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Disciplina: Bioética em Saúde

Prof.: Marcus Nery

Reflexões sobre a experimentação com seres humanos e animais


Animais:

A interação entre homens e animais sempre esteve presente na trajetória da


humanidade, desde uma época onde os homens viviam em cavernas e encontravam na caça
uma forma importante de sobrevivência até chegarmos aos dias atuais, em que, entre outras
formas de utilização e interação homem-animal, destaca-se a experimentação animal. Sob o
ponto de vista das ciências biomédicas os animais representam um elo importante entre as
pretensões científicas e as conquistas de fato, sob o ponto de vista de outros é um tipo de
"holocausto" que não deveria existir. Sabemos que ao longo do tempo, caminhando ao lado de
toda a evolução científica, caminham as ideias dos homens e por vezes entram em conflito. O
final do século XX tornou-se um desses momentos. Quer denominado momento de confronto,
quer denominado momento de grande questionamento, o que se coloca em relação aos
animais é: "Como nós devemos tratar os animais?", "Eles têm direitos e/ou nós temos deveres
para com eles?”.
Para alguns críticos, a questão da experimentação animal tem sido abordada como
uma questão meramente técnica, isto é, a pertinência de seus métodos é questionada. As
perguntas que se colocam são basicamente: "quais os benefícios decorrentes da
experimentação animal?", "um animal pode ser usado como ‘modelo’ para outro?", e
especialmente "os animais são bons modelos para a espécie humana?". Mas, nessa
abordagem também aparece a questão da experimentação como um problema relacionado ao
bem-estar animal, isto é, o estresse e a dor aos quais os animais são submetidos podem
produzir alterações fisiológicas, as quais podem alterar os resultados obtidos.
Para outros, a questão da experimentação animal têm sido abordada como uma
questão ética, isto é, a nossa relação com os animais é vista como uma questão da
moralidade. Nesse caso, as questões que são colocadas apontam as seguintes preocupações
filosóficas: "qual a classe de seres que têm direito à tutela moral plena?", "o que é permitido
moralmente fazer aos animais?", "é possível uma distinção moral entre seres humanos e
animais?", "em que se baseia essa distinção?”.
Além dessas, outras abordagens pertinentes à questão da experimentação animal
podem ser consideradas como relacionadas à questão ética, tais como a questão política e a
questão jurídica. Sem dúvida, àquilo que me refiro como questão política amplia bastante a
discussão, através de questões tais como: "quem decide que tipo de pesquisa é válida?", "qual
o propósito da atividade científica?", "quais são os produtos necessários da pesquisa?" A
questão jurídica relaciona-se às leis que regulam a nossa interação com os animais em
diversos âmbitos, assim como na experimentação animal, e são decorrentes das decisões
políticas.
Esse estudo aborda a questão da experimentação animal a partir dos dois ângulos
principais, isto é, há a intenção de se demonstrar aqui que a experimentação animal é uma
questão científica e uma questão ética, e indicar que a "apropriação" por apenas um dos
ângulos é mutiladora do debate. O ponto de partida desta reflexão é a rejeição à ideia de que
"incluir animais não humanos na nossa esfera ética é uma ambição filosófica sem sentido".
Afinal, desde os primeiros tempos da filosofia, de acordo com Sócrates, uma questão filosófica
realmente importante é: "como devemos viver nossas vidas?". E, atualmente, entre tantas
contradições e oposições relacionadas a questão "como devemos tratar os animais"?", a
unanimidade pode ser encontrada no fato de que essa é uma questão que afeta como nós
vamos viver, já que os animais estão presentes no nosso convívio diário de diversas formas
diretas e indiretas.
Uma outra questão, que têm afetado nossas vidas profundamente, é a ciência. Na
busca incessante pelo conhecimento, a relação com a natureza foi sendo modificada e, em
diversos momentos, o domínio do homem foi criando novas realidades, ampliando o universo
em que se encontra e chegamos no momento presente em que, "A vida, pelo conhecimento,
