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FEVEREIRO DE 2023 | ANO 24, N. 324

Na reta final dos testes,


vacina do Butantan
contra dengue
tem eficácia de 80%

Menos estudantes
conseguem concluir
graduação em
universidades públicas

Aparelho estima
idade gestacional de
recém­‑nascidos
pela maturidade da pele

Mercedes Bustamante:
se o Cerrado desaparecer,
poderá faltar água RETOMADA
EM CONSTRUÇÃO
em todo o Brasil

Estudos mostram como


a desigualdade de gênero
prejudica a trajetória Com perspectiva de
de musicistas restauração de investimentos,
pesquisadores e sociedade
Usinas solares em
lagos e represas são discutem prioridades
opção para elevar para o sistema de ciência
a geração de eletricidade e tecnologia do país
Pela primeira vez,
experimento com fusão
nuclear produziu mais
energia do que consumiu
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5 CARTA DA EDITORA CAPA PÓS-GRADUAÇÃO ASTROFÍSICA
16 Possível restauração 30 Avaliação da Capes 44 Aglomerado com
6 BOAS PRÁTICAS de investimentos faz traz melhora em 58 galáxias é descoberto
Universidade mostra a ciência brasileira discutir indicadores de programas em região obscurecida
caminhos para lidar prioridades de pós-graduação pelo centro da Via Láctea
com casos de má conduta
do passado ENTREVISTA ENSINO SUPERIOR ASTRONOMIA
24 Mercedes Bustamante 35 Por que menos 46 Explosões de
9 DADOS alerta que desmatamento alunos conseguem raios gama indicam
Patentes de invenção do Cerrado prejudica concluir a graduação em existência de novo tipo
no Brasil também outras regiões universidades públicas de objeto, estrelas de
nêutrons hipermassivas
10 NOTAS FÍSICA
38 Pela primeira vez, EPIDEMIOLOGIA
um experimento 48 China apresentou
de fusão nuclear em janeiro dados mais
produziu mais energia plausíveis sobre mortes
do que consumiu por Covid-19

FEVEREIRO 2023 ›››

Cargueiro no porto de
Paranaguá (PR): alerta
para risco climático
(POLÍTICAS PÚBLICAS, P. 74)
CAPITAIN DARWIN / WIKIMEDIA COMMONS

324

PESQUISA FAPESP 324 | 3


IMUNOLOGIA ARQUITETURA 86 OBITUÁRIOS
50 Testes em humanos 67 Software permite Maria Helena de Moura
de imunizante do Butantan definir custos financeiros Neves (1931-2022)
contra dengue atingem e impacto ambiental Magda Becker Soares
eficácia preliminar de 80% de construções (1932-2023)

54 Centro Nacional ENGENHARIA BIOMÉDICA 90 MEMÓRIA


de Vacinas deverá ser elo 70 Aparelho revela Josué de Castro expôs
entre pesquisa básica idade gestacional de as bases econômicas, sociais
e produto final recém-nascidos prematuros e biológicas da fome

ECOLOGIA POLÍTICAS PÚBLICAS 94 ITINERÁRIOS


55 Populações de 74 Estudos indicam como DE PESQUISA
106 espécies de anfíbios da reduzir os efeitos de A química Juliane Pereira
Mata Atlântica diminuem eventos climáticos extremos dos Santos fala sobre
nos últimos 130 anos na costa brasileira a produção científica
industrial

JOSUÉ DE CASTRO – ACERVO FUNDAÇÃO JOAQUIM NABUCO – MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO


BIOLOGIA DEMOGRAFIA
58 Pesquisadores 79 Plataforma permite 96 RESENHA
identificam animais cruzamentos inéditos Reflexões sobre o ensino
e plantas isolados pela de dados oficiais sobre superior: A universidade
altitude em serra desigualdade racial e seus compromissos
desabitada do Amazonas com a sociedade,
MÚSICA Marcelo Knobel.
ENERGIA 82 Pesquisas avaliam Por Elizabeth Balbachevsky
62 Usinas solares flutuantes como assimetria de
podem ajudar a elevar gênero prejudica a carreira 97 COMENTÁRIOS Capa 
geração elétrica no país de musicistas 98 FOTOLAB Alexandre Affonso

Josué de Castro com


vendedor de caranguejos
em mangue do Recife (1967)
(MEMÓRIA, P. 90)
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VÍDEO PODCAST
Qual foi o primeiro Espécies, bioeconomia,
vertebrado “falante”? linhagens
O biólogo Gabriel Uma expedição a
Jorgewich-Cohen fala sobre montanhas inexploradas da
a comunicação acústica Amazônia, o potencial da
entre 53 espécies de animais biodiversidade da floresta
que eram consideradas tropical e a mais recente
silenciosas onda de Covid-19 no Brasil

VÍDEO Este conteúdo está


Patinho Feio, o primeiro disponível no site
computador brasileiro, www.revistapesquisa.fapesp.br,
completa 50 anos que contém, além de
Conheça a história da edições passadas, versões
máquina que deixou em inglês e espanhol
importante legado e conteúdo exclusivo
no ensino e na indústria
nacional de tecnologia
CARTA DA EDITORA

Morte e vida
Alexandra Ozorio de Almeida | DIRETORA DE REDAÇÃO

N
a redação de Pesquisa FAPESP, uma das Com as condições adequadas, e concedendo o
animadas discussões sobre nossa ativida- tempo que a ciência demanda para seu desenvol-
de diz respeito aos obituários. Alguns não vimento, podem-se alcançar resultados importan-
apreciam muito esse gênero jornalístico, visto tes. Um exemplo, fruto de mais de uma década de
como um pouco mórbido; para outros, trata-se trabalho e de mais de R$ 300 milhões investidos,
de uma celebração da vida e uma oportunidade é a vacina contra a dengue desenvolvida pelo
de conhecer trajetórias ricas e inspiradoras. Instituto Butantan. A chamada Butantan-DV é
Como ativista do segundo grupo, ao ler o obi- objeto do maior ensaio clínico de uma vacina já
tuário da linguista Maria Helena de Moura Ne- feito no país por pesquisadores brasileiros, com
ves, da Unesp, campus de Araraquara (página 86), 16.235 voluntários.
fiquei encantada com a sua história e frustrada Na última etapa de testes, prevista para ser
por não termos entrevistado em vida essa pes- encerrada no próximo ano, a Butantan-DV até
quisadora que iniciou sua trajetória acadêmica o momento oferece 89,5% de redução no desen-
mais tarde do que a média, mas teve uma prolífica volvimento de dengue provocada pelo sorotipo 1
e produtiva carreira que durou mais de 50 anos. e 69,6% para o tipo 2 – há duas outras variedades
Tivemos a alegria de entrevistar em 2015 Mag- que não circulam no país há alguns anos. Exis-
da Becker Soares, educadora da UFMG, morta tem hoje dois imunizantes comerciais contra a
em 1º de janeiro (página 88). O jornalista Bruno dengue, um francês, já em uso no Brasil, e outro
de Pierro, autor da entrevista, lembrou em uma japonês (página 50).
rede social que a pesquisadora, então com 83 Em um momento no qual os olhares estão di-
anos, ofereceu a ele uísque durante a conversa. recionados à Amazônia, no contexto das mudan-
A ciência brasileira é feita por pessoas como ças climáticas, a bióloga Mercedes Bustamante
Maria Helena Neves e Magda Becker, mas sem chama a atenção para a situação do bioma vizi-
um sistema de ciência e tecnologia composto nho, o Cerrado, cada vez mais desmatado. É no
por instituições, recursos, políticas públicas e Cerrado que nascem rios que abastecem 8 das
infraestrutura não há pesquisa nacional. Após 12 regiões hidrográficas brasileiras, conta a no-
um período de sucessivos cortes e contingen- va presidente da Capes, que concedeu entrevista
ciamentos, do congelamento dos valores das aos editores Carlos Fioravanti e Ricardo Zorzetto
bolsas de formação e da desvalorização da car- logo antes de ser nomeada para o cargo (página
reira acadêmica, há perspectivas de recuperação, 24). A agência recentemente divulgou, um ano
mostra o editor de Política, Fabrício Marques, depois do esperado, sua avaliação quadrienal
na reportagem de capa desta edição (página 16). dos programas de mestrado e doutorado no país
O momento, defendem pesquisadores, também (página 30). Um terço dos cursos avaliados apre-
deve ser aproveitado para repensar o sistema, e sentou nota melhor, resultado que pode ter sido
não apenas reconstruir o que existia e foi des- impulsionado por algumas mudanças no modelo
montado ou descontinuado. de classificação.

PESQUISA FAPESP 324 | 5


BOAS PRÁTICAS
Vulnerabilidade A
Universidade da Califórnia em São Fran-
cisco (UCSF) adotou uma estratégia as-
sertiva para lidar com casos de má con-

à flor da pele duta científica ocorridos há muito tempo, quando


as normas regulando a ética na pesquisa ainda não
estavam bem estabelecidas e comportamentos
Universidade investiga pesquisa hoje considerados inaceitáveis eram tolerados.
antiética em dermatologia realizada A instituição criou, um ano atrás, o Programa de
Reconciliação Histórica, com a tarefa de inves-
com presidiários nos anos 1960 e 1970 tigar e reparar eventuais abusos cometidos no
e pede desculpas passado por seus cientistas.
Em dezembro, o primeiro relatório produzido
pelo programa foi divulgado. Fruto do esforço
de um comitê de investigação que analisou mais
de 7 mil documentos ao longo de seis meses, o
trabalho debruçou-se sobre experimentos ques-
tionáveis feitos com prisioneiros de um hospital
penitenciário estadual em Vacaville, na Califórnia.
Dois pesquisadores do Departamento de Der-
matologia da UCSF, Howard Maibach e William
Epstein, realizaram nas décadas de 1960 e 1970
estudos que expuseram cerca de 2,6 mil presos
a pesticidas, herbicidas e a remédios com poten-
ciais efeitos colaterais. As substâncias eram apli­
cadas na pele dos detentos e injetadas na veia pa­ra
aferir eventuais reações no organismo humano.

6 | FEVEREIRO DE 2023
Em alguns testes, os voluntários ficavam expostos a gras (ver Pesquisa FAPESP nº 308). O pesquisa-
caixas com mosquitos e eram picados por eles, com dor foi um dos descobridores, no final dos anos
o objetivo de monitorar os mecanismos de atração 1960, do potencial do ácido retinoico, o Retin-A,
dos insetos e das próprias picadas. A maioria dos no tratamento da acne e de espinhas.
presos estava internada no hospital penitenciário Como William Epstein morreu em 2006, o co-
para diagnosticar ou tratar problemas psiquiátri- mitê de investigação da UCSF se ateve ao trabalho
cos. A participação era voluntária e recompensada de Maibach, ainda ativo. Com mais de 60 anos de
com o pagamento de US$ 30 mensais. carreira, ele publicou cerca de 2,5 mil artigos e foi
O relatório detectou problemas na condução membro do comitê editorial de mais de 30 revistas
das pesquisas. O principal deles foi a ausência de científicas. Ele foi informado do teor do relató-
protocolos sobre “consentimento informado”, rio antes de sua publicação e divulgou um carta
por meio do qual voluntários em ensaios clínicos explicando o contexto das pesquisas e pedindo
são comunicados acerca dos riscos à saúde que desculpas. “O que eu acreditava ser ético há 40 ou
estão correndo e sobre seus direitos caso surjam 50 anos não é considerado ético hoje”, afirmou.
danos mentais ou físicos resultantes da pesquisa. “O trabalho que fiz com colegas foi considerado
O comitê analisou 34 artigos científicos pu- por muitos como adequado aos padrões da época,
blicados de 1960 a 1980 que estão relacionados, embora esses padrões estivessem claramente em
direta ou potencialmente, a experimentos com evolução. Eu obviamente não trabalharia nessas
os detentos de Vacaville e praticamente não en- circunstâncias hoje – já que a sociedade em que
controu menções a consentimento informado, vivemos considera isso inapropriado de modo
embora ele tenha se tornado obrigatório a partir inequívoco”, retratou-se. Ele ressaltou, contudo,
de 1966. Uma exceção foi um paper publicado que nenhum dano à saúde dos pacientes foi re-
em 1975, que destaca a aprovação do Comitê de gistrado na época e que, em muitos casos, houve
Pesquisa Humana (CHR) da UCSF, órgão insti- o consentimento informado, ainda que não tenha
tuído um ano antes. Aparentemente, a dupla de sido mencionado nos artigos científicos.
dermatologistas conseguiu driblar as normas da

E
universidade ao atribuir a coordenação dos ex- mbora não haja evidências de que os estu-
perimentos apenas a uma organização sem fins dos com os detentos californianos tenham
lucrativos, o Instituto Solano de Pesquisa Médica tido algum viés racial, o relatório observa
e Psiquiátrica, mesmo quando eram conduzidos que a produção científica de Maibach sobre dife-
na UCSF. Outro agravante é que os experimentos renças raciais da pele utilizou terminologia hoje
não tinham nenhuma finalidade terapêutica. Os considerada imprópria e ajudou a perpetuar uma
prisioneiros não eram portadores de doenças ou abordagem vista atualmente como equivocada. O
condições clínicas que pudessem ser tratadas ou pesquisador também mencionou esse flanco em
aliviadas por meio das substâncias a que foram seu pedido de desculpas, afirmando que “chegou
expostos. Os estudos só foram interrompidos ao entendimento de que a raça sempre foi uma
em 1977, quando o estado da Califórnia proibiu construção social e não biológica, algo não apre-
pesquisas com cobaias humanas em suas institui- ciado por muitos de nós em uma era anterior”.
ções penais – um ano antes, elas já haviam sido No relatório, o comitê fez uma série de re-
vetadas em presídios federais. comendações para a UCSF. Sugeriu que a uni-
De acordo com o relatório, antes de traba- versidade divulgue essas descobertas para sua
lhar na UCSF, Maibach e Epstein estagiaram na comunidade, inicie um projeto de história oral
Universidade da Pensilvânia, onde receberam com indivíduos submetidos aos experimentos
treinamento do dermatologista Albert Kligman em Vacaville entre 1955 e 1977, publique uma
[1916-2010], que entre 1951 e 1974 conduziu ex- declaração oficial de desculpas e prossiga com
perimentos antiéticos com prisioneiros negros da investigações. Em resposta, o vice-reitor da UCSF,
penitenciária Holmsburg, na Filadélfia. Financia- Dan Lowenstein, lançou uma declaração oficial
do pela Dow Química, Kligman expôs cerca de 80 sobre o caso de Maibach e Epstein. “A UCSF pede
homens a altas doses de dioxina, matéria-prima desculpas por seu papel explícito no dano causa-
de herbicidas e armas químicas, para estudar os do a sujeitos, suas famílias e nossa comunidade
efeitos do contaminante. Em 2019, uma investi- ao facilitar essa pesquisa. Também reconhece
gação feita pelo Penn Medicine, centro médico o papel implícito da instituição em perpetuar o
da universidade, concluiu que as pesquisas não tratamento antiético de populações vulneráveis e
transgrediram as leis da época, mas foram antié- carentes”, escreveu. De acordo com Lowenstein,
SAKHORN38 / GETTY IMAGES

ticas e desrespeitosas com os participantes. Há o reconhecimento de danos causados no passa-


dois anos, como medida de reparação histórica, do e o esforço para promover uma reconciliação
recursos deixados por Kligman para um fundo da histórica com vítimas de práticas abusivas são
universidade foram redirecionados para bolsas e essenciais para promover justiça e transforma-
projetos sobre doenças que atingem pessoas ne- ção no tempo presente. n Fabrício Marques

