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dossier: neurodesenvolvimento infantil 669

Perturbações do
desenvolvimento infantil –
conceitos gerais
Paula Pires de Matos*

RESUMO
O desenvolvimento psico-motor humano é consequência da evolução e encefalização da espécie e tem características únicas
que são detalhadas neste artigo. Referem-se os factores de risco genéticos e do ambiente na modulação do neurodesenvolvi-
mento e a sua relevância para a determinação do fenotipo desenvolvimental e comportamental. Define-se normalidade quan-
titativa e qualitativa em desenvolvimento psico-motor numa perspectiva dimensional e explicitam-se as sequências do desen-
volvimento nas suas várias áreas. Abordam-se os conceitos chave nas principais perturbações do desenvolvimento infantil.

Palavras-chave: Perturbações do Desenvolvimento; Factores de Risco; Critérios de Diagnóstico.

ESPECIFICIDADES DO DESENVOLVIMENTO gamento da pélvis das fêmeas da espécie para dar pas-
HUMANO sagem a uma cabeça fetal maior e à permeabilidade
uando se fala em desenvolvimento psico-

Q
das suturas cranianas que permite o seu cavalgamen-
motor e perturbações do desenvolvimen- to na passagem pelo canal de parto. Mas, mesmo assim,
to infantil temos que inserir os conceitos todas estas estratégias não foram suficientes e houve
na especificidade própria da nossa espé- necessidade de antecipar o trabalho de parto, nascen-
cie, tão diferente do resto dos primatas. do as crias quase no limite da sua viabilidade.1
Fazendo parte do grupo dos grandes mamíferos e Ao contrário dos outros grandes primatas, o desen-
dos primatas, temos gestações prolongadas, habitual- volvimento do nosso sistema nervoso central não está
mente de um único feto, raramente de dois ou mais fe- completo na altura do nascimento mas ainda se prolon-
tos. No entanto, ao contrário dos outros primatas, que ga ao longo do primeiro ano de vida. Assim, a cria da
mal nascem têm a capacidade de procurar a mama da nossa espécie terá 9 meses de gestação intra-uterina e
mãe e agarrar-se ao corpo dela para fugir dos predado- 12 meses de «gestação extra-uterina», sendo este tem-
res, as nossas crias nascem neurológica e fisicamente po de uma enorme importância no desenvolvimento do
imaturas, totalmente dependentes da mãe para a ali- indivíduo e também um factor de plasticidade e vulne-
mentação, termo-regulação, protecção e sobrevivên- rabilidade acrescidas.
cia. Nascemos, assim, tão indefesos como as crias dos O recém-nascido da espécie humana é extraordina-
pequenos mamíferos, como os coelhos ou ratos. riamente incompetente para a sua sobrevivência ao
E esta imaturidade neurológica ao nascer, numa es- nascer, tendo apenas movimentos voluntários oculares
pécie que, sendo parte dos primatas, deveria ter crias e da boca, orientados pelo estímulo visual e táctil para
maduras, deve-se ao processo de encefalização da es- a fonte de alimento. Todos os outros movimentos como
pécie homo sapiens sapiens. Na evolução da espécie, a a preensão palmar, o reflexo de Moro, os movimentos
encefalização levou a um pregueamento do córtex ce- dos membros, a marcha automática, são reflexos.
rebral para que coubesse na caixa craniana, a um alar- As implicações desta imaturidade neurológica e des-
ta dependência são de ordem física (alimentação, higie-
*Pediatra, Centro de Desenvolvimento Infantil Diferenças – APPT21
ne, termo-regulação), desenvolvimental e emocional.
Clínica Médica Gerações Assim, torna-se óbvio que o recém-nascido humano

