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AS IDÉIAS DE LÉVI-STRAUSS

Edmund Leach

Claude Lévi-Strauss é, reconhecidamente, um dos mais


importantes e discutidos antropólogos sociais da atualidade.
No entanto, suas teorias, pela "audaciosa originalidade" bem
como pela "desconcertante complexidade" de que se reves-
tem,. não são de fácil entendimento. Daí a utilidade deste
AS IDÉIAS DE LÉVI-STRAUSS para o público universitário, par-
ticularmente para os estudantes de Ciências Sociais. Escrito
por um professor de Antropologia Social da Universidade de
Cambridge - O qual, discordando embora de Léoi-Strauss
em muitos pontos, timbra sempre em oferecer uma descrição
idônea e abrangente das suas opiniões e métodos -, o presente
volume tem, a recomendá-lo, a clareza didática de sua expo-
sição, que alcança tornar compreensível ao leitor as bases
teóricas do estruturalismo em geral e do pensamento de Léci-
-Strauss, em particular.

Edmund Leach

EDITORA CULTRIX mestres da modernidadejcultrix


Título do original:

LÉVI-STRAUSS

Publicado na série Fontana Modern Masters,


dirigida por Frank Kermode

Copyright © Edmund Leach, 1970

íNDICE
2." edição

A primeira edição deste livro foi co-editada


1. O Homem 9
fi)
COIll li

Editora da Universidade de São Paulo Ostras, Salmão Defumado e Queijo Stilton 23


~ O Animal Humano e Seus Símbolos 37
4. A Estrutura do Mito 53
(]) Palavras e Coisas 79
6. As Estruturas Elementares do Parentesco 89
7.
'--../ "Máquinas Para a Supressão do Tempo" 105
Notas 113
Referências 115
Leituras Adicionais 118
Agradecimentos 119

MCMLXXVIl

Direitos de tradução para a língua portuguesa


adquiridos com exclusividade pela
EDITORA CUL TRIX LTDA.
Rua Conselheiro Furtado, 648, fone 278-4811, S. Paulo,
que se reserva a propriedade literária desta tradução

Impresso no Brasil
Printed in Brasil
1. O HOMEM

Claude Lévi-Strauss, Professor de Antropologia Social no


Collêge de France, é, por opinião unânime, o mais notável
expoente dessa particular atividade acadêmica que pode ser
encontrada em qualquer parte, fora do mundo de fala inglesa;
mas os especialistas que a si próprios se intitulam antropólogos
sociais são de duas espécies. O protótipo da primeira espécie
foi Sir James Frazer (1854-1941), autor de The Golden Bough
(O Ramo Dourado). Era um homem de monumental erudição
que não tinha um conhecimento direto da vida dos povos pri-
mitivos a cujo respeito escreveu. Frazer esperava descobrir
verdades fundamentais sobre a natureza da psicologia humana
comparando os detalhes da cultura humana num mundo obser-
vado em vasta escala. O protótipo da segunda espécie foi
Bronislaw Malinowski (1884-1942), nascido na Polônia mas
naturalizado inglês, o qual passou a maior parte de sua vida
acadêmica analisando os resul tados das pesquisas que pessoal-
mente realizara, num período de quatro anos, numa única e
minúscula aldeia da longínqua Melanésia. O seu propósito era
mostrar como essa exótica comunidade "funcionava" como um
sistema social e como os seus membros individuais viviam suas
vidas, do berço à sepultura. Malinowski estava mais interessado
nas diferenças entre culturas humanas do que em sua seme-
lhança global.
A maior parte dos que atualmente se intitulam antropólo-
gos sociais, tanto na Grã-Bretanha como nos Estados Unidos,
afirmam ser "funcionalistas"; de um modo geral, são antropó-
logos no estilo e tradição de Malinowski. Em contraste, Claude
Lévi-Strauss é um antropólogo social na tradição de Frazer -
mas não ao seu estilo. A sua preocupação básica consiste em

