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A REVOLUÇÃO DE 1930 E A CULTURA
foram de engajamento político, religio- nuo, mas agora em escala nacional, a re-
so e social no campo da cultura. Mesmo forma que traz o seu nome e procurava
os que não se definiam explicitamente, e estabelecer em todo o país algumas das
até os que não tinham consciência clara idéias e experiências da pedagogia e da
do fato, manifestaram na sua obra esse filosofia educacional dos "escola-novis-
tipo de inserção ideológica, que dá con- tas". Assim, a integração e a generaliza-
torno especial à fisionomia do período. ção, já mencionadas, eram promovidas
como resposta a todo o movimento reno-
vador dos anos 20.
caso do ensino é significativo. Os ideais dos educadores, desabrocha-
Não foi o movimento revolu- dos depois de 1930, pressupunham de
cionário de 30 que começou as um lado a difusão da instrução elemen-
reformas; mas ele propiciou a tar que, conjugada ao voto secreto (um
sua extensão por todo o país. Antes hou- dos principais tópicos no programa da
vera reformas locais, iniciadas pela de Aliança Liberal), deveria formar cida-
Sampaio Doria em São Paulo (1920), dãos capazes de escolher bem os seus di-
que introduziu a modernização dos mé- rigentes; de outro lado, pressupunham
todos pedagógicos e procurou tornar rea- a redefinição e o aumento das carreiras
lidade o ensino primário obrigatório, de nível superior, visando renovar a for-
com notável incremento de escolas ru- mação das elites dirigentes e seus qua-
rais. Outras reformas localizadas foram dros técnicos; mas agora, com maiores
as de Lourenço Filho no Ceará (1924), oportunidades de diversificação e classi-
a de Francisco Campos em Minas ficação social. Tratava-se de ampliar e
(1927), a de Fernando de Azevedo no "melhorar" o recrutamento da massa vo-
então Distrito Federal (1928). Todas tante, e de enriquecer a composição da
elas visavam a renovação pedagógica con- elite votada. Portanto, não era uma re-
substanciada na designação de "escola volução educacional, mas uma reforma
nova", que representava posição avan- ampla, pois no que concerne ao grosso
çada no liberalismo educacional, e que da população a situação pouco se alterou.
por isso foi combatida às vezes violen- Nós sabemos que (ao contrário do que
tamente pela Igreja, então muito aferra- pensavam aqueles liberais) as reformas
da não apenas ao ensino religioso, mas a na educação não geram mudanças essen-
métodos tradicionais. Ora, a escola pú- ciais na sociedade, porque não modificam
blica leiga pretendia formar mais o "ci- a sua estrutura e o saber continua mais
dadão" do que o "fiel", com base num ou menos como privilégio. São as revo-
aprendizado pela experiência e a obser- luções verdadeiras que possibilitam as
vação que descartava o dogmatismo. Is- reformas do ensino em profundidade, de
to pareceu à maioria dos católicos o pró- maneira a torná-lo acessível a todos, pro-
prio mal, porque segundo eles favorecia movendo a igualitarização das oportuni-
perigosamente o individualismo raciona- dades. Na América Latina, até hoje isto
lista ou uma concepção materialista e só ocorreu em Cuba a partir de 1959.
iconoclasta. Não faltou quem falasse em Quanto ao Brasil, quinze ou vinte anos
"bolchevização do ensino" a propósito após o movimento revolucionário de
da reforma corajosa e brilhante de Fer- 1930, e apesar do progresso havido, as
nando de Azevedo. oportunidades mais modestas ainda eram
As idéias e aspirações dos grupos re- irrisórias, bastando mencionar que no
formadores nos anos 20 se encontram no decênio de 1940 os índices mais altos de
livro A educação pública em São Paulo escolarização primária (isto é, o número
(1937), que contém os resultados do in- de crianças em idade escolar freqüen-
quérito feito por Fernando de Azevedo tando efetivamente escolas) eram os de
em 1926 e publicado então em jornal. Santa Catarina e São Paulo, respectiva-
Nele podemos ver inclusive o grande de- mente 42% e 40%.
