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O papel dos jornalistas e a democracia 1

Carina Paccola 2
Universidade Norte do Paraná (Unopar)

Resumo
Este trabalho parte do princípio de que uma das características do mundo moderno é que a
humanidade nunca teve à sua disposição tantas informações transmitidas por diferentes e
numerosos veículos de comunicação. A transmissão de informações é feita ao mesmo
tempo em que ocorrem os fatos, influenciando decisões políticas e econômicas em todo o
mundo. Se a informação, hoje, reveste-se desse peso antes inimaginável, qual o papel e
qual a posição social dos homens e mulheres jornalistas que trabalham cotidianamente na
produção de notícias? Este estudo analisa se o jornalista estabelece alguma relação entre a
sua atividade profissional e a construção da democracia. Para tanto, avalia entrevistas com
16 jornalistas de jornais impressos.

Palavras-chave: Jornalistas; democracia; prática profissional.

Introdução
Uma das características do mundo moderno é que a humanidade nunca teve à sua
disposição tantas informações transmitidas por diferentes e numerosos veículos de
comunicação. A transmissão de informações é feita ao mesmo tempo em que ocorrem os
fatos, influenciando decisões políticas e econômicas em todo o mundo.
A mídia é a maior provedora dos símbolos utilizados na construção da visão que se
tem do mundo. John B. Thompson, no livro A Mídia e a Modernidade, afirma que a mídia
criou o que ele chama de “mundanidade mediada”: “nossa compreensão do mundo fora do
alcance de nossa experiência pessoal, e de nosso lugar dentro dele, está sendo modelada
cada vez mais pela mediação de formas simbólicas” (Thompson, 2001: 38).
Se a informação, na modernidade (entendida aqui como a que se inicia no período
capitalista), reveste-se desse peso antes inimaginável, qual o papel e qual a posição social3
dos homens e mulheres jornalistas que trabalham cotidianamente na produção de notícias,
ou seja, na estruturação de suas práticas e interações num dado espaço social?
Este estudo pretende analisar que consciência o jornalista tem de suas ações; se ele
estabelece alguma relação entre a sua atividade profissional e a construção da democracia.
Cabe a pergunta: Por que deveria o jornalista pensar a sua atividade como elemento da
construção da democracia?

1
Trabalho apresentado ao NP 02 – Jornalismo, do IV Encontro dos Núcleos de Pesquisa da Intercom.
2
Jornalista, professora do Departamento de Comunicação Social/Jornalismo da Unopar, mestre em Ciências Sociais pela
Universidade Estadual de Londrina (UEL), carinapaccola@hotmail.com.
3
Utilizo o conceito de posição social no sentido de posicionamento nas relações sociais.
2

Os jornalistas que exercem sua atividade em empresas comerciais e que visam lucro
deparam-se com a linha editorial já definida e com limites estabelecidos. Mesmo assim,
esses profissionais imprimem sua marca no trabalho realizado no cotidiano.
Se o jornalista buscar um preparo teórico e refletir sobre sua prática, ele pode com
sua ação preencher lacunas que surgem naturalmente no exercício diário do jornalismo. Ele
pode deixar sua mensagem. Esse exercício cotidiano de ocupar brechas reveste-se de
intencionalidade. É um ato político.
Ter uma prática crítica e consciente no dia-a-dia significa assumir seu papel de ator
social enquanto jornalista, ocupando um espaço importante dentro da mídia. Para verificar a
visão que os jornalistas têm da sua prática profissional, este trabalho entrevistou
profissionais de jornais impressos.
Parte-se da hipótese de que os jornalistas têm pouca clareza sobre seu papel e
posição social no exercício profissional, não enxergando brechas e acreditando que não têm
muito a fazer diante dos poderes econômicos e políticos que atuam na linha editorial da
empresa.
A falta de reflexão e de preparo teórico resulta num jornalista mais alienado4 e
acomodado, menos crítico e que não vê possibilidades de um agir diferente daquilo que já
está determinado. Sem a reflexão, o profissional pode nem ter consciência de que pode agir
de forma a construir uma sociedade mais democrática.
Para analisar o papel e a posição social dos agentes produtores de notícia serão
empregados conceitos sociológicos que pressupõem que as duas noções (papel e posição
social) são complementares. Os jornalistas têm uma identidade social específica e, como
tal, têm direitos e obrigações no espaço social que ocupam para a construção das relações
sociais.
É preciso reconhecer a informação como um direito do cidadão. A Constituição
Federal, de 1988, em seu artigo 5º, no capítulo que trata dos direitos e deveres individuais e
coletivos, estabelece no parágrafo XIV: “é assegurado a todos o acesso à informação (...)”.
A atividade profissional do jornalista, portanto, está ligada ao cumprimento de um direito
constitucional do cidadão.
John B. Thompson, ao analisar a relação entre os meios de comunicação e a
democracia, ressalta:
“Poucos duvidam de que os vários meios de comunicação tenham
desempenhado e continuarão desempenhando um papel crucial na formação de
um sentido de responsabilidade pelo nosso destino coletivo. (...) Eles ajudaram a
pôr em movimento uma certa ‘democratização da responsabilidade’, no sentido
de que a preocupação por outros distantes se torna cada vez mais entranhada na