PESQUISA FAPESP 324 | 7


Uma cadeia de plágios na principal universidade mexicana

U
m escândalo de plágio na Uni- Juan Jesús Garza Onofre, pesquisador A Unam, que é a maior universidade
versidade Nacional Autônoma do Instituto de Pesquisas Jurídicas da pública do México, com mais de 170 mil
do México (Unam) movimentou Unam, à edição mexicana do jornal es- alunos de graduação e 24 mil de pós-gra-
a escolha do novo presidente da Suprema panhol El País. duação, abriu uma investigação sobre
Corte mexicana nos primeiros dias de O que poderia ser um caso de má con- a cadeia de casos de plágio e Esquivel
2023. A candidatura da juíza Yasmín Es- duta individual envolvendo uma figura pode ter o diploma revogado. Ela se dis-
quivel Mossa, 59 anos, que tinha o apoio pública ganhou contornos de escândalo se vítima de perseguição e fez circular
declarado do presidente da República, acadêmico disseminado quando se des- a versão de que o trabalho original era
Andrés Manuel López Obrador, perdeu cobriu que Esquivel e Gutierrez tiveram o dela, enquanto o plagiador seria Gu-
fôlego quando se descobriu que seu tra- uma mesma orientadora, Martha Ro- tierrez, embora ele tivesse apresentado
balho de conclusão do curso (TCC) de driguez Ortiz, e que ela supervisionou o TCC primeiro. O advogado negou. O
direito na Unam, defendido em 1987, co- outros trabalhos plagiados entre 1986 e presidente Obrador saiu em defesa da
piou o apresentado um ano antes pelo 2010. Um capítulo de 25 páginas desse juíza, que nomeara em 2019, afirmando
advogado Edgar Ulises Báez Gutiérrez. mesmo TCC reapareceu nos trabalhos que a acusação buscava atingi-lo.
A introdução e a conclusão eram idên- de dois alunos orientados pela docente A magistrada acabou preterida na elei-
ticas. Até o título dos dois estudos era o em 2008 e 2010. Em 1993, um estudante ção, mas nem por isso o México deixou
mesmo: “Inoperancia de los sindicatos da Unam, Juan Carlos Blanco Silva, que de ter, pela primeira vez, uma mulher no
en los trabajadores de confianza del Ar- hoje atua como procurador, apresentou comando de sua Corte Suprema. A esco-
tículo 123 Apartado A”. A principal dife- pela terceira vez o conteúdo como se lhida entre cinco candidatos lançados foi
rença entre os dois textos é a ausência, fosse original, embora com título dife- Norma Lucía Piña, de 63 anos, especialis-
no trabalho da juíza, de um estudo de rente. Ele não foi, porém, orientado por ta em direito constitucional que integra
campo feito por Gutierrez. “É um plágio Ortiz. Um erro gramatical – uma vírgu- o tribunal desde 2015. Ela recebeu seis
tão malfeito que chega a ser grosseiro. Só la separando sujeito e predicado – está dos 11 votos dos juízes da Corte e ficará
faltou plagiar os agradecimentos”, disse presente em todas as cópias. no cargo pelos próximos quatro anos.

Combate a revistas predatórias na Índia

A
Índia afrouxou as regras para o ingresso e a conclusão de cursos de douto-
rado. Segundo normas atualizadas pela Comissão de Bolsas Universitárias,
órgão que regula instituições de ensino superior do país, estudantes que
concluam cursos de graduação de quatro anos de duração e tenham médias iguais
ou superiores a 75% do aproveitamento máximo poderão entrar diretamente no
doutorado sem precisar passar pelo mestrado. Outra mudança tem como objeti-
vo reduzir a incidência de má conduta nos programas de pós-graduação. Deixará
de ser obrigatório que estudantes publiquem artigos em revistas acadêmicas para
receber o grau de doutor. A nova diretriz busca combater a disseminação de perió-
dicos que divulgam qualquer artigo em troca de dinheiro sem fazer uma avaliação
de sua qualidade, as chamadas revistas predatórias.
As mudanças receberam críticas. Teme-se, de um lado, que o fim da exigência
do mestrado sobrecarregue e desarticule os cursos de doutorado existentes. Já no
caso dos periódicos predatórios, o medo é enfraquecer a formação de futuros pes-
quisadores. “Se queremos pesquisa de boa qualidade e estamos preocupados com
o surgimento de periódicos predatórios que lucram com a exigência de publicação
dos alunos, o alvo deveria ser as revistas”, disse à Times Higher Education Sipra
Mukherjee, professora de inglês da Universidade Estadual de Bengala Ocidental.
Já o físico Debashis Ghoshal, pesquisador da Universidade Jawaharlal Nehru, é
otimista. “Isso eliminará a razão de existência dos periódicos predatórios, mas
apenas se for acompanhado de mudanças apropriadas em processos de contrata-
ção e promoção do corpo docente”, afirmou.

8 | FEVEREIRO DE 2023
DADOS Patentes de invenção no Brasil

Diminuiu em 8,2% o número Os dois anos de pandemia A queda se concentrou nas Apesar da queda, a participação
de pedidos de patentes de interromperam um ciclo Instituições de Ensino Superior (IES), das IES no total de pedidos ainda
invenção depositado1 por de crescimento praticamente sobretudo universidades públicas, foi de 39%, em 2021, após ter
pessoas jurídicas2 residentes constante no número de para as quais a retração foi de 22%, crescido intensamente entre
no Brasil, ao passar de 3.136 patentes depositadas no país, no período, ou de 1.451 para 1.135 2000, quando representava 7,1%
para 2.878, entre 2020 e 2021 entre 2019 e 2000 depósitos. Nas demais organizações, do total (65 de 916 depósitos),
esse número aumentou em 3,4%, ao e 2019, quando atingiu a
passar de 1.685 para 1.743 depósitos participação máxima, de 47%

Depósitos de patentes de invenção de pessoas jurídicas residentes


Total, Instituições de Ensino Superior, Outras PJ – 2000-2021

n Instituições de Ensino Superior n Outras Pessoas Jurídicas

3.500
3.250 3.191 3.136
3.000 2.905 2.899 2.878
2.750 2.613
2.505 2.555 2.492
2.500 2.417
2.291
2.250
2.000 1.910
1.750
1.512
1.500
1.250
1.000 916
750
500
250
0
2000 2005 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021

Esse nível de participação de IES na geração de Nas cinco principais economias No caso do Brasil, as
patentes não é comum em outros países. Os europeias – Alemanha, Reino Unido, universidades públicas lideram
dados mais recentes do Escritório Europeu de França, Itália e Espanha –, apenas no folgadamente a lista das 20
Patentes indicam que, nos países daquela região, Reino Unido (Universidade de Oxford) organizações mais ativas nessa
tais instituições respondem por menos de 10% e na Espanha (três universidades) atividade, que contém apenas
dos registros solicitados. Números semelhantes se as IES aparecem entre as 10 principais duas empresas
verificam nos Estados Unidos e na China organizações patenteadoras

Organizações residentes líderes em depósitos de patentes de invenção – 2020


100 96

80
79
74
63
60 55 55
51 50

38 38 38
40 35 34 34 33 32 30 29 27
23
20

0
UFCG Petrobras UFPB UFMG Unesp UFPE USP Unicamp UFPel UFU UFPR UFC UFRJ UTFPR UFAl UFRN Bosch UEL UFRPE UFMA

NOTAS (1) REFEREM-SE A DEPOSITANTES ÚNICOS OU AO RESPONSÁVEL PELO PROTOCOLO DO PEDIDO NO INSTITUTO NACIONAL DE PROPRIEDADE INDUSTRIAL.
(2) HOUVE 1.793 DEPÓSITOS POR PESSOAS FÍSICAS, TOTALIZANDO 4.671 DEPÓSITOS EM 2021, UMA QUEDA DE 12% SOBRE O TOTAL DE 2020, QUE HAVIA SIDO DE 5.281 PEDIDOS DE PATENTES DE INVENÇÃO DEPOSITADOS.

FONTES INSTITUTO NACIONAL DE PROPRIEDADE INDUSTRIAL E EUROPEAN PATENT OFFICE ELABORAÇÃO GERÊNCIA DE ESTUDOS E INDICADORES – GEI

PESQUISA FAPESP 324 | 9


NOTAS

A vida oculta nos


campos rupestres
Os campos rupestres são formados por gramíneas e arbustos que crescem sobre
um solo pedregoso e pobre em nutrientes, em geral no topo de serras e chapadas.
Embora ocupem apenas 0,8% do território nacional, neles vivem cerca de 15% das
espécies de plantas já identificadas no Brasil. Há tempos, ecólogos e botânicos se
perguntam como tal diversidade consegue prosperar em solos com níveis tão bai-
xos de fósforo e nitrogênio. Uma resposta parece estar nas raízes. Mais especifi-
camente, na variedade de microrganismos (bactérias, arqueias e fungos) que as
colonizam. Analisando as raízes de duas plantas comuns nos campos rupestres –
Vellozia epidendroides, que cresce em solos rasos, e Barbacenia macrantha, encon-
3
trada sobre rochas –, a equipe coordenada pelo geneticista Paulo Arruda, da Uni-
versidade Estadual de Campinas (Unicamp), identificou 522 espécies de micror-
ganismos. As comunidades de seres microscópicos das raízes de cada planta eram
distintas, mas havia espécies compartilhadas, em geral microrganismos especiali- Exemplares
zados no transporte de fósforo e na conversão da forma insolúvel para a solúvel de Barbacenia
do mineral, que é a absorvida pelas plantas, ou capazes de reciclar nitrogênio (The macrantha 
(no alto)
ISME Journal, 20 de dezembro de 2022). “Mostramos que os microrganismos têm
e de Vellozia
um papel essencial na adaptação das plantas às condições extremas desse am- epidendroides
biente”, conta o geneticista Rafael Souza, um dos autores do estudo. (ao lado)

10 | FEVEREIRO DE 2023
Pontas de projéteis
encontradas em Cooper’s
Ferry, nos Estados Unidos

Área de campo rupestre


próximo ao Parque
Nacional da Serra do Cipó,
em Minas Gerais
4

Os artefatos potencialmente
mais antigos das Américas
Pontas de projéteis criadas há cerca de 16 mil anos foram encontradas na região de
Cooper’s Ferry, ao longo do rio Salmon, no estado de Idaho, noroeste dos Estados
Unidos. Os artefatos podem representar a evidência mais antiga da primeira tecno-
logia de produção de ferramentas trazida para as Américas (Science Advances, 23
de dezembro). Afiadas como lâminas, as 14 pontas (completas ou fragmentadas)
foram identificadas em escavações arqueológicas realizadas de 2012 a 2018 pela
equipe do arqueólogo Loren Davis, da Universidade Estadual do Óregon. Elas têm
de 1,2 a 5 centímetros de comprimento e estavam ao lado de pedaços de carvão e
ossos de animais com idade definida em quase 16 mil anos por meio da análise de
isótopos de carbono. Essa datação indica que as pontas de Idaho são cerca de 3 mil
anos mais antigas do que as produzidas pela chamada cultura Clovis, achadas em
toda a América do Norte, e 2,3 mil anos mais velhas do que outras descobertas an-
tes em Cooper’s Ferry. Segundo Davis e seus colaboradores, as pontas descritas
agora parecem ter sido feitas usando a mesma tecnologia utilizada entre 20 mil e
16 mil anos atrás por povos que habitaram a região onde hoje é Hokkaido, no Japão.
Alguns arqueólogos que não participaram do trabalho questionam essa conexão.

Causador da malária tem variedades


genéticas únicas no Brasil
FOTOS  1, 2 E 3 RAFAEL SOARES CORREA DE SOUZA  4 LOREN DAVIS  5 GERTRUDE H. NICHOLSON / CDC

As variedades genéticas de Plasmodium vivax encontradas no Brasil são distintas


entre si e diferentes das existentes em outros países. Aqui, elas têm ancestrais
mais antigos do que as de outras regiões do planeta e apresentam alterações
genéticas importantes, como as que induzem a resistência a medicamentos
antimaláricos. Um grupo de pesquisadores do Reino Unido, Tailândia, Colômbia
e Brasil chegou a essas descobertas após fazer o sequenciamento completo
do genoma de 123 amostras de P. vivax de sete estados brasileiros (Amazonas,
Acre, Amapá, Rondônia, Pará, Mato Grosso e São Paulo) que integram as áreas
de transmissão dessa espécie de protozoário, principal causadora de malária
no Brasil. Os resultados das amostras brasileiras foram depois comparados
com os de outras 192 de seis países das Américas e os de 570 de 20 países
da África e da Ásia (The Lancet Regional Health – Americas, fevereiro). Os autores
do trabalho argumentaram que a identificação das variedades genéticas pode
revelar informações importantes sobre os mecanismos de adaptação do
parasita aos medicamentos, indicar padrões de transmissão e ajudar a prever
surtos de infecção. Em 2021, o Ministério da Saúde registrou 139.211 casos
de malária no Brasil (137.858 autóctones). Eles se concentram na Amazônia Desenhos ilustram estágios de desenvolvimento
e são causados por P. vivax (83% do total) e P. falciparum (17%). do protozoário Plasmodium vivax

PESQUISA FAPESP 324 | 11


Redemoinhos que nascem
Platô de
na costa de Pernambuco Pernambuco

Entre mil e 4 mil metros (m) de profun- São Paulo (USP), em colaboração com
didade, uma corrente marinha trans- colegas da Austrália, França e Estados
porta nutrientes e massas de água fria, Unidos, mostraram que os redemoinhos
mais salgada e rica em oxigênio desde resultam da interação entre a corrente
o mar do Labrador, na Groenlândia, até marinha e o platô de Pernambuco
a Antártida. Em frente ao Recife, no (JGR: Oceans, 22 de dezembro). A con-
platô de Pernambuco, a corrente se clusão se apoiou na análise de dados
quebra em redemoinhos que giram no coletados entre 26 de fevereiro e 21 de
sentido anti-horário enquanto viajam março de 2002 pelo navio oceanográ-
milhares de quilômetros na direção su- fico Antares, da Marinha brasileira, e
doeste, até a costa do Espírito Santo, em modelagem por computador. “A
As cores azuis
misturando águas e nutrientes. Já se identificação do mecanismo de quebra indicam
tendência de
conhecia a largura (aproximadamente da corrente no platô de Pernambuco rotação no sentido
250 quilômetros) e a velocidade de permite entender melhor os fluxos de anti-horário,
as verdes, no
translação (0,04 m por segundo) dos calor e a oxigenação no fundo do Atlân- sentido horário

turbilhões, mas seus mecanismos de tico tropical”, comenta o oceanógrafo


O mapa mostra o deslocamento de
formação permaneciam incertos. Ago- Felipe Vilela-Silva, da USP, principal redemoinhos (círculos azuis) ao longo da costa
ra, pesquisadores da Universidade de autor do trabalho. brasileira em 20 de janeiro de 2002

Ação de células de
O sobe e desce do lago Titicaca defesa aumenta dor
Acomodado a 3.800 metros (m) de altitude em um vale na cordilheira dos Andes por lesão nos nervos
na fronteira da Bolívia com o Peru, o lago Titicaca viveu uma história atribulada.
Uma análise de sedimentos coletados em 13 pontos do lago entre 2014 e 2017 Um grupo internacional liderado pelo farma-
indicou que o nível da água esteve bem abaixo do atual entre 4000 e 2400 anos cologista brasileiro Thiago Mattar Cunha, da
a.C., subiu rapidamente cerca de 15 m em 1800 a.C. e depois um pouco mais, de Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão
3 a 6 m, até atingir o nível atual, entre 1450 e 1750 d.C. Responsáveis por esse Preto, identificou e caracterizou uma das vias
estudo, pesquisadores da França, Bélgica, Suíça, Bolívia e Estados Unidos con- bioquímicas que provocam a dor neuropática.
cluíram também que o enchimento do lago inundou suas margens e forçou a Essa forma de dor crônica surge em conse-
migração de povos nativos para áreas mais altas, contribuindo para o surgimen- quência de lesões no sistema nervoso central
to da cultura Tiauanaco, que desapareceu por volta do ano 1000 d.C., provavel- (encéfalo e medula espinhal) ou periférico
mente por falta de alimentos. Hoje essa cultura é representada por um dos maio- (nervos de todo o corpo) e atinge até 15% da
res sítios arqueológicos da América do Sul, com aproximadamente 4 quilômetros população. Em experimentos com camundon-
quadrados, ocupado com estruturas monumentais de rocha (PNAS, 3 de janeiro). gos, os pesquisadores verificaram que danos
em um nervo periférico ativava a infiltração
de um tipo de célula do sistema de defesa (as
células dendríticas) nas meninges, as mem-
branas que protegem o sistema nervoso cen-
tral. Ali, as células dendríticas aumentam a
produção de moléculas chamadas quinureni-
nas, que são ativadas por células da medula
espinhal e elevam a sensibilidade dos neurô-
Pescador em barco
tradicional boliviano nios que percebem a dor. Ao inativar a pro-
no lago Titicaca dução de quinurenina, os pesquisadores ve-
rificaram que a dor desaparece (The Journal
of Clinical Investigation, 13 de outubro de
2022). “Com os resultados, abrimos a pers-
pectiva de desenvolver novos compostos
para bloquear essa via bioquímica”, afirmou
1 Cunha à Agência FAPESP.