sejo de criar a universidade, cimentada e Mas houve sem dúvida aumento pon-
coroada pelas faculdades de filosofia, derável de escolas médias, bem como do
ciências, letras e educação — o que ocor- ensino técnico sistematizado. E a situa-
reria depois de 1930. ção se tornou mais favorável no ensino
O Governo Provisório instalado nesse superior, onde a criação das universida-
ano criou imediatamente o Ministério de des (a partir da de São Paulo em 1934)
Educação e Saúde, confiado ao reforma- alterou o esquema tradicional das elites.
dor da instrução pública em Minas, Fran- A prática anterior de criar faculdades
cisco Campos. Este promoveu ato contí- isoladas fazia com que cada uma adqui-
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genérico, no qual elas estimulavam a re- específicas do decênio de 1930 foi a ex-
jeição dos velhos padrões. Graças a isto, tensão das literaturas regionais, e sua
no decênio de 1930 o inconformismo e o transformação em modalidades expressi-
anticonvencionalismo se tornaram um di- vas cujo âmbito e significado se torna-
reito, não uma transgressão, fato notó- ram nacionais, como se fossem coextensi-
rio mesmo nos que ignoravam, repeliam vos à própria literatura brasileira.
ou passavam longe do modernismo. Na É o caso do "romance do Nordeste",
verdade, quase todos os escritores de considerado naquela altura pela média
qualidade acabaram escrevendo como be- da opinião como o romance por exce-
neficiários da libertação operada pelos lência. A sua voga provém em parte do
modernistas, que acarretava a depuração fato de radicar na linha da ficção regional
antioratória da linguagem, com a busca (embora não "regionalista", no sentido
de uma simplificação crescente e dos tor- pitoresco), feita agora com uma liber-
neios coloquiais que rompem o tipo an- dade de narração e linguagem antes des-
terior de artificialismo. Assim, a escrita conhecida. Mas deriva também do fato
de um Graciliano Ramos ou de um Dio- de todo o país ter tomado consciência
nélio Machado ("clássicas" de algum mo- de uma parte vital, o Nordeste, represen-
do), embora não sofrendo a influência tado na sua realidade viva pela literatura.
modernista, pôde ser aceita como "nor- Coisa igual se pode dizer da produção
mal" porque a sua despojada secura tinha do Rio Grande do Sul, tanto a "gaúcha"
sido também assegurada pela libertação quanto a outra, modernista ou simples-
que o modernismo efetuou. mente urbana. Num estudo sugestivo,
Na poesia a libertação foi mais geral Lígia Chiappini Moraes Leite mostrou
e atuante, na medida em que os modos como a projeção política do Estado, de-
tradicionais ficaram inviáveis e pratica- pois e por causa do movimento revolu-
mente todos os poetas que tinham algu- cionário de 1930, acarretou a projeção
ma coisa a dizer entraram pelo verso li- triunfal da sua literatura, conhecida e
vre ou a livre utilização dos metros, ajus- aceita por todo o país, em cuja vida in-
tando-os ao anti-sentimentalismo e à an- telectual o Rio Grande tinha sido até
tiênfase. Os decênios de 1930 e 1940 então uma presença episódica e margi-
assistiram à consolidação e difusão da nal, porque relativamente fechada sobre
3
MORALES LEIRE, Lígia C., poética modernista, e também à produ- si.3
Regionalismo e Modernismo ção madura de alguns dos seus próceres, Foi com efeito notável a interpenetra-
( O “caso Gaúcho”), São Pau-
lo, Ática, 1978, sobretudo pp.
