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29/03/2020 Boécio e Ramon Llull: A Roda da Fortuna, princípio e fim dos homens

Boécio e Ramon Llull: A Roda da


Fortuna, princípio e fim dos homens

Ricardo da Costa
Universidade Federal do Espírito Santo
Vitória

Adriana Zierer
Universidade Federal Fluminense
Niterói

La Roue de la Fortune. Calque de Miniatures de l’Hortus Deliciarum de


Herrade de Landsberg.
Paris: Bibliothèque Nationale de France (Dept. Estampes Ad 144 a)

O simbolismo da Roda da Fortuna na arte medieval pode ser explicado


através da iluminura do Hortus Deliciarum[1], com seus quatro estágios
simbolizados pelos quatro personagens em torno da Roda: regnabo (“eu
devo reinar”: figura em cima, do lado esquerdo da Roda, com o braço
direito erguido), regno (“eu reino”: figura em cima da roda,
freqüentemente coroada, para significar o reinado), reganvi (“eu reinei”:
figura que está do lado direito da roda, caindo da graça), sum sine regno
(“eu não tenho reino”: figura na base da roda que perdeu completamente

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os favores da Fortuna. Esta pessoa é as vezes completamente jogada da


roda ou esmagada por esta, sem nenhuma chance de reinar de novo)[2].

Vista pelos antigos como deusa do acaso, a Roda da Fortuna na Idade


Média representava tanto a Roda da Vida, que elevava o homem até o
alto antes de deixá-lo cair de novo, como a Roda do Acaso, que não
parava nunca de rodar e indicava a mudança perpétua que caracteriza a
natureza humana[3].

Num mundo inseguro como o da Idade Média, onde os homens viviam


em constante perigo, com medo dos vivos e dos mortos, acreditava-se
que o destino dos homens, mesmo o dos reis e imperadores, era
determinado pela Fortuna. O termo parece ser uma evolução de duas
diferentes deusas antigas, provindas da cultura greco-romana, Fors (“a
que traz”, relacionada ao conceito de providência) e Fortuna (ligada à
fertilidade, à agricultura e às mulheres). Esta última tinha traços
similares à Tyche, deusa grega associada ao acaso e à sorte. Em algum
momento, a distinção entre Fors e Fortuna diminuiu com a criação de
uma única deusa, Fors (Fortuna), herdando as noções de sorte, destino e
acaso de suas predecessoras. Existiam pelo menos três templos
dedicados à deusa Fors em Roma e um festival lhe era dedicado em 24
de junho[4]. Ela era apresentada freqüentemente segurando uma
cornucópia e um timão, sobre uma esfera ou uma roda, e simbolizava seu
poder sobre a vida das pessoas que consideravam possuir fortuna se
tivessem sorte ou infortúnio[5].

O melhor exemplo desta representação na Idade Média se encontra


justamente no período de vida de Ramon Llull (1232-1316)[6], na
coleção de canções germânicas profanas denominada Carmina
Burana[7], uma estimulante exaltação à natureza em forma de fortes
tons primários, que possui uma canção a respeito da Fortuna.

A obra Carmina Burana transmitiu, por tradição, a obra do Arquipoeta


( † c.1165), um latino anônimo, provavelmente da Renânia, que foi
patrocinado pelo arcebispo de Colônia e chanceler de Frederico Barba-
Ruiva, Reinaldo de Dassel. Sua obra mais famosa, Confessio, expressou
os paradoxos e o brilho do renascimento cultural do século XII, com sua
confiança na razão e na natureza. Nela sobressaem-se vigorosos
impactos rítmicos. Em duas canções (CB 16, CB 17) lamenta-se a pouca
estabilidade da Fortuna, que com seu sobe-e-desce traz alegrias e
desgraças para os homens:
“O FORTUNA” (CB 17)

I
O Fortuna, Ó Fortuna

velut luna tal a Lua,

statu variabilis, uma forma variável!


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semper crescis Sempre enchendo

aut decrescis; Ou encolhendo:

vita detestabilis Ó que vida execrável!

nunc obdurat Pouco duras,

et tunc curat Quando curas

ludo mentis aciem, De nossa mente as mazelas;

egestatem, A pobreza,

potestatem A riqueza,

dissolvit ut glaciem. Tu derretes ou congelas.