chegou ao ponto de poder influenciar a si própria enquanto mecanismo biológico". Mas
chegamos a um tempo em que o progresso é também visto como uma complicação cada vez
maior ou como o meio para alcançarmos a solução de todos os problemas.
Ética e ciência, assim como suas relações, tornaram-se, portanto questões centrais do
nosso tempo. Enquanto a "ética é sobre como nós devemos viver", "a arte da escolha moral
demanda uma delimitação realista do domínio do exequível". O significado disso se traduz na
importância de se buscar conhecer os fatos, sem, no entanto incorrer no engano de se
confundir fatos e valores (a chamada falácia naturalística), ha de se pensar o universo dos
fatos isento de valorações de tipo também moral. A compreensão do problema moral da
experimentação animal exige transpor a dificuldade representada pela carência de uma
"transfertilização" entre os campos do conhecimento. Tendo em mente essa questão, é que foi
feita a opção nesse estudo de se apontar as múltiplas considerações em que os argumentos e
a reflexão precisam ser conduzidos, enquanto se oferece uma visão das múltiplas idéias e
conceitos em debate.
Com esse propósito o "problema" da experimentação animal é considerado a partir de
três diferentes eixos temáticos. O primeiro deles é o próprio universo da experimentação animal
no âmbito científico que pretende mapear o significado dessa experimentação na vida
moderna, isto é, para que, como, quais e quantos são os animais utilizados. Além disso,
percorre-se a instauração desse paradigma central das ciências biomédicas, que é a
experimentação animal, e a possibilidade de seu deslocamento para os chamados métodos
alternativos. As visões da defesa e da crítica desse método científico são demonstradas, já que
essa é uma importante vertente de análise da questão. O perfil atual dessa prática, a partir da
interferência da sociedade, que tem resultado em diferentes mecanismos de controle, é
explicitado a fim de contribuir na explicitação da "questão científica".
O segundo eixo temático diz respeito ao campo da moralidade. Dessa forma, teremos
um percurso de ideias - da Grécia antiga até os dias atuais - sobre "quem é esse animal?". Os
pensamentos estão organizados no sentido de que se possam observar as tentativas de
ampliação da esfera moral, apontando uma crise do antropocentrismo. O movimento da ética
aplicada e as principais correntes do pensamento contemporâneo sobre o "status moral" dos
animais serão apresentadas, a fim de explicitar a "questão ética".
Finalmente discute-se o "argumento dos casos marginais", buscando-se mostrar como
esse é um argumento central, a fim de revelar as incoerências das nossas narrativas. A noção
de que os diferentes contra-argumentos oferecidos não conseguem refutá-lo é defendida aqui.
Uma consideração relevante se faz necessária quanto ao vocabulário utilizado no
decorrer do texto. Sabendo-se que cada termo carrega consigo uma determinada conotação,
cabe esclarecer que "seres não humanos" e "animais" estão sendo utilizados aleatoriamente,
sem a intenção de endossar qualquer posicionamento quando se utiliza um ou outro, assim
como os termos "experimentação" e "vivissecção", e outros que porventura vão aparecer.
Toda essa busca de uma narrativa que faça sentido no contexto atual do debate da
experimentação animal é relevante se, de fato, acreditamos que uma "moral vale na medida
em que ela se propõe a nos colocar em jogo" e não possa ser resumida "com uma palavra
servil: imperativo". Nesse caso, antes de se dar início a partida, é preciso levar em conta duas
proposições básicas:
1- quanto às "regras do jogo" – a questão da imparcialidade nos julgamentos morais é
um elemento essencial de qualquer sistema ético. E então, após uma análise imparcial é que
se verifica a aplicabilidade da bioética, ao recrutar os melhores argumentos a fim de sustentar
os comportamentos, e portanto, considerados moralmente melhores.
2- quanto aos "jogadores" – a questão dos critérios eleitos para atribuição do "status
moral" é relevante para se definir o "jogador".
É nesse momento que começaremos a entender o papel das "razões" e das
"emoções", dos seres humanos e dos seres não humanos.