como por exemplo Manuel Bandeira e ção literária em todo o Brasil depois de
139-201. Mário de Andrade. 30, quando um jovem, digamos do inte-
Essas coisas repercutiram na instrução, rior de Minas, ia vivendo numa expe-
e as reformas educacionais favoreceram riência feérica e real a Bahia de Jorge
a modernização na escolha de textos pa- Amado, a Paraíba ou o Recife de José
ra o ensino, e na maneira de os tratar. Lins do Rego, a Aracaju de Amando
Embora só nos nossos dias a literatura Fontes, a Amazônia de Abguar Bastos,
realmente contemporânea tenha predo- a Belo Horizonte de Ciro dos Anjos, a
minado nesse setor, as coisas começaram Porto Alegre de Érico Veríssimo ou Dio-
a mudar nos anos de 1930, podendo ser- nélio Machado, a cidade cujo rio imita-
vir de exemplo a Antologia da língua va o Reno, de Viana Moog. Foi como se
portuguesa, de Estevão Cruz (1933), ex- a literatura tivesse desenvolvido para o
celente e inovadora (nas primeiras edi- leitor uma visão renovada, não-conven-
ções), apesar do cunho ideologicamente cional, do seu país, visto como um con-
conservador. junto diversificado mas solidário.
Ela foi a primeira a incluir autores
considerados modernistas (Alceu Amo-
roso Lima, Agripino Grieco, Graça Ara- orno decorrência do movimen-
nha, Mário de Andrade, Manuel Ban- to revolucionário e das suas
deira, Jorge de Lima), juntando aos tex- causas, mas também do que
tos subsídios importantes para a análise. acontecia mais ou menos no
Graças a isto, pela primeira vez os auto- mesmo sentido na Europa e nos Esta-
res e as teorias da vanguarda foram pro- dos Unidos, houve nos anos 30 uma
postos em dose apreciável a professores espécie de convívio íntimo entre a lite-
e alunos do curso secundário, ficando as- ratura e as ideologias políticas e religio-
sim em pé de igualdade com os da tradi- sas. Isto, que antes era excepcional no
ção literária da língua. Brasil, se generalizou naquela altura a
Traço interessante ligado às condições ponto de haver polarização dos intelec-
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va no plano consciente, como Érico Ve- mentos de análise, bem como dos do-
ríssimo, Amando Fontes, Guilhermino cumentos e fatos a estudar (papéis
César. íntimos, jornais; moda, alimentação, ma-
neiras, vida sexual, etc). Discreta mas
segura foi a contribuição de Sérgio Buar-
alvez essa radicalização ainda que de Holanda em Raízes do Brasil
tenha sido mais nítida num (1935), que efetuou uma crítica muito
certo sentido próprio daquela aguda das soluções autoritárias do pas-
fase, que consistia em procurar sado e do presente, ao mesmo tempo
uma atitude de análise e crítica em face que quebrava o sentimentalismo lusófilo
do que se chamava incansavelmente a (visível em Gilberto Freyre) e punha em
"realidade brasileira" (um dos concei- dúvida a capacidade das elites para o pa-
tos-chave do momento). Ela se encarnou pel que se arrogavam, e que era um dos
nos "estudos brasileiros" de história, temas dominantes do momento.
política, sociologia, antropologia, que ti- O aparecimento de Formação do Bra-
veram incremento notável, refletido nas sil Contemporâneo, de Caio Prado Jú-
coleções dedicadas a eles. Antes de qual- nior, em 1942, foi uma espécie de culmi-
quer outra a "Brasiliana", fundada e di- nação desse movimento cultural pois, ba-
rigida por Fernando de Azevedo na Com- seando-se no marxismo, deu realce à vi-
panhia Editora Nacional; e ainda: "Co- da econômica e chamou a atenção para
leção azul", da editora Schmidt; "Pro- as formas oprimidas do trabalho de um
blemas políticos contemporâneos" e ângulo estritamente econômico. Ao mes-
"Documentos brasileiros", de José mo tempo desmistificava a aura que en-
Olympio (esta, dirigida primeiro por Gil- volvia certos conceitos como "patriar-
berto Freyre e depois por Octavio Tar- cado" ou "elite rural", apresentando
quinio de Sousa, ainda existe sob a dire- uma visão ao mesmo tempo objetiva e
ção de Afonso Arinos de Melo Franco); radical, que encarna as tendências mais
"Biblioteca de divulgação científica", di- avançadas do pensamento renovador dos
rigida por Artur Ramos na Editora Civi- anos 30.
lização Brasileira, etc.
