Reflexões sobre a experimentação com seres humanos e animais
Animais:
A interação entre homens e animais sempre esteve presente na trajetória da
humanidade, desde uma época onde os homens viviam em cavernas e encontravam na caça uma forma importante de sobrevivência até chegarmos aos dias atuais, em que, entre outras formas de utilização e interação homem-animal, destaca-se a experimentação animal. Sob o ponto de vista das ciências biomédicas os animais representam um elo importante entre as pretensões científicas e as conquistas de fato, sob o ponto de vista de outros é um tipo de "holocausto" que não deveria existir. Sabemos que ao longo do tempo, caminhando ao lado de toda a evolução científica, caminham as ideias dos homens e por vezes entram em conflito. O final do século XX tornou-se um desses momentos. Quer denominado momento de confronto, quer denominado momento de grande questionamento, o que se coloca em relação aos animais é: "Como nós devemos tratar os animais?", "Eles têm direitos e/ou nós temos deveres para com eles?”. Para alguns críticos, a questão da experimentação animal tem sido abordada como uma questão meramente técnica, isto é, a pertinência de seus métodos é questionada. As perguntas que se colocam são basicamente: "quais os benefícios decorrentes da experimentação animal?", "um animal pode ser usado como ‘modelo’ para outro?", e especialmente "os animais são bons modelos para a espécie humana?". Mas, nessa abordagem também aparece a questão da experimentação como um problema relacionado ao bem-estar animal, isto é, o estresse e a dor aos quais os animais são submetidos podem produzir alterações fisiológicas, as quais podem alterar os resultados obtidos. Para outros, a questão da experimentação animal têm sido abordada como uma questão ética, isto é, a nossa relação com os animais é vista como uma questão da moralidade. Nesse caso, as questões que são colocadas apontam as seguintes preocupações filosóficas: "qual a classe de seres que têm direito à tutela moral plena?", "o que é permitido moralmente fazer aos animais?", "é possível uma distinção moral entre seres humanos e animais?", "em que se baseia essa distinção?”. Além dessas, outras abordagens pertinentes à questão da experimentação animal podem ser consideradas como relacionadas à questão ética, tais como a questão política e a questão jurídica. Sem dúvida, àquilo que me refiro como questão política amplia bastante a discussão, através de questões tais como: "quem decide que tipo de pesquisa é válida?", "qual o propósito da atividade científica?", "quais são os produtos necessários da pesquisa?" A questão jurídica relaciona-se às leis que regulam a nossa interação com os animais em diversos âmbitos, assim como na experimentação animal, e são decorrentes das decisões políticas. Esse estudo aborda a questão da experimentação animal a partir dos dois ângulos principais, isto é, há a intenção de se demonstrar aqui que a experimentação animal é uma questão científica e uma questão ética, e indicar que a "apropriação" por apenas um dos ângulos é mutiladora do debate. O ponto de partida desta reflexão é a rejeição à ideia de que "incluir animais não humanos na nossa esfera ética é uma ambição filosófica sem sentido". Afinal, desde os primeiros tempos da filosofia, de acordo com Sócrates, uma questão filosófica realmente importante é: "como devemos viver nossas vidas?". E, atualmente, entre tantas contradições e oposições relacionadas a questão "como devemos tratar os animais"?", a unanimidade pode ser encontrada no fato de que essa é uma questão que afeta como nós vamos viver, já que os animais estão presentes no nosso convívio diário de diversas formas diretas e indiretas. Uma outra questão, que têm afetado nossas vidas profundamente, é a ciência. Na busca incessante pelo conhecimento, a relação com a natureza foi sendo modificada e, em diversos momentos, o domínio do homem foi criando novas realidades, ampliando o universo em que se encontra e chegamos no momento presente em que, "A vida, pelo conhecimento, chegou ao ponto de poder influenciar a si própria enquanto mecanismo biológico". Mas chegamos a um tempo em que o progresso é também visto como uma complicação cada vez maior ou como o meio para alcançarmos a solução de todos os problemas. Ética e ciência, assim como suas relações, tornaram-se, portanto questões centrais do nosso tempo. Enquanto a "ética é sobre como nós devemos viver", "a arte da escolha moral demanda uma delimitação realista do domínio do exequível". O significado disso se traduz na importância de se buscar conhecer os fatos, sem, no entanto incorrer no engano de se confundir fatos e valores (a chamada falácia naturalística), ha de se pensar o universo dos fatos isento de valorações de tipo também moral. A compreensão do problema moral da experimentação animal exige transpor a dificuldade representada pela carência de uma "transfertilização" entre os campos do conhecimento. Tendo em mente essa questão, é que foi feita a opção nesse estudo de se apontar as múltiplas considerações em que os argumentos e a reflexão precisam ser conduzidos, enquanto se oferece uma visão das múltiplas idéias e conceitos em debate. Com esse propósito o "problema" da experimentação animal é considerado a partir de três diferentes eixos