4
Alienado no sentido de alhear-se.
3

vida quotidiana de mais e mais indivíduos. (...) Eles comprovam a possibilidade


de que a crescente difusão de informações e imagens através da mídia pode
ajudar a estimular e a aprofundar um sentido de responsabilidade pelo mundo
não humano da natureza e pelo universo de outros distantes que não
compartilham das mesmas condições de vida” (Thompson, 2001: 227).

Embora a mídia exerça profunda influência “na formação do pensamento político e


social” (Thompson, 2001:15), o jornalista relativiza o seu papel nesse processo de
influência. É como se o jornalista – ao escrever uma matéria, por exemplo – restringisse a
sua ação à simples atividade de contar o que aconteceu, como se o que ele pensa a respeito
do mundo não causasse efeito sobre o seu trabalho final.
Parece, assim, que a influência da mídia no pensamento da sociedade tem um poder
por si só. E o jornalista não tem nenhuma influência sobre o que é publicado. Ou seja, o
jornalista se sente alienado daquilo que ele produz, como se a mídia tivesse vida própria,
como se a matéria escrita por ele tivesse um único caminho a ser seguido.
Mesmo com um poder limitado, o jornalista não usa dos recursos de que dispõe para
que sua atuação se revista de um caráter de transformação. Pierre Bourdieu chama de
“campos de interação” o conjunto de circunstâncias que proporcionam aos indivíduos
diferentes inclinações e oportunidades (Bourdieu, 1989).
Esse conceito de Bourdieu está em Thompson:
“A posição que um indivíduo ocupa dentro de um campo ou instituição é muito
estreitamente ligada ao poder que ele ou ela possui. No sentido mais geral, poder
é a capacidade de agir para alcançar os próprios objetivos ou interesses, a
capacidade de intervir no curso dos acontecimentos e em suas conseqüências.
No exercício do poder, os indivíduos empregam os recursos que lhe são
disponíveis; recursos são os meios que lhes possibilitam alcançar efetivamente
seus objetivos e interesses” (Thompson, 2001: 21).

Dentro da redação, os jornalistas fazem várias escolhas ao longo de um dia de


trabalho. A primeira seleção ocorre com a definição da pauta. O repórter responsável pela
matéria também tem critérios próprios para abordar os assuntos. Depois de pronto, o
material passa pelas mãos do editor que tem o poder de mudar o enfoque escolhido pelo
repórter e é quem vai definir título, e o espaço que vai ocupar na página.
Assim, a notícia passa por vários prismas. O caminho que a informação colhida pelo
repórter percorre até que a notícia saia no jornal, após passar pelo trabalho de edição, já faz
balançar o mito da objetividade.
“No nível operacional, o jornalista se caracteriza pela permanente tomada de
decisões. (...) ao escrever, cada palavra é uma decisão, cada informação, uma
decisão, cada orientação, decisão. Durante todo o tempo da sua atividade diária
(...), ele toma decisões” (Dines, 1986: 120).
4

Ao tomar várias decisões todos os dias dentro da redação, a posição cultural,


política e ideológica do jornalista pesa de alguma forma no produto final do seu trabalho,
por mais que ele esteja submetido à lógica alienante dentro de uma empresa.
Se os veículos não estão cumprindo a tarefa importante que têm para a construção e
a ampliação da democracia os jornalistas podem ter a consciência de seu papel social na
redação. Além da sua atividade individual profissional, o jornalista também pode engajar-se
coletivamente na mobilização que visa democratizar os meios de comunicação. “(...) a
questão do controle da informação não pode mais permanecer fora da pauta daqueles que
lutam por sociedades mais democráticas e igualitárias” (Miguel, 1999: 207).
Foram entrevistados5 16 jornalistas: quatro de Londrina (PR), quatro de Curitiba,
quatro de São Paulo e quatro Brasília para verificar como vêem seu papel e a relação entre
jornalismo e democracia.
A escolha pela função de repórter, neste trabalho, é por considerar que ele é a figura
mais emblemática do jornalista. É quem vai à rua atrás da notícia, quem faz as entrevistas e
quem redige o material, que depois será revisto na edição. O repórter faz a ponte entre o
jornal e a sociedade. É ele que se apresenta à sociedade como representante da imprensa.