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necessite de um contacto constante com a sua proge- evolução alterada é quase invariavelmente um sinal de
nitora que promoverá os cuidados alimentares, a ter- perturbação do desenvolvimento.
mo-regulação, a protecção física, ajudará a regular os As perturbações ligeiras e frequentes do desenvolvi-
estadios emocionais e terá com ele uma interacção con- mento são aquelas que se caracterizam por incapaci-
ducente a um neurodesenvolvimento harmonioso. dades menos relevantes para a sobrevivência da espé-
Convém também recordar que, embora na sociedade cie, sendo contudo importantes para a «sobrevivência»
ocidental haja hábitos que tendem a separar precoce- individual na sociedade instruída e instrumentalizada
mente as crias das mães, a observação das culturas di- que criámos. Uma perturbação fonológica ligeira ape-
tas primitivas, ensina-nos bastante sobre o instinto na- nas se torna um problema na sociedade leitora moder-
tural do cuidado infantil: os bebés andam agarra- na, a dislexia só surge como perturbação do desenvol-
dos/enfaixados ao corpo das mães no primeiro ano de vimento nos últimos 5000 anos da nossa espécie, altu-
vida e curiosamente não há registo de cólicas, regurgi- ra em que se inventou a escrita.
tação, problemas de sono e choros excessivos. O desenvolvimento do indivíduo também depende
A forma como cada civilização trata os seus recém- de factores genéticos individuais herdados dos proge-
-nascidos é dependente dos hábitos transmitidos de nitores. As alterações genéticas são um dos principais
mães para filhas, de conceitos adquiridos em cada cul- factores de risco das perturbações do desenvolvimen-
tura e das crenças sobre educação e cuidados infantis. to infantil. A manifestação clínica (fenotipo desenvol-
vimental e comportamental) de alterações genéticas e
FACTORES DE RISCO EM NEURODESENVOLVIMENTO cromossómicas depende da inter-relação desses genes
– GENÉTICA E AMBIENTE alterados com os outros genes do indivíduo e a sua ex-
O desenvolvimento psico-motor depende da inter-re- pressão é determinada pela modulação feita pelo am-
lação entre os factores próprios do indivíduo (genéti- biente, tanto intra-uterino como extra-uterino. Esta
cos) e os factores do ambiente. Este desenvolvimento modulação é provavelmente mais importante na fase
tem uma predeterminação filogenética, ou seja, exis- de maior crescimento do sistema nervoso central, ou
tem competências, habilidades, que todos os indiví- seja, nos 9 meses de gestação e nos primeiros 12 meses
duos de uma mesma espécie desenvolvem. No nosso de vida. Daí que, em qualquer indivíduo que apresen-
caso específico existe uma evolução previsível nas vá- te factores de risco conhecidos para o desenvolvimen-
rias áreas do desenvolvimento. Assim, todos os indiví- to, seja extraordinariamente importante a intervenção
duos neurológica e fisicamente íntegros aprendem a precoce. Esta vai actuar na fase de maior plasticidade e
andar, a falar e a manipular objectos variados. maior capacidade de modificação de circuitos neuro-
Apesar de um fundo genético e áreas funcionais ce- nais, melhorando as competências do indivíduo. Sabe-
rebrais semelhantes, as variadas habilidades e compe- -se que o córtex neonatal não é nem localizado nem
tências têm tempos diferentes de aquisição na evolu- muito especializado na altura do nascimento. Este fac-
ção da espécie, sendo que as habilidades motoras gros- to permite que a interacção com o ambiente tenha um
seiras e visuo-espaciais são mais antigas do que as lin- papel crucial na expressão dos genes e no fenotipo cog-
guísticas e cognitivas verbais. nitivo final. Surpreendentemente, muito pouco é estri-
Assim, as competências filogeneticamente mais an- tamente predeterminado ou fixado permanentemen-
tigas (motor grosseiro, visual) são menos atingidas nas te. Assim, a epigénese é probabilística, e a expressão ge-
perturbações do desenvolvimento, mas a capacidade nética é dependente da actividade.2 A epigénese corres-
específica da espécie, a linguagem, é aquela que é atin- ponde à variabilidade na expressão dos genes induzida
gida na maioria das perturbações do desenvolvimen- pelas experiências vividas pelo indivíduo durante o seu
to, mesmo nas mais ligeiras. Apenas as lesões mais ge- desenvolvimento, mas que não implica modificações
neralizadas e graves afectam significativamente a mo- nas sequências de ADN. A existência destas experiên-
tricidade grosseira. Percebe-se também que uma mo- cias é introduzida pelo acaso, ou seja, pelo ambiente em
tricidade grosseira mantida não é uma garantia de que nos desenvolvemos. Exceptua-se a intervenção
desenvolvimento normal mas que uma linguagem com precoce, que pretende exactamente fornecer ao indiví-