temáticos. O primeiro deles é o próprio universo da experimentação animal no âmbito científico que pretende mapear o significado dessa experimentação na vida moderna, isto é, para que, como, quais e quantos são os animais utilizados. Além disso, percorre-se a instauração desse paradigma central das ciências biomédicas, que é a experimentação animal, e a possibilidade de seu deslocamento para os chamados métodos alternativos. As visões da defesa e da crítica desse método científico são demonstradas, já que essa é uma importante vertente de análise da questão. O perfil atual dessa prática, a partir da interferência da sociedade, que tem resultado em diferentes mecanismos de controle, é explicitado a fim de contribuir na explicitação da "questão científica". O segundo eixo temático diz respeito ao campo da moralidade. Dessa forma, teremos um percurso de ideias - da Grécia antiga até os dias atuais - sobre "quem é esse animal?". Os pensamentos estão organizados no sentido de que se possam observar as tentativas de ampliação da esfera moral, apontando uma crise do antropocentrismo. O movimento da ética aplicada e as principais correntes do pensamento contemporâneo sobre o "status moral" dos animais serão apresentadas, a fim de explicitar a "questão ética". Finalmente discute-se o "argumento dos casos marginais", buscando-se mostrar como esse é um argumento central, a fim de revelar as incoerências das nossas narrativas. A noção de que os diferentes contra-argumentos oferecidos não conseguem refutá-lo é defendida aqui. Uma consideração relevante se faz necessária quanto ao vocabulário utilizado no decorrer do texto. Sabendo-se que cada termo carrega consigo uma determinada conotação, cabe esclarecer que "seres não humanos" e "animais" estão sendo utilizados aleatoriamente, sem a intenção de endossar qualquer posicionamento quando se utiliza um ou outro, assim como os termos "experimentação" e "vivissecção", e outros que porventura vão aparecer. Toda essa busca de uma narrativa que faça sentido no contexto atual do debate da experimentação animal é relevante se, de fato, acreditamos que uma "moral vale na medida em que ela se propõe a nos colocar em jogo" e não possa ser resumida "com uma palavra servil: imperativo". Nesse caso, antes de se dar início a partida, é preciso levar em conta duas proposições básicas: 1- quanto às "regras do jogo" – a questão da imparcialidade nos julgamentos morais é um elemento essencial de qualquer sistema ético. E então, após uma análise imparcial é que se verifica a aplicabilidade da bioética, ao recrutar os melhores argumentos a fim de sustentar os comportamentos, e portanto, considerados moralmente melhores. 2- quanto aos "jogadores" – a questão dos critérios eleitos para atribuição do "status moral" é relevante para se definir o "jogador". É nesse momento que começaremos a entender o papel das "razões" e das "emoções", dos seres humanos e dos seres não humanos.
Humanos:
O desenvolvimento da ciência em seus diferentes ramos deu-se a partir das ciências
experimentais; se aceita como marco referencial do nascimento da experimentação científica o século XVI, com Galileu. Galileu tem importância histórica não só pelas suas descobertas e invenções, mas, principalmente, pela postura por ele assumida na procura da verdade: a verdade não deveria ser aceita simplesmente porque os escolásticos ou a Igreja afirmavam ser verdade; a verdade deveria ser buscada por meio da experimentação e da observação. Nasce assim a ciência experimental, a partir da qual, durante dois a três séculos, desenvolve-se e consolida-se a Revolução Científica. A partir do século XVII, a cada 10-15 anos, vem duplicando o número de cientistas; assim, nos dias de hoje, o número de cientistas vivos e atuantes é maior do que o número de cientistas que o mundo já teve e já morreram e, daqui, a 10-15 anos, o número de pessoas dedicadas à ciência será o dobro do número atual. Ora, este contingente de cientistas, nos vários campos da ciência, dia-a-dia nos traz novos conhecimentos e novas descobertas, os quais inevitavelmente acabarão de uma ou outra maneira, atingindo o homem para o bem ou para o mal. Somente neste século já tivemos duas grandes Revoluções: a Revolução Atômica (radioisótopos, medicina nuclear, bomba atômica) e a Revolução Molecular, em andamento (geneterapia, manipulação genética etc). E toda nova aplicação do conhecimento ao ser humano, em sua fase inicial, será de natureza experimental. Na realidade, quando se fala em experimentação com seres humanos pensa-se quase que exclusivamente na experimentação no campo da Medicina. Esta vinculação é compreensível, pois a experimentação na área médica é mais visível e de efeitos mais patentes, em geral. Contudo, é bom assinalar que seres humanos são utilizados em experimentação por profissionais e cientistas de outras áreas: odontólogos, nutricionistas, farmacêuticos, fisioterapeutas, psicólogos, profissionais da área de educação física e de esporte, educadores e, também, economistas. Muitas vezes, o que é grave, nem se reconhece o caráter experimental do que está sendo estudado e nem se obedece à metodologia científica adequada; isso ocorre também na área médica. O ser humano é, às vezes, sujeito de inovações que nem passaram pelo crivo de experimentação prévia e só se torna