Imprensa e valores democráticos

Segundo John B. Thompson, compreender o desenvolvimento dos meios de


comunicação e seu impacto é fundamental para entender a natureza da modernidade. Para o
autor, o surgimento da comunicação de massa
“(...) é uma característica constitutiva fundamental das sociedades modernas. É
um processo que esteve estreitamente interligado com o desenvolvimento do
capitalismo industrial e com o surgimento do moderno estado-nação. É também
um processo que transformou, profundamente, as maneiras como as formas
simbólicas6 circulam nas sociedades modernas. Com o surgimento da
comunicação de massa, o processo de transmissão cultural torna-se cada vez
mais mediado por um conjunto de instituições interessadas na mercantilização e
circulação ampliada de formas simbólicas” (Thompson, 1999: 277).

Com o amplo e irrestrito alcance da comunicação de massa, todas as decisões


tomadas nos espaços privados e públicos são permeadas pelo conteúdo midiático. No
campo privado, os indivíduos fazem suas escolhas de consumo com base no que a
publicidade divulga. Quase impossível comprar qualquer bem de consumo sem levar em
conta o que a TV, as revistas e jornais já propagaram a respeito do produto desejado.

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As entrevistas foram feitas para o desenvolvimento da dissertação de mestrado em Ciências Sociais Um retrato de quem
retrata o mundo: um estudo sobre a estruturação da prática profissional dos jornalistas, de autoria de Carina Paccola,
apresentada em julho de 2003 na Universidade Estadual de Londrina (UEL). As entrevistas foram feitas em Londrina (21
e 23 de outubro de 2002); Curitiba (8 de novembro de 2002); Brasília (13 de novembro de 2002); e São Paulo (27 e 28 de
janeiro de 2003).
5

Da mesma maneira que os meios de comunicação influenciam escolhas


aparentemente sem conseqüências, o conteúdo da mídia impregna também as opiniões dos
indivíduos sobre regimes de governo, partidos políticos, candidatos às eleições e outros
temas de interesse público que interferem diretamente em nossas vidas. Tanto é verdade
que, nas últimas eleições brasileiras, partidos políticos e candidatos têm devotado grande
preocupação na escolha e contratação de serviços do chamado marketing eleitoral.
A mídia, portanto, tem papel importante ao tornar públicas as decisões e atitudes
dos governantes, que aos poucos foram tomando consciência dessa visibilidade. O cuidado
com a imagem deles próprios assume grandes proporções porque, com os meios de
comunicação de massa, eles estão expostos ao público mesmo na ausência desse público.
Se nas campanhas eleitorais é crescente a preocupação com a imagem dos candidatos, esse
cuidado não diminui durante o exercício do poder.
A postura fiscalizadora da imprensa em relação aos governos aconteceu em
praticamente todo o mundo, com exceção dos momentos em que imperava o totalitarismo
de um ou outro governo.
Com um papel fiscalizador cada vez mais acentuado, também aumentou a
valorização do espaço que se ocupa nos meios de comunicação No momento em que a
mídia assume esse espaço público, necessário para a prática da democracia, há um
esvaziamento dos debates públicos e da participação dos indivíduos na política. O voto
torna-se a principal instância de participação da sociedade na vida política.
Para Thompson, construir uma democracia deliberativa significa expandir os
processos de deliberação, com mecanismos para que os indivíduos tenham informação de
qualidade que auxiliem nas decisões. Isso é possível – acredita – com a presença da mídia,
que vai fornecer informações e pontos de vistas plurais que contribuem para a formação de
opiniões.
Contar com a mídia para construir a democracia deliberativa significa superar
algumas condições atuais, como a alta concentração dos meios de comunicação em
conglomerados internacionais, que respondem pelo conteúdo que circula em todo o mundo.
Romper com a centralização da propriedade da mídia é fundamental nesse processo.
E não é apenas por uma questão econômica. A mídia tem um papel a cumprir na
transmissão de conhecimentos, e não apenas de informação. Como já foi dito, os meios de
comunicação transmitem conteúdos simbólicos que ajudam a construir a representação da
realidade.

6
Thomson define formas simbólicas como “construções significativas que exigem uma interpretação; elas são ações,
falas, textos que, por serem construções significativas, podem ser compreendidas” (1999: 357).
6

A sociedade organizada deve exigir limites legais e fiscalização para barrar o


processo de concentração. A democratização dos meios de comunicação é bandeira de luta
de movimentos sociais em vários países, que acreditam ser fundamental a participação
popular no processo de comunicação para que se construa uma sociedade efetivamente
democrática. Esses movimentos entendem a comunicação como um serviço público a ser
prestado à comunidade.
No Brasil, trabalhadores do setor de comunicação e movimentos sociais começaram
a se mobilizar para a democratização da mídia na década de 80. Por conta desses
movimentos, a Constituição Federal criou o primeiro espaço público para debater e
fiscalizar o setor: o Conselho de Comunicação Social, formado por representantes de
trabalhadores, empresários e sociedade civil, para auxiliar o Congresso nas questões de
comunicação. Regulamentado em 1991, o Conselho passou a existir de fato em maio de
2002.
Esse é um caminho que ainda precisa ser percorrido pela sociedade civil para que a
comunicação no Brasil cumpra a sua função pública e social e seja um instrumento para a
efetiva democratização do País.