II
Sors immanis Bruta sorte,

et inanis, És de morte:

rota tu volubilis, Tua roda é volúvel,

status malus, Benfazeja,

vana salus Malfazeja,

semper dissolubilis, Toda sorte é dissolúvel.

obumbrata Disfarçada

et velata De boa fada,

michi quoque niteris; Minha ruína sempre queres;

nunc per ludum Simulando

dorsum nudum Estar brincando,

fero tui sceleris. Minhas costas nuas feres.

III
Sors salutis Gozar saúde,

et virtutis Mostrar virtude:

michi nunc contraria, Isto escapa a minha sina;

est affectus Opulento

et defectus Ou pulguento

semper in angaria. O azar me arruína.

Hac in hora Chegou a hora,

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sine mora Convém agora,

corde pulsum tangite; O alaúde dedilhar;

quod per sortem A pouca sorte

sternit fortem, Do homem forte

mecum omnes plangite! Devemos todos lamentar.[8]

Símbolo da mutação, das alternâncias da vida cotidiana, esta imagem


percorreu toda a Idade Média, que a recebeu como herança de Boécio[9].
Este paper trata da imagem da Fortuna em Boécio, na obra Consolatio
Philosophiae, e de como Ramon Llull utiliza esta metáfora para criticar
os novos valores sociais dos burgueses citadinos do século XIII.

O tema da Fortuna percorre toda a Consolatio Philosophiae (524) —


depois da Bíblia e da Regra de São Bento, a obra mais lida na Idade
Média. As circunstâncias da redação da obra explicam o destaque dado
ao tema, pois Boécio a escreveu na prisão, após ter caído em desgraça e
sido preso por motivos políticos. Na época, a Itália era governada pelo
rei godo Teodorico, que era ariano[10], que, num primeiro momento,
desejou demonstrar tolerância religiosa com os católicos, nomeando
elementos da aristocracia romana, como Boécio, para cargos no governo.
Porém, mais tarde, Boécio defendeu publicamente Albino, um senador
romano acusado de conspirar com Bizâncio contra o rei godo, e foi tido
também por traidor. Desde 522 Mestre de Ofícios de Teodorico, Boécio
foi então preso (524) e levado de Ravena para Pavia. Para Teodorico,
este era um sinal que a aristocracia romana o estava traindo. Com um
sádico requinte de crueldade, Teodorico determinou que os juízes do
processo de Boécio fossem os mesmos senadores romanos que haviam
sido fiadores em sua defesa de Albino[11].

A Consolatio, genial diálogo em forma socrática, mostra-se ainda mais


interessante pelas circunstâncias de sua redação, pois foi escrita entre
uma sessão e outra de tortura, quando uma correia de couro era apertada
em torno do crânio do filósofo, fazendo saltar os globos oculares das
órbitas, fato registrado numa crônica anônima de Ravena — e
confirmado pela Historia Secreta de Procópio[12]. No texto de Boécio, o
próprio autor também menciona os efeitos da tortura, como por exemplo
uma perda passageira da memória[13]. Graças às visitas de seu sogro
Símaco[14], conseguiu fazer chegar o original à posteridade.

Na Consolatio, Boécio conversa com a Filosofia, e lamenta a sua sorte,


mostrando-lhe durante boa parte do diálogo, a malévola e enganosa
Fortuna[15], que trata cruelmente os homens, sem se importar com as
acusações a um inocente[16]. Por causa dela, os homens erram em seus
julgamentos, pois, ao invés de analisar os méritos das ações passadas, só
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vêem os caprichos da Fortuna e acreditam que esse é o desejo natural


dos acontecimentos:

Mas gostaria apenas de dizer que o fardo mais pesado com que a Fortuna
possa afligir alguém é este: que as olhos do povo estaja sendo justamente
castigado quem na verdade é inocente[17].

No entanto, a Filosofia repreende Boécio:

Pensas que a Fortuna mudou a teu respeito? Enganas-te. Ela sempre tem
os mesmos procedimentos e o mesmo caráter. E, quanto a ti, ela
permanece fiel em sua inconstância. Ela era a mesma quando te
lisonjeava, ou quando fazia de ti seu joguete prometendo-te miragens
[...] seus jogos são funestos [...] e é precisamente essa faculdade de
passar de um extremo ao outro que caracteriza a Fortuna que deve fazer
com que a desprezemos, sem temê-la ou desejá-la[18].