Lembre-se nesta chave o papel dos re-
Deixando de lado o cunho mais con- cém-fundados cursos superiores de filo-
servador de algumas destas coleções e sofia, ciências sociais, história, letras,
de obras isoladas, digamos que a radica- bem como a difusão do ensino da socio-
lização propriamente dita, crítica e "pro- logia no nível médio. Isto contribuiu pa-
gressista", teve como traços mais salien- ra desenvolver o espírito analítico nos
tes, além da "consciência social", a ânsia estudos sobre o Brasil, com incremento
de reinterpretar o passado nacional, o in- do interesse pelos grupos até então me-
teresse pelos estudos sobre o negro e o nos estudados, ou estudados com ilusões
empenho em explicar os fatos políticos deformadoras: além do negro, o índio, o
do momento. Quanto ao negro, é preci- trabalhador rural, o operário, o pobre.
so mencionar a iniciativa cultural dos Neste campo foi decisiva a contribuição
próprios "homens de cor", que inclusive de professores e pesquisadores estran-
criaram então uma imprensa muito ativa, geiros, temporária ou definitivamente ra-
não raro ligada a organizações, como a dicados no Brasil, como Samuel Lowrie,
Frente Negra Brasileira. No domínio dos Claude Lévi-Strauss, Donald Pierson,
estudos foi decisiva a contribuição de Roger Bastide, Herbert Baldus, Pierre
Gilberto Freyre, a partir de Casa Gran- Deffontaines, Pierre Monbeig, Jacques
de e Senzala (1933) e do 1.° Congresso Lambert, Emílio Willems, etc.
Afro-Brasileiro, que ele organizou no Re-
cife em 1934. Antes houvera os traba-
lhos da escola de Nina Rodrigues na s mudanças na educação, na
Bahia, sobretudo os de Artur Ramos, que literatura e nos estudos brasi-
se tornou a grande autoridade na ma- leiros repercutiram na indús-
téria. tria do livro, desde o projeto
Com referência à interpretação histó- gráfico até a difusão; mas sobretudo
rica, o livro de Gilberto Freyre (apesar quanto à matéria preferencial das suas
do peso saudosista de uma visão aristo- páginas, cada vez mais receptivas aos au-
crática) funcionou como fermento radica- tores novos integrados nas tendências do
lizante, modificando o enfoque racista e momento. Pode-se dizer que, reciproca-
convencional reinante até então, sobre- mente, essas tendências foram estimula-
tudo pela escolha inovadora dos instru- das pelo livro renovado, na medida em
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ro herói cultural, pelo arrojo e a ampli- tos de peso, porque eles podiam assu-
tude com que estimulou e editou os no- mir a função de "delegados" da coletivi-
vos, bem como pelo estilo das capas de dade. De um lado isto servia de pretexto
suas edições, criadas sobretudo por San- para manter posições privilegiadas, com
ta Rosa em suas diversas fases. A man- a conseqüente sujeição das camadas do-
cha colorida com o desenho central em minadas (que não eram cultas, nem "pre-
branco e preto se tornou nos anos 30, paradas" para dirigir o seu destino, se-
por todo o país, o símbolo da renovação gundo a ideologia reinante). Mas sob
incorporada ao gosto público. o ponto de vista estritamente cultural,
Como uma espécie de ilha artesanal podia ser oportunidade de servir como
e graficamente conservadora nessa onda veículo possível para manifestar os in-
de industrialização e atualização edito- teresses e necessidades de expressão des-
rial, funcionou em Belo Horizonte, por tas camadas. Desde o pensador político
iniciativa de Eduardo Frieiro, a princí- que formula um ideário radical, até o
pio a Pindorama, depois a Amigos do artista que constrói estruturas por meio
Livro, mantidas por cotizações mensais das quais se manifesta o humano, acima
que davam direito à edição periódica de dos interesses de classe, muitos setores
um volume. Deste modo foram editadas das elites puderam (e podem) encontrar
algumas obras importantes de Carlos uma alta justificativa para a sua ativi-
Drummond de Andrade, João Alphon- dade.