Os jornalistas e a democracia
Foi feita a seguinte pergunta para os 16 jornalistas entrevistados para este trabalho:
“Qual é o papel dos jornalistas, na sua opinião?” Eis algumas respostas:

“O jornalista tem muitos papéis. Se a gente for priorizar um é o de informar e ser


um fiscal da sociedade junto aos órgãos públicos que é pra ver se estão
funcionando direito, se as pessoas públicas estão cumprindo sua função certa e
se não estão roubando o povo. Acho que essa deve ser a primeira função se a
gente for priorizar (...)”.

Essa resposta, de um repórter de 45 anos (20 de profissão), sintetiza o que boa parte
dos jornalistas entrevistados pensa sobre o seu papel como profissional. Cinco falaram do
papel de fazer a intermediação entre o poder público e a sociedade. Alguns usaram os
termos “fiscalizar”, “supervisionar”, “acompanhar se há irregularidade”, sempre em relação
ao poder público.
“Basicamente informar” resume a resposta de cinco repórteres.

“Acho que o jornalista tem um papel muito importante, hoje, que acho o
seguinte: informar corretamente. Pode parecer incrível, mas é cada vez
mais difícil informar corretamente. Separar o que é importante do que é
secundário. Separar o que é verdade ou aquilo que mais se aproxima da
verdade do que é a versão. Chegar aos fatos como eles ocorrem da
7

maneira mais fidedigna possível. Isso é a coisa mais importante. (...) você
saber informar exatamente o que acontece é uma coisa preciosa hoje,
preciosíssima (...)” – jornalista homem, 43 anos, 18 de profissão.

Essa resposta revela que os próprios jornalistas admitem que é comum ocorrerem
falhas de informação no material publicado por seus colegas ou por eles mesmos – o que
mostra que a queixa da sociedade sobre a distorção não está fora da realidade. Outro
jornalista, de 27 anos (três de profissão), também ressalta esse papel: “Acho que é informar,
claro, com compromissos de que aquela informação chegue da maneira mais correta (...)”.
Mas ele acrescenta uma outra função a esse “informar” que é a de formar consciência: “(...)
Fazer com que o leitor tenha consciência de que ele é um cidadão também”.

“Basicamente, acho que é dar para as pessoas, para o leitor, quem estiver do
outro lado da linha, condição de conhecer o mundo delas (...). Dar uma noção da
realidade que a gente tem acesso, estruturas políticas, estruturas sociais que
estão em torno delas, do que está acontecendo nessas estruturas (...)” – jornalista
homem, 26 anos, dois anos e meio de profissão.

“Acima de tudo fornecer subsídio para o seu leitor ou espectador ou o ouvinte


tomar decisão sobre os fatos que estão acontecendo. (...) você tem como
obrigação fornecer a informação clara o suficiente para o receptor dessa
informação trabalhar com ela e tomar sua decisão e formar sua própria opinião
sobre o fato que está ali sendo narrado (...)” – jornalista homem, 29 anos, oito de
profissão.

Uma outra jornalista, de 42 anos (20 de profissão), considerou a pergunta complexa


e disse:
“(...) acho que é expor as coisas de fato como elas são, tentando dar uma visão
crítica às coisas políticas ou econômicas ou sociais para que o cidadão se
informe, se eduque e tenha uma visão crítica das coisas. Em tese deveria ser o
nosso papel. Mas acho que a prática é outra. Nem sempre a gente faz um bom
trabalho” – queixou-se.

Uma outra repórter, de 38 anos (14 de profissão), apresentou uma análise mais
aprofundada sobre o papel do jornalista, relativizando a atuação do profissional dentro do
contexto de uma empresa jornalística. Ao falar do papel do jornalista, ela apontou duas
situações:

“(...) Pode fazer uma atuação mais factual (...), mediar os fatos que estão
acontecendo para toda a sociedade. Você simplesmente relata. É uma opção de
um jornalismo mais factual, mais imediata. Você pode fazer também uma opção
por um jornalismo mais investigativo (...). (...) esse jornalismo mais imediato, na
realidade muitas vezes o profissional nem faz a opção por ele, ele é lançado a ele
porque tem uma demanda pela informação imediata, não é? (...) [E o jornalismo
investigativo] cumpre uma função não só de pontuar num sistema político
eventuais desvios de funcionamento, como também levantar na sociedade, com
maior profundidade, necessidades que não estão sendo observadas pelo sistema
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político. Necessidades que podem ser atendidas através de políticas públicas


específicas. (...) esse jornalismo investigativo que se aprofunda mais nas
questões cumpre um papel, ele aponta de forma mais contundente deficiências
tanto no sistema político quanto dificuldades na sociedade (...).”

