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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE CIÊNCIAS DA SOCIEDADE E DESENVOLVIMENTO


REGIONAL
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

ANA TEREZA CARVALHO VIANA

AS MÚLTIPLAS FORMAS DE INCORPORAÇÃO DOS ÍNDIOS À CONQUISTA


PORTUGUESA NA AMÉRICA: UMA ANÁLISE HISTORIOGRÁFICA

CAMPOS DOS GOYTACAZES - RJ

JUNHO/2023
O presente trabalho parte da premissa de que ''[...] a história constitui um dentre uma série de
discursos a respeito do mundo. Embora esses discursos não criem o mundo (aquela coisa física na
qual aparentemente vivemos), eles se apropriam do mundo e lhe dão todos os significados que
têm.’’ (JENKINS, 2001, p.23). Jenkin compreende que a história enquanto discurso é elaborada por
uma metodologia, uma ideologia e uma epistemologia. A epistemologia histórica é o discurso sobre
o conhecimento, é o que é possível saber e como é possível saber. Assim, convém elencar que
pretende-se neste trabalho, discutir brevemente o que sabemos acerca das formas de incorporação
dos índios na conquista portuguesa da América, através da breve análise de três trabalhos
historiográficos.

Em relação a história do Brasil, há de se notar que desde os anos 1970, a escrita da história do
Brasil tem se renovado, seja em relação às abordagens, ou, às temáticas trabalhadas, o que resultou
em uma virada epistemológica, isto é, novas leituras sobre o passado brasileiro (Almeida, 2017). É
evidente que os indígenas até então, foram pouquíssimas vezes objeto do estudo histórico. Dessa
forma, uma das temáticas que surge na historiografia brasileira nos anos 1990, é a temática
indígena, segundo Santos (2017, n.p) ‘‘[...] a construção da historiografia em torno da questão
indígena conformou-se com as contribuições da Arqueologia, da Etnologia e da História, cuja
amarração se encontra na Antropologia.’’. Até o final dos anos 80, a participação indígena no
processo de formação do Brasil era invisibilizada, a participação indígena começa ser discutida no
processo de promulgação da Constituição de 1988, pois

[...] logrou-se assegurar a garantia de um espaço de discussão acerca dos direitos territoriais e de
manutenção dos costumes tradicionais dos indígenas. Sob esse impulso, por um lado,
proliferaram os movimentos sociais e lideranças indígenas; por outro, também ganharam lugar
os estudos sobre a autenticidade de pertença étnica de diferentes territórios indígenas. A partir
de então, no Brasil, abriu-se espaço para a militância de caráter indigenista, vinculando os
aportes antropológicos à História, a partir de um compromisso de defesa das comunidades
indígenas. (SANTOS, 2017, n.p)

É com o aparecimento desta discussão que surgiu uma nova abordagem histórica que tinha
interesse em compreender as formas de atuação dos indígenas, colocando-os enquanto sujeitos do
processo histórico. Surge assim, uma abordagem, onde cabia ao historiador ‘‘[...] recuperar o papel
histórico de atores nativos na formação das sociedades e culturas do continente, revertendo o
quadro hoje prevalecente, marcado pela omissão ou, na melhor das hipóteses, por uma visão
simpática aos índios [...]’’ (Monteiro, 2004, p.227). Dessa maneira, este trabalho analisará
brevemente os trabalhos de Monteiro (2013), Domingues (2000) e Almeida (2014), que foram
elaborados elencando a participação indígena no processo histórico da conquista portuguesa na
América.

A partir do século XV, a Coroa Portuguesa iniciou o processo das navegações marítimas. As
navegações marítimas foram um projeto de expansão comercial, religiosa e territorial. É por meio
deste processo que os portugueses encontram o chamado “Novo Mundo” (América), e se iniciam os
primeiros contatos com os indígenas, marcado por dificuldades na comunicação e pelo surgimento
de muitas doenças que causaram epidemias e que resultaram no desaparecimento de vários grupos
indígenas. Assim, se iniciou o processo de colonização que efetivou a conquista portuguesa na
América.

Os trabalhos de Monteiro (2013), Domingues (2000), e Almeida (2014), estão interligados em


relação a sua temática. Uma vez que, todos tratam a respeito das múltiplas formas de incorporação
dos índios, na conquista portuguesa da América. O trabalho de Monteiro (2013) discute o
surgimento do sistema escravista baseado na mão de obra indígena, por meio da atividade sertanista
no Brasil. Enquanto o trabalho de Domingues (2000) vai discutir o estabelecimento dessa forma de
escravidão com base na legislação, que objetivava legitima-la. Já o trabalho de Almeida (2014), vai
destacar a dimensão religiosa na expansão ultramarina portuguesa, evidenciando o papel dos
missionários e dos índios nesse projeto. Por isso, pretende-se aqui analisar brevemente o panorama
histórico que nos é oferecido a respeito da participação indígena no processo de conquista
portuguesa por meio destes trabalhos.