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estabelecer fatos que sejam verdadeiros a respeito de "a mente intelectuais, estudiosos da literatura, da política, da filosofia
humana", mais do que apurar a organização de qualquer socie- antiga, da teologia e da arte. A .finalidade deste livro é for~ecer
dade ou classe de sociedades. A-diferença é fundamental. algumas indicações sobre os motivos que c?ncorreram para ISSO.
No seu tempo, Malinowski gozou de três espécies de cele- Mas, primeiro, devo declarar um preconceito pessoal.
bridade. O seu renome junto do grande público era o de um Eu fui um discípulo de Malinowski e ainda sou, no fundo,
profeta do amor livre. Embora insípidas pelos padrões moder- um "funcionalista", conquanto reconheça as limitações da teoria
nos, as suas descrições das excentricidades sexuais dos nativos peculiar a Malinowski. Embora tenha empregado, ocasional-
das Trobriandes foram classificadas como algo que tocava as mente os métodos "estruturalistas" de Lévi-Strauss para escla-
raias da pornografia. O entusiasmo quase apaixonado dos cole- recer caracteristicas particulares de determinados sistemas cultu-
gas de profissão assentava em outras bases: primeiro, a novidade rais a diferença entre a minha posição geral e a de Lévi-Strauss
dos seus métodos de pesquisa de campo, que hoje são univer- é muito profunda. Essa diferença de ponto de vista certam~nte
salmente imitados; e, segundo, os dogmas da sua marca especial se manifestará ao longo das páginas que se seguem. A minha
de "funcionalismo", um estilo mecanístico e supersimplificado de
principal tarefa é proceder a uma descrição do~ métodos e ,opi-
teorização sociológica hoje encarado, de um modo geral, com
niões de Lévi-Strauss, e não oferecer ao leitor comentanos
um certo desdém.
pessoais; mas não posso fingir que sou um observador neutro
O currículo de Lévi-Strauss tem sido muito diferente. e desinteressado.
Desde o início, foi sempre um verdadeiro intelectual-erudito, o
scholar típico. Pondo de parte algumas fotografias cativantes
de mulheres nuas da região amazônica, enfiadas no final de O meu interesse é pelas idéias de Lévi-Strauss e não pela
Tristes Tropiques (Tristes Trópicos) (1955), absteve-se de re- sua biografia mas, como a sua bibliografia, a partir de 1936,
correr a truques popularizantes do gênero que levou Malinows- já inclui dez livros e mais de 100 artigos substanciais, não há
ki a intitular uma de suas monografias das Trobriandes como dúvida de que tenho uma formidável tarefa pela frente. Ninguém
The Sexual Liie 01 Sauages (A Vida Sexual dos Selvagens). poderá analisar essa avalancha sem introduzir algumas distorç~es
Pelos padrões de Malinowski, a pesquisa de campo de Lévi- e eu vou tornar as coisas ainda piores ignorando a cronologia.
-Strauss é de uma qualidade apenas moderada. A característica Começarei pelo meio e dai trabalharei ora para trás, or.a. para
mais destacada de seus escritos, em francês ou em inglês, é diante. Existe uma justificação pessoal para essa excentricidade
que são difíceis de entender; as suas teorias sociológicas com- que precisa ser explicada.
binam uma desconcertante complexidade com uma esmagadora
Podemos considerar os escritos de Lévi-Strauss como uma
erudição. Alguns leitores até suspeitam de que estão sendo
estrela de três pontas irradiando em torno do livro autobiogr~-
vítimas de um truque de malabarismo ou, por outras palavras,
fico, etnográfico e itinerante Tristes Tropiques (195?). As tres
que estão sendo vigarizados. Ainda hoje, apesar do seu imenso
pontas da estrela seriam então rotuladas: (1), teoria de paren-
prestígio, os críticos entre seus colegas profissionais superam
tesco, (2) lógica do mito e (3) teoria de classificação primiti~a.
em grande número os discípulos. Entretanto, a sua importância
Em minha opinião tendenciosa, a primeira destas, que é tambem
acadêmica é indiscutível. Lévi-Strauss é admirado não tanto
a mais antiga, é a de menor importância. Isto é um juízo. de
pela novidade de suas idéias como pela audaciosa originalidade
valor de que o nosso autor não compartilha. Em seus escritos
com que procura aplicá-Ias. Sugeriu novas maneiras de observar
ulteriores, Lévi-Strauss reporta-se freqüentemente aLes Struc-
fatos conhecidos; o método é que é interessante, mais do que
tures élémentaires de Ia parenté (As Estruturas Elementare~ .do
as conseqüências práticas do uso que lhe tem sido dado.
Paren tesco) (1949) como se esse livro fosse um marco decisivo
O método, como tal, é tanto lingüístico quanto antropo- na história da antropologia social e, recentemente, ele publicou
lógico e despertou excitação entre muitos e diferentes setores uma edição substancialmente revista (1967), a qual inclui um
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II
vigoroso e polêmico contra-ataque endereçado às opiruoes da- estiveram em movimento o tempo quase todo. Tudo o que
queles admiradores ingleses que, como eu, se atreveram a sugerir Lévi-Strauss escreveu sobre os índios Nhambiquaras, do norte
que partes da sua teoria não se ajustam aos fatos. do Mato Grosso, e Tupi-Kauahib, do Alto-Machado, parece
ter sido baseado nessa experiência.
Obviamente, um livro deste gênero não pode fornecer-me 1939:40 Na França, em serviço militar.
uma base a partir da qual se desenvolva um comentário com- 1941 (Primavera) Viaja para Nova Iorque, via Martinica e Porto
preensivo sobre a atitude geral de Lévi-Strauss, Assim, deixá- Rico, para assumir o cargo na New School 01 Social Re-
-lo-ei para o fim. Entrementes, necessitamos de uma orientação search, cargo esse que lhe foi arranjado por Robert Lowie,
cronológica. O Quadro A fornece datas para uma série de E. Metraux e Max Ascoli.
1945 Colabora com o artigo "L'analyse structurale en linguistique
eventos significativos.
et en anthropologie" para Word: [ournal 01 the Linguistic
Circle 01 New York (revista fundada por Rornan Jakobson e
QUADRO A. Cronologia da Vida de Claude Léui-Strauss a seus associados).
1946-47 Adido Cultural da França nos Estados Unidos.
Ano Acontecimento Publicação de La Vie [amiliale et sociale des lndiens Nham-
1948
1908 Nasce na Bélgica (Bruxelas) . biquara (Paris: Société des Américanistes).
1914-18 Vive com seus pais (o pai era um artista) nos arredores de 1949 Publicação de Les Structures élémentaires de ia parenté (1.a
Versalhes. edição, Paris: Presses U niversitaires de France).
1927-32 Estudante na Universidade de Paris, onde se forma em Di- 1950 Diretor de Estudos na École Pratique des H autes Êtudes,
reito e faz concurso para professor de Filosofia. Suas leituras Universidade de Paris (Laboratório de Antropologia Social).
incluíam as obras dos "mestres da Escola Francesa de Socio- 1950 Breve excursão para trabalho de campo em Chittagong, Pa-
logia" - presumivelmente, Saint Simon, Comte, Durkheim quistão Oriental.
e Mauss. b Publicação de Race and History (Paris: UNESCO).
1952
1932-34 Trabalha como professor num lycée. 1953-60 Secretário-Geral do Conselho Internacional de Ciências Sociais.
1934 Graças ao patrocínio de Celestin Bouglé, c Diretor da Êcole 1955 Publicação de "The Structural Study of Myth", Journal 01
Normale Superieure, é-lhe oferecido um cargo de Professor American Folklore (Vol. 68, n.? 270, págs. 428-44), e Tristes
de Sociologia na Universidade de São Paulo, Brasil. T ropiques (Paris: Plon) .
1934-37 Professor de Sociologia da Universidade de São Paulo. d Du- 1958 Publicação de Anthropologie Structurale (Paris: Plon).
rante esse período, parece ter voltado à França em numerosas
1959 Nomeado para a cátedra de Antropologia Social no Collêge
ocasiões. Realizou também várias visitas breves ao interior
de France.
do Brasil, para se dedicar a investigações etnográficas. No
final do período, totalizara uns cinco meses de experiências 1960 Publicação de "La Geste d'Asdiwal" (Annuaire de l'E.P.H.E.,
de campo. 5.a seção, Ciências Religiosas, 1958-59: Paris).
1934? Lê em inglês Primitive Society (1920), de Lowie ; foi o seu 1962 Publicação de Le Totémisme aujourd'hui e La Pensée sauvage.
primeiro contato com uma obra antropológica, escrita por 1964 Publicação de Mythologiques, Vol. I: Le Cru et le cuit.
um especialista na matéria. A tradução francesa do livro de 1967 Publicação de Mythologiques, Vol. 11: Du Miei aux cendres.
Lowie, por E. Metraux, só seria publicada em 1935. 1967 Publicação de Mythologiques, Vol. lU: L'Origine des maniê-
1936 Primeira publicação antropológica: um artigo de 45 páginas res de table.
sobre a organização social dos índios Bororos. 1968 Distinguido com a Medalha de Ouro do Centre National de
1938-39 Tendo se demitido do serviço da Universidade de São Paulo, Ia Recherche Scientiiique, "a mais alta distinção científica
obteve apoio financeiro do Governo francês para uma expe- francesa".
dição mais extensa ao Brasil Central. Os detalhes dessa
expedição são difíceis de determinar. Inicialmente, Lévi- a As fontes são várias; até 1941, a maioria das informações provém
-Strauss teve dois companheiros científicos empenhados em de Tristes T'ropiques. O autor agradece ao Professor Lévi-Strauss
outras espécies de pesquisa. O grupo deixou sua base em algumas correções feitas no texto, tal como foi originalmente redigido.
Cuiabá, em junho de 1938, e atingiu a confluência dos rios b Lévi-Strauss também recorda que, desde muito cedo, se interessara
Madeira e Machado no fim desse ano. Segundo parece, intensamente pela geologia e que, no final da adolescência, desen-