E ela vai além na avaliação:

“(...) Você tem um viés que (...) é inerente a qualquer sistema de produção, e
agora você tem um viés que não se limite apenas à questão do método de
produção em si, mas que tem alguma orientação econômica ou ideológica. Então
(...) você tem a mídia operando – e ela opera acima do papel do jornalista – (...)
ela opera dentro do sistema político e fazendo essa mediação. E ela opera não
somente com um viés que é natural: tem que selecionar uma pauta (...), tem um
espaço limitado (...). (...) além desse viés técnico, do qual você não escapa, você
tem também a mídia como empresa que tem sua orientação ideológica e política.
(...) Dentro de tudo isso, se processa o trabalho do jornalista. Ele é limitado –
num aspecto mais geral – pelos limites estabelecidos pela empresa em que ele
trabalha”.

Duas repórteres entrevistadas entendem o papel do jornalista como “transformador


da sociedade”.
Olha, o jornalista acho que é um agente transformador (...). a gente mostra o
fato, as coisas da cidade, do mundo para a população em geral e, com isso, (...)
você de uma forma ou de outra provoca uma reação nas pessoas. Seja ela de
indignação, de alegria, seja de tristeza, você provoca uma reação (...) que acaba
motivando a pessoa a fazer alguma coisa para modificar aquilo. Nem que seja
através da indignação nem que seja através da raiva, mas você acaba fazendo
com que as pessoas se mexam para mudar aquilo. Então eu vejo que o papel do
jornalista é do agente transformador mesmo” – jornalista mulher, 38 anos, 15 de
profissão.

A outra, que ainda está no início da profissão, com 24 anos de idade (quatro como
jornalista), usa o termo “missão” quando fala do papel do jornalista:
“O jornalista tem uma missão social muito grande, um compromisso muito
grande com o leitor, para quem ele está prestando esse serviço. (...) até faz parte
da característica do jornalista de estar envolvido com grandes questões, com
situações que mexem com a vida das pessoas, fatos que chocam, fatos que
despertam a sociedade. Acho que o jornalista tem esse grande papel, esse
compromisso com a sociedade (...).”

As respostas mostram que os jornalistas têm uma reflexão primária sobre a função
da imprensa ao limitar seu papel ao de “informar”. Mauro Porto debate essa questão no
artigo Muito além da informação: mídia, cidadania e o dilema democrático. O próprio
título do artigo já sugere que o papel dos meios de comunicação é ir além do mero
“informar”. Porto afirma que reduzir a comunicação a um processo de transmissão de
informações “contribui para tornar invisíveis diversos problemas relacionados ao papel das
instituições e dos profissionais da comunicação” (1998:17).
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Diante da pergunta sobre qual o papel da mídia nas democracias contemporâneas,