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duo vivências sensoriais, motoras e cognitivas para que ta no seguimento alterações no desenvolvimento psi-
a expressão genética seja voluntariamente melhor do co-motor. Em contrapartida, aqueles que adquirem a
que seria pela simples casualidade. Assim percebe-se marcha até aos 18 meses têm uma maior probabilida-
que a expressão genética, para além de depender da de de não ter perturbação do desenvolvimento. Assim,
probabilidade de acontecerem ou não determinados e por estudos estatísticos de observações populacio-
estímulos ou experiências, é dependente desta mesma nais, temos uma noção razoavelmente precisa da nor-
actividade e/ou experiência. malidade e da variação da normalidade em que se fa-
Os factores de risco do ambiente podem dividir-se zem as aquisições do DPM, dos sinais de «alarme» e do
em intra-uterinos (congénitos), perinatais e extra-ute- que é considerado «anormal»(ou não convencional).
rinos. A desnutrição, hipoxia e noxas (tóxicos, álcool, Ou seja, há uma definição de normalidade por referên-
drogas, metais pesados, medicamentos, infecções con- cia à norma.3 Convém referir também que há variações
génitas e lesões acidentais) encontram-se descritos «culturais» nas idades normais das aquisições psico-
como factores de risco intra-uterinos, enquanto os aci- motoras, uma vez que estas são dependentes da esti-
dentes periparto com anóxia ou hipóxia são conside- mulação diferente consoante os hábitos de cada famí-
rados factores de risco perinatais. Os factores de risco lia ou sociedade. Um exemplo interessante é a sequên-
extra – uterinos incluem: as infecções, os traumatis- cia da aquisição motora grosseira de rebolar da posição
mos, a hipóxia, os tóxicos e as alterações graves da vin- de prono para supino e depois de supino para prono.
culação com maus tratos, abusos e negligência. Desde que foi feita a recomendação sistemática de dei-
tar os bebés de costas para dormir, os pais deitam-nos
NOÇÃO DE NORMALIDADE EM DESENVOLVIMENTO assim em qualquer circunstância e não lhes dão a opor-
PSICO-MOTOR tunidade durante os períodos de vigília de estarem de
Um desenvolvimento psico-motor (DPM) normal de- barriga para baixo a brincar. Assim, actualmente obser-
fine-se pelos limites de idade em que se fazem as vári- va-se que os bebés viram-se um pouco mais tarde e co-
as aquisições e pela adequação qualitativa dessas aqui- meçam por fazer a viragem supino-prono e só depois
sições. Define-se também pela adequação funcional e a de prono-supino.
adaptativa, para cada idade, das competências adqui- No entanto, há também nuances de normalidade
ridas. qualitativa em DPM. Vejamos uma vez mais o exemplo
A definição de normal e «anormal» em desenvolvi- da aquisição da marcha. Uma criança pode adquiri-la
mento não é categórica. Ou seja, não há um limite ou dentro da idade considerada normal e, no entanto, as
fronteira bem definidos da idade normal de aquisição características da marcha serem de tal forma peculia-
das várias competências. A definição de normalidade res ou diferentes que provoquem alteração da funcio-
é, sobretudo, uma noção dimensional (uma curva ou li- nalidade, e assim temos uma alteração qualitativa do
nha de distribuição contínua), em que o limiar da nor- desenvolvimento. As alterações da linguagem nas per-
malidade está ao lado do limiar da «anormalidade». turbações do espectro do autismo altamente funcio-
Pensa-se que, tal e qual como na distribuição das esta- nantes são outro bom exemplo de alterações qualitati-
turas de uma população, na aquisição de qualquer vas do DPM. Nestes indivíduos a linguagem pode ser
competência existe uma distribuição gaussiana das ida- formalmente correcta e os conteúdos serem bizarros,
des em que a aquisição é feita, sendo que a definição haver incapacidade para o diálogo e comunicação. Es-
de normalidade é quase arbitrariamente definida quan- tas alterações também afectam a funcionalidade e de-
do não se ultrapassam os dois desvios padrão. Tome-se vem ser objecto de intervenção.3
como exemplo a aquisição da marcha, definida como Torna-se complicado definir normalidade naqueles
normal entre os 9 e 18 meses. Esta definição está basea- indivíduos que apresentam capacidades do desenvol-
da em observações nas quais se verifica que a aquisi- vimento no limiar do normal, e isto surge exactamen-
ção da marcha depois dos 18 meses está normalmente te por não podermos definir normalidade de forma ca-
associada a outras alterações do desenvolvimento e que tegórica mas sim de forma dimensional. Assim, a clas-
uma percentagem elevada destes indivíduos apresen- sificação de um determinado padrão de desenvolvi-