Para entender a participação indígena neste processo, é preciso entender que, este é um processo
que é possível notar uma confusão no que diz respeito a tal participação, pois

[...] os ameríndios do Brasil eram considerados homens livres, quer de acordo com as leis do
reino, quer em concordância com as leis de Deus. Decretos reais e bulas papais repetiam-se, já
desde o século XVI, em considerações sobre a humanidade dos índios e a liberdade das pessoas
e dos bens dos habitantes naturais dos territórios americanos pertencentes às monarquias
peninsulares. (Domingues, 2013, p.45)
Contudo, é notável também por meio dos trabalhos analisados que não eram todos os ameríndios
que eram considerados homens livres. Isto porque, conforme Almeida (2014) o desenvolvimento da
colônia, realizou-se de acordo com a dinâmica local, que era moldada conforme as relações entre a
população nativa e os agentes coloniais. E esses agentes coloniais delinearam um projeto colonial
baseado em altos lucros e baixos custos. Ainda conforme Almeida (2014, p.436) ‘‘A conquista do
território das várias regiões do continente deu-se através de guerras violentas, nas quais os índios
tiveram participação essencial tanto na condição de inimigos como de aliados.’’. Assim, percebe-se
que neste processo de conquista do território, os índios tinham ora a liberdade absoluta, ora o
cativeiro legal condicionado.

O trabalho de Domingues (2000) nos aponta que vários autores na historiografia já abordaram à
questão da escravidão indígena. Contudo, para a Domingues, foram os trabalhos da antropóloga
Beatriz Perrone-Moisés e o da historiadora Nádia Farage que sistematizaram o assunto de maneira
clara. Isso porque, o trabalho da Perrone-Moisés discute a notável confusão legislativa promulgada
pela Coroa portuguesa contrapondo com as opções jurídicas que foram realizadas pelos índios,
sejam eles aldeados e aliados, sejam eles inimigos. E, o trabalho da Farage discute a função
econômica que foi desempenhada pelos indígenas, elucidando suas classificações por meio da
distinção entre os escravos e livres.

Para Almeida, é preciso compreender o ideal religioso, pois ‘‘Reconhecer o ideal religioso da
conquista e da colonização da América não implica subestimar os interesses políticos e econômicos
aí associados, mas enfatizar o vínculo estreito entre esses aspectos, indissociáveis, deve-se dizer
[...]’’ (ALMEIDA, 2014, p.435). Assim, se pretendemos discutir a relação entre a população nativa
e os agentes coloniais, é preciso entender sobretudo quem cumpria este papel. O trabalho de
Almeida nos aponta que o projeto de colonização associou-se, ao projeto de catequese das
populações indígenas. E que, ‘‘Coroa e Igreja associaram-se, através do Padroado Real Português,
com uma aliança estreita, definindo direitos e deveres [...]’’ (ALMEIDA, 2014, p.437). Assim

A missão de levar o evangelho ao ultramar foi delegada, preferencialmente, ao clero regular,


reconhecido, desde os tempos medievais, por uma indiscutível superioridade ética, disciplinar e
intelectual em relação aos seculares, que, além de poucos, não tinham muita disposição para se
deslocarem a regiões inóspitas. O encargo foi acompanhado de privilégios concedidos pelo
papado e pela Coroa, privilégios esses que os religiosos esforçaram-se por aumentar, tendo
gerado inúmeros conflitos e uma tensão contínua [...]. (ALMEIDA, 2014, p.437)
Ainda a respeito da relação entre a população nativa e os agentes coloniais, convém destacar que o
trabalho de Monteiro (2013) apresenta uma perspectiva interessante entre tal relação ao abordar a
atividade sertanista no Brasil. O sertanismo foi uma atividade que iniciou no século XVIII e tinha
como objetivo, capturar indígenas dentro do sertão brasileiro, tal atividade foi marcada por uma
aliança entre indígenas e europeus, conforme Monteiro (2013, n.p)

A semente do sertanismo estava inscrita nestas alianças em dois sentidos importantes. Primeiro,
as lideranças indígenas buscavam aliados portugueses para aumentar prestígio e seu poder de
fogo em guerras contra outros grupos, que envolviam expedições para capturar inimigos e
perpetuar a vingança. Em segundo lugar, as uniões entre os portugueses e as índias produziram
filhos mestiços [...]

Assim, o que o trabalho do Monteiro nos apresenta sobre a participação indígena no processo de
conquista portuguesa da América, é que os próprios indígenas contribuiram para o processo de
colonização e escravidão. No entanto, o autor vai nos mostrar que houve fatores que dificultaram a
escravidão. O autor aponta que essa escravidão foi dificultada pela a pressão que os jesuítas faziam
para proibir o cativeiro dos índios, e, pelo surgimento de inúmeras doenças contagiosas.