Porto diz que a resposta que prevalece entre jornalistas, acadêmicos e público em geral é a
de “fornecer informações para que os cidadãos possam tomar decisões consistentes e
racionais, incluindo a decisão do voto” (1998: 17). Essa resposta coincide com a dos
jornalistas entrevistados para este trabalho.
No entanto, um dos dilemas da democracia, segundo o autor, é justamente vivermos
numa sociedade com excesso de informação enquanto predomina entre o público de massa
um alto grau de desinformação sobre assuntos políticos. Ou seja, pessoas que devem tomar
decisões políticas podem não ser capazes de cumprir essa expectativa.
Porto apresenta duas correntes distintas que pensam esse dilema. Uma é a dos que
falam em “cidadãos ignorantes”, que não têm condições de análise, e isso é um impeditivo
para a democracia. A outra corrente fala em “cidadãos racionais” e leva em conta que,
mesmo com baixo nível de informação, os cidadãos tomam suas decisões políticas a partir
de suas experiências e temperamentos, sendo capazes de participar das decisões
democráticas (Porto, 1998: p. 17-19).
Porto apresenta uma alternativa a esse dilema, ao defender um modelo que vai além
da mera transmissão da informação, e que inclui o processo de interpretação da realidade.
“A definição dos cidadãos como construtores de significados permite desenvolver um
entendimento mais apropriado do processo através do qual indivíduos passam a dar sentido
à realidade política” (Porto, 1998: 23).
Não é possível, portanto, pensar no papel do jornalista como um provedor de
informações, como um “informar” automático, meramente técnico, como se a função do
jornalista se restringisse a coletar as informações, de acordo com os procedimentos
técnicos, da vida como ela é. Como se só houvesse uma verdade unívoca.
O jornalista é um transmissor de significações do mundo, mesmo que ele imagine
estar simplesmente transmitindo informação objetiva. O regime democrático, segundo
Porto, precisa de um papel mais ativo dos profissionais da mídia. “(...) Jornalistas têm (...)
um papel importante e legítimo no diálogo normativo” (Porto, 1998: 23).
Mesmo se visualizam a democracia num aspecto mais jornal, os jornalistas
entrevistados avaliam que seu trabalho contribui para a democracia da sociedade – foi o que
eles demonstraram ao responder a seguinte pergunta: Você faz alguma relação entre o seu
trabalho e o processo de construção de uma sociedade mais democrática?
Dos 16 entrevistados, uma jornalista não acredita que o jornalismo seja fundamental
para a democracia. Ela disse:
“(...) não tenho aquela coisa, assim, sonhadora de achar que se o nosso trabalho
não existisse a sociedade não seria tão democrática como é hoje, ou poderia ser
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mais ou poderia ser menos. Acho que é um processo do qual fazemos parte. (...)
e acho que a sociedade caminha para isso, para uma coisa democrática. Ao
mesmo tempo que eu brigo por isso, a dona-de-casa também briga, o guarda de
trânsito também está brigando. É um processo. (...) nós também fazemos parte
disso, brigando pelo direito de publicar o que a gente acha que é certo, o que a
gente concorda, mas não levantar uma bandeira e chamar pra si esse processo
porque o processo não é nosso. Se de repente não existisse mais jornal no mundo
as pessoas iam continuar se comunicando da mesma forma. (...)” – 27 anos, oito
de jornalismo.

A entrevistada mostra que relativiza o papel do jornalismo e do próprio jornalista


para a democracia. Pode-se concluir, a partir desse depoimento, que se o jornalista não
acredita numa função democratizante da sua atividade ela pode ser realizada sem nenhum
comprometimento em contribuir para a democracia, uma vez que não se acredita que seu
trabalho vá de fato fazer alguma diferença nesse processo.
De acordo com essa concepção, ela naturaliza o processo social, pensa que de
qualquer forma a sociedade caminha para a democracia – quase que de forma natural – daí
a não-necessidade de levantar uma bandeira em defesa da democracia. Dessa forma, a
jornalista desqualifica essencialmente a ação política voltada para a mudança, pois isso
seria um exagero já que naturalmente estamos indo em direção à democracia.
Outros entrevistados disseram que existe uma relação entre o trabalho que fazem e a
construção de uma sociedade mais democrática.
“(...) Acho que é pra isso que a gente está aqui (...). Informação é democracia. Se
você não tem informação sobre a vida política do País, por exemplo, você não
pode saber quem é o melhor candidato a presidente. Se você não tem informação
sobre como está indo o governo, em cada uma das áreas, você não tem como
saber se aquele é o melhor governo para teu País, teu Estado, tua cidade. Se você
não sabe quem são os teus vereadores, teus deputados e o que eles estão fazendo,
que é o que a gente tenta noticiar aqui diariamente (...) você não tem como
acompanhar a vida democrática do País. Acho que sem imprensa não existe
democracia (grifo meu). Acho que isso é até chavão, mas é verdade. Por mais
que a gente esteja aqui num universo menor, que não influencia os rumos do
País como um todo [ele trabalha em Curitiba] (...) a gente tem o nosso papel
aqui que é de tentar manter as pessoas o máximo possível bem informadas, e
informadas de maneira imparcial, (...) para que elas possam fazer as melhores
escolhas delas. Acho que é ponto número 1 da profissão” – jornalista homem, 26
anos, dois anos e meio de profissão.

O entrevistado fala da importância da informação – principalmente sobre a vida


política – para que a população possa acompanhar o que estão fazendo os governantes. Ele
defende que essa informação seja passada de maneira imparcial, a fim de que o leitor possa
fazer sua própria escolha. Mas – como já foi exposto anteriormente – não há informação
livre de significações simbólicas. O mero transmitir de informações, sem análise mais
profunda e sem conexão entre os fatos, não é suficiente para que os leitores formem uma
posição crítica que os permita realmente fazer suas escolhas com conhecimento profundo.
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De modo geral, o conteúdo transmitido pela mídia reforça as posições políticas


predominantes.
Em outro depoimento (jornalista homem, 29 anos, 11 de profissão) também está
claro que o mero transmitir de informações já seria suficiente para a democracia:
“Você fornecer informação adequada é permitir que o meu leitor possa formar
sua opinião. Já é parte do processo democrático ele poder ter a sua própria
opinião, o leitor, o receptor dessa informação e ele, com certeza, vai exigir do
governante, do diretor de sua escola, vai exigir de seu prefeito, de seu vereador.
(...) você permitir que as pessoas tenham acesso à informação é parte
fundamental do processo democrático. (...) O livre fluxo de informações tem que
ser garantido realmente. Tanto que é coisa de Constituição, né, existe na
Constituição você ter acesso à informação, a exprimir suas opiniões. Isso aí tem
que ser garantia mesmo e o nosso trabalho é importante nesse aspecto.”