evidente o fenômeno quando surgem complicações ou efeitos deletérios. Basta citar o que vem ocorrendo no campo dos efeitos das energias de alta frequência e com os aditivos e agrotóxicos. A experimentação com seres humanos tem sido feita ao longo dos séculos, com diferentes padrões de ética e de qualidade, em todo o mundo. De um lado, deve-se assegurar, por meio da experimentação, a aplicabilidade dos novos conhecimentos para o bem da humanidade e, de outro, devem-se criar mecanismos de salvaguarda para evitar os abusos da experimentação, a "cobaização" do ser humano. A necessidade de criação de mecanismos de controle sobre a experimentação com seres humanos tornou-se aguda quando se tomou conhecimento dos abusos cometidos nos campos de concentração, durante a Segunda Guerra Mundial. Foram comprovados assassinatos, torturas e outros atos de brutalidade no decorrer dos experimentos científicos. Os responsáveis pelos abusos foram julgados por crimes de guerra e por crimes contra a humanidade em Nuremberg. Não deixa de ser surpreendente o fato de que somente em 1946 (anteontem, em sentido metafórico), no bojo das sequelas de uma guerra mundial, a comunidade tenha então decidido elaborar um Código (Código de Nuremberg) de Ética contendo os princípios básicos sobre experimentação. Os deslizes éticos já ocorriam bem antes do Código de Nuremberg; a investigação histórica revela várias situações em que a ética não foi respeitada; às vezes, nem sequer foi cogitada. E, após o aparecimento do Código de Nuremberg, não obstante a dramaticidade do contexto em que nasceu, as infrações éticas, infelizmente, continuaram e continuam a ocorrer. Já na década de sessenta, Beecher, um dos primeiros na discussão ética em pesquisa, assinalava que, depois da Segunda Guerra Mundial, o número de experimentos aumentou muito e nem sempre os mesmos foram conduzidos de modo satisfatório. Beecher levantou cinquenta trabalhos científicos publicados nas melhores revistas e que, comprovadamente, continham procedimentos não éticos. O aumento do número de situações abusivas levou a Organização Mundial de Saúde a discutir a questão e a rever o Código de Nuremberg. Em 1964, na 18ª Assembleia Médica Mundial (Finlândia), foi promulgada a nova regulamentação, conhecida como Declaração de Helsinque I. Em 1975, novamente o assunto é discutido e analisado. Na Assembleia Médica Mundial (Tóquio-Japão) é revisada a declaração anterior, sofrendo modificações, daí resultando nova declaração, conhecida com o nome de Declaração de Helsinque 11. O grande avanço científico e tecnológico ocorrido a partir da década de setenta trouxe consigo novos desafios para a experimentação de seres humanos não só no sentido individual como no sentido de comunidade. O fato levou a Organização Mundial de Saúde a elaborar, em conjunto com o Conselho de Organizações Internacionais de Ciências Médicas, o documento "Diretrizes Internacionais Propostas para a Pesquisa Biomédica em Seres Humanos", em 1981. Este documento foi traduzido e editado pelo Ministério da Saúde do Brasil em 1985. Em 1993, surge nova revisão desse documento. Merece destaque, no Brasil, a Resolução nº 1, de 13 de junho de 1988, do Conselho Nacional da Saúde, a qual estabelece, com detalhes e de modo firme, as normas para pesquisa em Saúde. Trata-se de documento de importância fundamental (embora pouco conhecido) para todo pesquisador da área de saúde. Todos os documentos citados levam em conta os princípios básicos da Bioética: a não maleficência, a beneficência, a autodeterminação e a justiça, além do sigilo. Quanto ao princípio da beneficência, é bom enfatizar que a ideia de beneficência, isto é, o hábito de fazer o bem, é simplista diante da moderna experimentação com seres humanos. Na pesquisa médica existem prejuízos e benefícios que precisam ser cuidadosamente avaliados. Certos benefícios podem vir a justificar alguns prejuízos. Outras vezes é preciso assumir riscos para conseguir benefícios. A interpretação de beneficência, feita pela Comissão Nacional para a Proteção de Seres Humanos em Pesquisa Biomédica e Comportamental dos Estados Unidos, parece adequada. Em linhas gerais, essa comissão definiu beneficência como a obrigação de garantir o bem-estar do indivíduo e a obrigação de desenvolver informação para tomar mais fácil, no futuro, dar essa garantia. Em consequência do princípio da autonomia, todo ser humano tem direito à autodeterminação, isto é, tem o direito de agir de acordo com os próprios julgamentos e as próprias convicções; as decisões devem ser em princípio, respeitadas. Nem todo ser humano, no entanto, é capaz de autodeterminação. A capacidade de autodeterminação amadurece ao longo da vida e pode ser perdida, total ou parcialmente, por doença, velhice ou situação de restrição, como prisão, exílio ou asilo. O mesmo ocorre quando existe qualquer tipo de subordinação ao pesquisador (funcionário, estudante). É em obediência ao princípio da autodeterminação que se toma obrigatório o "consentimento pós-informação"; preferimos a expressão "consentimento esclarecido". Em nome do princípio da justiça, não se pode fazer experimentos apenas com determinados grupos - pacientes de enfermaria, asilados, prisioneiros, simplesmente porque eles estão à disposição e em situação de dependência. Isso é injusto.