sus, Emílio Moura, Ciro dos Anjos etc. Além disso, depois de 1930 se esbo-
çou uma mentalidade mais democrática
a respeito da cultura, que começou a ser
e maneira geral a repercussão vista, pelo menos em tese, como direito
do movimento revolucionário de todos, contrastando com a visão de
de 1930 na cultura foi posi- tipo aristocrático que sempre havia pre-
tiva. Comparada com a de an- dominado no Brasil, com uma tranqüili-
tes a situação nova representou grande dade de consciência que não perturbava
progresso, embora tenha sido pouco, em a paz de espírito de quase ninguém. Pa-
face do que se esperaria de uma verda- ra esta visão tradicional, as formas ele-
deira revolução. Se pensarmos no "povo vadas de cultura erudita eram destina-
pobre" (como diria Joaquim Manuel de das apenas às elites, como equipamen-
Macedo), ou seja, na maioria absoluta to (que se transformava em direito) pa-
da nação, foi quase nada. Mesmo pondo ra a "missão" que lhes competia, em
entre parênteses as modificações que po- lugar do povo e em seu nome.
deriam ter ocorrido na estrutura econô- O novo modo de ver, mesmo discre-
mica e social, para ele o que se impunha tamente manifestado, pressupunha uma
era a implantação real da instrução pri- "desaristocratização" (com perdão da
mária, com possibilidade de acesso futu- má palavra) tinha aspectos radicais que
ro aos outros níveis; e ela continuou a não cessariam de se reforçar até nossos
atingi-lo apenas de raspão. Mas se pen- dias, desvendando cada vez mais as con-
sarmos nas camadas intermediárias (que tradições entre as formulações idealistas
aumentaram de volume e participação da cultura e a terrível realidade da sua
social depois de 1930), a melhora foi fruição ultra-restrita. Por extensão, hou-
sensível graças à difusão do ensino mé- ve maior consciência a respeito das con-
dio e técnico, que aumentou as suas pos- tradições da própria sociedade, podendo-
sibilidades de afirmação e realização, de se dizer que sob este aspecto os anos 30
acordo com as necessidades novas do de- abrem a fase moderna nas concepções de
senvolvimento econômico. Se, finalmen- cultura no Brasil.
te, pensarmos nas chamadas elites, veri- Uma das conseqüências foi o conceito
ficaremos o grande incremento de opor- de intelectual e artista como opositor, ou
tunidades para ampliar e aprofundar a seja, que o seu lugar é no lado oposto
experiência cultural, inclusive com aqui- da ordem estabelecida; e que faz parte
sição de um corte progressista por alguns da sua natureza adotar uma posição crí-
dos seus setores. Este fato não poderia tica em face dos regimes autoritários e
deixar de repercutir na sociedade por da mentalidade conservadora.
causa do papel que as elites desempe-
nhavam, muito grande devido à extrema No entanto, este processo foi cheio de
privação cultural do país. A qualidade e paradoxos, inclusive porque o intelec-
grau de consciência dos detentores da tual e o artista foram intensamente
cultura e do saber tornavam-se elemen- cooptados pelos governos posteriores a
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sua intenção social e a sua aparência que fora empreendida nos anos de 1920
artística, se misturam sem que um per- sobretudo por Oswald de Andrade (cujo
ceba o outro. Não será como a água Serafim Ponte Grande, aliás, foi publi-
e o azeite. Será, antes, como a luz cado em 1933); e que nos anos 30 en-
e a cor. controu manifestação curiosa no irreali-
Estas considerações mostram cons- zado O Anjo, de Jorge de Lima (1934).