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T
volveu um acentuado interesse, primeiro, pela Psicanálise e, depois, tinham relações comuns anteriores. Assim, Simone de Beauvoir
pelo Marxismo. e MerIeau Ponty foram ambos estudantes normalistas com Lé-
c Bouglé estivera anteriormente associado a Emile Durkheim e L' Année vi-Strauss no Lycée J anson de Sailly (P. c. ). Artigos de Lévi-
Sociologique. Por profissão acadêmica, ele era um filósofo mas a -Strauss foram publicados amiúde na revista de Sartre Les T emps
sua reputação assenta num tratado sobre o Sistema Indiano de Castas
Modernes mas, ao que parece, as relações pessoais entre os dois
cuja primeira versão foi publicada em 1900. Bouglé nunca visitou
a índia. homens, por volta de 1955, estavam nitidamente tensas. Em
d A Universidade tinha sido fundada por iniciativa francesa e a missão Tristes Tropiques, Lévi-Strauss comenta sobre o Existencialisrno
diplomática da França ainda estava preocupada com o recrutamento que:
de pessoal docente. Lévi-Strauss afirma que causou alguma cons-
ternação entre seus colegas franceses em virtude da sua atitude heré- Promover as preocupações particulares à categoria de problemas
tica em relação aos ensinamentos funcionalistas de Durkheim e de filosóficos é perigoso e pode redundar numa espécie de filosofia
seu in~eresse pelos trabalhos dos etnólogos americanos Boas, Kroeber de vendeuse (W. W.: 62).
e Lowie,
E todo O Capítulo 9 de La Pensée Sauvage é dedicado a um
Um outro fato biográfico que se reflete em numerosos es- ataque polêmico contra a Critique de ta raison dialectique, de
critos de Lévi-Strauss, notadamente na Introdução (."Ouverture") Sartre, Lévi-Strauss manifesta um especial desdém pela opinião
e nos títulos intricadamente arranjados dos capítulos de Mytho- ( aparente) de Sartre de que os membros de sociedades exóticas
logiques, é ele ser um músico talentoso. devem, necessariamente, ser incapazes de análise intelectual e
A Nota b do Quadro A merece maior desenvolvimento. Em dos poderes de demonstração racional. Contudo, teve de admi-
Tristes Tropiques (1955), Lévi-Strauss descreve a Geologia, a tir que:
Psicanálise e o Marxismo como suas "três amantes", deixando Sinto-me muito próximo de Sartre sempre que este se aplica, com
muito claro que a Geologia foi o seu primeiro amor. incomparável engenhosidade, a captar, em seu movimento dia-
Reverterei à Geologia dentro de instantes mas, primeiro, lético, uma experiência social passada ou presente, dentro da
nossa própria cultura (S. M.: 250).
analisemos sucintamente o seu Marxismo. O próprio Lévi-Strauss
observou que:
Mas, no fim de contas, Sartre é um marxista; e, de tempos
"O Marxismo parecia-me evoluir no mesmo sentido da geologia em tempos, Lévi-Strauss também o é ... ou assim se diz! Ambos
e da psicanálise ... Todos os três mostravam que o entendimento os autores salpicam suas páginas livremente de terminologia
consiste na redução de um tipo de realidade a um outro; que a
verdadeira realidade nunca é a mais óbvia das realidades ... marxista e denunciam o mau uso dado por outros autores ao
em todos esses casos, o problema é o mesmo: a relação ... entre jargão sagrado. Sobre este assunto, limitar-me-ei aqui a chamar
a razão e a percepção sensorial. .. " (W. W.: 61) . a atenção do leitor para um comentário de Jean Pouillon (1965)
que recorda fortemente a descrição de Lewis CarroIl da batalha
Na prática, a importância da ideologia marxista para uma que não houve entre Tweedledum e Tweedledee.
compreensão de Lévi-Strauss é difícil de determinar. O uso da
dialética por parte de Lévi-Strauss, com a seqüência formal de Não estou tentando sugerir que a posição atual de Lévi-
tese-antítese-síntese, é mais hegeliano do que marxista e a sua -Strauss seja, em absoluto, afim da dos Existencialistas; pelo
atitude para com a história parece ser inteiramente contrária ao contrário, ela é muito remota, em numerosos aspectos. Mas o
dogma marxista. Mas o quadro fica bastante confuso em virtude Existencialismo e o Estruturalismo têm raízes marxistas comuns
da interação dialética entre o Existencialismo de Sartre e o e a distinção entre os dois não é tão nítida quanto alguns crí-
Estruturalismo de Lévi-Strauss. ticos de espírito metódico gostariam que acreditássemos. Apesar
do violento ataque a Sartre, La Pensée sauvage é dedicado à
Lévi-Strauss encontrou-se pela primeira vez com Sartre em
memória de Maurice Merleau-Ponty, o filósofo fenomenologista
pessoa em Nova lorque, corria o ano de 1946, mas ambos'

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cuja posição era muito mais próxima do Existencialismo do que Diga-se .de passagem que todo o corpus dos escritos de
do Estruturalismo. Lévi-Strauss está repleto de referências oblíquas e jogos de
A briga com Sartre sobre "história" é muito semelhante palavras desse gênero, que recordam a fórmula simbolista de
à que travou com Ricoeur sobre "hermenêutica" (Ricoeur: VerIaine, pas de couleur, rien que Ia nuance (nada de cor, ape-
1963). Promana de uma diferente avaliação da "flecha do nas a nuança). Davy (1965: 54) observou que os poetas sim-
tempo'. Para os fenomenologistas e os existencialistas, a his- bolistas "insistiam em que a função da linguagem poética e,
tória fornece o mito que justifica o presente mas o presente é particularmente, das imagens, não era ilustrar idéias mas con-
também uma culminação necessária do ponto a que a história substanciar uma experiência indefinível de qualquer outro mo-
nos levou. A posição estruturalista é muito menos egocêntrica: do". Os leitores que acham persistentemente esquivo o signi-
a história oferece-nos uma imagem de sociedades passadas que ficado preciso da prosa de Lévi-Strauss devem levar em conta
foram transformações estruturais daquelas que conhecemos, nem essa parte da sua formação literária.
melhores nem piores. Nós, situados no vastajoso ponto de Mas, quanto à questão do ponto de vista estruturalista da
observação do presente, não nos encontramos, entretanto, numa história, um outro ponto merece também ser assinalado. Em-
posição privilegiada de superioridade. Mas a atitude de Lévi- bora Lévi-Strauss reafirme constantemente a sua opinião de que
-Strauss para com .a história é algo esquiva e eu só posso acon- as estruturas do pensamento primitivo estão presentes em nossa
selhar o leitor persistente a consultar a densa argumentação das mente moderna, tanto quanto estão na mente dos que pertencem
págs. 256-264 de The Savage Mind (1966). a "sociedades sem história", ele foi muito prudente em sua
Duas características da posição de Lévi-Strauss me parecem tentativa de demonstração dessa equivalência. Em La Pensée
cruciais. Primeiramente, ele sustenta que o estudo diacrônico sauoage, como veremos (Capítulo 5), ele considera, ocasional-
da história e o estudo transcultural mas sincrônico da antropo- mente, a aplicação de argumentos estruturalistas às caracterís-
logia são dois métodos alternativos de fazer a mesma coisa: ticas da cultura da Europa Ocidental contemporânea mas, na
maioria das vezes, traça uma linha nítida (embora arbitrária)
O antropólogo respeita a história mas não lhe confere um valor
especial. Concebe-a como um estudo complementar do seu próprio entre as sociedades primitivas, que são o alimento favorito dos
trabalho; um deles revela todo o âmbi to das sociedades humanas antropólogos por serem intemporais e estáticas, e as sociedades
no tempo, o outro no espaço. E a diferença é ainda menor do avançadas, que se furtam à análise antropológica porque estão
que poderia parecer, visto que o historiador se esforça por re- "na história". Lévi-Strauss recusou-se sistematicamente a apli-
construir o quadro de sociedades desaparecidas como eram nos
pontos que, para elas, correspondiam ao presente, enquanto que car técnicas estruturalistas à análise de seqüências diacrônicas.
o etnógrafo faz o possível por reconstituir os estágios históricos Os acontecimentos no passado histórico só sobrevivem em nossa
que, temporalmente, precederam suas formas existentes (S. M.: consciência como mito e uma característica intrínseca do mito
256). (e também da análise estrutural de Lévi-Strauss ) é a irrelevân-
cia da seqüência cronológica dos acontecimentos.'
Em segundo lugar, Lévi-Strauss insiste em que, quando a
história assume a forma de uma recompilação de eventos pas- É neste contexto que os comentários de Léví-Strauss sobre
sados, ela faz parte do presente do pensador, não do seu passado. geologia se tornam particularmente reveladores.
Para o ser humano pensante, toda a experiência recordada é Os pressupostos dos antropólogos do século XIX eram
contemporânea; tal como no mito, todos os eventos fazem parte proto-históricos - evolucionistas ou difusionistas, segundo os
de uma única totalidade sincrônica. Aqui, o modelo subjacente casos. Mas o sentido de tempo de Lévi-Strauss é geológico.
é Proust e o penúltimo capítulo de La Pensée Sauvage (1962), Embora pareça, como Tyler e Frazer, estar interessado nos cos-
que se intitula "Les Temps Retrouvé" (O Tempo Reencon- tumes de povos primitivos contemporâneos somente porque
trado) tem a intenção clara de ecoar A Ia Reeherehe du T emps
I pensa que eles são, em certo sentido, primevos, Lévi-Strauss não
Perdu. argumenta, como Frazer teria feito, que o que é primevo é