O entrevistado fala da formação da opinião, mas que opinião é essa? É a opinião


dominante, a que prevalece hoje na sociedade e que mantém a ordem das coisas. O repórter
considera que é papel da imprensa oferecer condições para que os indivíduos exijam o
cumprimento de obrigações por parte das autoridades (o diretor da escola, o vereador, o
prefeito, o governador) que já estão asseguradas na Constituição ou em outras legislações.
Embora seja importante essa conscientização para a formação da cidadania ela permanece
dentro da mesma estrutura social predominante hoje.
Boa parte dos entrevistados analisa que o mero “informar bem” é suficiente para o
processo democrático. Dessa forma, esses repórteres limitam o alcance do trabalho
jornalístico por não questionar que tipo de informação prevalece e a serviço de quem. Eis
mais exemplos:
“(...) na medida em que você tem como princípio orientador procurar escrever as
informações mais próximas da realidade, da verdade, você vai estar contribuindo
para o processo democrático porque informação, a livre circulação da
informação, da informação correta é uma grande contribuição para a
democracia. Outra coisa, assegurar a pluralidade, quando você for fazer uma
matéria que envolve opinião você assegurar que várias opiniões se manifestem
nessa sua reportagem, nessa sua matéria. Não só o lado do governo, não só o
lado da oposição. Você, quando houve uma denúncia, dar oportunidade de
direito e de defesa de quem está sendo acusado. Isso tudo acho que contribui
para o processo democrático” – jornalista homem, 43 anos, 18 de profissão.

“(...) acho que qualquer jornalista se sente fazendo um pouco de democracia


quando ele divulga uma falcatrua, quando ele denuncia um caso irregular (...). A
transparência, a informação, é uma das ferramentas da democracia” – jornalista
homem, 33 anos, 10 de profissão.

“(...) Uma pessoa só pode exercer seu direito corretamente se for bem-
informada. Então, acho que a gente contribui quando tem essa preocupação de
informar corretamente” – jornalista mulher, 25 anos, seis de profissão.

“(...) é claro que às vezes é até meio ilusório isso, mas a gente procura na prática
fornecer informação e subsídio para que o leitor (...) consiga formular um
arcabouço de conceitos que garanta para ele um senso crítico para que ele possa
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reclamar seus direitos e participar mais do processo democrático em todos os


sentidos” – jornalista homem, 33 anos, 10 de profissão.

Outro jornalista (37 anos, 16 de profissão) afirma:


“A partir do momento que me deixam trabalhar a sociedade está ficando mais
democrática porque eu sou de um tempo... eu não cheguei a pegar a censura no
jornal, mas eu peguei o eco da censura. Entrei em 86 quando não tinha nem
eleição direta pra presidente e você sabia que tinha temas que ninguém falava e
que você não poderia escrever. Hoje não tenho censura de nada, nada, nada. (...)
Agora, se você pode escrever qualquer tema, abordar qualquer matéria desde
que o jornal ache relevante publicar porque ela é interessante, acho que isso está
mostrando que a democracia está aí mesmo, está funcionando. A gente tem
liberdade para discutir a campanha eleitoral. A gente pode fazer qualquer tipo de
pergunta para qualquer tipo de candidato, desde o candidato do governo aos
candidatos de oposição. Eles respondem ou não. Mas a gente não teve uma
pessoa que censurasse assim: ‘você pergunta isso, olhe, isso é um tema que o
jornal não gosta’. Pelo menos nos jornais em que eu trabalhei até hoje eu não
tive essa experiência negativa. Então acho que a gente está conseguindo ter um
processo democrático bem realizado.”