A Filosofia então se coloca no papel da Fortuna para que Boécio


compreenda melhor sua sorte. Neste momento, o autor se vale da
metáfora da Roda para explicar o sentido do movimento da Fortuna:

E quanto a mim, é o desejo sempre insatisfeito dos homens que pretende


me obrigar a fazer prova de uma constância incompatível com minha
própria natureza! Minha natureza, o jogo interminável que jogo é este:
virar a Roda [da Fortuna] incessantemente, ter prazer em fazer descer o
que está no alto e erguer o que está embaixo: Sobe se tiveres vontade,
mas com uma condição: que não consideres injusto descer, quando assim
ditares as regras do jogo. Ignoravas mesmo a minha maneira de agir?
[19]

Por esse motivo, a Fortuna propicia aos homens um jogo, um grande


espetáculo[20]. Pois esse é o sentido da vida, um teatro, o teatro da
vida[21]. Vive-se uma grande peça, onde se desenvolvem tumultuadas e
violentas relações pessoais que perpassavam a prática social.

Esta visão de mundo foi igualmente recuperada na Idade Média. Por


exemplo, a arte de Brueghel (1525?-1569) retratou a cultura rural
medieval e, especialmente, o sentido da teatralidade da existência
humana: a vida se desenvolve em diferentes cenários, onde diversos
personagens atuam seus múltiplos papéis existenciais[22]. Trata-se de
um testemunho que une o real, o fantástico, o cotidiano vivido e o
imaginário temido. Um depoimento angustiado, mórbido, dilacerante,
pessimista. Um famoso cartaz da época anunciava o teatro do mundo:
“Theatrvm orbis terracvm”. Pois todos atuam num cenário e giram como
os rádios de uma roda. Sempre foi assim e a roda seguirá girando
eternamente[23].

Esse prisma via a vida como um ritual, cheio de significação teológica,


mística e carismática. Essa espécie de encenação comandava o real
através do imaginário: é o que Georges Balandier chamou de

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teatrocracia, o conjunto de todas as manifestações da existência social, o


tribunal teatral[24]. A Roda da Fortuna apenas ressaltava este tipo
específico de farsa que organizava os poderes constitutivos e as ações
sociais.

Por esses motivos, a Filosofia de Boécio afirma que os homens não


devem procurar nada na Fortuna, pois não há nada nela que mereça ser
procurado. Não há nada nela que seja intrinsecamente bom, já que ela
beneficia pessoas más e não é capaz de tornar bom aquele que a ela se
associa[25].

Em contrapartida, a Filosofia mostra a Boécio que a Fortuna é benéfica


aos seres humanos, pois esclarece a eles quando se desmascara e mostra
seus métodos de ação. Ela possui, assim, duas faces: uma, sedutora e
atraente, caprichosa e flutuante, quando mente com sua aparência de
felicidade; outra, comedida e sincera, pois mostra os verdadeiros
amigos, distinguindo a franqueza da hipocrisia. Assim, a Fortuna
comporta uma parte de bem e uma parte de mal[26]. Uma engana, a
outra instrui[27]. Pois a amizade é o tesouro mais sagrado que existe,
pois os amigos são dados pela virtude e não pela Fortuna[28].

Apesar do momento adverso pelo qual estava passando, o autor, ao longo


da obra, mostrou possuir uma visão positiva acerca do universo: o
mundo caminha para o bem e aqueles que estão desprovidos da Fortuna
fugaz deste mundo (luxo, riquezas, poder) estão livres se mantiverem-se
bons e virtuosos. Desta forma, toda a injustiça sofrida por Boécio é
atenuada pelo sentimento de que atingirá o verdadeiro bem (Deus) na
eternidade[29]. Boécio também explica porque motivo a Fortuna é
inconstante. Como o desejo pela boa fortuna avilta os homens, a
Providência Divina envia males, misturados com bens, para que os bons
não se corrompam ou para reforçar as virtudes[30]. Aos maus é deixado
o livre-arbítrio para escolherem o bem, graças ao poder que muitas vezes
possuem em suas mãos (como por exemplo, o rei Teodorico), mas se
persistirem no mal serão mais tarde punidos pelo Juiz Supremo, Deus,
por toda a eternidade.