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7
inferior. Numa paisagem, rochas de imensa antiguidade podem nossos próprios costumes daqueles princípios que regem os costu-
ser encontradas a par de sedimentos de uma origem relativa- mes que nos são inteiramente estranhos .•• A nossa própria so-
ciedade é a única que podemos transformar e apesar disso não
mente recente mas. nem por isso argumentamos que umas são destruir, dado que as mudanças introduzidas p~viriam de dentro
inferiores às outras. O mesmo ocorre com as coisas vivas (e, (W. W.: 391-2).
por implicação, com as sociedades humanas):
Como esta passagem nos mostra, Lévi-Strauss é um VISlQ-
Por vezes... de um lado e do outro de uma fenda oculta, en-
contramos duas plantas verdes de diferentes espécies. Cada uma nário e o problema com os que têm visões é que acham muito
delas escolheu o solo que lhe convém; e apercebemo-nos de que, difícil reconhecer o mundo prosaico e trivial que o resto dos
dentro da rocha, estão duas amonitas, uma das quais tem invo- mortais vê à sua volta. Lévi-Strauss empenha-se na sua antro-
luções menos complexas que a outra. Compreendemos, num pologia porque concebe os povos primitivos como "modelos
relance, que isso significa uma diferença de muitos milhares de
anos; o tempo e o espaço misturam-se, de súbito; a diversidade reduzidos" do que é essencial em toda a humanidade; mas os
viva desse momento justapõe uma idade à outra e perpetua-as nobres selvagens resultantes, à maneira de Rousseau, habitam
(W.W.: 60). um mundo muito distante da imundície e da miséria que é o
terreno normalmente pisado pelo antropólogo de campo.
Note-se que, realmente, não são as plantas verdes que Isto é importante. Um estudo cuidadoso de Tristes Tro-
despertam o interesse de Lévi-Strauss: elas apenas desencadeiam piques revela que, em todo o curso de suas viagens brasileiras,
a sua curiosidade. A sua preocupação mais profunda é pelo que Lévi-Strauss nunca pôde permanecer num lugar por mais de
está debaixo - algo mais abstrato, a relação entre duas amo- algumas semanas de cada vez e jamais esteve em condições
nitas, resíduos de espécies vivas que deixaram de existir há de cenversar facilmente com qualquer dos seus informantes na-
milhões de anos. E, no entanto, o motivo pelo qual se sentiu tivos, na linguagem nativa deles.
justificado em seu interesse por essa abstração é que ela projeta
luz sobre o presente, a diferença entre as suas duas plantas Existem muitas espécies de investigação antropológica mas
o trabalho intensivo de campo, no estilo de Malinowski, empre-
verdes.
gando o vernáculo, que é hoje a técnica normal de pesquisa
Ao invés da história dos historiadores, a história tal como o utilizada por quase todos os antropólogos sociais anglo-america-
geólogo e o psicanalista a vêem tem a finalidade de dar forma nos, é um procedimento inteiramente diferente da cuidadosa
no tempo - um pouco à maneira de um tableau vivant - certas mas menos abrangente descrição de maneiras e costumes, baseada
propriedades fundamentais do universo físico e psíquico (W. W.:
no uso de informantes e intérpretes especiais, que foi a fonte
60-1) .
or}g!nal para a maioria das observações etnográficas em que
Lévi-Strauss, como os seus predecessores frazerianos, preferiu
Essa busca das propriedades fundamentais é um tema cons- confiar.
tante em todos os escritos de Lévi-Strauss mas não se trata,
meramente, de uma questão de curiosidade de antiquário. O É perfeitamente verdade que um antropólogo experimen-
ponto é, outrossim, que tudo o que é fundamental e universal tado, visitando uma "nova" sociedade primitiva pela primeira
deve constituir a essência da nossa verdadeira natureza e pode- vez e trabalhando com a ajuda de intérpretes competentes, po-
mos utilizar uma compreensão dessa natureza para nos aper- derá ser capaz, após uma estada de alguns dias, apenas, de
feiçoarmos: desenvolver em sua própria mente um "modelo" razoavelmente
abrangente de como funciona o sistema social; mas também é
... a segunda fase do nosso empreendimento é que, embora não ve~dade que, se permanecer aí seis meses e aprender a falar
nos apeguemos a elementos de qualquer sociedade, em particul.ar,
fazemos uso de todos eles para distinguir os princípios da vida a linguagem local, muito pouco restará desse "modelo" original.
social que podem ser aplicados com o objetivo de reformar os Com efeito, a tarefa de compreender como o sistema funciona

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parecerá então ainda mais formidável do que nos primeiros dias giques - as "lógicas do mito" - e o objeto do exercício é
após a sua chegada. explorar a,s. misteriosas, interligações entre essas mito-lógicas
Lévi-Strauss nunca teve a oportunidade de sofrer essa expe- e. outras lógicas. Isto e o .te~re?o do poeta e os que se impa-
riência desmoralizante nem se viu a braços com as questões cientam com a tortuosa ginasnca da argumentação de Léví-
.Strauss - como acontece com a maioria dos que o lêem -
envolvidas.
precisam lembrar-se de que ele compartilha com Preud de uma
Em todos os seus escritos, Lévi-Strauss pressupõe que o capacidade sumamente extraordinária: a de nos conduzir sem
"modelo" simples, do primeiro estágio, gerado pelas impressões que tenhamos consciência disso, até aos mais profundos recessos
originais do observador, correspondem fielmente a uma autên- das nossas emoções secretas.
tica (e muito importante) realidade etnográfica - o "modelo
consciente" que está presente no espírito dos informantes do
antropólogo. Em contraste, aos antropólogos que tiveram uma
gama muito mais ampla e variada de experiências de campo
parece por demais óbvio que esse modelo inicial pouco mais é
do que um amálgama das pressuposições tendenciosas do próprio
observador.
A este respeito, muitos argumentaram que Lévi-Strauss,
como Frazer, é insuficientemente crítico no tocante ao seu
material básico de informação. Ele parece ser capaz de desco-
brir justamente aquilo que estava procurando. Qualquer prova,
por muito duvidosa que seja, é aceitável - desde que se ajuste
às expectativas logicamente calculadas; mas, sempre que os dados
contrariam a teoria, Lévi-Strauss contornará as provas ou mobi-
lizará todos os recursos de sua poderosa invectiva para que a
heresia seja expulsa, sem apelação! Por isso é conveniente
recordar que a formação primordial de Lévi-Strauss foi em
Filosofia e Direito; ele comporta-se, sistematicamente, mais
como um advogado defendendo uma causa do que como um
cientista em busca da verdade última.
Mas o filósofo-advogado é também um poeta. The Seven
Types of Ambiguity (1931), de William Empson, pertence a
uma classe de crítica literária que é inteiramente hostil aos
estruturalistas contemporâneos: não obstante, serve como exce-
lente leitura introdutória para quem quer que se candidate a
estudar Lévi-Strauss, Realmente, Lévi-Strauss não publicou
poesia mas toda a sua atitude em relação aos sons e significados,
às combinações e permutas, dos elementos da linguagem denuncia
a sua natureza.
O imponente estudo em quatro volumes da estrutura da
Mitologia Ameríndia não se intitula Mythologies mas Mytholo-

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2. OSTRAS, SALMÃO DEFUMADO E
QUEIJO STILTON