12 | FEVEREIRO DE 2023
3

Cambridge devolve peças da


coleção arqueológica à Nigéria
O Museu de Arqueologia e Antropologia (MAA) da
Universidade de Cambridge deve devolver à Nigéria
116 objetos de latão, marfim e madeira levados para 2

o Reino Unido pelo exército britânico durante o saque


da cidade de Benin em 1897. Os objetos que não
forem transferidos poderão permanecer em exibição, Contrariando expectativas anunciadas nos últimos
como empréstimo, com o aval da Comissão Nacional meses, o British Museum, por ora, declarou que
FOTOS 1 STÉPHANE GUÉDRON13 / IRD  2 E 3 UNIVERSIDADE DE CAMBRIDGE  4 EDUARDO CESAR / REVISTA PESQUISA FAPESP   MAPA VILELA-SILVA, F. ET AL. JGR: OCEANS. 22 DEZ. 2022  INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

de Museus e Monumentos da Nigéria (The Guardian não devolverá à Grécia as peças em mármore
e boletim da Universidade de Cambridge, 14 de do Partenon, templo construído no século V a.C.
dezembro). A decisão da universidade segue as de em Atenas, sob a alegação de que elas teriam
outros museus dos Estados Unidos e da Europa. sido adquiridas legalmente em 1802 pelo Pulseira de latão e
“No setor internacional de museus, há um crescente diplomata britânico Thomas Bruce, conde de Cabeça de Oba, ou Rei,
duas das peças que
reconhecimento de que os artefatos adquiridos Elgin (1766-1841), que as vendeu para o museu.
devem ser devolvidas
ilegitimamente devem ser devolvidos aos seus O governo grego solicita desde o início do
países de origem”, afirmou Nicholas Thomas, diretor século XX a devolução de friso de 75 metros
do MAA, a Pesquisa FAPESP. Em julho, a Alemanha retirado do Partenon (Agência France-Presse e Daily
devolveu à Nigéria cerca de mil itens de suas Sabah, 11 de janeiro). As negociações com o museu
coleções. No entanto, nem todos aderiram à proposta. ainda continuam (New York Times, 17 de janeiro).

Comprimidos da Ciência menos disruptiva


PrEP, indicados
para reduzir
O ritmo de publicação de descobertas inovadoras e o de patentes de tecnologia
o risco de infecção
pelo HIV consideradas disruptivas vêm diminuindo. Em comparação com artigos científicos
de meados do século XX, aqueles publicados ao longo dos anos 2000 tinham mais
chance de oferecer contribuições incrementais do que descobertas capazes de mu-
dar os rumos da ciência. O mesmo efeito foi observado com patentes depositadas
entre 1976 e 2010. A conclusão consta de um levantamento feito por pesquisadores
Alta adesão à dos Estados Unidos. Sob a coordenação do sociólogo Russell Funk, da Universidade
de Minnesota, eles desenvolveram uma métrica quantitativa batizada de índice CD,
prevenção da Aids com valores variando de -1, para os trabalhos menos disruptivos, a +1, para os mais
inovadores. Os autores a usaram para analisar 45 milhões de artigos científicos e
Um estudo internacional, com a participação de 3,9 milhões de patentes. Verificaram que o índice CD médio dos papers caiu mais de
pesquisadores brasileiros, registrou uma alta adesão 90% entre 1945 e 2010, ao passo que o de patentes recuou 78% entre 1980 e 2020
dos grupos mais vulneráveis à infecção por HIV à (Nature, 4 de janeiro). Eles também analisaram os verbos mais comuns nesses do-
Profilaxia Pré-exposição (PrEP), estratégia que con- cumentos. Na década de 1950, eram associados à ideia de criação ou descoberta,
siste no uso diário de medicamentos antirretrovirais como “produzir” ou “determinar”, enquanto nos anos 2000 usavam mais palavras
para reduzir o risco de adquirir o vírus. Participaram como “melhorar” ou “aprimorar”, ligadas à descrição de progresso incremental.
9.509 gays, bissexuais e outros homens cisgênero
que fazem sexo com homens (HSH), travestis e mu- EVOLUÇÃO DO GRAU DE DISRUPÇÃO
lheres trans com idade média de 29 anos e diag- ARTIGOS PATENTES
0,6 0,6
nóstico negativo de HIV. Eles foram atendidos em
Ciências da vida e biomedicina Química
clínicas especializadas de 11 cidades do Brasil, três
0,5 Física 0,5 Computadores e comunicação
do México e seis do Peru e acompanhados de feve- Ciências sociais Medicina e medicamentos
Tecnologia Elétrica e eletrônica
reiro de 2018 a junho de 2021. As análises mostra- 0,4 0,4 Mecânica
Índice CD médio

Índice CD médio

ram que 60% dos participantes aderiram ao trata-


mento de modo prolongado (quase um ano). Apenas 0,3 0,3

58 participantes (0,5%), dos quais 30 no Peru,


contraíram infecção por HIV, indicando que os HSH 0,2 0,2

e mulheres transgênero são os mais vulneráveis ao


0,1 0,1
vírus (Lancet HIV, 21 de dezembro). O tratamento
é oferecido no sistema público do Brasil e do Méxi-
0 0
co, mas aguarda aprovação no Peru. 1950 1960 1970 1980 1990 2000 2010 1980 1990 2000 2010

PESQUISA FAPESP 324 | 13


Novo integrante do Conselho Superior
O hematologista Carmino Antonio de Souza é o mais conselho por seis anos. Especialista em câncer hema-
novo integrante do Conselho Superior da FAPESP. Pro- tológico, Souza graduou-se em medicina pela Unicamp
fessor da Faculdade de Ciências Médicas da Universi- (1975), onde também concluiu o doutorado (1987) e a
dade Estadual de Campinas (Unicamp), Souza foi no- livre-docência (1996). Em 1985, ele criou o Centro de
meado pelo então governador de São Paulo, Rodrigo Hematologia e Hemoterapia (Hemocentro) da Unicamp
Garcia, por meio de decreto publicado em 21 de dezem- e depois coordenou o programa de sangue do estado
bro no Diário Oficial do Estado de São Paulo. Ele deverá de São Paulo, assegurando que as transfusões estariam
completar o mandato do infectologista David Uip, pro- livres de vírus como o HIV (ver Pesquisa FAPESP nº 323).
fessor titular da Universidade de São Paulo (USP) e da Foi secretário da Saúde do Estado de São Paulo de 1993 1

Faculdade de Medicina do ABC, que, em julho de 2022, a 1994. À frente do sistema de saúde do município de Souza, criador do
havia sido designado pelo governador para integrar o Campinas, enfrentou a pandemia de Covid-19. Hemocentro de Campinas

A camada de ozônio em recuperação


A fina camada de ozônio que envolve a Terra e permite a existência de vida no
planeta está se recuperando e deve se recompor em algumas décadas, alcançando os
níveis anteriores aos dos anos 1980. A boa notícia foi anunciada em janeiro no mais
recente relatório sobre o tema, produzido pela Organização Meteorológica Mundial
(OMM) e outras quatro instituições. Segundo o documento, se o mundo mantiver
o banimento dos clorofluorcarbonetos (CFCs), compostos voláteis que destroem o
ozônio da atmosfera, a fina camada desse gás deverá estar recuperada na maior parte
do planeta até 2040. Próximo aos polos, onde está mais rarefeita, o restabelecimento
deve levar mais tempo: o buraco na camada de ozônio no polo Norte deve se fechar
por volta de 2045 e o da Antártida, no polo Sul, até 2066. A restauração da camada
de ozônio resulta de um esforço global para impedir o uso dos CFC, por décadas
2 empregados na produção de espumas isolantes ou como gases de refrigeração ou
propelente de sprays. Esses gases foram banidos pelo protocolo de Montreal,
O mapa mostra a extensão do buraco de ozônio de 1989, mas emissões foram detectadas na década passada em partes da China.
sobre a Antártida em outubro de 2021 Segundo o relatório atual, essas emissões caíram abruptamente.

Gravadores denunciam bois


Cerca de 7,5 milhões de bois e
em áreas protegidas vacas vivem em terras pantaneiras

Gravadores instalados em unidades de preservação, programados para


registrar os primeiros 15 minutos de cada hora e acoplados a programas
de reconhecimento de sons, identificaram bois nas matas de uma base
de pesquisas no Parque Sesc Baía das Pedras, em Poconé, Mato Grosso,
onde a entrada de gado é proibida. De 1,7 milhão de sons captados, 1.892
eram de bovinos, com 495 mugidos diferentes, expressos principalmen-
te no final da tarde. Nesse estudo, pesquisadores da Universidade Fede-
ral de Mato Grosso (UFMT) registraram sons de bois em 54,5% dos 358
dias de monitoramento (8 de junho de 2015 a 31 de maio de 2016). O
maior número de animais foi registrado no final da estação seca (de abril
a setembro) e o menor na chuvosa (de outubro a março), quando as águas
cobrem a área de estudo. Os pesquisadores à frente desse trabalho argu-
mentaram que esse tipo de monitoramento acústico poderia servir para
encontrar gado e outros animais em áreas protegidas e para direcionar a
fiscalização, já que o número de funcionários em unidades de conservação
raramente é suficiente para cobrir toda a área. O Pantanal abriga cerca
de 7,5 milhões de cabeças de gado, que frequentemente buscam pasta-
gens fora das fazendas em que vivem (Ecological Informatics, maio 2023).

14 | FEVEREIRO DE 2023
FOTOS 1 LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP  2 NASA OZONE WATCH  3 MARINELSON ALMEIDA SILVA / WIKIMEDIA COMMONS  4 LUOMAN / GETTY IMAGES  5 CAROLA RADKE / MUSEU DE HISTÓRIA NATURAL DE BERLIM

Terras indígenas absorvem mais carbono Indígena pesca


em área
preservada
Entre 2001 e 2021, as florestas manejadas por povos indí- (WRI). De acordo com a publicação, o desmatamento de
na região central
genas da Amazônia foram responsáveis pela remoção de 20% da Amazônia pode levar a um ponto de inflexão e da Amazônia
340 milhões de toneladas de dióxido de carbono (CO2) da transformar parte da floresta em savana, alterando o pa-
atmosfera por ano, o equivalente às emissões anuais de drão de chuvas em toda a América do Sul. Segundo esti-
combustíveis fósseis do Reino Unido. Fora das áreas mativa da WRI, nos últimos 50 anos, cerca de 17% da
ocupadas pelos povos originários, a floresta se comportou cobertura vegetal amazônica foi derrubada, a maior parte
no mesmo período como uma fonte líquida de carbono: (por volta de 80%) convertida em terras de uso agrícola.
emitiu 1,3 bilhão de toneladas de CO2 por ano, devido à Estima-se que quase 1,5 milhão de indivíduos de 385 gru-
perda florestal, e removeu cerca de 1 bilhão de toneladas pos étnicos indígenas residam na Amazônia, que se distri-
de CO2 por ano. Os dados foram publicados no início de bui por partes da Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guia-
janeiro e estão em análise do World Resources Institute na Francesa, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela.

Symplocos
kowalewskii, de

Uma flor de 34 milhões de anos 2,8 centímetros,


aprisionada
em âmbar
Com apenas 2,8 centímetros de diâmetro, a maior flor que se conhece preservada em âmbar
foi por 150 anos classificada erroneamente. Guardada no Museu de História Natural de
Berlim, na Alemanha, a pequena flor de cinco pétalas viveu entre 38 milhões e 34 milhões de
anos atrás e é cerca de três vezes maior do que as conhecidas anteriormente. Ela foi coletada 5

em 1872 em uma região de floresta boreal do norte da Europa que hoje pertence à Rússia
e descrita com o nome científico de Stewartia kowalewskii, da família das Teáceas, a mesma
do chá e das camélias, composta por árvores e arbustos de regiões de clima temperado e
tropical. Durante um estágio de pós-doutorado no museu, a paleobotânica alemã Eva-Maria
Sadowski estudou a flor usando técnicas modernas de microscopia. Sadowski extraiu alguns
grãos de pólen do âmbar e os enviou para Christa-Charlotte Hofmann, da Universidade
de Viena, na Áustria, que os analisou. As pesquisadoras concluíram que, na realidade, a maior
flor preservada em âmbar pertence ao gênero Symplocos, de árvores e arbustos que hoje
crescem em áreas de clima tropical e subtropical da Ásia e das Américas, e a chamaram
de Symplocos kowalewskii (Scientific Reports, 12 de janeiro). A presença desse gênero indica
que o clima no norte da Europa já foi mais ameno no passado distante.

PESQUISA FAPESP 324 | 15


CAPA

REMONTAGEM
DE PEÇAS

16 | FEVEREIRO DE 2023
Promessa de recuperação de investimentos
públicos suscita discussão sobre prioridades
e planos para a ciência brasileira
Fabrício Marques  |  ILUSTRAÇÃO  Alexandre Affonso

E
mbora com vigor e velocidade ainda
não definidos, é esperada uma recu-
peração nos investimentos em ciência,
tecnologia e inovação nos próximos
anos que trará novas responsabili-
dades à comunidade científica e aos
formuladores de políticas públicas.
Eles terão a incumbência de resgatar
a capacidade de instituições de pes-
quisa e de estabelecer prioridades. Os
anos recentes foram ásperos. O Fundo Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (FNDCT), principal instrumento federal
de custeio da pesquisa, vem sofrendo desde 2016 bloqueios de re-
cursos sucessivos e vultosos – o Ministério da Economia atribuía
os cortes à necessidade de cumprir o teto constitucional de gastos.
O torniquete no financiamento ocorreu na contramão de um no-
tável crescimento na arrecadação do fundo, hoje na casa dos R$ 10
bilhões anuais. Ele é abastecido por percentuais de receitas e im-
postos de empresas de 14 diferentes segmentos da economia, que
compõem os Fundos Setoriais de Ciência e Tecnologia. Segundo
análise do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), ape-
nas algo próximo de R$ 1 bilhão em recursos não reembolsáveis
do FNDCT foi investido anualmente entre 2019 e 2021 (ver qua-
dro). Em valores atualizados, trata-se do pior patamar de aportes
do fundo em projetos científicos e de inovação em instituições de
pesquisa e empresas registrado neste século.

