Você está na página 1de 8

Tomaz Tadeu da Silva

]) () (� 1J l\lI ]� l\T rl, () S


de I ]) ]� l\T rl, I ]) J-\ ]) ]�
Uma introdução às teorias do currículo
Copyright© 1999 Tomaz Tadeu da Silva
Copyright© 1999 Autêntica Editora

Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora. Nenhuma parte desta publicação
poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia
xerográfica, sem a autorizaçào prévia da Editora.

EDITORA RESPONSÁVEL
Rejane Dias
EDITORA ASSISTENTE
Cecília Martins
RE\aSAO
Roberto Arreguy Maia e Cecília Martins
CAPA
Jairo Alvarenga Fonseca, composição sobre as pinturas "The teacher (sub a)" e
''Jesus - Serene", de Marlene Dumas, reproduzidas com autorização da artista,
do livro Marlene Dumas, de autoria de Dominic van den Boogerd, Barbara Bloom
e Mariuccia Casadio, publicado pela editora Phaidon.
DIAGRAMAÇÃO
Waldênia Alvarenga

Silva, Tomaz Tadeu da


S586d Documentos de identidade; uma introdução às teorias do currículo/ Tomaz
Tadeu da Silva . -3. ed.; 8. reimp. -Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016.
156 p.
ISBN 978-85-86583-44-5
1. Educação 2. Currículos escolares. 1. T ítulo

CDU 37
371.214.1

• GRUPO ÂUTIMTICÂ

Belo Horizonte Rio de Janeiro São Paulo


Rua Carlos Turner, 420 Rua Debret, 23, sala 401 Av. Paulista, 2.073,
Silveira . 31140-520 Centro . 20030-080 Conjunto Nacional, Horsa 1
Belo Horizonte . MG Rio de Janeiro . RJ 23° andar . Conj. 2301 .
Tel.: (55 31) 3465 4500 Tel.: (55 21) 3179-1975 Cerqueira César . 01311-940
São Paulo . SP
Tel.: (55 11) 3034 4468
www.grupoautentica.com.br
Currículo: uma questão de saber,
poder e identidade

A aparente disjunção entre uma te­ de poder tais como os analisados por
oria crítica e uma teoria pós-crítica do Foucault, é também evidente que conti­
currículo tem sido descrita como uma nuamos sendo também governados, de
disjunção entre uma análise fundamentada forma talvez menos sutil, por relações e
numa economia política do poder e uma estruturas de poder baseadas na proprie­
teorização que se baseia em formas tex­ dade de recursos econômicos e culturais.
tuais e discursivas de análise. Ou ainda, O poder econômico das grandes corpo­
entre uma análise materialista, no sentido rações industriais, comerciais e financeiras
marxista, e uma análise textualista. A não pode ser facilmente equacionado com
cisão pode ser descrita ainda como uma as formas capilares de poder tão bem
cisão entre a hipótese da determinação descritas por Foucault. De forma similar,
econômica e a hipótese da construção dis­ o poder político e militar de nações im­
cursiva; ou entre, de um lado, marxismo periais como os Estados Unidos não pode
e, de outro, pós-estruturalismo e pós-mo­ ser facilmente descrito pela "microfísica"
dernismo.A tensão entre os conceitos de foucaultiana do poder.
ideologia e de discurso, mesmo que eles É também verdade que a teorização
se combinem em algumas análises, é uma pós-crítica tornou problemáticas certas
demonstração dessa fratura no campo da premissas e análises da teoria crítica que a
teoria social crítica. precederam. Assim, parece incontestável,
É preciso reconhecer que a chamada por exemplo, o questionamento lançado
"virada linguística" pode nos ter levado às pretensões totalizantes das grandes nar­
a negligenciar certos mecanismos de rativas. Não há como refutar, tampouco,
dominação e poder que tinham sido deta­ a crítica feita tanto pelo pós-modernismo
lhadamente analisados pela teoria crítica. quanto pelo pós-estruturalismo ao sujeito
Embora seja evidente que somos cada vez autônomo e centrado das narrativas mo­
mais governados por mecanismos sutis dernas. No campo mais especificamente