Veremos agora como a Fortuna se apresenta na obra do filósofo Ramon


Llull e de como se aproxima do pensamento de Boécio.

Na sua Ars, na hora de fazer aplicações, Ramon Llull define cem formas
abstratas, que ele chama generalíssimas. Na forma 61, Ramon trata da
fortuna e do afortunado:

A fortuna é acidente, e por isso encontra-se fora da segunda espécie da


regra C. E é um hábito, com o qual a pessoa afortunada se dispõe
acidentalmente para aquela boa fortuna; como o caminhante que, indo
em peregrinação, encontra ouro ao acaso. A própria fortuna é, sem
dúvida, pela segunda espécie da regra D; e tem ser no sujeito no qual se
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encontra, pela quarta espécie da regra C. E é o que é pela terceira espécie


da regra D; e encontra-se fora do princípio, do meio e do fim, da
concordância e da contrariedade. Não se encontra, contudo, fora da
menoridade e maioridade. E neste passo, o entendimento conhece que a
fortuna tem pouco de “ser” enquanto a consideramos em si mesma, mas
tem muito “ser” enquanto a consideramos em relação ao afortunado[31].

Para Ramon, a fortuna é um acidente, portanto não é substância. Em seu


sistema de pensamento, Llull faz dez perguntas para saber de modo
completo o que são as coisas. Ele chama estas perguntas de regras. Na
segunda regra, chamada de C, pergunta sobre a essência das coisas. Por
sua vez, esta questão desdobra-se em quatro espécies. Na segunda
espécie, Ramon se pergunta o que a coisa tem em si mesma
essencialmente e naturalmente, coisa sem a qual não poderia ser. Aí
então encontra-se a fortuna. Como ela é acidental no sujeito, encontra-se
então fora da segunda espécie da regra C. A fortuna para Ramon é um
hábito, hábito esse com o qual a pessoa afortunada se dispõe
acidentalmente para aquela boa fortuna.

O exemplo que Ramon dá é o do peregrino, que em sua caminhada


encontra ouro. Então afirma que a fortuna é pela segunda espécie da
regra D. Enquanto a regra C pergunta sobre a essência das coisas, a
regra D pergunta pela materialidade da coisa. Desdobra-se em três
espécies; a segunda espécie pergunta “de que é algo feito ou
constituído?”. Por exemplo, o prego é constituído de ferro e o homem de
corpo e alma.

De que então é constituída a materialidade da fortuna? Ramon passa por


essa questão, relacionando o sujeito à quarta espécie da regra C — que
pergunta pelo “que tem uma coisa na outra” (por exemplo, o
entendimento, no objeto que contempla, se pode ter pecado).

Por esta quarta espécie da regra C vê-se que a fortuna está no sujeito
que tem a sorte de tê-la. Ela está no sujeito sem que ele queira, por isso
ele é pessoa afortunada. A terceira espécie da regra D pergunta “de
quem é?” a coisa, como por exemplo, “o reino é do rei?”, ou “o acidente
é da substância?”. No caso da fortuna, esta não existiria sem a pessoa
afortunada, pois, para Ramon, ela não existe em si mesma.

Neste aspecto, Ramon não se vale da fortuna em si; pelo contrário,


transfere o centro da atenção para a pessoa afortunada: é nela que o
filósofo encontra o principio, meio, fim, a concordância e a
contrariedade. Na fortuna, Ramon vê os princípios relativos da
maioridade e menoridade. Existiriam então fortunas maiores e
menores[32].

Esta explicação de Llull nos parece ligada à noção corrente acerca da


Fortuna que provinha da Antigüidade e que Boécio mostra na
Consolatio como algo inconstante, fugaz e incontrolável aos humanos.

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Num outro exemplo, o filósofo catalão compara a Roda da Fortuna aos


grupos sociais da época, especialmente aos usurários, a quem critica. Tal
como Boécio, mostra que as glórias deste mundo são fugazes e que o
burguês que peca pela avareza e pela cobiça do lucro será mais tarde
punido por Deus. Na Doctrina Pueril (1274-1276)[33] — uma das
primeiras obras pedagógicas na Idade Média em língua vulgar e um dos
primeiros livros escritos para as crianças[34] — Ramon usa a metáfora da
Roda da Fortuna para mostrar que os homens se movem em seus
diversos ofícios:

Assim como a roda que se move dando voltas, filho, os homens que estão
em seus mesteres acima ditos se movem [lavradores, ferreiros,
mercadores, sapateiros, etc.]. Logo, aqueles que estão no mais baixo
ofício em honramento, desejam subir a cada dia, tanto que estejam no
lugar da roda soberana, na qual estão os burgueses. E porque a roda se
vai a girar e a inclinar até abaixo, convém que ofício de burguês caia
abaixo[35].