PESQUISA FAPESP 324 | 17


Segundo dados do Observatório do Conhecimen- Para a presidente da Academia Brasileira de
to, ligado a sindicatos de docentes de universidades Ciências, a biomédica Helena Nader, a redução
federais e estaduais, caiu de R$ 25,3 bilhões, em 2019, de recursos para projetos de pesquisa, associada
para R$ 17,1 bilhões, em 2022, o chamado “orçamento ao duradouro congelamento do valor das bolsas fe-
do conhecimento”. A metodologia contempla, por derais de mestrado e doutorado, explica em grande
exemplo, gastos e investimentos de universidades medida a redução dos formados. Desde 2013, um
federais e recursos de órgãos de fomento à pesqui- bolsista de mestrado do CNPq ou da Capes recebe
sa, como o Conselho Nacional de Desenvolvimento R$ 1,5 mil mensais e o de doutorado R$ 2,2 mil. “A
Científico e Tecnológico (CNPq), vinculado ao Mi- demanda por formação em pós-graduação diminuiu
nistério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), porque a carreira científica ficou desprestigiada, foi
e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de colocada como desnecessária pelo governo. Para
Nível Superior (Capes), agência do Ministério da que eu vou estudar, investir anos da minha vida,
Educação. “Somando todos os cortes em orçamentos se isso não é considerado relevante para o país?”,
de ministérios ligados à pesquisa, houve um desin- analisa Nader, que é pesquisadora da Universidade
vestimento acumulado de R$ 130 bilhões em quatro Federal de São Paulo (Unifesp). Ela diz que o ca-
anos de governo”, estima a cientista política Mayra minho para recuperar a capacidade científica será
Goulart, professora das universidades federais do longo. “Será necessário, no curto prazo, enfrentar
Rio de Janeiro (UFRJ) e Rural do Rio de Janeiro emergências como o valor das bolsas e promover a
(UFRRJ) e coordenadora do Observatório. A or- reestruturação do MCTI, que perdeu nos últimos

A
ganização trabalha em um inventário de projetos e anos sua capacidade de articulação.”
laboratórios que interromperam seus trabalhos por
falta de dinheiro, a ser divulgado neste ano. economista Fernanda De Negri,
A contenção orçamentária atingiu bolsas, proje- coordenadora do Centro de Pes-
tos e despesas de custeio, mas não alcançou gastos quisa em Ciência, Tecnologia e
obrigatórios, como salários de docentes e de pes- Sociedade do Ipea, ressalta a ne-
quisadores de instituições e universidades públicas cessidade de fazer um diagnóstico
federais. Esse contingente seguiu trabalhando, ain- preciso sobre a situação dos recur-
da que com desfalques, uma vez que houve poucos sos humanos em áreas estratégicas
concursos públicos para reposição de aposentados. para o país, tais como tecnologia de
Mas surgiram rachaduras na usina que forma pro- informação e energias renováveis.
fissionais de alto nível no país: o sistema nacional “É preciso avaliar até que ponto dis-
de pós-graduação. Também por influência da pan- pomos de pesquisadores preparados para atuar em
demia, o número de doutores formados em 2020 e grandes desafios, já que houve uma desaceleração
2021 foi de pouco mais de 20 mil, 4 mil a menos do na formação de doutores”, afirma. Vale a mesma
que o contingente titulado em 2019 (ver Pesquisa lógica, segundo ela, para a infraestrutura de pes-
FAPESP nº 315). quisa: “Não houve em anos recentes editais para

10,298 9,842
OS RECURSOS
DO FNDCT 0,8
00

Total arrecadado (no alto), 7,193 1,0


92 2,7
77

uso e bloqueio de recursos


do principal instrumento
6,313 8,
40
5

federal de financiamento 27 87
à ciência – em R$ bilhões 1,6 2,6
12
1,4
28
0,9
51 38
0,8 4,6 77
4 9 4,3
4,0
Crédito

Não reembolsável

Arrecadação não executada

FONTE  FINEP / ANDRE RAUEN (IPEA) 2019 2020 2021 2022


Empenhos até 30/11

18 | FEVEREIRO DE 2023
Produção de radiofármacos
no Ipen, em São Paulo,
e instalações do Ceitec,
em Porto Alegre: resgate
de projetos antigos

atualização de laboratórios rios e negociada com os parlamentares, proibia os


de instituições públicas e é bloqueios do Fundo. Com essa MP, cerca de R$ 14
provável que vários deles estejam bilhões poderiam ser bloqueados nos próximos
pouco competitivos internacionalmente. quatro anos, segundo cálculos da SBPC. “Vivemos
1
Investigamos há pouco tempo a situação dos um verdadeiro apagão no financiamento da ciên-
laboratórios do setor de petróleo e vimos um per- cia brasileira”, declarou Santos, em seu discurso
centual mais elevado de obsolescência do que em de posse. “São recursos que seriam investidos em
levantamentos anteriores. Será preciso renová-los”. ações de inovação e na infraestrutura de institutos
Embora tenha havido algum alívio nos inves- que se dedicam, por exemplo, às áreas de energia,
timentos federais em 2022, o orçamento federal petróleo, mobilidade, meio ambiente e tecnologia
aprovado para 2023 ainda previa bloqueios supe- da informação. Trata-se de uma afronta à legisla-

A
riores a R$ 4 bilhões no FNDCT. Segundo análise ção aprovada no Congresso Nacional.”
feita pela Sociedade Brasileira para o Progresso
da Ciência (SBPC), vários órgãos terão de novo inda que ocorra logo uma recom-
um ano difícil se não receberem socorro. O CNPq, posição de recursos e do valor de
por exemplo, previa aplicar R$ 1 bilhão em bolsas, bolsas, uma recuperação robusta
mesmo patamar do ano passado, mas os recursos é esperada a partir de 2024, se o
para projetos de pesquisa, nos quais os bolsistas de teto de gastos for substituído na
FOTOS 1 LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP  2 CEITEC  INFOGRÁFICO  ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

mestrado, doutorado e pós-doutorado deveriam Constituição por outro mecanis-


trabalhar, cairiam de simbólicos R$ 35 milhões em mo de contenção do endividamento
2022 para R$ 28 milhões em 2023. O novo presi- público. Para o engenheiro Pedro
dente do órgão, o físico Ricardo Galvão, informou Wongtschowski, que lidera a Mobi-
que, em conjunto com a Capes, anunciará em bre- lização Empresarial para a Inovação
ve um reajuste de bolsas da iniciação científica ao (MEI), fórum vinculado à Confederação Nacional
pós-doutorado e que utilizará recursos previstos na da Indústria (CNI) que reúne representantes de
chamada PEC da Transição, aprovada em dezem- mais de 500 empresas, uma agenda de estratégias
bro pelo Congresso. Admitiu, contudo, dificuldades de curto prazo deveria se basear em quatro frentes.
para ampliar os investimentos em 2023, já que o A primeira passa por investir emergencialmente
orçamento aprovado no Parlamento é restritivo. na infraestrutura científica e tecnológica do país a
A titular do MCTI, a engenheira eletricista Lu- fim de que ela volte a funcionar. “As universidades
ciana Santos, primeira mulher a assumir o cargo, federais ficaram à míngua e instituições públicas
tomou posse em 2 de janeiro estabelecendo como de pesquisa estão desequipadas e com quadros
prioridades iniciais a recomposição orçamentária, envelhecidos. É preciso restaurar a capacidade
com a execução dos R$ 9,9 bilhões previstos para delas de cumprir suas missões institucionais”,
o FNDCT em 2023, e a atualização no valor das afirma. Wongtschowski sugere como prioridade
bolsas, além de medidas para ampliar a inclusão e o financiamento de iniciativas que estão próximas
a diversidade de gênero. O resgate do orçamento da conclusão, a exemplo da fonte de luz síncrotron
envolveu negociações para não votar no Congresso Sirius (ver Pesquisa FAPESP nº 269).
e deixar perder a validade em 5 de fevereiro a Me- Uma segunda frente, diz o líder da MEI, consiste
dida Provisória nº 1.136, baixada no final de agosto em estimular as empresas a ampliar seu volume de
de 2022, que adiou para 2027 a aplicação de uma inovação. “Isso requer aperfeiçoar o financiamento
lei aprovada pelo Congresso em 2020 – a lei, dis- público, aprimorando incentivos fiscais, de modo ge-
cutida amplamente por pesquisadores e empresá- ral, e da Lei do Bem em particular”, diz, referindo-se

PESQUISA FAPESP 324 | 19


Desenvolvimento de
satélite no Inpe e imagem da
Amazônia captada por
satélite CBERS: novo fôlego
para parceria com a China

quenas e médias empresas”, alerta. Como medida


prática, ele sugere a ampliação dos recursos para
a Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação In-
dustrial (Embrapii), organização social ligada ao
MCTI, criada em 2014. “A Embrapii contou com
recursos públicos equivalentes a apenas um ter-
ço do que havia sido originalmente contratado.
1
Ainda assim, conseguiu mobilizar um volume de
à legislação aprovada em 2005, que estabeleceu apoio mais de R$ 2 bilhões, em dinheiro do governo e
a empresas que fazem pesquisa e desenvolvimen- de empresas, em projetos de inovação para o setor
to (P&D). A terceira frente diz respeito ao apoio a industrial e empresarial, e reforçar a qualificação
empresas de base tecnológica e à cooperação entre de 70 instituições de ciência e tecnologia que se
universidades e empresas. “A lei de inovação permite engajaram nesses projetos.”
que docentes e discentes de instituições públicas se Luciana Santos já sinalizou prioridades, resga-
dediquem à criação de empresas de base tecnológica, tando iniciativas engavetadas nos últimos anos. A
mas tem sido pouco usada. As startups são uma fon- principal delas é a construção do Reator Multipro-
te de conhecimento novo para as grandes empresas, pósito Brasileiro (RMB). O projeto foi concebido em
que as adquirem ou se associam a elas para acelerar 2008 pela Comissão Nacional de Energia Nuclear
seus processos de inovação.” (CNEN) com o objetivo de dar autonomia ao país
Por fim, aponta a importância de investir na di- na produção de radiofármacos, essenciais para o
fusão tecnológica. “Há muito conhecimento acu- diagnóstico e tratamento de diversas doenças, e que
mulado que não chega nem ao setor público nem hoje, em boa medida, são importados. O RMB foi
ao privado e que poderia ajudar a modernizar pe- incluído em 2012 no Plano Plurianual do governo

A EVOLUÇÃO DAS BOLSAS FEDERAIS


Recursos destinados pela Lei Orçamentária Anual (LOA) – corrigidos pelo IPCA

BOLSAS DA CAPES (R$ MILHÕES) BOLSAS DO CNPQ (R$ MILHÕES)


4.186,6

3.129,4
2.555,3 2.553,2

941,6 1.131,8 1.015,6 981,5

2019 2020 2021 2022 2019 2020 2021 2022

FONTE SBPC

20 | FEVEREIRO DE 2023
federal e orçado em cerca de R$ 500 milhões, mas
PESQUISA DENTRO suas obras físicas, em Iperó, interior paulista, não

DA EMPRESA começaram. No ano passado, chegaram a ser inter-


rompidos por algumas semanas a produção de ra-
Percentual de pesquisadores empregados diofármacos pelo Instituto de Pesquisas Energéticas
e Nucleares (Ipen) e o seu fornecimento a hospitais.
em empresas em países selecionados
Após um bloqueio de recursos decretado pelo Minis-
0 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70% 80% 90% tério da Economia, faltou dinheiro para a importação
de insumos, que mais tarde acabou sendo revertido
Coreia do Sul
(ver Pesquisa FAPESP n° 309).
Japão Também está prevista a retomada do Programa
EUA Sino-Brasileiro de Satélites de Recurso Terrestre
Taiwan (CBERS), responsável, desde os anos 1990, pelo de-
Suécia senvolvimento de seis satélites de sensoriamento
Países Baixos remoto. De acordo com o presidente do CNPq, Ri-
Áustria
cardo Galvão, a parceria com os chineses deverá
ser pavimentada em uma visita que o presidente da
OCDE

O
República, Luiz Inácio Lula da Silva, fará a Beijing.
França
Turquia
utra meta anunciada pela ministra é
Alemanha a formulação de uma nova estratégia
Eslovênia para o setor de semicondutores, cuja
Dinamarca produção, concentrada em países asiá-
Canadá ticos, escasseou durante a pandemia,
Hungria comprometendo a cadeia de suprimen-
China tos da indústria eletroeletrônica e de
Finlândia
computação do mundo inteiro. Luciana
Santos manifestou a intenção de reto-
Bélgica
mar as atividades do Centro de Exce-
União Europeia
lência em Tecnologia Eletrônica Avançada (Ceitec),
Irlanda
uma empresa pública criada em Porto Alegre, no Rio
Singapura Grande do Sul, em 2008, para produzir chips, mas que
Rep. Checa só conseguiu fabricar circuitos integrados de baixa
Noruega complexidade. Em 2020, o governo anunciou a liqui-
Itália dação da empresa e a decisão de vender os ativos para
Suíça o setor privado. Segundo o Ministério da Economia,
Rússia
em seu melhor exercício anual, o empreendimento
gerou receita de R$ 7,8 milhões, mas sustentava uma
Polônia
despesa operacional média de R$ 80 milhões por
México
ano desde sua fundação. No ano passado, o Tribunal
Islândia
de Contas da União (TCU) suspendeu a liquidação.
Reino Unido Para discutir os caminhos da política científica do
Luxemburgo país, a nova ministra avisou que convocará uma nova
FOTOS  1 E 2 INPE  INFOGRÁFICOS  ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

Estônia Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia – a


Portugal última foi realizada em 2006. A eventual recompo-
Espanha sição de recursos deverá alimentar um debate sobre
Nova Zelândia novas prioridades e qual deve ser o equilíbrio entre
Lituânia
as demandas fragmentadas de dezenas de milhares
de grupos de pesquisa em atividade no país e a aposta
Chile
em grandes projetos estratégicos. Em anos recentes
Romênia
houve uma tendência de fracionar a aplicação dos
Grécia
recursos disponíveis. “No combate à pandemia, o
Eslováquia MCTI selecionou projetos pulverizados, sem ca-
Letônia pacidade de dar tração ao enfrentamento da emer-
Brasil gência sanitária, e eles ainda se revelaram pouco
África do Sul efetivos”, diz o economista André Tortato Rauen,
Argentina do Ipea. “Os projetos relevantes contra a Covid-19
vieram do Ministério da Saúde e do governo de São
FONTE  OCDE – MCTI Paulo para a produção de vacinas.”

PESQUISA FAPESP 324 | 21


Para além de resgatar ideias que não saíram do
papel, será necessário olhar para o futuro, propõe O BALANÇO DOS
Fernanda De Negri. “É importante ter projetos es-
truturantes. A recomposição de recursos deve vir INVESTIMENTOS EM P&D
acompanhada por desenhos mais eficientes de po- Percentual do PIB investido
líticas públicas, com estratégias e objetivos mais
em pesquisa e desenvolvimento
complexos”, afirma. Segundo ela, há vocações no-
por empresas e pelo setor
tórias da ciência brasileira que poderiam inspirar
público e universidades,
grandes projetos. “Pesquisas relacionadas às mu-
em países selecionados em 2019
danças climáticas são um caminho óbvio, à luz da
importância que o novo governo dá ao assunto. É
um tema que pode inspirar um conjunto consis- n Despesas empresariais
tente de projetos de pesquisa e desenvolvimento n Despesas de governos e educação superior
de tecnologias para ajudar a mitigar os efeitos das
0 1 2 3 4 5 6
mudanças climáticas, reduzir o volume de emissões
e descarbonizar a economia. É uma área de frontei- Israel
ra essencial para o Brasil e para o mundo”, afirma. Coreia do Sul
Uma nova agenda de pesquisa sobre a Amazônia Taiwan
seria relevante. “É preciso investir em novas tec- Suécia
nologias para monitorar o desmatamento. A busca Japão
EUA
de produtos extraídos da nossa biodiversidade, pro-
Alemanha
duzidos de forma sustentável, pode gerar riqueza
Bélgica
e emprego na região amazônica. A maior parte da Suíça
Amazônia está em território brasileiro e o país tem Áustria
instituições capacitadas para gerar conhecimento Dinamarca

E
de ponta sobre a floresta.” Finlândia
OCDE
la menciona também a pesquisa em com- Islândia
China
bustíveis renováveis, em que o país tem
França
tradição: “Os recursos poderiam vir do
Países Baixos
FNDCT, mas há espaço para aproveitar Noruega
melhor outras fontes. Setores regula- União Europeia
dos, como petróleo e eletricidade, são Eslovênia
obrigados a investir um percentual em Rep. Checa
P&D, mas esses recursos poderiam ser Singapura
utilizados de forma mais efetiva”. Se- Austrália
Reino Unido
gundo De Negri, como os recursos para
Estônia
pesquisa sobre petróleo oscilam muito de um ano Canadá
para outro, por conta dos preços internacionais, há Hungria
uma dificuldade de manter pesquisadores e labora- Itália
tórios mobilizados para projetos de longo prazo. “É Nova Zelândia
necessário mudar regulamentos e criar uma espécie Portugal
de fundo em que esses recursos seriam depositados Polônia
Grécia
e administrados, podendo ser usados na busca de
Espanha
novas fontes de energia”, sugere.
Irlanda
A crise aguda do financiamento ofuscou o efeito Brasil
de alguns avanços de ordem institucional, analisa Luxemburgo
André Rauen. “Criamos instrumentos para fazer en- Turquia
comendas tecnológicas a empresas com segurança Rússia
jurídica e hoje dispomos de uma caixa de ferramen- Lituânia
tas moderna para regular as relações entre o setor África do Sul
Eslováquia
privado, as universidades e o governo”, diz, referin-
Letônia
do-se a um decreto de 2018 do governo federal que Romênia
regulamenta dispositivos da legislação sobre com- Argentina
pras públicas e permite a contratação de empresas Chile
que executem projetos de P&D. “Essa legislação foi Colômbia
fundamental na parceria entre instituições do país México
e empresas do exterior para a produção de vacinas
contra o novo coronavírus”, afirma. FONTE  OCDE – MCTI