145
educacional, os questionamentos feitos conceito de ideologia tem ajudado a desfa­
aos impulsos emancipatórios de certas zer alguns dos embaraços do legado das te­
pedagogias críticas, na medida em que orias críticas. Particularmente, a oposição
estão fundamentados no pressuposto do entre ideologia e ciência, que, explícita ou
retorno a algum núcleo subjetivo essencial implicitamente, fazia parte da conceptuali­
e autêntico, dificilmente podem deixar de zação do conceito de ideologia desenvol­
ser levados em consideração. vido por várias vertentes marxistas, não
As teorias pós-críticas também pode, depois do pós-estruturalismo, ser
estenderam nossa compreensão dos tão facilmente sustentada. Depois do pós­
processos de dominação. Como procu­ -estruturalismo e particularmente depois
rei demonstrar em alguns dos tópicos de Foucault,a oposição entre ciência e ide­
deste livro, a análise da dinâmica de ologia, fundamentada como é na oposição
poder envolvida nas relações de gênero, ''verdadeiro-falso", simplesmente se desfaz.
etnia, raça e sexualidade nos fornece um Nesse sentido, as teorias pós-críticas, ao
mapa muito mais completo e complexo contrário das acusações que lhes são feitas,
das relações sociais de dominação do que ao deslocarem a questão da verdade para
aquele que as teorias críticas, com sua aquilo que é considerado verdade, tornam
ênfase quase exclusiva na classe social, o campo social ainda mais politizado. A
nos tinham anteriormente fornecido. A ciência e o conhecimento, longe de serem
concepção de identidade cultural e social o outro do poder, são também campos de
desenvolvida pelas teorias pós-críticas nos luta em torno da verdade. Parece, pois,
tem permitido estender nossa concepção inquestionável que, depois das teorias pós­
de política para muito além de seu sentido críticas, a teoria educacional crítica não pode
tradicional - focalizado nas atividades ao voltar a ser simplesmente "crítica".
redor do Estado. A conhecida consigna "o O legado das teorias críticas, sobretudo
pessoal também é político", difundido pelo aquele de suas vertentes marxistas, não
movimento feminista, é apenas um exemplo pode, entretanto, ser facilmente negado.
dessa produtiva tendência. Não se pode dizer que os processos de
Não se pode tampouco negar que a dominação de classe, baseados na explo­
crítica feita pelas teorias pós-críticas ao ração econômica, tenham simplesmente

146
desaparecido. Na verdade, eles continuam mos.Ambas nos ensinaram, de diferentes
mais evidentes e dolorosos do que nunca. formas, que o currículo é uma questão de
Se alguma coisa pode ser salientada no saber, identidade e poder.
glorificado processo de globalização é pre­ Depois das teorias críticas e pós­
cisamente a extensão dos níveis de explo­ críticas do currículo torna-se impossível
ração econômica da maioria dos países do pensar o currículo simplesmente através
mundo por um grupo reduzido de países de conceitos técnicos como os de ensino
nos quais se concentra a riqueza mundial. e eficiência ou de categorias psicológicas
Nesse contexto, nenhuma análise textual como as de aprendizagem e desenvolvimento
pode substituir as poderosas ferramentas ou ainda de imagens estáticas como as de
de análise da sociedade de classes que nos grade curricular e lista de conteúdos. Num
foram legadas pela economia política mar­ cenário pós-crítico, o currículo pode ser
xista. As teorias pós-críticas podem nos ter todas essas coisas, pois ele é também aquilo
ensinado que o poder está em toda parte que dele se faz, mas nossa imaginação está
e que é multiforme. As teorias críticas não agora livre para pensá-lo através de outras
nos deixam esquecer, entretanto, que algu­ metáforas, para concebê-lo de outras for­
mas formas de poder são visivelmente mais mas, para vê-lo de perspectivas que não se
perigosas e ameaçadoras do que outras. restringem àquelas que nos foram legadas
Ao questionar alguns dos pressupos­ pelas estreitas categorias da tradição.
tos da teoria crítica de currículo, a teoria Com as teorias críticas aprendemos que
pós-crítica introduz um claro elemento de o currículo é, definitivamente, um espaço
tensão no centro mesmo da teorização de poder. O conhecimento corporificado
crítica. Sendo "pós", ela não é, entretanto, no currículo carrega as marcas indeléveis
simplesmente superação. Na teoria do das relações sociais de poder. O currículo
currículo, assim como ocorre na teoria é capitalista. O currículo reproduz - cultu­
social mais geral, a teoria pós-crítica deve ralmente - as estruturas sociais.O currículo
se combinar com a teoria crítica para tem um papel decisivo na reprodução da
nos ajudar a compreender os processos estrutura de classes da sociedade capitalista.
pelos quais, através de relações de poder O currículo é um aparelho ideológico do
e controle, nos tornamos aquilo que so- Estado capitalista. O currículo transmite