Lévi-Strauss é distinguido entre os intelectuais do seu pró-


prio país como o expoente máximo do "Estruturalismo", uma
palavra que passou a ser usada como se denotasse toda uma
nova filosofia de vida, em analogia com "Marxismo" ou "Exis-
tencialismo". O que é e o que pretende o "Estruturalismo"?
O argumento geral é formulado mais ou menos nos se-
guintes termos: O que sabemos sobre o mundo externo é apreen-
dido através de nossos sentidos. Os fenômenos que percebemos
têm as características que lhes atribuímos por causa do modo
como os nossos sentidos operam e do modo como o cérebro
humano está organizado para ordenar e interpretar os estímulos
que recebe. Uma característica muito importante desse pro-
cesso de ordenação é que cortamos o contínuo de espaço e
tempo que nos cerca em segmentos, pelo que estamos predis-
postos a conceber o meio circundante como se este consistisse
num vasto número de coisas separadas, pertencentes a deter-
minadas classes, e a pensar sobre a passagem do tempo como
se fossem seqüências de eventos separados. Correspondente-
mente, quando construímos, como homens, coisas artificiais
(artefatos de todas as espécies), ou inventamos cerimoniais, ou
escrevemos histórias do passado, imitamos a nossa apreensão
da Natureza; os produtos da nossa cultura são segmentados e
ordenados.
Darei um exemplo muito simples do que quero dizer. O
espectro cromático, que vai do violeta, passando pelo azul, até
ao verde, ao amarelo e ao vermelho, é um contínuo. Não existe
um ponto natural em que o verde muda para amarelo e o ama-

23
relo para vermelho. O nosso reconhecimento mental da cor é mesma "estrutura"; um é a transformação do outro. Mas re-
uma resposta às variações na qualidade da produção luminosa, pare-se como chegamos a essa transformação:
notadamente, na luminosidade entre o escuro e a luz, e no
comprimento de onda luminosa, longa ou curta. Os compri- a. o espectro cromático existe na Natureza como um contínuo;
mentos de onda vão encurtando à medida que nos deslocamos
b. o cérebro humano interpreta esse contínuo como se consis-
do infravermelho para o ultravioleta, enquanto que a tempe-
tisse em segmentos descontínuos;
ratura, tal como é medida por um termômetro, declina; a lumi-
nosidade é zero em cada extremidade do espectro e atinge o c. o cérebro humano procura uma representação apropriada
máximo no meio, isto é, no amarelo.f É uma discriminação do de uma oposição binária + / - e seleciona verde e verme-
cérebro humano que decompõe esse contínuo em segmentos, lho como um par binário;
pelo que sentimos que o azul, verde, amarelo, vermelho etc., d. tendo estabelecido essa oposição polar, o cérebro humano
são cores muito "diferentes". Esse mecanismo ordenador do fica insatisfeito com a descontinuidade resultante e busca
cérebro é tal que quem não for daltônico pode facilmente ser então uma posição intermédia: não +/não -;
ensinado a sentir que o verde é o "oposto" de vermelho, do
mesmo modo que o preto é o oposto do branco. Em nossa e. retoma então ao contínuo natural e original e escolhe o ama-
própria cultura fomos ensinados, de fato, a fazer essa discrimi- relo como sinal intermédio, porque o cérebro é capaz de
nação e, por isso, achamos apropriado usar sinais vermelhos perceber o amarelo como um segmento descontínuo inter-
e verdes como se correspondessem a + e -. Realmente, for- mediário entre verde e vermelho;
mulamos numerosas oposições desse gênero, em que o vermelho f. assim, o produto cultural final - as três cores dos faróis
é contrastado não só com o verde mas também com outras "co- de trânsito - é uma imitação simplifica da de um fenô-
res", notadamente, o branco, o preto, o azul e o amarelo. meno da Natureza - o espectro cromático - tal como é
Quando estabelecemos oposições emparelhadas desse gênero, o apreendido pelo cérebro humano.
vermelho recebe sistematicamente o mesmo valor e é tratado
como um sinal de perigo: tomadas elétricas, cabos de alta tensão, A essência de todo este argumento pode ser representada
lançamentos a débito ou saldos negativos nos livros de escrita, por um diagrama que reproduzimos na página seguinte (Figura
sinais de "parar" nas ruas e estradas de ferro. Isto constitui 1) e que representa dois triângulos sobrepostos. Os vértices do
um padrão que se manifesta em muitas outras culturas além da primeiro triângulo são as cores VERDE, AMARELO e VERME-
nossa e, nesses outros casos, existe freqüentemente um reco- LHO, que são diferençadas ao longo de dois eixos: (i) com-
nhecimento muito explícito de que o "perigo" do vermelho primento de onda curta/comprimento de onda longa e (ii) baixa
deriva da sua associação "natural" com sangue. luminosidade/ alta luminosidade. Os vértices do segundo triân-
De qualquer modo, no nosso caso, com os faróis de trân- gulo são três instruções respeitantes a movimento: SIGA -
sito nas estradas de ferro e nas ruas, VERDE significa "Siga" continue num estado de movimento, ATENÇÃO - prepare-se
e VERMELHO significa "Pare". Contudo, se quisermos criar para mudar o seu estado de movimento, PARE - continue
mais um sinal com um significado intermediário - ATENÇÃO num estado de não-movimento. Estas mensagens também são
(isto é, prepare-se para seguir ou parar) - escolhemos a cor diferençadas ao longo de dois eixos: (i) movimento/não movi-
AMARELA. Fazemos isto porque, no espectro, o amarelo situa-se mento e (ii) mudança/não-mudança. Sobrepondo-se um esque-
entre o verde e o vermelho. ma ao outro, as cores convertem-se em sinais para as instruções
subjacentes: a estrutura natural das relações cromáticas é idên-
Neste exemplo, a ordenação cromática verde-amarelo-ver- tica à estrutura lógica que relaciona as três instruções:
melho é a mesma que a ordenação das instruções SIGA-ATEN-
ÇÃb:J>ARE, o sistema de cores c o sistema de sinais têm a

24 25
COMPRIMENTO DE ONU,\ Pare Atenção Siga
(movimento)

seqüência real vermelho amarelo verde


CURTA4.-------.. LONGA
(andeI (não ande i
outras seqüências vermelho verde amarelo
ALTO
AMARELO possíveis amarelo vermelho verde
(Atenção) amarelo verde vermelho
rmudança i

LUMINOSIDADE t verde amarelo vermelho


rcont inuidadc i •. verde vermelho amarelo
BAIXO VERDE ---- VERMELHO
mão mudança) (Siga) i Pare)