Outra contribuição a respeito dessa relação, é feita por Domingues (2000), que indica em seu
trabalho que do início do século XVII até meados do século XVIII, a Junta das Missões, era a
instituição responsável pelos ameríndios, de maior importância para determinar os assuntos na
relação entre os índios e o governo. Segundo a autora, a Junta das Missões, atuava com um corpo
legislativo que prestava suporte teórico, e, junto com as Câmaras, utilizava ‘‘[...] uma série de
informações que lhes advinham dos relatórios e das representações dos missionários espalhados
pelo sertão, e, pelos informes de moradores, de soldados, e de funcionários que, por vezes,
pertenciam as tropas de resgate ou as tropas de guerra.’’ (DOMINGUES, 2000, p.50). Outra ordem
que ganha destaque nos trabalhos analisados é a ordem religiosa Companhia de Jesus, conforme
Almeida (2014, p.240)

[...] o principal objetivo da Companhia era religioso e adquiriu força política e econômica no
decorrer dos três séculos de colonização, isso se deu de forma concomitante ao esforço
ideológico da catequese. Estabeleceram-se na colônia, fundaram colégios, criaram aldeias,
implantaram fazendas e outras atividades econômicas com as quais construíram considerável
patrimônio, para o que exploraram, não resta dúvida, o trabalho dos índios (aldeados e escravos)
e dos escravos negros). Para a realização dos seus objetivos não abriram mão do poder temporal
e da coerção física, mas a isso aliaram práticas de adaptação e tolerância aos costumes das
populações locais, o que lhes valheu grandes esforços.
Segundo Domingues (2000, p.47) ‘‘A legitimação da escravatura baseava-se em duas
justificações: a guerra justa e o resgate.’’. Contudo, a autora indica que as causas para essa
legitimação nunca foram um assunto claro. Para a historiadora, ‘‘As causas pelas quais uma guerra
era considerada justa foram, ao longo do tempo, diversas, e foram, sobretudo adaptadas a uma
ideologia da expansão após os primeiros contatos dos povos ibéricos [...].’’ (DOMINGUES, 2000,
p.47). A autora indica também que, a principal tese da guerra justa era a defesa da propagação da fé
a serviço de Deus, isso faz com que a recusa à conversão, o impedimento da propagação da fé, e,
outras práticas hostis, fossem consideradas motivos evidentes na justeza de uma guerra. Assim,
conforme a autora, ‘‘Se considerarmos que a guerra justa era uma das formas de legalizar a
escravização de mão-de-obra, percebe-se o poder que a autoridade, para a declarar enquanto
legítima forma de apreensão de escravos, conferia a uma determinada entidade.’’ (DOMINGUES,
2000, p.47-48).

Dessa forma, cabe por último evidenciar que este presente trabalho mostrou através de uma breve
análise dos trabalhos de Monteiro (2013), Domingues (2000) e Almeida (2014), um panorama
histórico onde é possível notar como se deu as múltiplas formas na qual indígenas participaram
durante o processo de conquista portuguesa na América. Se tornou evidente que este processo é
marcado por muitos antagonismos, disputas, confrontos e revoltas, entre diferentes grupos da
sociedade colonial, acerca do apresamento e da repartição dos ameríndios. Assim, evidenciou-se
que os trabalhos analisados, foram elaborados por uma perspectiva que retira os índios do papel
invisibilizado no início da colonização que antes eram colocados.
Referências

MONTEIRO, John. Bandeiras indígenas. In: FIGUEIREDO, Luciano (org.). História do Brasil para
ocupados. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2013.

MONTEIRO, John Manuel. O desafio da História Indígena no Brasil. In. GRUPIONI, Luís
Donisete B.; DA SILVA, Aracy L.. (Orgs.). A temática indígena na escola. Novos subsídios para
professores de 1º e 2º graus. 4ª Ed. São Paulo: Global: Brasília: MEC: MARI, 2004.

DOMINGUES, Ângela. “Os conceitos de guerra justa e resgate e os ameríndios do Norte do


Brasil”. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Escravidão e Colonização. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2000, pp. 45-56.

ALMEIDA, Maria Regina Celestino. Catequese, aldeamentos e missionação. In: João Fragoso &
Fátima Gouvêa (Org.). O Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, vol. I:
1443-1580,pp. 435-478.

​SANTOS, Maria Cristina dos. Caminhos historiográficos na construção da História Indígena.


História Unisinos, São Leopoldo, v. 21, n. 3, p. 337-350, 2017.

​JENKINS, Keith. A História repensada. Tradução de Mario Vilela. Revisão Técnica de Margareth
Rago. São Paulo: Contexto, 2001

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