147
a ideologia dominante. O currículo é, em e histórica que faz com que o currículo seja
suma, um território político. dividido em matérias ou disciplinas, que
As teorias críticas também nos en­ o currículo se distribua sequencialmente
sinaram que é através da formação da em intervalos de tempo determinados,
consciência que o currículo contribui para que o currículo esteja organizado hierar­
reproduzir a estrutura da sociedade capi­ quicamente ... É também através de um
talista. O currículo atua ideologicamente processo de invenção social que certos
para manter a crença de que a forma capi­ conhecimentos acabam fazendo parte do
talista de organização da sociedade é boa currículo e outros não. Com a noção de
e desejável. Através das relações sociais que o currículo é uma construção social
do currículo, as diferentes classes sociais aprendemos que a pergunta importante
aprendem quais são seus respectivos papéis não é "quais conhecimentos são válidos?",
nas relações sociais mais amplas. Há uma mas sim "quais conhecimentos são consi­
conexão estreita entre o código dominante derados válidos?".
do currículo e a reprodução de formas de As teorias pós-críticas ampliam e, ao
consciência de acordo com a classe social. mesmo tempo, modificam aquilo que as
A formação da consciência - dominante ou teorias críticas nos ensinaram.As teorias
dominada - é determinada pela gramática pós-críticas continuam a enfatizar que o
social do currículo. currículo não pode ser compreendido
Foi também com as teorias críticas sem uma análise das relações de poder
que pela primeira vez aprendemos que nas quais ele está envolvido. Nas teorias
o currículo é uma construção social. O pós-críticas, entretanto, o poder torna­
currículo é uma invenção social como qual­ se descentrado. O poder não tem mais
quer outra: o Estado, a nação, a religião, o um único centro, como o Estado, por
futebol... Ele é o resultado de um processo exemplo. O poder está espalhado por
histórico. Em determinado momento, toda a rede social.As teorias pós-críticas
através de processos de disputa e conflito desconfiam de qualquer postulação que
social, certas formas curriculares - e não tenha como pressuposto uma situação
outras - tornaram-se consolidadas como o finalmente livre de poder. Para as teorias
currículo. É apenas uma contingência social pós-críticas o poder transforma-se, mas

148
não desaparece. Nas teorias pós-críticas, currículo.Todo conhecimento depende da
o conhecimento não é exterior ao poder, significação e esta, por sua vez,depende de
o conhecimento não se opõe ao poder. O relações de poder. Não há conhecimento
conhecimento não é aquilo que põe em fora desses processos.
xeque o poder: o conhecimento é parte As teorias pós-críticas continuam enfati­
inerente do poder. Em contraste com as zando o papel formativo do currículo. Dife­
teorias críticas, as teorias pós-críticas não rentemente das teorias críticas, entretanto,
limitam a análise do poder ao campo das as teorias pós-críticas rejeitam a hipótese de
relações econômicas do capitalismo. Com uma consciência coerente, centrada, unitá­
as teorias pós-críticas, o mapa do poder ria.As teorias pós-críticas rejeitam, na ver­
é ampliado para incluir os processos de dade, a própria noção de consciência, com
dominação centrados na raça, na etnia, no suas conotações racionalistas e cartesianas.
gênero e na sexualidade. Elas desconfiam também da tendência das
Embora as teorias críticas sustentassem teorias críticas a postular a existência de
que o currículo é uma invenção social, elas um núcleo subjetivo pré-social que teria
ainda mantinham uma certa noção realista sido contaminado pelas relações de poder
do currículo. Se a ideologia cedesse lugar do capitalismo e que seria libertado pelos
ao verdadeiro conhecimento, o currículo procedimentos de uma pedagogia crítica.
e a sociedade seriam finalmente emanci­ Para as teorias pós-críticas, a subjetivida­
pados e libertados. Se pudéssemos nos de é já e sempre social. Não existe, por
livrar das relações de poder inerentes ao isso, nenhum processo de libertação que
capitalismo, o conhecimento corporificado torne possível a emergência - finalmente
no currículo já não seria um conhecimen­ - de um eu livre e autônomo. As teorias
to distorcido e espúrio. Com sua ênfase pós-críticas olham com desconfiança para
pós-estruturalista na linguagem e nos pro­ conceitos como alienação, emancipação,
cessos de significação, as teorias pós-crí­ libertação, autonomia, que supõem, todos,
ticas já não precisam da referência de um uma essência subjetiva que foi alterada e
conhecimento verdadeiro baseado num precisa ser restaurada.
suposto "real" para submeter à crítica o Em suma, depois das teorias críticas
conhecimento socialmente construído do e pós-críticas, não podemos mais olhar

149
para o currículo com a mesma inocência
de antes. O currículo tem significados
que vão muito além daqueles aos quais
as teorias tradicionais nos confinaram.
O currículo é lugar, espaço, território. O
currículo é relação de poder. O currículo
é trajetória, viagem, percurso. O currículo
é autobiografia, nossa vida, curriculum vitae:
no currículo se forja nossa identidade. O
currículo é texto, discurso, documento.
O currículo é documento de identidade.

ISO

Você também pode gostar