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mento em normal ou «anormal» (mais correctamente mentais, a coordenação motora fina e o processamen-
apelidado de não convencional) será feita não só pela to visuo-espacial. Como exemplo vejamos a tarefa de
apresentação ou ausência de uma determinada capa- colocar um círculo no respectivo lugar de um puzzle: a
cidade, mas sobretudo pela sua repercussão no funcio- criança tem que ter a capacidade motora fina de agar-
namento do indivíduo, ou mais precisamente, se essa rar eficazmente no objecto e encaixá-lo no seu lugar. Si-
alteração do desenvolvimento implica ou não o recur- multaneamente tem que ter adquirido a capacidade
so a medidas de apoio de alguma ordem. perceptual visual de emparelhar formas iguais de modo
Para a definição de normalidade e avaliação das a perceber onde vai colocar a peça. Mais adiante no
crianças temos que ter em conta a avaliação das várias DPM as tarefas cognitivas não verbais podem incluir ou
áreas do desenvolvimento psico-motor e a avaliação não necessidades motoras finas elaboradas, sendo mais
das sequências de desenvolvimento. Podemos dividir fácil a sua avaliação e apreciação separadas.
grosseiramente as áreas do desenvolvimento psico- Na linguagem as sequências de desenvolvimento
motor infantil em motricidade grosseira e fina, lingua- também são invariáveis, com pequenas peculiaridades
gem e cognição verbal, cognição não-verbal (visuo-per- interessantes. No desenvolvimento da linguagem há
ceptual), socialização, comportamento adaptativo (au- uma evolução desfasada no tempo da capacidade de
tonomia) e atenção. O DPM infantil faz-se invariavel- compreensão e da capacidade de expressão linguísti-
mente em sequências determinadas e invariáveis – são ca. Os bebés e as crianças pequenas compreendem
as sequências desenvolvimentais. Na motricidade muito mais do que aquilo que conseguem exprimir.
grosseira o desenvolvimento faz-se sempre numa pro- Sabe-se que todos os bebés vocalizam da mesma for-
gressão cefalo-caudal: primeiro segurar a cabeça, de- ma seja qual for a língua em que são «banhados», mas,
pois usar as mãos, os pés, sentar, deslocar-se (de qual- a partir dos 6 meses começam a utilizar sons específi-
quer forma, como gatinhar, arrastar ou rabejar), pôr-se cos da sua língua. A isto chama-se a impregnação fo-
de pé, caminhar e por fim correr. O desenvolvimento nológica, que é a construção de um «dicionário» men-
motor também se faz numa sequência de movimento tal das representações fonológicas que existem na lín-
geral/global para fino/particular, ou seja, de movimen- gua do indivíduo e que é feita nos primeiros anos de
tos generalizados e pouco precisos, que envolvem todo vida e mais dificilmente modificável à medida que a
o corpo, para movimentos especializados, unilaterais e criança cresce (daí o ditado «burro velho não aprende
finos, orientados com lateralidade e precisão e com línguas»). Por esta razão é que os chineses têm uma
crescente complexidade, ao longo da vida. A esta espe- quase impossibilidade em dizer o «r» e os espanhóis
cialização dos movimentos chama-se lateralização, que têm dificuldade em aprender o português, pois têm me-
tem como base neurológica a localização especializa- nos fonemas do que nós. Assim, começamos por voca-
da de determinadas funções em áreas específicas do cé- lizar apenas vogais, depois sílabas simples C-V, polissí-
rebro. Tome-se como exemplo a motricidade fina: aos labos, jargão, primeiras palavras, frases de 2 palavras
4 meses o bebé alcança os objectos com as duas mãos (apenas nomes), frases com verbos, frases com partí-
mostrando o entusiasmo com movimentos globais de culas de ligação, reconto sequencial de acontecimen-
todo o corpo, aos 12 meses alcança os objectos com um tos e histórias, até ao uso da linguagem com caracterís-
movimento de pinça fina de uma só mão, e aos 12 anos, ticas meta linguísticas e abstractas. Pode considerar-se
com treino, consegue tocar um instrumento musical a aprendizagem da leitura e escrita como a elaboração
de forma profissional. mais fina da linguagem.
No início das aquisições cognitivas não-verbais (pro- A linguagem evolui paralelamente também nos seus
cessos cognitivos independentes da linguagem, com- vários componentes como a articulação/fonologia, o lé-
petências dependentes do processamento visual e es- xico/vocabulário, a semântica/significado, a morfo-sin-
pacial) a sequência de desenvolvimento não é inde- taxe/gramática e a pragmática. Na articulação sabe-
pendente das habilidades motoras finas pois, nas tare- mos que inicialmente a criança comete muitos erros ar-
fas classicamente chamadas de coordenação olho-mão, ticulatórios, tornando-se a linguagem mais compreen-
intervêm simultaneamente dois processos desenvolvi- sível aos 3 anos e sem erros articulatórios aos 5 anos.

