dade, que circularia de diferentes mineiras no campo da representação e no metafísico de essências. O pensamento freudiano procura estabelecer relações
campo do corpo biológico, cujas relações são complexas, conforme assina- muito importantes entre as estruturas atuais e as representadas. Consideradas
laremos adiante. Cabe ressaltar, no entanto, que o corpo representado é sexua- de forma pura, as neuroses atuais e as psiconeuroses são construções teóricas,
lizado e que o seu investimento sexual não é o mesmo que estaria presente no tipos ideais. Mesmo assim, em certas situações limites, podem existir empi-
corpo biológico. A articulação entre corpo representado e traumatismo sexual, ricamente. Isso, no entanto, não é comum, já que na prática clínica as neuroses
que apontamos anteriormente, já indicava este investimento sexualizado do são principalmente mistas, apresentando características das neuroses atuais e
corpo representado. das psiconeuroses.
A sexualidade circulante no campo da representação é que estaria em Nesta perspectiva, as neuroses atuais são causas precipitantes das psico-
questão na produção dos sintomas das psiconeuroses, as únicas formas de neuroses, pois podem desequilibrar o campo da representação e levar à or-
neurose passíveis de uma psicanálise, justamente porque seriam constituídas denação da tessitura psíquica típica dos sintomas psiconeuróticos.37~Ba-
por mecanismos psíquicos. Nas neuroses atuais. ao contrário, a excitação seando-se nas associações presentes nos quadros clínicos ou na analogia sin-
146 Frcud c a intcrprclaçáo psicanalíiica A constiiuição da clfnica psicanalítica 147

tomática, Freud estabelece relações - inicialmente esparsas mas posterior- corpo biológico ao corpo erógeno
mente sistemáticas - entre os dois grupos: entre a neurose de angústia e a
histeria, e entre a neurastenia e a neurose obsessiva.
Subjacente às relações de oposição estrutural e de articulação clínica entre
O pensamento freudiano sempre sustentou esta articulação, num quadro de
diferentes tipos de neurose, o pensamento freudiano discute algo mais funda-
oposições básicas. Em Para introduzir o narcisismo, de 1914, Freud postula
mental: a forma de articulação entre o corpo biológico e o corpo representado.
a existência de uma terceira neurose atual - a hipocondria - que estaria
Esse pensamento não se ocupa do corpo anátomo-patológico, marcando
articulada à genealogia das psiconeuroses narcísicas, mantendo as mesmas
assim sua ruptura epistemológica com a ordem médica. Superado, o corpo
articulações ante ri ore^.^^ Porém, a existência da articulação entre grupos di-
anatômico se encontra com o corpo biológico, que está inserido na problemá-
ferentes de neuroses não significa absolutamente o fim da oposição estrutural
tica de um campo teórico original, que pretende estabelecer as relações funda-
entre duas ordens diversas de realidade.
mentais entre o este corpo e o corpo representado. Assinalamos anteriormente
A articulação entre diferentes tipos de neurose permite apreender a com-
que desde 1891, quando estava trabalhando na temática da afasia, Freud se
plexidade da realidade clínica, mas nem por isso a diferença estrutural desa-
encontrava na trilha dessa reformulação teórica fundamental, na medida em
parece. A análise das representações mentais permanece como um procedi-
mento válido apenas para os sintomas que se situam no campo da represen- que superava a teoria localizadora da afasia e postulava que a especificidade
deste fenômeno estava numa relação original entre o corpo funcional e o corpo
tação, e a psicanálise como método de investigação nada pode fazer diante dos
represen tad~.~O
sintomas da neurose atual: como qualquer médico, o psicanalista pode "dar
Nesse momento do seu percurso, o pensamento freudiano se mantém na
conselhos" sobre a prática sexual desses pacientes, sem situar-se no entanto
linha de interpretação inaugurada em Sobre a afasia, mas, sem dúvida, de
no campo psicanalítico propriamente dito, já que se trata de fenômenos que
forma mais ousada, pois agora a relação entre o corpo biológico e o corpo
estão inscritos numa outra ordem de realidade.
representado está sendo pensada num nível mais genérico e, portanto, mais
Reconhecendo-se a existência desse sistema básico de oposições, pode-se
fundamental. Mas, para que se pudesse circunscrever de maneira rigorosa o
acrescentar outra nota nestas relações entre diferentes tipos de neurose, tor-
campo da psique como objeto de investigação, seria preciso encontrar a arti-
nando mais complexa e mesmo invertendo a genealogia já referida, como fez
culação teórica entre os planos biológico e representado.
o próprio Freud num momento posterior. Se a neurose atual é capaz de de-
Por isso, a função sexual - e não todas as funções biológicas do orga-
sequilibrar o sistema psíquico de representações e levar à emergência da psi-
nismo humano - é o que interessa especificamente a Freud na relação entre
coneurose, a articulação inversa também é possível. Com efeito, uma forma de
corpo biológico e corpo representado. Em primeiro lugar, na configuração
psiconeurose pode estar na base de uma neurose atual, não como a sua causa
clínica e na etiologia das neuroses é esta função que aparece como uma temá-
precipitante mas como uma estrutura mental que funciona como sua condição
tica empiricamente relevante. Além disso, por suas características especifica-
de possibilidade.
mente humanas, a função sexual do sujeito parece ser a única, entre as diver-
Tomando novamente como exemplo a figura da neurose de angústia, re-
sas funções biológicas, cuja realização funcional no organismo depende de
cordemos que um de seus eixos de estruturação é a impossibilidade de incor-
uma passagem pelo registro da representação psíquica! Revela-se assim a
porar a excitação sexual ao plano da representação, o que pode ocorrer por
singularidade do organismo humano no plano biológico e finalmente se en-
várias razões, até mesmo por uma psiconeurose. Então, o recalcamento sexual
contra a via privilegiada para investigar esta passagem do registro corporal
pode funcionar como condição de possibilidade de uma neurose atual que,
para o registro psíquico.
com a estase da economia sexual, fornece em contrapartida novos elementos
A inquirição teórica decisiva se realiza em torno do sexual - especial-
para o intrincado sistema de representações da psiconeurose. Enfim, pelo
mente, de sua passagem do plano funcional para o da representação psíquica4'
mesmo caminho demonstrativo, poderíamos assinalar outros pontos no que se
-, na medida em que apenas por este canal pode emergir e ser delimitada a
refere à neurastenia: algo situado no campo da representação mental impos-
problemática humana original e específica. Esta maneira de colocar a questão
sibilita a incorporação psíquica da excitação sexual do corpo biológico e sua
das relações entre corpo biológico e corpo representado abre a via metodo-
transformação.
lógica para constituir o conceito de pulsão (Trieb), que na economia interna da

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