Humanos:

O desenvolvimento da ciência em seus diferentes ramos deu-se a partir das ciências


experimentais; se aceita como marco referencial do nascimento da experimentação científica o
século XVI, com Galileu.
Galileu tem importância histórica não só pelas suas descobertas e invenções, mas,
principalmente, pela postura por ele assumida na procura da verdade: a verdade não deveria
ser aceita simplesmente porque os escolásticos ou a Igreja afirmavam ser verdade; a verdade
deveria ser buscada por meio da experimentação e da observação.
Nasce assim a ciência experimental, a partir da qual, durante dois a três séculos,
desenvolve-se e consolida-se a Revolução Científica.
A partir do século XVII, a cada 10-15 anos, vem duplicando o número de cientistas;
assim, nos dias de hoje, o número de cientistas vivos e atuantes é maior do que o número de
cientistas que o mundo já teve e já morreram e, daqui, a 10-15 anos, o número de pessoas
dedicadas à ciência será o dobro do número atual.
Ora, este contingente de cientistas, nos vários campos da ciência, dia-a-dia nos traz
novos conhecimentos e novas descobertas, os quais inevitavelmente acabarão de uma ou
outra maneira, atingindo o homem para o bem ou para o mal. Somente neste século já tivemos
duas grandes Revoluções: a Revolução Atômica (radioisótopos, medicina nuclear, bomba
atômica) e a Revolução Molecular, em andamento (geneterapia, manipulação genética etc). E
toda nova aplicação do conhecimento ao ser humano, em sua fase inicial, será de natureza
experimental.
Na realidade, quando se fala em experimentação com seres humanos pensa-se quase
que exclusivamente na experimentação no campo da Medicina. Esta vinculação é
compreensível, pois a experimentação na área médica é mais visível e de efeitos mais
patentes, em geral. Contudo, é bom assinalar que seres humanos são utilizados em
experimentação por profissionais e cientistas de outras áreas: odontólogos, nutricionistas,
farmacêuticos, fisioterapeutas, psicólogos, profissionais da área de educação física e de
esporte, educadores e, também, economistas.
Muitas vezes, o que é grave, nem se reconhece o caráter experimental do que está
sendo estudado e nem se obedece à metodologia científica adequada; isso ocorre também na
área médica. O ser humano é, às vezes, sujeito de inovações que nem passaram pelo crivo de
experimentação prévia e só se torna evidente o fenômeno quando surgem complicações ou
efeitos deletérios. Basta citar o que vem ocorrendo no campo dos efeitos das energias de alta
frequência e com os aditivos e agrotóxicos.
A experimentação com seres humanos tem sido feita ao longo dos séculos, com
diferentes padrões de ética e de qualidade, em todo o mundo. De um lado, deve-se assegurar,
por meio da experimentação, a aplicabilidade dos novos conhecimentos para o bem da
humanidade e, de outro, devem-se criar mecanismos de salvaguarda para evitar os abusos da
experimentação, a "cobaização" do ser humano.
A necessidade de criação de mecanismos de controle sobre a experimentação com
seres humanos tornou-se aguda quando se tomou conhecimento dos abusos cometidos nos
campos de concentração, durante a Segunda Guerra Mundial. Foram comprovados
assassinatos, torturas e outros atos de brutalidade no decorrer dos experimentos científicos. Os
responsáveis pelos abusos foram julgados por crimes de guerra e por crimes contra a
humanidade em Nuremberg. Não deixa de ser surpreendente o fato de que somente em 1946
(anteontem, em sentido metafórico), no bojo das sequelas de uma guerra mundial, a
comunidade tenha então decidido elaborar um Código (Código de Nuremberg) de Ética
contendo os princípios básicos sobre experimentação.
Os deslizes éticos já ocorriam bem antes do Código de Nuremberg; a investigação
histórica revela várias situações em que a ética não foi respeitada; às vezes, nem sequer foi