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No entanto, é natural a persistência de pequenos erros, Quando é feito o diagnóstico de uma perturbação do
como a dificuldade em articular o «r» frontal (como em desenvolvimento, a sua classificação (diagnóstica) de-
cara). Na evolução do léxico a criança começa por di- verá ser feita em várias dimensões como a biológica, de-
zer nomes concretos (nomes de pessoas e objectos) e senvolvimental, emocional e comportamental, e social.
só depois nomes abstractos (sentimentos) e acções Como exemplo temos a trissomia 21: trata-se de uma
(verbos). Na primeira fase há uma generalização do doença biológica genética, com provável diagnóstico
nome para conceitos de uma mesma família como por desenvolvimental de deficiência cognitiva, com ou sem
exemplo «mãe» para todas as mulheres ou «cão» para uma perturbação emocional e factores protectores e de
todos os animais de quatro patas, seguida da especia- risco sociais e familiares.
lização e precisão do vocabulário, ou seja, há uma evo- As perturbações do desenvolvimento podem, gros-
lução para uma especialização semântica. As primeiras so modo, dividir-se em perturbações «gerais» e pertur-
frases começam por ser de dois nomes, depois são in- bações específicas do desenvolvimento. Nas primeiras,
troduzidas acções (verbos) e mais tarde as partículas de todos os aspectos desenvolvimentais e cognitivos do
ligação. Há uma tendência para fazer a regularização indivíduo estão afectados, embora o possam estar em
dos tempos verbais dos verbos irregulares (como em graus de gravidade diferentes. Nestas estão incluídas a
«eu di», regularizado de «eu vi», em vez de dizer «eu Deficiência Mental (mais conhecida como atraso men-
dei»). Na evolução da pragmática, à medida que a crian- tal) e as Perturbações do Espectro do Autismo (tradu-
ça evolui na socialização também passa a adequar o zida do DSM IV como Perturbação Global do Desenvol-
seu discurso e vocabulário aos interlocutores e situa- vimento). Nas segundas estão incluídas as perturba-
ções específicas em que se encontra. Também podemos ções mais frequentes e que apenas têm comprometi-
fazer uma apreciação quantitativa ou qualitativa das das áreas específicas do desenvolvimento, estando
competências linguísticas. íntegras as restantes áreas. Tratam-se das Perturbações
Um dos objectivos das consultas de saúde infantil é Específicas da Linguagem, a Perturbação Cognitiva
monitorizar o DPM com a finalidade de rastrear preco- Não-Verbal, as Perturbações Específicas da Aprendiza-
cemente perturbações do desenvolvimento, de modo gem (Dislexia, Disgrafia/Disortografia e Discalculia), a
a pôr em marcha a intervenção necessária o mais cedo Perturbação do Desenvolvimento da Coordenação Mo-
possível. Esta deve ser específica para o perfil funcio- tora, a Perturbação de Hiperactividade com Défice de
nal do indivíduo, com o objectivo de melhorar o seu Atenção, a Perturbação de Oposição e a Perturbação de
funcionamento e maximizar as suas potencialidades, Conduta (DSM-IV).
tornando-o o mais autónomo possível. As perturbações do desenvolvimento coexistem de
Quando encontramos uma criança com uma per- forma mais frequente do que seria de esperar. Ter uma
turbação do desenvolvimento temos vários objectivos perturbação de desenvolvimento é um factor de risco
em vista: investigar a etiologia para estabelecer o prog- acrescido para co-morbilidade com outra perturbação
nóstico e a evolução, fazer um perfil funcional para ade- do desenvolvimento ou com uma perturbação emo-
quar a intervenção, desencadear o processo de inter- cional e comportamental.
venção e posteriormente monitorizá-lo. A Deficiência Mental (DM) ou Deficiência Cogniti-
va (ou Atraso Mental, como era conhecido anterior-
PERTURBAÇÕES DO DESENVOLVIMENTO INFANTIL mente) é definida no DSM IV por se apresentar com um
As perturbações do desenvolvimento infantil estão clas- défice cognitivo de dois desvios padrões abaixo da mé-
sificadas em dois sistemas classificativos internacio- dia (QI ~ 70 ± 5) acompanhado de défices, insuficiên-
nais, o DSM IV – TR e o ICD 10. Estes devem ser utiliza- cias ou incapacidades no comportamento adaptativo,
dos de forma a conseguir uma comunicação eficaz in- nomeadamente nas áreas da comunicação, cuidados
ter-pares e para que se possa investigar nesta área. Não próprios, vida familiar, vida social/aptidões inter-
devem ser utilizadas expressões como «atraso do desen- pessoais, uso de recursos comunitários, auto-controlo,
volvimento», «atraso do desenvolvimento psico-motor aptidões escolares funcionais, trabalho, ócio, saúde e
(ADPM)» e outras denominações imprecisas. segurança.