22 | FEVEREIRO DE 2023
Instalações da fonte de luz
síncrotron Sirius, em Campinas,
e laboratório de unidade
da Embrapii no Rio de Janeiro:
investimentos com resultados

1 2

O economista chama a atenção para um obstá- estratégia para ciência, tecnologia e inovação no
culo que pode surgir à medida que o financiamen- Brasil são dominadas por uma ideia de que o lugar
to retornar. A exemplo do problema que atingiu a de fazer a pesquisa é a universidade, a empresa é
formação de novos doutores, também pode haver um local para receber e utilizar o conhecimento e o
uma escassez de recursos humanos habilitados para governo é o patrocinador. Mas nos lugares do mundo
organizar e administrar grandes projetos de pes- que conseguiram organizar a ciência e a tecnologia
quisa. “Se bem utilizados, os instrumentos de que para benefício da sociedade, das pessoas e da eco-
dispomos vão exigir uma profissionalização maior nomia, não é desse jeito que se trabalha”, observou
da gestão em ciência e tecnologia. Não estamos for- em entrevista para o site de Pesquisa FAPESP. “Na
mando indivíduos que conheçam em profundidade pesquisa em computação quântica, empresas como
a lógica que une empresas, governo e universidades. Google, Microsoft e IBM têm um papel tão ou mais
FOTOS 1 LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP  2 SENAI CETIQT  INFOGRÁFICO  ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

Esse profissional existe nos Estados Unidos e está importante do que as universidades.”
trabalhando em agências como a Darpa, agência de Ele mencionou dados produzidos pela Organiza-
projetos da área de defesa. Será preciso criar pro- ção para a Cooperação e Desenvolvimento Econô-
gramas e definir um norte tecnológico para o país, mico (OCDE) e pelo MCTI, segundo os quais o nú-

P
sob coordenação de profissionais especializados.” mero de pesquisadores contratados pelas empresas
no Brasil está abaixo da média de outros 44 países,
ara o físico Carlos Henrique de Brito ocupando as últimas posições da lista. No Brasil
Cruz, o momento é propício para re- há 59 mil pesquisadores trabalhando em empre-
pensar o sistema brasileiro de ciência e sas – equivalente a 280 por milhão de habitantes.
tecnologia em moldes mais ambiciosos Na Coreia do Sul, há seis vezes mais e, nos Estados
dos que vigoraram no passado. “Não Unidos, o número é 10 vezes maior.
daria para reconstruir melhor do que Na sua avaliação, seria útil discutir o que é ne-
era antes?”, indagou, em um evento cessário fazer para que as empresas se sintam esti-
em meados de dezembro que marcou muladas a inovar para ganhar dinheiro e conquistar
o encerramento das comemorações dos mercados. “A falta de exposição das empresas ao
60 anos da FAPESP. “Seria uma perda mercado internacional e de sua inserção nas cadeias
de oportunidade discutir apenas como voltar ao que de valor do mundo desestimula os dispêndios em
éramos em 2006 ou 2007, em uma espécie de back inovação. A complexidade das regras tributárias
to the future.” Brito Cruz, que foi diretor científico também atrapalha”, avalia. “Por que uma empresa
da FAPESP entre 2005 e 2020 e atualmente é vice- vai contratar um pesquisador e fazer um investi-
-presidente sênior da Elsevier Research Networks, mento de risco em um produto novo se ela acaba
no Reino Unido, lembra que o dinheiro público res- obtendo mais ganhos contratando um advogado
ponde por apenas uma parte, em geral minoritária, tributarista ou um contador que a ajude a lidar com
do financiamento à ciência dos países e afirmou que a complexidade da legislação? Várias dessas ideias
é necessário aumentar no Brasil gastos privados nem sequer custariam orçamento para o governo.
em P&D e a presença de pesquisadores atuando Dependem apenas de empenho e, claro, uma difi-
dentro das empresas, que é baixa. “A política e a culdade política a enfrentar”, afirmou. n

PESQUISA FAPESP 324 | 23


ENTREVISTA Mercedes Bustamante

ANTES
QUE A ÁGUA
ACABE
Bióloga da Universidade de Brasília
alerta que o desmatamento do Cerrado
prejudica também outras regiões

Carlos Fioravanti e Ricardo Zorzetto  |  RETRATO  Diego Bresani

A
s mudanças climáticas estão deixando o clima no Cerrado
mais quente e mais seco. Em consequência, o volume de rios e
reservatórios subterrâneos está diminuindo e mesmo os anos
mais chuvosos não fornecem água o bastante para compen-
sar a que deixou de cair ou evaporou nos anos de seca mais
intensa. Se o Cerrado secar, vai acabar a água também em outras regiões,
porque os rios que nascem nos campos e florestas do Centro-Oeste abas-
tecem oito das 12 bacias hidrográficas do país.
Ao enumerar esses problemas, a bióloga Mercedes Maria da Cunha
Bustamante, professora da Universidade de Brasília (UnB) e estudiosa da
vegetação nativa da região central do Brasil, clama por mais ação do poder
público e dos proprietários de terras para que parem com o desmatamento
e os incêndios induzidos. Como integrante do grupo de trabalho de miti-
gação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC),
ela alerta também que o país está atrasado na adoção de medidas capazes
de amenizar os impactos da elevação de temperatura e da intensificação
das chuvas esperadas para as próximas décadas.
Nascida em Santiago, no Chile, Bustamante chegou ao Rio de Janeiro
com a família aos 7 anos. Divorciada, com duas filhas – uma recém-formada
em arquitetura e outra cursando história na Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ) –, ela conversou com Pesquisa FAPESP no início de de-
zembro por plataforma de vídeo. Em janeiro, suas sugestões para aprimorar
a proteção ambiental ganharam o reforço das medidas anunciadas pelas
novas equipes do governo federal, como a reativação do Fundo Amazônia,
com financiamentos internacionais para ações contra o desmatamento, e
o restabelecimento do poder dos fiscais ambientais para aplicar multas a
proprietários rurais que desconsiderarem os limites da lei. Também no
início de janeiro, Bustamante aceitou o convite para presidir a Coordena-
ção de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), onde ela
trabalhou em 2016 como diretora de Programas e Bolsas.

24 | FEVEREIRO DE 2023
IDADE 59 anos FORMAÇÃO PRODUÇÃO
Graduação em biologia Autora de 135 artigos
ESPECIALIDADE
na Universidade do científicos e coautora
Ecologia
Estado do Rio de Janeiro de 2 livros
INSTITUIÇÃO (1984), mestrado em
Universidade de Brasília ciências agrárias na
(UnB) Universidade Federal de
Viçosa (1988) e doutorado
em geobotânica na
Universidade de Trier,
Alemanha (1993)

PESQUISA FAPESP 324 | 25


Como avalia a participação do Brasil do suas responsabilidades e vendo que calização e controle. O Ibama [Instituto
na 27ª Conferência da Organização das suas pegadas ambientais estão também Brasileiro do Meio Ambiente e dos Re-
Nações Unidas sobre Mudanças Climá- nos países de origem dos produtos que cursos Naturais Renováveis] ficou mui-
ticas, a COP-27, em novembro no Egito? consomem. O desmatamento é um pro- to desprestigiado nos últimos anos. Há
Foi muito diferente, porque o país foi blema multifatorial, que não será resol- muito a ser feito, ou refeito.
representado por três frentes: a oficial, vido por uma pessoa em pouco tempo,
talvez a que teve menos visibilidade; a mas várias ações podem ser encaminha- Qual sua expectativa para os próximos
da sociedade civil, muito organizada das. Uma delas é sinalizar que, a partir anos na área ambiental?
desde 2019, em resposta à redução da de agora, vai mesmo haver fiscalização Trabalhei no governo duas vezes. De
participação promovida pelo governo e a lei será cumprida. 2011 a 2013, como coordenadora-geral de
federal; e a do Consórcio de Governado- gestão de ecossistemas e diretora de po-
res da Amazônia, grupo que entendeu a Por que essa sinalização é importante? líticas e programas temáticos no MCTI
importância do que é discutido na COP Mudar o discurso por si só é importante [Ministério da Ciência, Tecnologia e
para a região e organizou seu próprio porque de algum modo vai inibir quem Inovação], e em 2016, como diretora de
espaço, que também teve muito desta- pretendia fazer coisas ilegais. Para come- Programas e Bolsas da Capes. Nas duas
que. As três frentes de representação çar, basta dizer que vai aplicar a lei, não ocasiões, vi servidores públicos federais
expõem a desconexão entre o governo precisa mudar nada. Não é o suficiente, muito bem-preparados. A situação am-
federal anterior, os estados e a sociedade claro. O governo precisa agir em várias biental a ser enfrentada nos próximos
civil. O governo eleito [empossado em frentes. Poderia também rastrear de on- anos é muito mais complexa do que há
janeiro] foi recebido na COP com muita de vem e para onde vai o dinheiro, por- 10 ou 20 anos. O mundo está mais com-
esperança de que o Brasil retorne às ne- que muito dessas atividades são ligadas plexo e o país mais dividido. Será uma
gociações sobre o clima como uma lide- ao crime organizado. O sistema financei- corrida de obstáculos, mas saímos com
rança que já foi no passado, com capaci- ro pode ajudar a descobrir quem finan- uma certa vantagem por causa da expe-
dade de costurar acordos com diferentes cia e quem ganha com o desmatamento. riência acumulada.
países. Essa participação mostra como a Outro flanco em que o governo poderia
discussão climática vai se conformando atuar são as terras devolutas da União. Nos debates, a preocupação com o des-
no mundo, porque deixou de ser só uma Seria importante designar essas áreas matamento se refere principalmente à
questão dos governos e implica também para comunidades ou para conservação, Amazônia. Como está o Cerrado?
o engajamento da sociedade civil e do para evitar invasões. Também é preciso Uma boa parte do desmatamento ocorre
setor privado. O período em que o diá- destravar os processos de demarcação no Cerrado, por causa da soja e da pe-
logo foi rompido entre esses grupos foi de terras indígenas, alguns parados há cuária. A situação é muito preocupan-
muito prejudicial, porque não há como décadas, e reestruturar os órgãos de fis- te porque já perdemos metade da área
resolver isso sem uma concertação de da cobertura vegetal nativa do Cerrado.
todos. O natural seria ter vozes no go- Criar unidades de conservação hoje nes-
verno federal para liderar esse proces- sa região é muito difícil, porque a pro-
so, mas, como não houve e a natureza porção de terras devolutas é bem menor
não gosta de vácuo, outros ocuparam do que na Amazônia. Como a maior parte
esse espaço. da terra é privada, precisamos incen-
tivar os proprietários rurais e o setor
Como avalia o anúncio do novo governo
de acabar com o desmatamento? Os produtores privado a proteger esse bioma, e nisso
temos falhado bastante. Ainda se olha,
É bom porque o mundo sabe o que es- prioritariamente, para o potencial de
perar do Brasil. Em dezembro, a União rurais abrir mais espaço para a agropecuária.
Europeia aprovou um marco regulatório No entanto, avançar desse modo vai jo-
para rastrear e barrar produtos asso-
ciados ao desmatamento, tanto os itens
raramente gar contra a própria agricultura, porque
o Cerrado já está mais quente e mais seco
primários, como madeira, soja, cacau e
carne, quanto os derivados, como cho-
percebem que em razão das mudanças no uso da terra,
e isso vai se acentuar com as mudanças
colates, móveis e couro. Temos de ver climáticas. O último relatório do IPCC
como a regulação vai ser implementada, a recarga dos indica que essa região do Brasil Central
como o setor privado vai responder e co- já se aqueceu mais do que a média global
mo a comunidade europeia vai fiscalizar, reservatórios e vai continuar esquentando. Um relató-
mas é uma indicação de que o desmata- rio da Organização Meteorológica Mun-
mento está entrando de forma mais sé-
ria na pauta de comércio internacional.
subterrâneos dial [OMM], lançado em novembro de
2022, comparou as chuvas de 2021 com
Quem não se preparou antes, agora vai
ter de avaliar como atender às exigên- determina a a média histórica da região e mostrou
que a situação do Centro-Sul do Brasil é
cias de rastreabilidade e transparência. crítica. Em toda essa área, a quantidade
Os países consumidores estão assumin- vazão dos rios de chuvas está muito abaixo da média, o

26 | FEVEREIRO DE 2023
Cerrado: só o Matopiba respondeu por
63% do desmatamento do Cerrado nos
últimos anos. Essa situação, no longo
prazo, não se sustenta.

É possível recuperar a capacidade de


recarga dos rios do Cerrado ou esta-
mos perto de um ponto de não retorno?
Difícil saber. O Cerrado é um sistema
complexo e heterogêneo, com um mosai-
co de fisionomias campestres, arbustivas
e florestais. São 19 ecorregiões diferen-
tes, se considerarmos as variações sub-
-regionais. É também um bioma extenso.
No Cerrado típico, com campos abertos,
é mais difícil identificar se a redução
do número de árvores é um processo, é
um fenômeno natural ou de degradação,
mais facilmente visível no cerradão, com
uma mata mais fechada. Se olharmos
para o conjunto de áreas degradadas no
Bustamante (à esq.) durante trabalho de campo em área de Cerrado no Distrito Federal Cerrado nas últimas décadas, notaremos
que o uso majoritário da terra ainda é
que corrobora outros estudos regionais nos anos anteriores, porque o reabaste- para pastagem – e uma parte expressiva
indicando que as transformações em cimento dos reservatórios subterrâneos dessa pastagem tem hoje baixa produti-
larga escala do Cerrado estão deixando é um processo lento. Os produtores ru- vidade. Essas áreas de pastagem degra-
o clima mais quente e mais seco e redu- rais raramente percebem que é a recarga dadas poderiam funcionar como reserva
zindo a vazão dos grandes rios. desses reservatórios o que determina a de terra para a agricultura ou, caso sejam
vazão dos rios, que muitas vezes estão áreas importantes para a recarga de água,
Qual o impacto desses fenômenos? fora da sua propriedade ou região. O pa- para a recuperação do Cerrado nativo.
O impacto não será apenas regional, drão geral de redução hídrica só aparece O mapeamento desse bioma indica cla-
porque os rios que nascem aqui abas- quando se olham os dados mais regionais ramente que não vai haver um modelo
tecem oito das 12 regiões hidrográficas e de períodos mais amplos, como os do único de recuperação, por causa da di-
do Brasil, além do aquífero Guarani, que relatório da OMM, que compararam o versidade da paisagem e da situação de
fornece água para o Centro-Oeste, Su- volume de chuva atual com a média his- cada área. Temos de fazer um planeja-
deste e Sul. Secando o Cerrado, vai aca- tórica das últimas três décadas. Este é mento mais adequado para a ocupação
bar água também em outras regiões. O um recado importante: menos recarga e a preservação do Cerrado.
IPCC chama esse processo de seca agrí- de água no solo significa menos água
cola e ecológica, quando a média anual superficial. Precisamos reprogramar o O que seria necessário para esse pla-
da umidade total do perfil de solo fica uso da água e a irrigação. nejamento?
abaixo de certo limiar em relação ao pe- Vontade política e articulação com o
ríodo de base de 1850 a 1900. Secando as Um estudo seu de setembro de 2022 na setor privado. É fácil colocar no ma-
porções mais superiores, chega menos Global Change Biology mostrou que pa as áreas degradadas que poderiam
água aos reservatórios subterrâneos. a temperatura média no Cerrado está ser usadas para restaurar o Cerrado e
Se em alguns anos a seca for um pouco aumentando e a movimentação da água as que permitiriam expandir a produ-
mais intensa, um ano muito chuvoso na atmosfera diminuindo. ção de soja sem desmatar. Mas tem de
não será suficiente para recarregar os Nesse artigo, mostramos pela primeira combinar com os proprietários porque
reservatórios subterrâneos, e o déficit vez um quadro geral do Cerrado. No bio- aquelas terras são de alguém. É do setor
aumentará. ma há regiões nas quais a temperatura público a responsabilidade por abrir esse
já subiu mais do que o valor médio. Al- caminho. É mais difícil convencer esses
Os produtores rurais já percebem que gumas delas devem ficar mais quentes proprietários quando o setor financeiro
a água está diminuindo? ainda. É o caso do Matopiba [sigla da concede empréstimos para desmatarem
Percebem, mas têm sempre um olhar região que abrange partes dos estados e plantarem nessas áreas. A participa-
localizado. Dizem “este ano foi bom, o do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia], ção da comunidade científica que tra-
outro, mais ou menos”, sem uma pers- para onde a fronteira agrícola do Cerra- balha com o Cerrado será importante
pectiva de longo prazo. Preocupam-se do está avançando, principalmente com para orientar esses processos. Hoje co-
ARQUIVO PESSOAL

em garantir a safra do ano seguinte. Não soja e milho. Por isso, essa discussão da nhecemos o suficiente para começar a
veem que a chuva daquele ano não foi su- União Europeia sobre rastreabilidade fazer um planejamento bem-feito, mas
ficiente para recuperar o que não choveu dos produtos é tão importante para o precisa haver uma sinalização de que o