cogitada. E, após o aparecimento do Código de Nuremberg, não obstante a dramaticidade do
contexto em que nasceu, as infrações éticas, infelizmente, continuaram e continuam a ocorrer.
Já na década de sessenta, Beecher, um dos primeiros na discussão ética em pesquisa,
assinalava que, depois da Segunda Guerra Mundial, o número de experimentos aumentou
muito e nem sempre os mesmos foram conduzidos de modo satisfatório. Beecher levantou
cinquenta trabalhos científicos publicados nas melhores revistas e que, comprovadamente,
continham procedimentos não éticos.
O aumento do número de situações abusivas levou a Organização Mundial de Saúde a
discutir a questão e a rever o Código de Nuremberg. Em 1964, na 18ª Assembleia Médica
Mundial (Finlândia), foi promulgada a nova regulamentação, conhecida como Declaração de
Helsinque I. Em 1975, novamente o assunto é discutido e analisado. Na Assembleia Médica
Mundial (Tóquio-Japão) é revisada a declaração anterior, sofrendo modificações, daí
resultando nova declaração, conhecida com o nome de Declaração de Helsinque 11.
O grande avanço científico e tecnológico ocorrido a partir da década de setenta trouxe
consigo novos desafios para a experimentação de seres humanos não só no sentido individual
como no sentido de comunidade. O fato levou a Organização Mundial de Saúde a elaborar, em
conjunto com o Conselho de Organizações Internacionais de Ciências Médicas, o documento
"Diretrizes Internacionais Propostas para a Pesquisa Biomédica em Seres Humanos", em 1981.
Este documento foi traduzido e editado pelo Ministério da Saúde do Brasil em 1985. Em 1993,
surge nova revisão desse documento. Merece destaque, no Brasil, a Resolução nº 1, de 13 de
junho de 1988, do Conselho Nacional da Saúde, a qual estabelece, com detalhes e de modo
firme, as normas para pesquisa em Saúde. Trata-se de documento de importância fundamental
(embora pouco conhecido) para todo pesquisador da área de saúde. Todos os documentos
citados levam em conta os princípios básicos da Bioética: a não maleficência, a beneficência, a
autodeterminação e a justiça, além do sigilo.
Quanto ao princípio da beneficência, é bom enfatizar que a ideia de beneficência, isto
é, o hábito de fazer o bem, é simplista diante da moderna experimentação com seres humanos.
Na pesquisa médica existem prejuízos e benefícios que precisam ser cuidadosamente
avaliados. Certos benefícios podem vir a justificar alguns prejuízos. Outras vezes é preciso
assumir riscos para conseguir benefícios. A interpretação de beneficência, feita pela Comissão
Nacional para a Proteção de Seres Humanos em Pesquisa Biomédica e Comportamental dos
Estados Unidos, parece adequada. Em linhas gerais, essa comissão definiu beneficência como
a obrigação de garantir o bem-estar do indivíduo e a obrigação de desenvolver informação para
tomar mais fácil, no futuro, dar essa garantia.
Em consequência do princípio da autonomia, todo ser humano tem direito à
autodeterminação, isto é, tem o direito de agir de acordo com os próprios julgamentos e as
próprias convicções; as decisões devem ser em princípio, respeitadas. Nem todo ser humano,
no entanto, é capaz de autodeterminação. A capacidade de autodeterminação amadurece ao
longo da vida e pode ser perdida, total ou parcialmente, por doença, velhice ou situação de
restrição, como prisão, exílio ou asilo. O mesmo ocorre quando existe qualquer tipo de
subordinação ao pesquisador (funcionário, estudante).
É em obediência ao princípio da autodeterminação que se toma obrigatório o
"consentimento pós-informação"; preferimos a expressão "consentimento esclarecido". Em
nome do princípio da justiça, não se pode fazer experimentos apenas com determinados
grupos - pacientes de enfermaria, asilados, prisioneiros, simplesmente porque eles estão à
disposição e em situação de dependência. Isso é injusto.

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