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O seu início acontece antes dos 18 anos e todas as tivo. Possuem aderência inflexível a rituais ou compor-
áreas do DPM estão afectadas. É dividida por graus de tamentos não funcionais, maneirismos motores repe-
gravidade consoante o QI do indivíduo em: DM ligeira titivos e estereotipados e por vezes persistente preocu-
(QI: 50-55 a 70); DM moderada (QI: 35-40 a 50-55); DM pação com partes dos objectos. A alteração qualitativa
grave (QI: 20-25 a 35-40); DM profunda (QI <25-20). A da interacção social deve-se a uma alteração da empa-
definição de gravidade consoante o QI é útil para estu- tia ou seja, à incapacidade para perceber o outro como
dos mas menos útil para a apreciação da funcionalida- indivíduo com experiências e emoções diversas do pró-
de e autonomia do indivíduo, pois estas não dependem prio. Esta alteração da empatia será o núcleo funda-
só do QI mas sobretudo do comportamento adaptati- mental de incapacidade nas Perturbações do Espectro
vo e capacidade de socialização. Tomemos como exem- do Autismo.
plo dois indivíduos com QI semelhante mas um com Existem variações de gravidade e apresentação clí-
Trissomia 21 e o outro com Autismo. Ninguém duvida nica nestas perturbações, desde o Autismo de Kanner,
que a capacidade de autonomia será maior para o pri- típico, com todos os critérios e défice cognitivo, ao au-
meiro e que a funcionalidade do segundo é sobretudo tismo atípico (designado de perturbação pervasiva do
prejudicada pelas incapacidades de comunicação e so- desenvolvimento sem outra especificação no DSM IV)
cialização tornando-o dependente em maior grau do e ao Síndrome de Asperger.
que o primeiro. No Síndrome de Asperger temos perturbação na in-
A maioria dos médicos que trabalham em Desenvol- teracção social e padrões de comportamentos, interes-
vimento também utiliza a definição da Academia Ame- ses e actividades repetitivos, restritos e estereotipados,
ricana de Deficiência Mental (AAMR 2002) que se foca sem um atraso quantitativo da linguagem mas com al-
sobretudo nas capacidades adaptativas e de autono- terações qualitativas que se manifestam por peculiari-
mia do indivíduo e da sua necessidade de apoio. dades na expressão linguística, alterações na com-
As etiologias da deficiência mental são muito varia- preensão não literal da linguagem e alteração na prag-
das, entre genéticas e ambientais. Numa percentagem mática e conversação. Estas crianças têm inteligência
razoável de casos não se consegue estabelecer a sua normal ou mesmo acima da média. É um diagnóstico
etiologia. feito, na maioria das vezes, já em idade escolar. Aten-
As Perturbações do Espectro do Autismo ou Per- dendo à elaboração e conhecimentos acima da média
turbações Globais do Desenvolvimento (tradução di- em quantidade e profundidade sobre determinados as-
recta do DSM IV) caracterizam-se por alterações qua- suntos (os tais interesses restritos e exagerados no foco)
litativas em três áreas do desenvolvimento: perturba- são muitas vezes referenciados como crianças sobredo-
ção na comunicação, perturbação na interacção social tadas, de forma errada, pois têm défices noutras áreas
e padrões de comportamento, interesses e actividades e não possuem grande imaginação.3
repetitivos, restritos e estereotipados. Na perturbação A Perturbação de Desenvolvimento da Coordena-
qualitativa da comunicação haverá alterações desde a ção Motora caracteriza-se por haver um desempenho
ausência de linguagem (não compensada por mímica nas actividades quotidianas que requerem coordena-
ou gesto) até a uma linguagem formalmente correcta ção motora abaixo do nível esperado para a idade cro-
mas com incapacidades pragmáticas e de conversação, nológica e quociente de inteligência do indivíduo, in-
com idiossincrasias, alterações na imitação e jogo sim- terferindo o défice de coordenação motora significati-
bólico pobre. A perturbação da interacção social carac- vamente com as actividades da vida quotidiana e o ren-
teriza-se pela incapacidade em estabelecer relações so- dimento escolar do indivíduo. Esta perturbação não é
ciais apropriadas com os pares, incapacidade no uso da devida a um estado físico geral (muito importante ex-
expressão facial e gestos que regulam a interacção so- cluir perturbação neuro-motora) e não preenche os cri-
cial, incapacidade na partilha de interesses e recipro- térios de Perturbação Global do Desenvolvimento (Per-
cidade social e emocional. Os padrões de comporta- turbação do Espectro do Autismo). Trata-se assim de
mento, interesses e actividades repetitivos, restritos e um diagnóstico de exclusão.3
estereotipados são anormais na intensidade e no objec- As Perturbações Específicas da Linguagem (PEL)