Este repórter relaciona o livre exercício do jornalismo – sem a censura oficial que
existiu durante o regime militar – à democracia, mas dentro de um contexto da democracia
formal, representativa, sem avançar na análise de que o País ainda tem muito a avançar para
alcançar uma verdadeira democracia social. A avaliação atém-se ao senso comum, sem
aprofundar o sentido de democracia. O repórter diz ainda ter liberdade para abordar
qualquer matéria desde que o jornal ache relevante publicar. Portanto, é uma democracia
segundo os critérios da empresa empregadora.
Outro depoimento:
“(...) a mídia é uma estrutura essencial para regimes democráticos porque ainda
que você esteja atuando com limitações mais amplas, digamos do sistema
político e ideológico das empresas de forma geral. Ainda com esses limites, (...)
você pode fazer muita coisa. Então eu acho que você, a imprensa, é o olhar
atento da democracia no sentido que você está ali circulando o tempo todo,
apurando, investigando, levantando dados, procurando desvios e a simples
consciência disso acredito que traga para os agentes políticos mais
responsabilidade no trato da coisa pública. Porque para muito agente político o
fato de ele ser processado (...) pelo Ministério Público não incomoda tanto
quanto ele ter divulgado os detalhes desse processo e os motivos pelos quais ele
foi processado. Isso por que? Quando você dá publicidade numa sociedade
democrática você está de certa forma contribuindo para informar mais as
pessoas. E se você está informando mais indiretamente você está – não vou falar
formando opinião porque eu sou muito cética e eu relativizo muito esse poder da
mídia de formar opinião, não acredito nisso, eu relativizo, acho que tem limites –
mas eu acho que quando você traz a informação a público, para aqueles que
lêem jornais de uma forma geral, você dá oportunidade a eles de tomarem
conhecimento de um fato que pode alterar o seu comportamento eleitoral. E
quanto a gente está falando em democracia, o comportamento eleitoral é a
última instância. A democracia se move em mandatos (...) pelo voto que, em
última instância, é quem confere o mandato. (...) para aqueles que lêem jornal é
uma oportunidade de estarem se posicionando em relação a partidos, a agentes
políticos e até politicamente, eleitoralmente se posicionando em relação ao seu
voto. Então em última instância a gente está falando de democracia, de
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alternância, de voto e de opinião pública. (...)” – jornalista mulher, 38 anos, 14


de profissão.

A posição dessa entrevistada também se atém à democracia formal que, bem ou


mal, já está assegurada em nosso País. É a democracia representativa, que garante a eleição
pelo povo de seus governantes. Não há uma exigência por parte da jornalista de um
jornalismo que avance nesse processo no sentido de contribuir para uma maior participação
da comunidade em outras instâncias decisórias, que não se limitem às eleições formais. A
democracia social ainda é algo a ser conquistado no Brasil, onde é cada vez mais acirrada a
concentração de renda.
Embora a jornalista relativize o papel da imprensa na formação da opinião pública,
os meios de comunicação têm uma contribuição importante para o debate político.

Considerações finais

Este trabalho objetivou responder algumas inquietações sobre a prática profissional dos
jornalistas. De modo geral existe a crença de que os jornalistas sejam profissionais
qualificados e que exercem sua atividade com senso crítico apurado. No entanto, essa idéia
convive com uma outra imagem sobre os jornalistas, que é a de profissionais mal
preparados e desorganizados enquanto categoria de trabalhadores.
Afinal, como o jornalista avalia seu trabalho? Acredita que contribui para a
construção da democracia? Essas são algumas das questões que motivaram esta pesquisa a
procurar respostas em teóricos da sociologia e da comunicação, além de ouvir os próprios
jornalistas, entrevistados para este trabalho.
Os dados qualitativos revelaram alguns traços de um retrato de uma
categoria. Ao falar, por exemplo, sobre o papel do jornalismo, os repórteres mostraram que
acreditam que a profissão tem uma função social importante na fiscalização do poder
público e na construção da democracia.
Ao tocar no assunto democracia, os jornalistas mostram que têm um entendimento
que se limita à democracia formal, sem resvalar na democracia social que pressupõe maior
igualdade de condições entre os cidadãos. Não se acreditam, assim, responsáveis por
contribuir para estimular a participação comunitária em questões políticas que vão além das
eleições dos representantes políticos.
Este trabalho espera ter contribuído para que os jornalistas possam repensar sua
prática profissional e ter uma atuação voltada à construção de uma sociedade mais
igualitária e mais democrática.
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Referências bibliográficas

DINES, Alberto. O papel do jornal. São Paulo, Summus Editorial, 1986.

MIGUEL, Luis Felipe. O jornalismo como sistema perito. In Tempo Social, v. 11, n. 1, maio 1999,
p. 197-209.

PACCOLA, Carina. Um retrato de quem retrata o mundo: um estudo sobre a estruturação da


prática profissional dos jornalistas. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Mestrado
do curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina, em julho de 2003.

PORTO, Mauro P. Muito além da informação - mídia, cidadania e o dilema democrático. In São
Paulo em Perspectiva, v. 12, n. 4, out-dez. 1998, p. 17-25.

THOMPSON, John B. A mídia e a modernidade – Uma teoria social da mídia. Petrópolis, Vozes,
2001.

_______. Ideologia e Cultura Moderna – Teoria social crítica na era dos meios de comunicação de
massa. Petrópolis, Vozes, 1999.

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