PESQUISA FAPESP 324 | 27


trabalho terá apoio do setor público e definir a proteção acima do limite míni- Sim, sempre que posso, principalmente
colaboração do privado. No momento, mo da lei. Nas situações em que seja pos- nas audiências públicas. Mas tenho vis-
é isso que falta. sível manter apenas 20% da área como to que o espaço para o debate qualifica-
reserva legal, o órgão ambiental pode- do sobre os grandes problemas do país
Outro estudo seu, também do ano pas- ria apoiar um planejamento do desenho se perdeu. Muitas votações importantes
sado, no Journal of Applied Ecology, de áreas protegidas nas propriedades no Congresso foram feitas de noite para
mostrou que 16 milhões de hectares de para conectar a vegetação nativa entre madrugada, apesar de muitos setores
terras aptas para a agricultura são im- propriedades e formar corredores eco- da sociedade não concordarem com as
portantes para a restauração. Como lógicos, que podem trazer um impacto decisões. O empobrecimento do deba-
resolver? ambiental maior do que áreas pequenas. te sobre o Brasil que a gente quer, nos
Há uma sobreposição. Temos de discu- Não dá para continuar desmatando 80%. últimos anos, é o resultado também do
tir em conjunto, com todos os interes- Lá no Matopiba, por exemplo, temos que negacionismo, da desinformação, das
sados, o quanto queremos expandir a considerar a necessidade de ampliar a tentativas de descrédito dos pesquisa-
agricultura no Brasil em detrimento das proteção nas propriedades rurais, pois dores e das instituições de ciência. Um
outras funções do uso do solo. A manei- estamos falando dos últimos grandes re- político não tem de ser cientista, mas,
ra de usar o solo afeta a conservação de manescentes de Cerrado. Cabe ao órgão como representa a sociedade brasileira,
água e da biodiversidade, a regulação ambiental mostrar que qualquer incre- espera-se que consiga fazer uma distin-
climática, a produção de alimentos e de mento na área preservada de vegetação ção entre o que é ciência e o que não
energia e os territórios de povos indíge- nativa pode trazer um impacto positivo é. Já ouvi, ao participar de determina-
nas e comunidades tradicionais. A pró- para as culturas agrícolas, como a manu- dos debates: “Mas os países europeus
pria manutenção da diversidade social tenção de populações de insetos polini- estão exigindo do Brasil algo que eles
do Brasil está associada ao uso da terra. zadores e o controle de pragas. Tem de não fizeram, porque desmataram suas
O planejamento territorial não pode se colocar tudo isso na conta e convencer florestas”. Esse argumento é nonsense,
voltar para uma única visão. A função os produtores de que compensa man- porque os países europeus desmataram
do poder público é arbitrar e conciliar ter a vegetação nativa. Fico preocupada 200 anos atrás e estão investindo hoje
as diferentes demandas. Não é simples. quando ouço alguém dizer que vai perder na recuperação das florestas. O mundo
No Brasil, ainda há área suficiente para dinheiro se conservar o ambiente. Quem mudou. Não podemos nos guiar pelas
a expansão da agricultura nos próximos pensa assim está fazendo a conta errada, ideias do século XIX. A noção de que
anos sem desmatar mais nada, apenas porque todos ganham com a conservação. o Brasil é o país da abundância, das ri-
aproveitando as terras degradadas. Falo quezas infinitas e que tem água para
isso com base nos mapeamentos do meu A senhora conversa com os políticos de dar e vender já nos prejudicou bastante.
grupo e de outras equipes de pesquisa: Brasília sobre essas questões? Contribuiu para a exploração intensiva
podemos manter ou até expandir a agri- dos recursos naturais, sem pensar nos
cultura brasileira sem desmatar. limites e nas consequências de nossas
ações. Precisamos nos concentrar nas
Você se refere apenas ao Cerrado? próximas décadas, quando o impacto
Não, a todos os biomas brasileiros. Sem das mudanças do clima será central para
desmatar o Cerrado, a Amazônia ou qual- o desenvolvimento dos países.
quer outro bioma. Se aumentar a produ-
tividade, é possível reduzir o ritmo de ex-
pansão da fronteira agrícola, embora no O incêndio A senhora participa do grupo de tra-
balho de mitigação do IPCC. Estamos
Cerrado esses dois processos ocorram ao preparados para enfrentar os impactos
mesmo tempo. Os produtores deveriam que começa das mudanças climáticas no Brasil?
parar de desmatar novas terras depois de Poderíamos ter trabalhado muito mais
um certo limite e diversificar a produção.
O Código Florestal determina que, na
em áreas que a mitigação das emissões de gases de
efeito estufa, já que nossas emissões
Amazônia, as propriedades conservem
a vegetação nativa em 80% de sua área
estão sendo de CO2, o dióxido de carbono, aumen-
taram em todos os setores e não apenas
a título de reserva legal. Essa proporção no setor de uso da terra e agricultura,
é de 35% na transição entre o Cerrado abertas pode por causa do desmatamento. Estamos
e a floresta amazônica e de 20% no res- atrasados também no campo da adap-
tante do Cerrado e nos demais biomas. facilmente tação. Temos de pensar que as ações de
Esse é o mínimo a ser obrigatoriamente adaptação têm um limite. Alguns são os
preservado. Ao autorizar o desmatamen-
to, o órgão ambiental deveria avaliar as
chegar às chamados limites duros, como a capa-
cidade humana de tolerar o aumento
condições da bacia hidrográfica em que
se encontra a propriedade e autorizar a áreas nativas da temperatura ou a elevação do nível
do mar. E há os limites suaves, que se
supressão da vegetação considerando a consegue resolver retirando barreiras,
perspectiva regional, ou seja, podendo e protegidas incentivando políticas e melhorando

28 | FEVEREIRO DE 2023
condições de vida. Não estamos con- tem de ter um desempenho até superior
siderando nem os limites duros nem aos demais. Apesar dos avanços, ainda
os suaves. somos avaliadas com critérios mais es-
tritos que os homens.
Em quais pesquisas está trabalhando? Temos de
Um dos projetos examina a origem e o A senhora defendia o espaço das mulhe-
impacto do fogo no Cerrado, em cola-
boração com colegas da Universidade
treinar mais as res no mundo acadêmico muito antes de
o assunto ganhar importância. Por quê?
Federal de Minas Gerais [ver reporta-
gem “Incêndios florestais intensos en-
alunas para Venho de uma família matriarcal. No
lado de minha mãe, que era de Minas
fraquecem vegetação nativa” no site de Gerais, as mulheres todas estudaram e
Pesquisa FAPESP]. O fogo depende de coordenarem se formaram em cursos universitários,
material combustível, clima favorável e inclusive as minhas tias-avós. Ter exem-
fatores de ignição. No passado, os incên- grandes plos a seguir conta muito. Nasci em San-
dios ocorriam no final da estação seca e tiago, no Chile, porque meu pai traba-
início da chuvosa, quando há mais raios.
Hoje, o desmatamento se tornou a prin-
projetos. lhava na Cepal [Comissão Econômica
para a América Latina e o Caribe], mas
cipal causa do fogo no Cerrado. O pior
é que o incêndio que começa em áreas Temos de vim com minha família aos 7 anos para
o Rio de Janeiro. Chegamos no meio da
que estão sendo abertas pode facilmen- Copa de 1970. Fiz a graduação no Rio e o
te chegar às áreas nativas e protegidas. ensinar mais do mestrado em Viçosa, em Minas. Nas uni-
Temos de controlar as queimadas auto- versidades, o Brasil tem uma vantagem
rizadas e as ilegais. Nos próximos anos
o clima, que está ficando mais seco e
que biologia em relação a outros países, a isonomia
salarial, todos começam com o mesmo
quente, será mais favorável aos incên- salário. As diferenças aparecem depois,
dios. Em outro projeto, monitoramos a na distribuição de recursos de pesquisa,
invasão de áreas úmidas no Distrito Fe- nas bolsas, que ainda são enviesados,
deral por espécies arbustivas. Isso per- muito mais para homens do que para
mite ver a mudança no regime hídrico mulheres. No ambiente acadêmico logo
dessas áreas, que são importantes para vi a necessidade de delimitar os espaços
recarga de água. e dizer: “Olha, estamos aqui com uma
e o Daad pagava as mensalidades, não igualdade, nem sempre de condições,
Quando visitou o Cerrado pela primei- falharam nunca. Era fascinante pedir mas de direito à voz”, tentando manter
ra vez? reagente e ele chegar no dia seguinte; um diálogo respeitoso. Eu tinha traba-
Foi logo que me mudei para Brasília, em depois de ter feito mestrado no Brasil lhado tanto para chegar até ali, não po-
1993, ainda como professora visitante da e, às vezes, ter de comprar com o pró- deria me calar.
UnB. Fui com um grupo de botânicos prio dinheiro porque aqui não chegava
em um ônibus da universidade para um nunca. Lembro da primeira reunião com Como a discriminação se expressava?
congresso em Corumbá, Mato Grosso. minha orientadora, quando eu já tinha Nas reuniões colegiadas, havia uma ex-
Tinha recém-chegado ao Brasil depois os primeiros resultados de minha pes- clusão participativa. Você estava lá, mas
de cinco anos na Alemanha, ainda ten- quisa. Cheguei com tudo meio bagun- a sua opinião não era tão considerada
tando ver onde eu estava. Ter feito essa çado, ela olhou aquela profusão de pa- quanto a dos demais. Esse é um pro-
viagem e cruzado o Cerrado até o Panta- péis em cima da mesa e falou: “Volte na blema mais associado à minha geração.
nal foi uma porta de reentrada no Brasil. semana que vem com isso organizado, Percebo que há uma nova geração, de
Mas minha introdução ao bioma ocorreu por favor”. Em dois minutos me despa- homens e mulheres jovens, mais escla-
quando estudava biologia no Rio de Ja- chou. Aquilo ficou como lição: nunca recida, capaz de reconhecer a discri-
neiro, no início dos anos 1980, e assisti mais ir despreparada para uma reunião minação e se posicionar sobre isso. Aos
a uma apresentação de uma botânica no ou apresentação, porque a outra pessoa poucos, vamos vencendo as barreiras.
Museu Nacional. Ela mostrou slides das está me doando o tempo dela. Quando Na ecologia, minha área, já tive alunas
flores do Cerrado e fui atraída por aque- voltei ao Brasil, senti muito isso. As pes- que trabalhavam por cinco meninos em
la beleza. Até então conhecia apenas a soas chegavam atrasadas, não respeita- campo. Gostaria de ver mais mulheres
restinga, o manguezal, a Mata Atlântica vam o tempo do outro. Hoje tento tra- em instâncias superiores e em órgãos
e um pouco da Amazônia. balhar com as duas culturas. Não exijo internacionais. Temos também de trei-
que meus alunos marquem hora com a nar mais as alunas para serem coordena-
Como foi seu doutorado na Alemanha? secretária, que nem tenho, e tento ser doras de redes de pesquisa, de grandes
Fui para lá em um programa que era flexível nas conversas, mas recomendo: projetos, para acessarem recursos inter-
uma parceria entre o Daad [Serviço “Estejam sempre bem-preparados para nacionais e participarem das platafor-
Alemão de Intercâmbio Acadêmico] e tudo”. Para minhas alunas, digo que a mas internacionais. Temos de ensinar
a Capes. A Capes me dava as passagens gente, por ser mulher, é mais cobrada e muito mais do que biologia. n

PESQUISA FAPESP 324 | 29


PÓS-GRADUAÇÃO

DESEMPENHO
EM ALTA
30 | FEVEREIRO DE 2023
Avaliação quadrienal da Capes registra
avanço na qualidade dos cursos de
mestrado e doutorado em meio à crise
de financiamento da ciência no Brasil

Rodrigo de Oliveira Andrade

A
Coordenação de Aperfeiçoa- desenvolvimento da nossa pós-graduação”, des-
mento de Pessoal de Nível tacou o psicólogo Emmanuel Zagury Tourinho,
Superior (Capes), agência reitor da universidade, em vídeo divulgado pela
vinculada ao Ministério da UFPA nas redes sociais.
Educação (MEC), divulgou Os resultados reafirmam tendências já alcan-
em dezembro, um ano após çadas em avaliações anteriores. A Universidade
o previsto, os resultados da de São Paulo (USP) segue como a instituição bra-
avaliação quadrienal da pós-graduação no Bra- sileira com mais programas com notas 6 e 7. São
sil, usada desde a década de 1970 para aferir 114 no total, sobretudo nas áreas de ciências bio-
a qualidade dos cursos de mestrado e douto- lógicas, engenharia e medicina. Criada há apenas
rado, acadêmicos e profissionais, e nortear a 17 anos, a Universidade Federal do ABC (UFABC)
distribuição de bolsas e verbas. Mesmo em um também comemorou os resultados. Dos 29 progra-
cenário de subfinanciamento da ciência, com mas avaliados, 10 subiram de nota, sendo que dois
cortes de recursos para pesquisas e corrosão do obtiveram nota 6, o de nanociência e materiais
valor das bolsas, muitos programas melhoraram avançados e o de ciência e tecnologia química,
seus indicadores. Dos 4.512 cursos avaliados “um desempenho notável para uma instituição
entre 2017 e 2020, 34% aumentaram sua nota. relativamente jovem”, avalia Charles Morphy,
O número de programas de nível internacional, pró-reitor de pós-graduação da instituição. A
aqueles que recebem as notas mais elevadas na pós-graduação da Universidade Estadual Paulista
escala da Capes (6 e 7), cresceu 37%, saltando (Unesp) passou a ter 10 programas com conceito
de 490 para 671. 7, entre eles os de física, química e odontologia.
A maioria dos cursos concentra-se em estados “Isso se deve a uma política de pós-graduação
do Sul e do Sudeste, principalmente São Paulo, baseada em metas e no acompanhamento dos
Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Minas Gerais. programas ao longo de cada quadriênio”, diz a
Mas outras regiões também ganharam fôlego. No química Maria Valnice Boldrin, pró-reitora de
Nordeste, o número de programas de excelência pós-graduação da Unesp.
passou de 37 para 60, um crescimento de 62%. A Na Universidade Estadual de Campinas (Uni-
LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP

região Norte, que não tinha nenhum programa camp), 30 cursos aumentaram suas notas em re-
com nota 7 até a avaliação anterior, agora tem lação ao ciclo anterior, sendo que 37 obtiveram
três nesse patamar, dois na Universidade Fede- nível de excelência, com destaque para as áreas
ral do Pará (UFPA) e um no Instituto Nacional de ciências humanas, de alimentos, engenharias,
de Pesquisas da Amazônia (Inpa). “Tínhamos medicina e odontologia. A pró-reitoria de pós-
a expectativa de que a UFPA receberia notas -graduação da universidade informou que irá
melhores, mas os resultados foram além das ex- se reunir com os coordenadores dos programas
pectativas, o que terá um impacto importante com notas 3 e 4 a fim de definir estratégias para
na nossa capacidade de captar recursos para o melhorar o desempenho na próxima avaliação.