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são definidas no DSM IV por um desempenho linguís- lexia têm sérias dificuldades no processo de descodifi-
tico significativamente inferior ao desempenho obtido cação, o que os leva a ter uma leitura imprecisa, come-
nas outras áreas do desenvolvimento psico-motor. Di- tendo erros variados que vão desde trocas de letras até
videm-se em vários tipos: PEL Expressiva, PEL Mista erros por adivinhação. Possuem também fluência e ve-
(Receptiva-Expressiva), PEL Fonológica, Gaguez e Per- locidade leitoras diminuídas, com prejuízo da com-
turbação da Comunicação sem outra especificação. É preensão, pois o processo de descodificação já ocupa
também, um diagnóstico de exclusão. Quando uma grande parte da memória de trabalho. Cometem erros
criança apresenta um atraso na aquisição da lingua- ortográficos frequentes, com confusões fonológicas e
gem temos que ter em conta que a principal causa do que não são plausíveis foneticamente.3-5
atraso de linguagem é a Deficiência Mental, seguida A Perturbação Cognitiva Não-Verbal surge recente-
das Perturbações do Espectro do Autismo e só por úl- mente como um conceito de perfil cognitivo em que são
timo surgem as PEL e a deficiência auditiva. A persis- sobretudo as capacidades não-verbais que estão afec-
tência de uma PEL para além dos 5 anos de idade cons- tadas. Caracteriza-se por défices da percepção visual
titui factor de risco para Perturbação Específica da (visuo-espaciais; coordenação olho-mão), défices da
Aprendizagem.3 motricidade, discalculia, disgrafia, desatenção, défices
As Perturbações Específicas da Aprendizagem sub- da percepção táctil, bom desempenho linguístico (pro-
dividem-se em perturbações da leitura, escrita, cálcu- sódia – tom e melodia do discurso - peculiar e pragmá-
lo e mista. Na terminologia europeia referimo-nos a es- tica – adequação da linguagem aos contextos e interlo-
tas perturbações como Dislexia, Disgrafia/Disortogra- cutores – pobre) e alterações nas trocas sociais. É um
fia e Discalculia. Os critérios do DSM IV referem que, perfil funcional muito típico dos indivíduos com Sín-
para se fazer o diagnóstico destas perturbações, o de- drome de Asperger.3
sempenho nas tarefas de leitura, escrita ou cálculo deve A Perturbação de Hiperactividade e Défice de Aten-
ser significativamente inferior ao esperado para a ida- ção (PHDA) é uma perturbação neurobiológica fre-
de, nível de escolaridade e inteligência do indivíduo, es- quente do desenvolvimento e comportamento na in-
perando que a criança tenha sido alvo de condições de fância e na adolescência e é caracterizada por dificul-
ensino apropriadas e não apresente deficiência mental dade em manter a atenção, hiperactividade e impulsi-
ou perturbações globais do desenvolvimento.3-5 vidade inapropriadas ao nível de desenvolvimento e
A dislexia apresenta-se habitualmente como uma di- idade do indivíduo. O diagnóstico é clínico e deve ser
ficuldade inesperada na aprendizagem da leitura e es- feito recorrendo aos critérios do DSM IV. Estes indiví-
crita, numa criança sem défice cognitivo, sem sinais duos apresentam sérias dificuldades em manter a aten-
prévios que nos fariam esperar dificuldades, e que é ex- ção, em concentrar-se por períodos prolongados, em se
posta a um ensino adequado. É uma perturbação com organizar, em persistir nas tarefas e possuem uma dis-
base genética e tradução neurobiológica comprovadas. tractibilidade fácil e exagerada. A desatenção prejudi-
Caracterizada por dificuldades no reconhecimento cor- ca o seu funcionamento, nomeadamente a aprendiza-
recto e/ou fluente das palavras, diminuição da capaci- gem académica. A maioria apresenta também excesso
dade de descodificação e dificuldade na ortografia. Es- de actividade motora: correm, trepam, não são capazes
tas dificuldades resultam, tipicamente de um défice no de estar sentados nas aulas, à mesa, no cinema, mexem
componente fonológico da linguagem que é muitas ve- em tudo e são dificilmente controláveis. Estes compor-
zes inesperado em relação às outras capacidades cog- tamentos tornam o convívio social e escolar difíceis.
nitivas do indivíduo e à instrução recebida. Apresentam Apresentam também impulsividade exagerada, com
um perfil cognitivo típico com diminuição da consciên- impaciência, reacções e respostas irreflectidas, das
cia fonológica (capacidade de processar e analisar os quais muitas vezes se arrependem. A impulsividade
sons da linguagem oral), diminuição da memória ver- prejudica o desempenho escolar e também afecta o re-
bal de curto prazo e de trabalho, dificuldades na nome- lacionamento social. Têm uma empatia adequada mas
ação rápida (evocação de vocabulário) a dificuldade na o relacionamento social é prejudicado pela dificulda-
repetição de pseudo palavras. Os indivíduos com dis- de em acatar as regras do grupo, em cumprir regras de