Mas, no caso geral, uma análise estrutural tem que ser


FIGURA I. Triângulo cromático dos faróis de trânsito iniciada pelo estabelecimento de todas as permutas possíveis e
proceder-se ao exame das provas empíricas numa base compara-
Este particular exemplo, até onde me é dado saber, nunca tiva. Lévi-Strauss expressa-o da seguinte maneira:
foi usado por Lévi-Strauss mas a tese estruturalista é que triân- o método que adotamos... consiste nas seguintes operações:
gulos deste gênero, subentendendo transformações comparáveis
I. Definir o fenômeno em estudo como uma relação entre dois
de modelos da Natureza tal como são apreendidos pelo cérebro ou mais termos, reais ou supostos;
humano, têm uma aplicação muito geral, se bem que, na maioria 2. construir uma tabela das permutas possíveis entre esses ter-
dos casos, as possibilidades sejam mais complicadas. mos;
No meu exemplo, o padrão estava sujeito a duas limita- 3. adotar essa tabela como objeto geral de análise, o qual, so-
mente nesse nível pode produzir as ligações necessárias, sendo
ções especiais: primeiramente, é um "fato da Natureza" que a
os fenômenos empíricos considerados no início apenas uma
seqüência de cores no espectro é verde-amarelo-vermelho e não possível combinação entre outras, cujo sistema completo deve
amarelo-verde-vermelho ou verde-vermelho-amarelo; e, segundo, ser construído de antemão (T.: 16).
temos um outro fato da Natureza, que certamente remonta aos
tempos paleolíticos, em que os seres humanos têm uma tendên- Conforme expliquei para o caso dos sinais de trânsito, o
cia para estabelecer uma associação direta entre vermelho como objeto fundamental do exercício consiste em descobrir como
cor e sangue como substância, de modo que, se qualquer dessas as relações que existem na natureza (e como tal são apreendidas
três cores tiver de ser escolhida para significar "pare-perigo", pelos cérebros humanos) são usadas para gerar produtos cultu-
é muito mais provável que seja o vermelho do que o amarelo rais que incorporam essas mesmas relações. Este ponto não
ou o verde. Assim sendo, a correlação entre os membros das deve ser mal interpretado. Lévi-Strauss não é um idealista ao
duas tríades está, neste caso, mais ou menos predeterminada. estilo do Bispo Berkeley; ele não está argumentando que a
. ..
As equivalências:
f vermelho
PARE _ ATENÇÃO
-arnarelo-verde
- SIGA
Natureza não tem outra existência senão a que está presente
em sua apreensão pela mente humana. A Natureza, para Lé-
vi-Strauss, é uma realidade autêntica "aí fora"; é governad.a por
são dadas e não precisamos de prestar atenção às possibilidades
leis naturais que são acessíveis, pelo menos em parte, à inves-
alternativas oferecidas pelo resto da matriz:
tigação científica humana mas a nossa capacidade de apreender
a Natureza é severamente limitada pela natureza do aparelho
através do qual apreendemos. A tese de Lévi-Strauss é que, ao
notarmos como apreendemos a Natureza, ao observarmos as qua-
lidades das classificações que usamos e o modo como rnanipu-

26 27
-
lamos as categorias resultantes, estaremos aptos a inferir fatos da cultura humana só existem ao nível da estrutura, nunca ao
decisivos sobre o mecanismo do pensamento. nível do fato manifesto. Podemos comparar utilmente a padro-
nização das relações que vinculam determinados conjuntos de
No fim de contas, como os cérebros humanos. também são comportamentos humanos; mas não aprenderemos coisa alguma
objetos naturais e como são os mesmos, substancialmente, em se compararmos, simplesmente, itens culturais como elementos
toda a espécie Homo sapiens, devemos supor que~ quando os isolados. No caso dos faróis de trânsito, por exemplo, é o con-
produtos culturais são gerados do, ~odo q~e des~rev1, o pr.ocesso traste entre as cores e a mudança de uma cor para outra que
deve conferir-Ihes certas caracteristtcas universars (naturais ) do fornecem a informação; cada cor só tem importância em relação
próprio cérebro. Assim, ao investigarmos as estruturas elemen- às outras duas.
tares dos fenômenos culturais, também estamos fazendo ae~co-
Estas idéias muito gerais são um desenvolvimento dos
bertas sobre a natureza do Homem - fatos que são verdadeiros
argumentos originalmente formulados pela escola de Praga dos
a respeito do leitor, a meu respeito e a respeit.o dos selva~ens
lingüistas estruturais mas, particularmente, por Roman Jakobson,
nus do Brasil Central. Lévi-Strauss expressou 1SS0 da seguinte
que reside nos Estados Unidos há vinte e cinco anos e foi colega
maneira: acadêmico de Lévi-Strauss na Nova Escola de Pesquisa Social,
A antropologia propicia-me uma satisfação intelectual: ela ~me, de Nova Iorque, no final da Segunda Guerra Mundial. A in-
num extremo, a história do mundo e, no outro extremo, a minha fluência do estilo jakobsoniano de análise fonémica sobre a obra
própria história, e desvenda a motivação compartilhada de um de Lévi-Strauss foi muito acentuada; portanto, é pertinente que,
e do outro, no mesmo momento (W. W.: 62). embora certos aspectos da obra de Jakobson tenham sido, ulte-
riormente, alvo de críticas, Noam Chomsky reconheça, de um
É importante compreender o que está sendo_ pr?posto. modo específico, a importância fundamental da principal teoria
Num sentido supercial, os produtos de cultura sao imensa- de Jakobson de características distintivas e universais fonéticos,
mente variados e, quando um antropólogo se dispõe a comparar, que é tudo o que interessa no que a Lévi-Strauss diz respeito (ver
digamos, a cultura dos aborígines austral~anos com a d.os ~s- Chomsky, 1964: 67). Por outro lado, a forma rigidamente
quimós ou a dos ingleses, ele é impressionado, em pnme1':0 binária da análise de características distintivas, de Jakobson (que
lugar, pelas diferenças. Entretanto, com~ t.odas as culturas sao reaparece no estruturalismo de Lévi-Strauss), é hoje rejeitada
o produto de cérebros humanos, deve existrr, algures sob a su- por muitos lingüistas eminentes. 3
perfície, uma série de características que são comuns a todos.
É interessante ver como Lévi-Strauss se propôs derivar as
Isto não é propriamente o que se possa chamar uma idéia suas generalizações culturais da sua base lingüística. A sua
nova. Uma geração muito mais antiga de antropólogos, notada- análise do "triângulo culinário" fornece um exemplo adequado.
mente Bastian (1826-1905) na Alemanha, e Frazêr (1854- Trata-se de um dos temas principais que persiste através dos
-1941) na Inglaterra sust~ntou que, pertencendo todos os três volumes publicados de Mythologiques mas também foi o
homen~ a uma espéci~, devem existir universais psicológicos tema de um artigo independente que resumirei aqui (ver T. c.,
(Elementargedanken) que se manifestem na ocorrência de cos- 1965 ).
tumes semelhantes entre povos "que alcançaram a mesma fase
de desenvolvimento evolucionário" no mundo inteiro. Frazer Lévi-Strauss começa com uma breve referência à tese de
e seus contemporâneos compilaram, assiduamente, imensos ca- Jakobson, nos seguintes termos:
tálogos de costumes "semelhantes" que pretendiam exp.or esse Em todas as linguagens do mundo, os sistemas complexos de
princípio evolucionário. Não é isso (l que os estruturalistas se oposições entre os fonemas não são mais do que uma elaboração
propõem. A repetição de um pormenor de costume em duas multidirecional de um sistema mais simples, que é comum a todos,
partes diferentes do mapa não é uma questão a que Lévi-Strauss notadamente o contraste entre consoante e vogal, o qual, mediante
o desenvolvimento de uma dupla oposição entre compacto e
atribua uma importância especial. Em sua opinião, os universais

28 29
difuso, agudo e grave, gera - por um lado - o que poderemos INTENSIDADE
chamar o "triângulo vocálico":
GRAVE 4 • AGUDA
t bal xn freqüência) (alt;) Ir eqü ên c ia j

u---------------
VOLUME
(cnerJ!ia do ruído)
1
COMPACTO a lkl

\I Ipl ------ i 111


DIFUSO
e, por outro lado, o "triângulo consoante":
rJGUR.~ 2. Triângulos Primários de Vocal-Consoante, de J;lkobs0J\
k

p
/~ t
Mas voltemos agora ao "Triângulo Culinário". Depois da
sua breve referência inicial ao protótipo lingüístico, Lévi-Strauss
observa que, assim como não existe sociedade humana sem lin-
guagem falada, também não existe sociedade humana que, de
É provável que a maioria dos leitores ache desconcertante um modo ou de outro, não processe uma parte de seu supri-
tal enunciado, de modo que darei uma versão algo mais extensa mento alimentar cozinhando-o. Mas o alimento cozinhado pode
da doutrina original. ser concebido como alimento fresco e cru que foi transformado
(élaboré) por meios culturais, enquanto que o alimento apo-
J akobson afirmou que a criança pequena adquire o con- drecido é alimento fresco e cru que foi transformado por meios
trole das vogais e consoantes básicas de modo a gerar estruturas
naturais. Assim, tal como os triângulos vogais-consoantes de
significativas numa seqüência padronizada (ver)a~obson e Halle,
Jakobson representam as oposições binárias compacto/difuso e
1956: 38 e segs.). A criança desenvolve primeiro uma OpOSI- gravei agudo que foram interiorizadas pelos processos mentais
ção vogal/consoante básica, ao discriminar um contraste no
da criança (como num computador), também podemos construir
volume de som: um triângulo culinário para representar as oposições binárias:
Vogal (V) Consoante (C) transformado/natural e Cultura/Natureza, as quais (por impli-
(ruído de alta energia)
(alta; compacta) / (ruído de baixa energia)
(baixa; difusa)