PESQUISA FAPESP 324 | 31


Além do prestígio acadêmico, os programas de não foram concedidas bolsas de mobilidade, que
excelência têm mais autonomia e podem receber propiciam intercâmbios de estudantes, e em 2021
financiamento diretamente da Capes por meio elas foram suspensas. Boldrin explica que o pro-
do Programa de Excelência Acadêmica (ProEx) grama, que terminaria em 2021, foi estendido até
– aqueles com notas entre 3 e 5 também recebem 2024 e as bolsas, que deveriam ter sido pagas em

N
recursos da agência federal a partir do Programa 2020 e 2021, foram remanejadas para 2023 e 2024.
de Apoio à Pós-graduação (ProAP), mas o repasse
é menor. Projetos vinculados a programas com ão há consenso sobre os fatores
notas altas também têm mais chances de serem que contribuíram para o bom
selecionados em chamadas da Capes e do Con- desempenho dos programas,
selho Nacional de Desenvolvimento Científico e mas existem algumas hipóte-
Tecnológico (CNPq). ses. Uma delas diz respeito a
É certo que, nos anos recentes, as dificuldades mudanças no modelo de clas-
de financiamento de bolsas e projetos atingiram sificação da Capes, que no úl-
cursos bem ou mal avaliados. “Os programas nos timo processo passou a dar mais peso a alguns
últimos anos tiveram de administrar uma série de aspectos qualitativos relacionados à formação
restrições impostas não apenas pela pandemia, oferecida pelos cursos e sua produção intelec-
mas também pela escassez de recursos para a tual. Até então, os responsáveis pelos programas
ciência e educação”, diz a cientista política Ra- preenchiam um questionário com várias informa-
chel Meneguello, pró-reitora de Pós-graduação ções sobre a proposta do programa, a qualifica-
da Unicamp. “O valor defasado e insuficiente das ção do corpo docente, o perfil dos estudantes e o
bolsas federais ilustra bem esse cenário.” Há anos contingente de trabalhos publicados nos estratos
os estudantes sofrem com a corrosão do valor dos mais altos do Qualis, sistema de classificação de
auxílios, reajustados pela última vez em 2013, ao revistas científicas da Capes. “Na última avaliação,
passo que a inflação acumulada desde então, me- eles também puderam indicar os trabalhos de me-
dida pelo IGP-M, foi de 125,1% – atualmente, um lhor qualidade de seus alunos e pesquisadores”,
bolsista de mestrado recebe R$ 1,5 mil mensais destaca a epidemiologista Rita Barradas Barata,
e o de doutorado R$ 2,2 mil. ex-diretora da Capes, que participou da análise
Iniciativas como o Programa Institucional de dos programas profissionais de pós-graduação
Internacionalização das Universidades Brasi- na área de saúde coletiva.
leiras (PrInt), lançado pela Capes em 2017 com Os programas registraram 4,7 milhões de pro-
o objetivo de estimular parcerias internacionais duções intelectuais entre 2017 e 2020. Desse total,
nos programas de mestrado e doutorado, também 280 mil foram destacadas pelos próprios coor-
foram afetadas. Em 2020, por conta da pandemia, denadores e escrutinadas de acordo com seu

Raio X da pós-graduação
Distribuição das notas nas 30 instituições de ensino superior com mais programas no país

AS NOTAS FINAIS
n1 Programas com desempenho
200
n2 insuficiente, seus cursos perdem
autorização de funcionamento
n3 Programas com padrão mínimo, com
predomínio de conceitos Regular e Bom
150
n 4 Programas com conceito Bom em ao
Programas de pós-graduação

menos três quesitos, entre os quais o de


corpo discente e o de produção
intelectual
n 5 Programas com conceito Muito Bom em 100
ao menos 4 quesitos, entre os quais o
de corpo discente e o de produção
intelectual. É a maior nota para
programas só de mestrado
50
n 6 Programas que incluem doutorado com
conceito Muito Bom em todos os
quesitos, embora com conceito Bom em
alguns itens
n7 Programas com conceito Muito Bom em 0
todos os itens de todos os quesitos USP UFRJ UNB UFRGS UFMG UFPA UFRN UFPE UFBA UFF

32 | FEVEREIRO DE 2023
impacto, originalidade e inovação. “Isso pode ter penho e na produção dos programas nos próximos
contribuído para que os programas tenham tido anos e a agência precisa estar atenta a isso.”
um desempenho melhor do que o que eles teriam A Capes, segundo ela, também precisará reexami-
se a avaliação tivesse se concentrado em aspectos nar a efetividade de seu modelo de classificação. “A
quantitativos”, afirma Barata. lógica da avaliação quadrienal é identificar nuanças
Especialistas ouvidos pela reportagem suge- e distinguir a excelência entre os programas para
rem que houve uma tendência dentro do Con- que, com base nisso, a própria Capes, o CNPq e ou-
selho Técnico-Científico da Educação Superior tras agências de fomento possam definir prioridades
(CTC-ES) da Capes, colegiado que delibera sobre de investimento e estratégias de desenvolvimento
a avaliação, em dar mais autonomia ao trabalho da pós-graduação”, explica. “No momento em que
feito pelos coordenadores de área, acatando suas muitos programas conseguem ascender às notas
recomendações de notas – em avaliações de anos mais altas, a escala usada pela agência perde sua

A
anteriores, a Capes chegou a criar uma comissão capacidade de distinguir a excelência.”
especial para reanalisar a concessão de notas 6 e 7.
Também é possível que a evolução dos indica- expectativa da comunidade
dores de qualidade dos programas seja reflexo de científica é a de que o desem-
investimentos feitos no quadriênio anterior e não penho dos programas passe a
tenha sido afetada pelas dificuldades recentes. “O ser computado com base em
desempenho dos cursos em cada avaliação cos- um modelo multidimensional,
tuma refletir parte do que foi feito no passado”, com a atribuição de diferentes
afirma Morphy, da UFABC. “A primeira metade notas a cinco dimensões de
da década de 2010 foi marcada por uma política desempenho: ensino e aprendizagem, produção
INFOGRÁFICO  ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

de valorização e expansão da pós-graduação, e é de conhecimento, inserção internacional e regio-


possível que os resultados atuais ainda estejam nal, inovação e transferência do conhecimento, e
espelhando isso.” impacto na sociedade (ver Pesquisa FAPESP nº
Para Rita Barata, a Capes terá de adaptar seus 286). “Essa proposta vem sendo discutida há anos
critérios para a próxima avaliação, que contemplará e tem amplo apoio da comunidade, mas ainda não
o período entre 2021 e 2024. “Os programas, que sabemos se será implementada”, afirma o agrô-
já sofriam com a falta de recursos, foram muito nomo Marcio de Castro Silva Filho, pró-reitor de
impactados pela pandemia, que resultou em um pós-graduação da USP. “O novo modelo teria um
aumento da evasão dos cursos de mestrado e douto- papel importante no aperfeiçoamento do siste-
rado, interrupção de projetos, atraso na conclusão ma, pois promoveria uma avaliação mais precisa
de teses e dissertações, e na publicação de artigos e detalhada dos programas, levando em conta
científicos”, ela diz. “Tudo isso refletirá no desem- vocações específicas”, acrescenta Meneguello.

FONTE CAPES

UFPR UFSC UFC UNICAMP UNIFESP UERJ UFPB-JP UFG UFSM UFES UFSCAR USP/RP UTFPR FUFSE UEM UFU UFV UFPEL UFMT UEL

PESQUISA FAPESP 324 | 33


Desempenho por região Indicadores em evolução
Estados do Sul e Sudeste concentram Distribuição das notas em relação à avaliação
a maioria dos cursos de excelência, quadrienal anterior
mas o Nordeste também ganhou fôlego
n Quadriênio 2013-2016 n Quadriênio 2017-2020
n1 n2 n3 n4 n5 n6 n7

100
1.786

80 1.497
1.333

60
1.030
980

40 765

410
20 298 261
184
90
8 14 31
0
Sudeste Sul Nordeste Centro-Oeste Norte Nota 1 Nota 2 Nota 3 Nota 4 Nota 5 Nota 6 Nota 7
FONTE CAPES FONTE CAPES

A fase final do processo de avaliação da Capes e pró-reitores de pós-graduação, que puderam


foi marcada por uma série de constrangimentos. solicitar reconsideração – é natural que as uni-
O principal deles se deu em setembro de 2021. Em versidades se movimentem quando não ficam
resposta a uma ação civil pública do Ministério satisfeitas com os resultados preliminares. O
Público Federal (MPF), a juíza Andrea de Araú- acordo, no entanto, foi criticado pela Sociedade
jo Peixoto, da 32ª Vara Federal do Rio de Janeiro, Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC)
concedeu uma liminar determinando a suspensão por conta da permissão para que os cursos man-
da avaliação, que deveria divulgar seus resultados tivessem a nota da avaliação quadrienal anterior
em dezembro. Segundo a ação movida pelo MPF, caso tenham tido seu conceito rebaixado na atual.
a Capes teria mudado os parâmetros ao longo dos A Capes não informou quais programas que so-
quatro anos do processo, gerando insegurança ju- licitaram reconsideração se valeram desse dis-
rídica para os programas. À época, o MPF sugeriu positivo para evitar o rebaixamento do conceito
que a agência adotasse critérios idênticos aos uti- de seus cursos. Em nota, a agência disse que re-
lizados em 2016 para mensurar a qualidade dos cebeu 975 pedidos de reconsideração, dos quais

E
cursos em 2021 (ver Pesquisa FAPESP nº 309). 707 mantiveram a nota de 2017. “Mesmo assim,
acreditamos que os resultados tenham refletido
m dezembro, o juiz Antonio Hen- as reais qualidades dos programas em relação
rique Correa da Silva, também da às notas atribuídas a eles”, escreveram. Ao todo,
32ª Vara Federal do Rio de Janei- apenas 189 tiveram notas inferiores às de 2017.
ro, atendeu a um pedido da Ad- Tais contratempos atrapalharam os cursos. “Pas-
vocacia-geral da União e reverteu samos por dois anos de muita instabilidade, com
a liminar que havia ordenado a trocas na presidência da Capes, paralisação da
interrupção do processo. Ele pôde avaliação e atraso na divulgação dos resultados, o
ser concluído, mas a divulgação dos resultados que fez com que os coordenadores dos programas
INFOGRÁFICO  ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

permaneceu suspensa. A permissão para a reto- atrasassem seu planejamento”, destaca Boldrin. “Já
mada se deu em meio à renúncia de cerca de 80 estamos no meio da próxima avaliação quadrie-
pesquisadores que atuavam como coordenadores nal e só agora será possível avaliar pontos fortes
e consultores nas áreas de química, matemática e vulneráveis e traçar novas metas.” Também por
e física. Eles reclamaram da falta de empenho conta da pandemia, a discussão do Plano Nacio-
da agência em tentar reverter a decisão judicial nal de Pós-graduação (PNPG) para o decênio de
e de pressões para a aprovação de novos cursos. 2021 a 2030 só agora começou a ser feita e deve
Em setembro de 2022, a Capes assinou um estabelecer metas que terão de ser alcançadas
acordo com o MPF para pôr fim à ação civil pú- nos próximos anos. “Cabe à nova gestão, agora
blica e permitir a divulgação dos resultados. Em presidida pela bióloga Mercedes Bustamante, dar
um primeiro momento, as notas foram informa- prosseguimento a essas discussões com a comuni-
das apenas para os coordenadores dos programas dade”, conclui Meneguello, da Unicamp. n

34 | FEVEREIRO DE 2023
ENSINO SUPERIOR

PERCURSO
D
esde 2019, caiu de patamar o número
de estudantes de instituições públi-
cas de ensino superior do Brasil que
conseguem concluir a graduação. Fo-

INTERROMPIDO
ram 251.374 naquele ano, 3% a menos
que no período anterior. A situação
se agravou na pandemia, com a sus-
pensão das atividades presenciais e
atraso na conclusão do ano letivo.
Em 2020, o contingente de formados despencou
Dados do Inep revelam aumento no para 204.174, queda de 18,7% em relação a 2019.
Voltou a subir em 2021, para 219.342, mas ainda
número de estudantes que não conseguem se encontra nos níveis de quase uma década atrás.
Os dados constam do último Censo da Educação
concluir a graduação no Brasil Superior do Instituto Nacional de Estudos e Pes-
quisas Educacionais (Inep), órgão do Ministério
ILUSTRAÇÃO  Maíra Mendes da Educação, divulgado em novembro de 2022.

PESQUISA FAPESP 324 | 35


As causas do fenômeno são diversas. Com o das Instituições Federais de Ensino Superior,
agravamento da crise econômica, muitos es- divulgada em 2019, indicam que 70,2% dos es-
tudantes viram-se obrigados a trabalhar para tudantes das universidades federais têm renda
poder se manter ou ajudar a família. “Alguns mensal familiar per capita de até um salário
conseguem conciliar emprego e faculdade, ou- mínimo, sendo a renda média de R$ 640. Ain-
tros têm mais dificuldade e acabam deixando da segundo o levantamento, realizado desde
os estudos em segundo plano”, comenta a far- 1996 pelo Fórum Nacional de Pró-reitores de
macologista Soraya Smaili, ex-reitora da Uni- Assuntos Estudantis, vinculado à Associação
versidade Federal de São Paulo (Unifesp). Esse Nacional de Dirigentes das Instituições Federais
movimento, comum em tempos de recessão, de Ensino Superior (Andifes), apenas 4,6% dos
vinha sendo observado nos últimos anos, “mas estudantes têm renda superior a cinco salários
piorou muito com a pandemia”, completa a mínimos per capita.
pesquisadora, que é coordenadora do Centro O aparente abandono dos estudos pode ofus-
de Estudos Universidade, Sociedade e Ciência car outros movimentos. Em sua pesquisa de
(Sou Ciência), força-tarefa de pesquisadores doutorado, defendida em 2021 na Universidade
focada na produção de estudos e debates so- Federal de Minas Gerais (UFMG), o sociólogo
bre políticas públicas de educação superior e Gustavo Bruno de Paula verificou que até 80%
financiamento da ciência no Brasil. dos estudantes que desistiram da graduação
A prorrogação de prazos e a retenção de alunos nas universidades federais entre 2016 e 2017
em decorrência da emergência sanitária também retornaram para o ensino superior. De acordo
tiveram influência. No entanto, para além dos com alguns estudos, não raro esse retorno se dá
efeitos da pandemia, especialistas atribuem a para instituições privadas que ofertam cursos
queda a uma desorganização dos instrumentos a distância.
de manutenção da permanência de estudantes Essa modalidade avança de forma acelerada
economicamente vulneráveis nas universidades desde 2010. Nesse período, o número de novos
públicas, como bolsas e auxílios para despesas alunos aumentou 464,1%, enquanto os cursos
com moradia, alimentação e transporte. “A po- presenciais tiveram queda de 13,9%. Parte des-
lítica de cotas promoveu uma mudança no perfil se crescimento se deve a um decreto publicado
dos estudantes que ingressam na graduação, am- em maio de 2017, no governo de Michel Temer
pliando o acesso de indivíduos de baixa renda, (2016-2018), flexibilizando as regras de ofertas
pretos, pardos e indígenas ao ensino superior no de curso a distância.
Brasil”, comenta a cientista política Elizabeth Elizabeth Balbachevsky reconhece que os cur-
Balbachevsky, professora da Faculdade de Filo- sos a distância podem ser uma alternativa para
sofia, Letras e Ciências Humanas da Universi- muitos daqueles que não conseguiram ingressar
dade de São Paulo (FFLCH-USP). “Esse público ou se firmar no ensino superior público, “mas é
é reconhecidamente mais sensível às variações preciso atentar para a qualidade da formação
das condições econômicas do país, sendo, por- oferecida”, destaca a pesquisadora. “A simples
tanto, o mais afetado pela crise de financiamento obtenção de um diploma em um curso desse tipo