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jogos que incluem esperar pela sua vez, em inibir com- caracterizam-se por comportamento opositor e teimo-
portamentos e respostas desadequadas para o bom re- sia extremas com desobediência e quebra de regras fre-
lacionamento inter-pares. Possuem baixa capacidade quente. As Perturbações de Conduta têm estas carac-
de resistência à frustração, necessidade de novidade e terísticas mais marcadas e os indivíduos apresentam
variedade de estímulos constante para manter o inte- comportamentos anti-sociais com violações graves de
resse pelas actividades e aborrecem-se com facilidade. regras. A Perturbação da Conduta pode evoluir para a
Apresentam também dificuldades ao nível das funções perturbação anti-social da personalidade ou perturba-
executivas. Convém enfatizar que, apesar da hiperacti- ção de abuso de substâncias, se não for efectuada uma
vidade ser a face visível e mais notada desta perturba- intervenção atempada.3
ção, o défice principal está na desatenção ou seja, na in-
capacidade em atender de forma continuada aos estí- AGRADECIMENTOS
mulos relevantes e dificuldade em filtrar e eliminar os Agradeço ao Dr. Miguel Palha pela colaboração neste artigo.Alguns dos co-
nhecimentos aqui transmitidos resultam da reflexão conjunta de uma equi-
estímulos irrelevantes às tarefas em curso. Alguns indi-
pa de pediatras de desenvolvimento do Centro de Desenvolvimento Dife-
víduos apenas apresentam défice de atenção, sem hi- renças/APPT21 liderada por ele.
peractividade, sendo este subtipo de PHDA mais fre-
quente no sexo feminino. Podem passar despercebidos REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
e ser diagnosticados mais tardiamente. Alguns sinto- 1. Jones S, Martin R, Pilbeam D., editors. The Cambridge Encyclopedia of
mas remitem com o crescimento. A hiperactividade Human Evolution. Cambridge: Cambridge University Press; 1992.
2. Karmiloff-Smith A. Atypical epigenesis. Developmental Science 2007;
tende a diminuir a partir da adolescência, no entanto 10 (1): 84-8.
a desatenção e a impulsividade persistem muitas vezes 3. Gillberg C, Harrington R, Steinhausen HC, editors. A Clinician's
até à idade adulta.3,5 Handbook of Child and Adolescent Psychiatry. Cambridge: Cambridge
A PHDA coexiste frequentemente com as Perturba- University Press; 2006.
4. Snowling MJ, Stackhouse J, editors.A Practitioner's Handbook of Dyslex-
ções Específicas da Aprendizagem, com a Perturbação
ia Speech and Language.2nd ed. London: Whurr Publishers; 2006.
de Oposição e com outras perturbações do desenvol- 5. Snowling MJ, Hulme C, editors. Science of Reading: a Handbook. Malden,
vimento. É uma perturbação que, se não for tratada, MA: Blackwell Publishing; 2005.
acarreta risco de insucesso escolar, comportamentos de
risco (consumo de drogas ilícitas, alcoolismo e gravidez A autora declarou não possuir conflitos de interesses
na adolescência), insucesso laboral e alterações no re-
ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA
lacionamento social e familiar.
Paula Pires de Matos
As Perturbações de Oposição e de Conduta são per- Avenida Fontes Pereira de Melo, nº3 – 10.º Dto.
turbações disruptivas do comportamento (e coexistem 1050-115 Lisboa
com alguma frequência com a PHDA). As primeiras, E-mail: paulapiresdematos@sapo.pt

ABSTRACT

CHILDHOOD DEVELOPMENTAL DISORDERS – GENERAL CONCEPTS


Humans have a specific neurodevelopment that correlates with brain development during its evolution as a species. This arti-
cle will review the developmental risk factors, both genetic and environmental, and their relationship as modulating factors for
the final phenotypic expression. The concept of normal quantitative and qualitative development will be defined, as well as the
developmental sequences within each of its areas. The key concepts of each developmental disability will be summarised.

Keywords: Developmental Disorders; Risk Factors; Diagnostic Criteria.

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