A consoante indiferenciàda (C) é então dividida pela dis-


cação) são interiorizadas na eidos da cultura humana, em toda
a parte. 4
CULTURA ••••
'-- ••• NATUREZA

NORMAL CRU
criminação de intensidade: um componente (p) d~ ba.ixa fre-
A (não-elaborado)
(não-marcado)
qüência (grave) e um componente (t) de alta fraqüência
do). A consoante velar oclusiva (compacta)
(ag:r-
de alta energia
(k) complementa então a vogal indiferencia.da (a) d.e ~lt~ ener-
ESTADO DO MATERIAL
(grau de elaboração)
!
TRANSFORMADO COZIDO ------ PODRE
gia, ao passo que as consoantes (p, t ) de baixa ener~la ldifusas ) (elaborado)
são complementadas pelas correspondentes vogais (u-grave, Imarcado)

i-agudo) de baixa energia (difusas ).


FIGURA 3. O Triângulo Culinário (Forma Primária)
O argumento pode ser te do ele .represent~do. P?r um duplo
triângulo de consoantes e vogais (Fig. 2), discriminadas como Não é uma parte necessária do argumento de Léví-Strauss
compactas/difusas e graves/agudas. que o alimento Cru (não-processado) deva situar-se a meio ca-

30 31
minho entre o Natural e o Cultural, embora seja um fato, é próprio sistema, que distingue o grelhado do assado, o estufado
claro, que a maioria dos produtos alimentícios não-processados do cozido, e acrescenta uma categoria, a fritura (que é uma
que o homem utiliza entra na categoria de "animais e plantas forma de cozedura em que a água é substituída pelo óleo),
domesticados", isto é, são produtos culturais e naturais. requer um modelo muito mais complicado; e, neste ponto, alguns
leitores ingleses talvez comecem desconfiando de que todo o
Finalmente, Lévi-Strauss completa o seu exercício de gi-
argumento não passou de uma elaborada anedota acadêmica.
nástica intelectual afirmando que os principais modos de cozi-
Mas exatamente o mesmo diagrama (Fig. 4) aparece na página
nhar formam um outro conjunto estruturado que é o inverso do
406 de Mythologiques lU (1968), acompanhado do mesmo
primeiro:
texto, de modo que devemos, pelo menos, tentar levar o assunto
i. Assar é um processo em que a carne é colocada em a sério. Mas reconhecemos que isso é bastante difícil. Lévi-
contato direto com o agente de conversão (fogo), sem a me- -Strauss não aderiu às suas próprias regras de procedimento, tal
diação de qualquer aparelho cultural, ou do ar, ou da água; o como foram especificadas acima (pág. 27), e toda a operação
processo é apenas parcial - a carne assada é só parcialmente sugere um jogo de acrósticos em que palavras apropriadas foram
cozinhada. inseridas nos espaços em branco de uma matriz verbal previa-
ii. Cozer é um processo de fervura que reduz o alimento mente arranjada. Em outra parte, Lévi-Strauss afirmou que
cru a um estado decomposto semelhante ao apodrecimento na- "há um não-sentido subjacente em todo o sentido" (R. 1963:
tural mas que requer a mediação de água e de um recipiente - 637) mas, talvez o melhor que poderia ser afirmado, em favor
um objeto de Cultura. dessa insólita asserção, é que "há um sentido subentendido no
lll. Defumar (ou curar pela fumaça) é um processo de absurdo", mesmo que não seja o sentido da conversação ordi-
lento mas completo cozimento; realiza-se sem a mediação de nária. '. ".... V
1.
qualquer instrumento cultural mas com a mediação do ar. Lévi-Strauss quis chegar ao seguinte. Os animais limitam-
Assim, quanto aos meios, assar e defumar são processos -se a comer, apenas; e o alimento deles é qualquer coisa que lhes
naturais, ao passo que ferver (cozer) é um processo cultural seja acessível e que os seus instintos coloquem na categoria de
mas, quanto aos produtos finais, o alimento defumado (curado) "comestível". Mas os seres humanos, uma vez retirados do seio
pertence à Cultura, enquanto que o alimento assado e fervido materno que os amamentou, não possuem tais instintos. As
(cozido) pertence à Natureza. convenções da sociedade decretam o que é alimento e o que
Lévi-Strauss resume todo o seu argumento no seguinte não é alimento, e as espécies de alimentos que devem ser co-
diagrama: midos em tais e tais ocasiões. E como as ocasiões são ocasiões
sociais, deve existir alguma espécie de homologia estruturada
CRU
entre, por um lado, as relações entre espécies alimentares e, por
assar outro lado, as relações entre ocasiões sociais.
(-) (-)
Além disso, quando observamos os fatos, as categorias
Ar Água
que são tratadas como espécies significativas de alimento tor-
(+) (+ )
nam-se intrinsecamente interessantes. A dieta de qualquer po-
defumado cozido
pulação humana particular depende da disponibilidade de recur-
COZINHADO PODRE sos e, ao nível dos itens reais de alimentação (pão, carneiro,
FIGURA 4. O Triângulo Culinário (Forma Desenvolvida) queijo etc.), existe escassa sobreposição entre a lista de compras
de uma dona-de-casa inglesa e o inventário de comestíveis ao
alcance de um índio amazônico. Mas a dona-de-casa inglesa e o
Em seu artigo original (T. c.: 1965), Lévi-Strauss condi-
índio amazônico decompõem a categoria unitária "alimento"
dona a generalidade desse esquema, ao assinalar que o nosso