ciência clara do problema essencial na O gosto, ou pelo menos a tolerância
elaboração literária; mas comparadas pelo informe, o não-artístico (em rela-
com a realização, em seu autor e muitos ção aos padrões da tradição ou aos da
outros, ficam mais como alegação ritual; vanguarda), levou por vezes a supervalo-
e os "planos", (isto é, os intuitos, as con- rizar escritores que pareciam ter a vir-
vicções) acabam absorvendo o resto, co- tude do espontâneo; e a não reconhecer
mo uma "tese" a ser "ilustrada" pela fic- devidamente certas obras de fatura re-
ção. Poucos, naquele período, tiveram a quintada, mas desprovidas de ideologia
capacidade de corresponder ao programa ostensiva, como Os Ratos, de Dionélio
traçado por Abguar Bastos: Graciliano Machado (1935) ou O Amanuense Bel-
Ramos, Dionélio Machado, alguns mais. miro, de Ciro dos Anjos (1937). E tal-
E pouquíssimos puderam unir a formula- vez um artista de grande nível, como
ção crítica adequada à realização correta, Graciliano Ramos, tenha sido mais valo-
como se observa num veterano do de- rizado pelo temário, considerado incon-
cênio precedente, Mário de Andrade. formista e contundente, do que pela rara
qualidade da fatura, que lhe permitiu fa-
O que houve mais foi preocupação de zer obras realmente válidas.
discutir a pertinência dos temas e das
atitudes ideológicas, quase ninguém per- Post Scriptum — Aqui foram aborda-
cebendo como uma coisa e outra depen- dos alguns aspectos da vida cultural pos-
dem da elaboração formal (estrutural e terior a 1930; mas haveria muitos ou-
estilística), chave do acerto em arte e tros, relativos a teatro, rádio, cinema,
literatura. E note-se que isto não foi pró- música, que escapam à minha competên-
prio dos escritores e artistas de esquerda, cia. Lembro apenas que na música po-
ou radicais no sentido amplo. Ocorreu pular ocorreu um processo equivalente
também nos outros, inclusive os de di- de "generalização" e "normalização", só
reita, devido ao mesmo desvio obsessivo que a partir das esferas populares, rumo
rumo aos "problemas", bastando pensar às camadas médias e superiores. Nos
no aspecto pouco elaborado de obras am- anos 30 e 40, por exemplo, o samba e
biciosas e não desprovidas de força, co- a marcha, antes praticamente confinados
mo a de Octavio de Faria, que se tor- aos morros e subúrbios do Rio, con-
nou um crítico acerbo do modernismo e quistaram o país e todas as classes, tor-
dos temas "sociais", defendendo a con- nando-se um pão-nosso quotidiano de
centração nos de cunho religioso, moral consumo cultural. Enquanto nos anos 20
e psicológico, que praticava no entanto um mestre supremo como Sinhô era de
com total insensibilidade em relação aos atuação restrita, a partir de 1930 ganha-
aspectos de fatura. Tanto no caso da fic- ram escala nacional homens como Noel
ção espiritualista quanto do "romance Rosa, Ismael Silva, Almirante, Lamarti-
social", a imersão nos "planos" (senti- ne Babo, João da Bahiana, Nássara, João
do de Abguar Bastos) como aspecto do- de Barro e muitos outros. Eles foram
minante conduzia ao espontâneo, que no o grande estímulo para o triunfo avassa-
limite é o informe. lador da música popular nos anos 60, in-
clusive de sua interpenetração com a poe-
Na poesia houve fenômeno paralelo,
sia erudita, numa quebra de barreiras
mas diferente, que foi positivo: a tensão que é dos fatos mais importantes da nos-
entre o verso (elaborado segundo as re- sa cultura contemporânea e começou a
gras) e o não-verso (livre, em vários sen- se definir nos anos 30, com o interesse
tidos). Poetas como Drummond e Mu- pelas coisas brasileiras que sucedeu ao
rilo Mendes pareciam reduzir o verso a movimento revolucionário.
uma forma nova de expressão, que in-
corporou as qualidades da prosa e funcio-
nou como instrumento adequado para
exprimir o dilaceramento da consciên-
cia estética. Sob este aspecto eles prolon-
garam a experiência modernista de apa- Novos Estudos Cebrap, São Paulo,
v. 2, 4, p. 27-36, abril 84
gamento das fronteiras entre os gêneros,