Os homens que estão abaixo na Roda aspiram subir até o topo e por isso
a Roda se move[36]. Além de mostrar a intensa mobilidade social da
sociedade medieval de meados do século XIII, esta é, sem dúvida, uma
crítica do autor aos novos valores sociais dos burgueses. Na Idade
Média, burguês era o habitante da cidade não-clérigo, não-nobre e não-
estrangeiro, que exercia determinadas atividades que lhe garantiam uma
relativa independência, estando ligado a duas categorias de citadinos, os
maiores e mediocres, de acordo com os textos da época[37].

É importante lembrar que a atividade mercantil era em princípio


condenada pela Igreja, que era contrária a toda atividade relacionada ao
empréstimo de dinheiro a juros (usura). Exemplos da Bíblia convergiam
para esta condenação, como no Levítico: “se o teu irmão achar-se em
dificuldade [...] não lhe emprestarás dinheiro a juros, nem lhe darás
alimento para receber usura [...]”[38], e o Decreto de Graciano, obra
eclesiástica do século XII, afirmava que “O mercador nunca pode
agradar a Deus — ou dificilmente”.[39]

Para Ramon os burgueses são avaros. Citadinos, eles valorizam a riqueza


e a ambição pessoal em detrimento do senso de justiça e da comunidade
medieval. Jeffrey Richards já avaliou a crescente mobilidade social que
ocorria no ocidente medieval a partir do século XII:

A avareza, subproduto do retorno a uma economia de dinheiro, se


manifestou através de um grande aumento do roubo e da simonia, de
uma hostilidade crescente contra os judeus e de uma preocupação tanto
dos pregadores quanto dos satiristas com o amor excessivo pelo
dinheiro. A ambição foi estimulada pela mobilidade social crescente,
mais notadamente pela ascensão de profissionais alfabetizados e
especializados em cálculo (advogados, administradores, escreventes). No

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século XII, ela tornou-se, pela primeira vez, um tema nos sermões dos
pregadores[40].

Por esse motivo, o direito só deve existir para Llull porque falta ao
homem o amor a Deus, já que todo aquele que ama a Deus ama a
justiça[41]. Assim, a justiça luliana visava a proporção, a cada um o que é
seu de direito, e através dela o príncipe cumpriria uma das finalidades de
seu ofício. Na mundo terrestre, o príncipe seria o responsável pela
harmonia da sociedade, devendo cada indivíduo voltar-se para as
virtudes para aproximar a alma do bom caminho a ser trilhado na outra
vida.

Como vimos, para Ramon Llull e Boécio, o que importa é o mérito


pessoal do cristão no caminho para a sua salvação e não o apego aos
bens materiais, passageiros, inconstantes e pouco duráveis. Daí a
importância do exemplo da Roda da Fortuna, que mostra aos homens a
fugacidade do tempo terrestre em oposição ao tempo divino. A figura do
burguês na Doutrina Pueril está em consonância com o tirano de
Boécio: ambos preocupam-se com as falsas glórias da Fortuna (luxo,
bens, poder) ao invés de preocuparem-se com as verdadeiras virtudes, os
valores espirituais, como, por exemplo a bondade, que aproximam os
humanos de Deus, o verdadeiro bem. Embora não saibamos com clareza
se Ramon leu a obra de Boécio, a tradição desta perpassou todo o
período medieval, e parece-nos que para ambos os autores, todas as
falsas glórias do mundo terrestre serão um dia julgadas pelo Juiz
Supremo, e os que estavam no alto da Roda, poderão cair ao inferno, ao
passo que as almas dos bons viverão na eterna bem-aventurança, ao lado
de Deus.