32 33

·I
num certo número de subcategorías, "alimento A" "alimento
conta em tipos relativamente democráticos de sociedade: "O
B.", "alimento C" etc., cada um dos quais é tratado d~ um modo cozimento fornece um meio de completa conservação da carne
dIferente: ~as, neste nível, as categorias A, B, C etc. resultam e seus sucos, ao passo que o assado faz-se acompanhar de des-
extraordinariamente semelhantes em toda a parte. São de fato
truição e perda. Assim, um denota economia; o outro prodiga-
c~te~orias do gênero que aparece na Fig. 4 e o detaÍhe signi~ lidade; o assado é aristocrático, o cozido é plebeu"! (T. c.: 23)
ficativo a respeito de tais categorias é que lhes são conferidos
níveis muito diferentes de prestígio social. Não quero dizer Uma extravagante linha de pensamento, sem dúvida; mas,
apenas que os diferentes componentes do repasto podem caber se aceitarmos o inesperado quadro de referência de Lévi-Strauss,
semp.:e nos nossos prefixados espaços em branco: Ostras (cruas), tais comentários não são, em absoluto, tão arbitrários quanto
Salmao Defu!Dado (defumado), Sopa de Lagosta (fervida), Lom- podem parecer. Como homens, fazemos todos parte da Natureza;
bo de Carneiro (assado). "Soufflé" (cozinhado), Queijo Stilton como seres humanos, somos todos parte de uma cultura. A nossa
( podre) * - mas, sobretudo, os alimentos dessas diferentes sobrevivência como homens depende do nosso uso de categorias
classes gerais têm uma relação padronizada entre si. Por exern- sociais que derivam de classificações culturais impostas aos ele-
pl~\ d~ ac~rdo com as nossas convenções, sempre que o caro mentos da Natureza. O uso social de categorias de alimentos é,
dápio inclui um prato de carne assada, ser-lhe-a conferido um assim, homólogo do uso social de categorias de cor no caso dos
lug~r de honra no meio do repasto; os alimentos estufados e sinais de tráfego (pág. 25). Mas o alimento é um "mediador"
COZIdos, por outra parte, são considerados especialmente ade- especialmente adequado porque, quando comemos, nós estabe-
quados para inválidos e crianças. Por que assim? Por que lecemos, num sentido literal, uma identidade direta entre nós
próprios (Cultura) e o nosso alimento (Natureza). Assim, a
ser~mos pr?p~nsos a considerar um frango cozido um prato de
rotina domestica mas um frango assado um prato festivo? culinária é, universalmente, um meio pelo qual a Natureza
é transformada em Cultura; e as categorias culinárias são sem-
.Toda a sorte de racionalizações podem ser elaboradas para pre peculiarmente apropriadas para uso como símbolos de dife-
Se .aJustar a qualquer caso particular, por exemplo que uma renciação social.
galIn?a cozida s~i mais barato do que assar um fra~go ou que
Num outro contexto, em que Lévi-Strauss se interessou em
o. alimento COZIdo é "mais digestível" (que provas existem
desmascarar a mística antropológica que se aglomerou em torno
dl~SO?); mas todas essas explicações começam parecendo algo
do conceito de Totemismo, ele criticou a tese funcionalista de
frageIs q~ando. nos apercebemos de que outros povos, com cul-
que se confere valor social às espécies totêmicas porque são
turas. muito diferentes da nossa, escolhem seus alimentos de
de valor econômico. Pelo contrário, diz Lévi-Strauss, são as
maneira muito semelhante e aplicam distinções de status de
próprias espécies que, simplesmente, são consideradas socialmen-
uma espécie comparável. Alguns alimentos só são apropriados
te valiosas: as espécies totêmicas são "boas para pensar" t bon-
p~ra h~n:ens, outros somente para mulheres; alguns alimentos
nes à penser) e não "boas para comer" (bonnes à manger).
s?o proibidos às crianças, outros só podem ser comidos em oca-
Toda esta conversa sobre o triângulo culinário é o outro lado
síões ce:imoniais. O pa?rão resultante não é sempre o mesmo
do mesmo argumento. Os produtos alimentícios, como tal, são
mas esta certamente muito longe de ser aleatório· Lévi-Strauss
"bons para comer", é claro; mas isso, só por si, não explica as
chegou mesmo a afirmar que o elevado status que' se atribui ao
complicações que injetamos na. classificação de alimento; as espé-
ass?do, em contraste com o cozido, é uma característica cultural
cies alimentares tal como as espécies totêmicas, são "boas para
unioersal, de modo que o alimento cozido só é tido em alta
pensar" (cf, págs. 41-4, mais adiante).
Isto é um tipo incomum de discurso e tem de ser admitido
* O Queijo Stilton é um queijo de espécie superior, tradicional- que, neste caso como em outros escritos de Lévi-Strauss, existe
mente produzido em Stilton, no condado inglês de Huntingdonshire, e um elemento de escamoteação verbal que pede mais cautela do
semelhante ao Roquefort. (N. do T.) que entusiasmo. De qualquer modo, o leitor não deve ima-

34 35

--~~---- d?•••••••••••••••••••••••••••
ginar que o "triângulo culinário" é apenas um elegante jeu
d' esprit por um mestre das analogias inesperadas. Lévi-Strauss
já conseguiu reunir um grande acervo de provas para mostrar
que os processos de preparação de alimentos e as categorias de
alimentos a que eles estão associados estão elaboradamente estru-
turados por toda a parte, e que existem princípios universais
subjacentes a essas estruturas. Além disso, o método de análise,
por muito bizarro que possa parecer, tem ampla aplicação. O
3. O ANIMAL HUMANO E SEUS SÍMBOLOS
triângulo culinário só apareceu pela primeira vez em letra de
forma em 1965 mas triângulos de um tipo comparável figuram
em muitas partes anteriores do corpus lévi-straussiano.
No ensaio de 1945 que foi o trabalho básico para toda a O quebra-cabeça intelectual central de Lévi-Strauss é um
sua antropologia estrutural subseqüente (ver A. S., Capítulo 2), daqueles a que os filósofos europeus têm ~evertido ~e~es sem
os vértices do triângulo são MUTUALIDADE, DIREITOS, OBRIGA- conto; de fato, se aceitarmos o ponto de. vI~ta de LevI-St!auss
ÇÕES, enquanto que as oposições binárias parecem ser: troca/ sobre o assunto é um problema que intnga a humanidade
não-troca e recebedores/dadores. Em S. E. P. (1945: 575), o inteira, sempre e' em toda a parte. Muito simplesmente: O 9,:e
triângulo passou a ser: CASAMENTO BILATERAL, CASAMENTO é o Homem? O homem é um animal, um membro da especie
PATRILATERAL DE PRIMOS CRUZADOS, CASAMENTO MATRILATE- Homo Sapiens, intimamente relacionado com ~s. gra~des Símios
RAL DE PRIMOS CRUZADOS, e as oposições binárias, simetria/assi- e mais remotamente, com todas as outras especies VIvas, passa-
metria, alternação/repetição. G. A. (1960) inclui um triângulo d~s e presentes. Mas o Homem, af~rm.a~os nó~, é um ser
altamente complicado que combina parâmetros geográficos e de humano e dizendo isso queremos significar, evidentemente,
categoria alimentar, de tal modo que os alimentos vegetais são que ele é, 'de algum modo, mais do que "apen~s u,? animal".
opostos aos alimentos animais, o mar à terra, o Leste ao Oeste Mas de que modo o homem é diferente, ou e. mais, d? .que
e a definição à falta de definição. Isto não é apenas um jogo. qualquer outro animal? O conceito de humanidade, distinto
Lévi-Strauss está se esforçando por estabelecer os rudimentos do de animalidade, não se traduz facilmente para linguagens
de uma álgebra semântica. Se o comportamento cultural é ca- exóticas mas a tese de Lévi-Strauss é que uma distinção desse
paz de transmitir informação, então, o código em que as men- gênero -. correspondente à oposição Cultura/Natu.rez~ - está
sagens culturais são expressas deverá possuir uma estrutur.a sempre latente nas atitudes e comportamentos habituais do ho-
algébrica. É possível que Lévi-Strauss esteja pretendendo atri- mem, mesmo quando não é explicitamente formulada em pala-
buir a essa álgebra uma importância maior do que é justificado vras. O Ego humano nunca é autônomo, não existe um "Eu"
pelos fatos mas trata-se de algo mais do que um engenhoso jogo que não seja parte de um "Nós" 5 e, de fato, todo e qualquer
da velha. Voltemos ao princípio. "Eu" é um membro de muitos "Nós". Num sentido, esses
nós-grupos ("W e-groups") estendem-se em todas as direções,
rumo ao infinito, para abranger todos e tudo ... "O homem
não está sozinho no universo, do mesmo modo que o indivíduo
não está só no grupo nem qualquer sociedade sozinha entre
outras sociedades" (W. W.: 398); mas, na prática, nós seg-
mentamos as sucessões contínuas. O meu particular "nós", isto
é, as pessoas da minha família a minha comunidade, a minha
tribo, a minha classe. .. são algo inteiramente especial, são su-

36 37

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