[1] Obra redigida pela abadessa do mosteiro de Odile (ou Hohenbourg),


Herrade de Landsberg (1130-1195), voltada à instrução das monjas de
seu mosteiro. Contém várias iluminuras, dentre as quais esta
representação da Roda da Fortuna. Herrad of Hohenbourg. Hortus
Deliciarum (ed. Rosalie Green), Studies of the Warburg Institute, vol.
XXXVI, London and Leiden, The Warburg Institute, University of
London; Brill, 1979.

[2] Richard Leighton Greene, “Fortune”, In: Joseph R. Strayer (org.),


Dictionary of the Middle Ages, New York, Scribner’s, 1983, vol. III, p.
145-147.

[3] Hans Biedermann, Encyclopédie des Symboles (ed. française de


Michel Cazenave), Paris, Le Livre de Poche, 1996, p. 591.

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[4] “Fortuna”, In:


http://www.millcomm.com/~markland/engl568/fortunebio.html

[5] Hans Biedermann, Encyclopédie des Symboles, op. cit., p. 275-276.

[6] Filósofo catalão nascido em Maiorca, a partir dos trinta anos teve três
visões com Jesus crucificado e passou ao serviço de Deus, dedicando-se
à conversão dos infiéis ao cristianismo. Com este intento, aprendeu árabe
e escreveu um grande número de obras defendendo a sua doutrina, sendo
que duzentos e oitenta delas nos chegaram em latim e em catalão.
Ricardo da Costa, A Árvore Imperial — Um Espelho de Príncipes na
Obra de Ramon Llull (1232?-1316). Niterói, Universidade Federal
Fluminense, Tese de Doutorado, 2000.

[7] Coletânea de obras anônimas datada de 1300 e provenientes da


abadia bávara de Benediktbeuern.

[8] Carmina Burana [Canções de Beuern], Maurice van Woensel (trad.,


introd. e notas), São Paulo, Ars Poetica, 1994, p. 32-35.

[9] Jacques Le Goff, A civilização do Ocidente Medieval, Lisboa,


Editorial Estampa, vol. I, p. 206.

[10] O arianismo foi uma corrente cristã considerada herética, que se


dividida em três seitas acerca do pensamento sobre a natureza de Cristo:
os eunomeanos (que negavam que o Filho tivesse qualquer coisa em
comum com o Pai, os homeanos (atribuindo-lhes uma simples
semelhança) e os homoeouseanos (subordinando o Filho ao Pai). Ver
Alain de Libera, A Filosofia Medieval, São Paulo, Edições Loyola, 1998,
p. 248-249.

[11] Marc Fumaroli, “Prefácio”, In: Boécio, A Consolação da Filosofia,


São Paulo, Martins Fontes, 1998, p. XVIII.

[12] Marc Fumaroli, “Prefácio”, op. cit., p. XIX.

[13] Boécio, A Consolação da Filosofia, op. cit., Livro III, 23, p. 87.

[14] Mais tarde, por demonstrar publicamente sua revolta com o


assassinato do genro Boécio, Símaco também foi morto por ordem de
Teodorico.

[15] Boécio, A Consolação da Filosofia, op. cit., Livro I, 1, p. 3-4.

[16] Boécio, A Consolação da Filosofia, op. cit., Livro I, 8, p. 12.

[17] Boécio, A Consolação da Filosofia, op. cit., Livro I, 1, p. 15.

[18] Boécio, A Consolação da Filosofia, op. cit., Livro II, 1, p. 26.

[19] Boécio, A Consolação da Filosofia, op. cit., Livro II, 3, p. 29 (os


grifos são nossos).
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[20] Boécio, A Consolação da Filosofia, op. cit., Livro II, 2, p. 27.

[21] Boécio, A Consolação da Filosofia, op. cit., Livro II, 5, p. 32.

[22] Ricardo da Costa, A Guerra na Idade Média, Rio de Janeiro,


Edições Paratodos, 1998.

[23] “Brueghel via o mundo assim, como um teatro. Todos interpretam


um papel: o soldado, o agricultor, o comerciante e rico, exausto de tanto
comer no paraíso dos glutões.” — Pierre Jansen, História Geral da Arte
— Grandes Gênios da Pintura, Madrid, Ediciones del Prado, 1995.

[24] Georges Balandier, O Poder em Cena, Brasília, Editora UnB, 1982,


p. 5.

[25] Boécio, A Consolação da Filosofia, op. cit., Livro II, 11, p. 45.

[26] Boécio, A Consolação da Filosofia, op. cit., Livro IV, 9, p. 114.

[27] Boécio, A Consolação da Filosofia, op. cit., Livro II, 15, p. 50.

[28] Boécio, A Consolação da Filosofia, op. cit., Livro III, 3, p. 56.

[29] Boécio, A Consolação da Filosofia, op. cit., Livro IV, 5, p. 104.

[30] Boécio, A Consolação da Filosofia, op. cit., Livro IV, 11, p. 122.

[31] “De fortuna et fortunato. Fortuna est accidens extra secundam


speciem regulae C tantum. Et est habitus, cum quo fortunatus se disponit
ad illam bonam fortunam per accidens; sicut viator, iens in
peregrinationem, qui a casu invenit aurum. Ipsa quidem fortuna est per
secundam speciem regualae D; et habet esse in subjecto, in quo est, per
quartam speciem regulae C. Et est hoc, quod est, per tertiam speciem
regulae D; et est extra principium, medium et finem, concordantiam et
contrarietatem. Extra autem minoritatem et maioritatem non est. Et in
isto passu cognoscit intellectus, quod fortuna habet parum de esse quo ad
se ipsam, sed quo a fortunatum magnum esse habet.” — Ramon Llull,
Ars generalis ultima, ROL 128, Parte 10, cap. 61, p. 349-350.

[32] Devemos toda esta explanação filosófica sobre a fortuna na Arte


luliana ao querido mestre Esteve Jaulent, do Instituto Brasileiro de
Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio
(http://www.tande.com/InstBrasFiloRLulio).
[33] Publicado em ORL, vol. I, 1906, p. 3-199 e Ramon Llull, Doctrina
Pueril (a cura de Gret Schib), Barcelona, Editorial Barcino, 1972.
[34] “[...] la Doctrina Pueril, que és fruit de l’experiència personal del
nostre escriptor com a educador del seu fill i, potser, com a preceptor del
fill de Jaume I, el futur rei Jaume II de Mallorca, si hem de donar crèdit a

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una vella tradició, que atribueix a Llull aquest ofici.” — Gret Schib,
“Introducció”, In: Ramon Llull, Doctrina Pueril, op. cit., p. 8.
[35] “Enaxí com a roda qui.s mou engir, se mouen, fill, los hòmens qui
són en los mesters demunt dits. On, aquels qui són en lo pus bax offici
en honrament, desigen a puyar cade dia, tant que sien en lo cap de la
roda subirana, en la qual estan los burguesos. E cor la roda se à a girar e
a enclinar a aval, cové que offici de burguès ya caya a aval.” — Ramon
Llull, Doctrina Pueril (a cura de Gret Schib), op. cit., p. 187-188 (os
grifos são meus).

[36] O tema da Roda da Fortuna é recorrente nos Espelhos de Príncipes,


até se chegar a Maquiavel. Para essas questões, ver Quentin Skinner, As
fundações do pensamento político moderno, São Paulo, Companhia das
Letras, 1996, p. 140-141, onde discute as qualidades necessárias ao
governante para reduzir e controlar o poder da Fortuna.

[37] Jacques Le Goff, O Apogeu da Cidade Medieval, São Paulo,


Martins Fontes, 1992, p. 164.

[38] A Bíblia de Jerusalém, São Paulo, Paulus, 1995, p. 207 (Lv. 25, 35-
37).

[39] “Homo mercator nunquam aut vix potest Deo placere”, citado por
Jacques Le Goff, Mercadores e Banqueiros na Idade Média, São Paulo,
Martins Fontes, 1991, p. 71.
[40] Jeffrey Richards, Sexo, desvio e danação. As minorias na Idade
Média, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1992, p. 19.
[41] “[...] porque todo homem que seja Vosso amante convém de
necessidade que ame o direito. Logo, como o direito é formado em Seu
relembrar e em Seu entendimento e em Sua vontade, então a alma
lembrará e entenderá e desjará amar direitamente.” (“[...] car tot home
qui vos sia amant cové de necessitat que am dretura. On, com la dretura
se será formada en son remembrament e en son enteniment e en son
voler, adoncs la ánima membrarà e entendrà e volrà l’amat
dreturament.”) — Ramon Llull, “Libre de Contemplació en Deu”, In:
ORL, vol. VII, tomo VI, 1913, p. 392.

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