A
da ciência e educação.” não garante que o indivíduo será um profissional
competitivo no mercado de trabalho.”
rubrica “outras despesas correntes” Os dados do Inep revelam outro evento preo-
das 68 universidades federais bra- cupante. Nos últimos cinco anos, as universi-
sileiras despencou 45%, de R$ 8,6 dades públicas brasileiras passaram a registrar
bilhões em 2018 para R$ 4,4 bilhões sucessivas quedas de novos ingressantes. Em
até setembro de 2022, em valores 2017, elas receberam pouco mais de 589 mil no-
corrigidos pela inflação, segundo vos alunos. Em 2021, foram aproximadamente
dados do Sistema Integrado de Pla- 492 mil. O número de participantes do Exame
nejamento e Orçamento do governo Nacional do Ensino Médio (Enem) também caiu
federal. Nessa categoria entram as ininterruptamente desde 2016. Foram pouco
verbas destinadas à compra de material de con- mais de 5,8 milhões de candidatos naquele ano.
sumo e ao pagamento de água, energia, diárias, Em 2021, esse número foi de 2,2 milhões. “O pro-
serviços prestados, além de custeio e assistência blema parece ir além da permanência”, destaca
estudantil. O orçamento do Programa Nacional Smaili. “Muitos estudantes se sentem desmo-
de Assistência Estudantil (Pnaes), usado para o tivados ou pensam ser incapazes de ingressar
fomento de bolsas, auxílio-moradia, transporte, em uma universidade pública tendo como base
alimentação de estudantes das universidades fe- o ensino que receberam na escola e nem sequer
derais, também encolheu 18,3% entre 2019 e 2021. se inscrevem para prestar o exame.” Atualmente,
Dados da última Pesquisa Nacional de Perfil apenas 23% da população brasileira entre 24 e
Socioeconômico e Cultural dos Graduandos 35 anos têm curso superior, enquanto a média

36 | FEVEREIRO DE 2023
tiveram de fazer dois processos seletivos por
ENTRA E SAI NO ENSINO SUPERIOR ano para não deixar vagas ociosas (ver Pesquisa
FAPESP nº 315).
Evolução de novos ingressantes e concluintes Renato Pedrosa, pesquisador associado do
nas universidades públicas do país Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP,
chama a atenção para outro aspecto do problema
NÚMERO DE NOVOS INGRESSANTES que ainda não foi dimensionado. “A pandemia
-12% comprometeu a formação de milhares de es-
em 2021 em
relação ao
tudantes dos ensinos básico e médio nas esco-
700.000
valor de 2019 las públicas, muitos dos quais, provavelmente,
589.586 580.936 buscarão os sistemas de cotas para entrar na
559.293
527.006 universidade pública”, ele diz. “É verdade que
492.141 a experiência acumulada com cotas e outras
ações afirmativas no país dissipou os temores
de que haveria uma queda drástica no nível dos
estudantes e na qualidade do ensino, mas ain-
da não sabemos qual a extensão do impacto da
pandemia na formação dos jovens de ensino
médio das escolas públicas. Meu temor é que
isso comprometa o desempenho daqueles que
pretendem ingressar em cursos historicamente
0 com altos níveis de evasão, como os bacharela-

O
2017 2018 2019 2020 2021 dos de ciências exatas e engenharias.”

s cursos de licenciatura na área de


NÚMERO DE CONCLUINTES exatas, tradicionalmente de baixa
-12,7% demanda, também merecem atenção
em 2021 em
relação ao
especial, segundo ele. “São cursos
300.000
valor de 2019 complicados, com muito cálculo,
259.302 matemática e física, disciplinas que
251.793 251.374
exigem sólida formação de base dos
219.342
204.174 estudantes, e sabemos que os resul-
tados em matemática nas avaliações
do final do ensino médio já mostravam sérias
deficiências antes da pandemia”, diz Pedrosa.
A maioria das universidades brasileiras busca
oferecer condições econômicas que assegurem
a permanência dos estudantes. No entanto, na
avaliação de Pedrosa, além do apoio financeiro,
elas precisarão investir mais em auxiliá-los em
0
suas dificuldades acadêmicas, na forma de apoio
2017 2018 2019 2020 2021 pedagógico e psicológico.
A USP se deu conta desse problema no re-
FONTE  INEP –  CENSO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR torno das atividades presenciais. “Muitos es-
tudantes estavam indo para seu terceiro ano
de graduação, mas ainda não haviam pisado no
dos países da Organização para a Cooperação e campus da universidade”, observa Aluísio Se-
INFOGRÁFICOS  ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

Desenvolvimento Econômico (OCDE) é de 47%. gurado, pró-reitor de Graduação da USP. Para


É esperado que esse fenômeno tenha implica- auxiliar na adaptação, a instituição lançou no iní-
ções importantes na formação de novos pesqui- cio de 2022 um programa de tutoria acadêmica,
sadores. Na Universidade Estadual de Campinas com bolsas para estudantes de pós-graduação
(Unicamp), por exemplo, os processos de seleção e pesquisadores em estágio de pós-doutorado.
de mestrado e doutorado vêm apresentando pro- O objetivo é que eles auxiliem estudantes em
cura limitada, indicando um possível processo diferentes períodos da graduação e também no-
de afastamento de profissionais dos programas vos ingressantes em atividades de reforço para
de pós-graduação. A Universidade Federal de acompanhamento das disciplinas. “Estamos
Pernambuco (UFPE) também registrou redu- agora trabalhando para que esse programa se
ção na demanda, sobretudo nas áreas de enge- torne permanente”, afirma. n
nharias e ciências da saúde. Vários programas Rodrigo de Oliveira Andrade

PESQUISA FAPESP 324 | 37


FÍSICA

O COMBUSTÍVEL
DAS
ESTRELAS

Ilustração mostra
como experimento no
National Ignition Facility,
dos Estados Unidos,
produziu fusão nuclear
com o auxílio de feixes
de laser que entram em
cilindro metálico com
mistura de deutério e trítio
Pela primeira vez, um experimento de fusão nuclear
produziu mais energia do que consumiu, mas o domínio
da tecnologia ainda permanece distante

Marcos Pivetta

N
a manhã de 13 de dezembro do LLNL, que ficou pronto no início da década
passado, enquanto as pessoas passada e custou US$ 3,5 bilhões (por volta de
se preparavam para as festas de R$ 17 bilhões). Trata-se da maior e mais potente
fim ano, dirigentes do Departa- instalação do mundo capaz de gerar raios laser.
mento de Energia dos Estados Desde 2012, os pesquisadores do NIF diziam que
Unidos, na capital Washington, iriam obter a tal ignição por fusão, mas apenas
divulgavam em uma conferên- no final do ano passado entregaram o prometido.
cia de imprensa o que defini- A fusão nuclear nas dependências do NIF foi
ram, talvez com uma ponta de obtida com o emprego de um conjunto de 192
exagero, como “um dos feitos feixes de laser. Toda essa luz foi concentrada e
científicos mais impressionan- direcionada para o interior de um cilindro me-
tes do século XXI”. Cerca de tálico onde uma cápsula plástica do tamanho de
uma semana antes, em 5 de dezembro, um ex- uma pequena ervilha continha 150 microgramas
perimento realizado no Laboratório Nacional de dois isótopos (variedades) do átomo de hi-
Lawrence Livermore (LLNL), na Califórnia, drogênio, o elemento químico mais abundante
havia conseguido, pela primeira vez, produzir do Universo: o deutério, que tem um próton e
mais energia do que tinha consumido em uma um nêutron em seu núcleo, e o trítio, com um
reação de fusão nuclear, a mesma que faz o Sol próton e dois nêutrons. O aquecimento súbito do
brilhar e é a base das armas termonucleares, as cilindro causou a emissão de um espectro de luz
popularmente denominadas bombas de hidro- (radiação do corpo negro), que elevou de maneira
gênio. Os físicos dão o nome de ignição por fusão uniforme a temperatura da superfície da cápsu-
quando essa situação, a de o ganho de energia la a 100 milhões graus Celsius (°C), cerca de 10
ser maior do que o gasto, é alcançada. vezes mais do que as estrelas alcançam na fusão.
Até então, todas as tentativas de produzir fusão Tamanho calor fez a cápsula explodir e gerou
nuclear de forma mais eficiente esbarravam no uma onda de choque que comprimiu a mistura
mesmo grande problema, independentemente de deutério e trítio e ocasionou a fusão nuclear.
do método escolhido para perseguir tal objetivo: O experimento produziu 3,15 megajoules (MJ)
a energia gasta para produzir a reação era maior de energia, 50% mais do que os lasers deposita-
do que a produzida no processo. Essa limitação ram no cilindro. Tudo isso ocorreu em bilioné-
era, e ainda é, o grande calcanhar de aquiles da simos de segundo, tempo total de duração do
fusão nuclear como uma forma alternativa de experimento. “A quantidade de energia gerada é
garantir energia limpa para a humanidade. suficiente para ferver algo em torno de 10 litros
É verdade que os números do experimento na de água”, compara Gustavo Canal, do Instituto
Califórnia são modestos em termos da quanti- de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP),
dade de energia gerada e foram produzidos em especialista em fusão nuclear. “A importância des-
condições especialíssimas, que não podem ser se experimento não foi mostrar que vamos usar
replicadas em nenhum outro lugar do mundo. reatores de laser para promover a fusão nuclear
NIF / LLNL

A ignição por fusão nuclear foi obtida na Natio- em grande escala. Essa é uma forma muito cara
nal Ignition Facility (NIF), um dos laboratórios e ineficiente de estimular essa reação. Mas, sim,

PESQUISA FAPESP 324 | 39


que é possível obter em laboratório a ignição por
O QUE É A FUSÃO NUCLEAR fusão. Foi uma prova de conceito.”
As estrelas usam a fusão nuclear para gerar sua
Submetidos a altíssimas temperaturas e pressões, os núcleos própria energia de forma quase inesgotável. Es-
de duas espécies do átomo de hidrogênio, o deutério e o trítio, sa reação, que ocorre sob condições extremas de
fundem-se e formam um elemento mais pesado, o hélio. temperatura e pressão, promove a união dos nú-
O processo libera energia cleos do deutério e do trítio. Ao se fundirem, eles
formam um elemento mais pesado, o hélio, tam-
próton nêutron
bém denominado partícula alfa, e liberam energia
no final do processo. O núcleo do hélio tem dois
prótons e dois nêutrons. Um nêutron, que escapou
da fusão do deutério com o trítio, é liberado para
deutério trítio 1 O deutério tem um
próton e um nêutron; o ambiente no final da reação (ver quadro à esq.).
o trítio, um próton Há mais de 70 anos, a humanidade tenta domi-
e dois nêutrons nar esse processo para fins pacíficos, ou seja, para
gerar energia sem poluir o ambiente ou avançar
sobre os recursos naturais do planeta. A fusão
não emite, por exemplo, gases de efeito estufa e,
2 A fusão de seus
Núcleo núcleos gera um hélio diferentemente da fissão nuclear promovida nas
instável instável, com dois usinas atômicas, como nas de Angra dos Reis, gera
de hélio prótons e três nêutrons uma quantidade pequena e passageira de radioa-
tividade. “Na Terra, temos fontes quase infinitas e
renováveis de deutério, que pode ser encontrado
na água de grandes lagos e nos oceanos. Já o trítio
pode ser gerado pela reação nuclear do nêutron
3 O núcleo do hélio
se estabiliza por meio com o lítio”, diz José Helder Facundo Severo,
energia
da emissão de um coordenador do Laboratório de Física de Plasmas
hélio nêutron nêutron e de energia do IF-USP. “Mas, apesar dos avanços, precisamos
ainda de décadas de pesquisa para talvez um dia
transformar a fusão nuclear em uma fonte viável
de energia para a sociedade.”
A IMPORTÂNCIA DO NOVO EXPERIMENTO Antes de Severo, o responsável pelo Laboratório
Em dezembro de 2022, uma equipe do Laboratório Nacional Lawrence de Física de Plasmas da USP era Ricardo Galvão,
Livermore, nos Estados Unidos, conseguiu pela primeira vez produzir mais ex-diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Es-
energia com a fusão nuclear do que gastou diretamente para provocar o
processo. Veja como foi o experimento, que durou frações de segundo
paciais (Inpe) que foi nomeado em janeiro presi-
dente do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq) (ver reportagem
na página 16). O Brasil é o único país do hemisfé-
rio Sul que tem tokamaks, máquinas que podem
promover a fusão nuclear por meio do confina-
mento magnético de um plasma de deutério e
trítio (ver texto na página 43). A maior delas, em-
bora pequena perto de projetos no exterior, fica
no Laboratório de Física de Plasmas do IF-USP.
Para objetivos bélicos, cujo propósito é ter ar-
mas eficazes, a fusão nuclear, mesmo sem contro-
le, é produzida desde a década de 1950, quando
surgiram as primeiras bombas de hidrogênio,
1 2 3 milhares de vezes mais potentes do que a bomba
A energia de 192 feixes Ocorre um aumento A cápsula explode, gera atômica convencional, baseada na fissão (quebra)
de laser é direcionada súbito da temperatura uma onda de choque
para um cilindro no cilindro. Isso causa que comprime a mistura
do núcleo atômico. Não é coincidência que o es-
metálico, onde uma a emissão de um espectro de deutério e trítio tágio de ignição por fusão tenha sido obtido em
cápsula plástica do de luz (radiação do e ocorre a fusão nuclear. um complexo de pesquisa militar. Físicos inde-
tamanho de uma corpo negro), que O experimento produz pendentes, não ligados ao NIF, destacam que o
pequena ervilha abriga eleva uniformemente 3,15 megajoules, 50%
150 microgramas a temperatura da mais energia do que
ganho de energia com a fusão nuclear obtido no
de deutério e trítio superfície da cápsula os lasers depositaram experimento da Califórnia se deu em condições
a 100 milhões °C no cilindro extremamente particulares, que dificilmente ser-
virão de base para empreendimentos civis e não
FONTES  LABORATÓRIO NACIONAL LAWRENCE LIVERMORE E GUSTAVO CANAL / USP podem ser reproduzidas em outras instalações.

40 | FEVEREIRO DE 2023
Para se ter ideia dessas dificuldades e limita- energia. A quantidade de energia que o conjunto
ções, basta mencionar que o NIF precisa funcio- de lasers aplicou sobre a cápsula com deutério
nar por oito horas ininterruptas para ser capaz de e trítio foi de 2,05 MJ e a fusão de seus núcleos
levar a cabo um experimento como o divulgado produziu 3,15 MJ.
em dezembro de 2022. Em outras palavras, com Mas, para fazer o conjunto de 192 feixes de
sua eficiência atual, se pudesse funcionar por 24 laser funcionar, foram gastos 300 MJ, quase 100
horas seguidas, o NIF produziria energia suficien- vezes mais do que a reação de fusão em si propor-

O
te para ferver, no máximo, uns 30 litros de água. cionou. As instalações do NIF ocupam uma área
equivalente a três campos de futebol americano.
físico Mark Herrmann, diretor Os lasers percorrem todo esse espaço e passam
do programa de física e desenho por uma série de processos, como amplificação
de armamentos do NIF, admitiu, e concentração, antes de chegar à forma final
em entrevista coletiva no final com que atingem a amostra de deutério e trítio.
de 2022, que o domínio da fusão “As pessoas falam que essa reação de fusão no
nuclear para geração comercial NIF produziu pela primeira vez mais energia do
de energia é um objetivo ain- que entrou nela. Mas isso realmente depende de
da longínquo. “O NIF não foi como se faz a contabilidade”, pondera o físico
desenhado para ser eficiente”, Adam E. Cohen, da Universidade Harvard, em
afirmou Herrmann. “Foi dese- entrevista ao periódico The Harvard Gazette. “É
nhado para ser o maior laser que um pouco como passar água de mão em mão. A
poderíamos construir para nos cada passo do caminho, perde-se um pouco de
fornecer as informações de que precisamos para o água. Nesse caso, houve mais energia liberada pela
programa de pesquisa do nosso arsenal nuclear.” reação de fusão do que foi aportada pelos fótons
Como há restrições a testes com bombas ba- de luz que comprimiram e aqueceram a cápsula
seadas na fusão nuclear, as pesquisas militares [com deutério e trítio]. Mas, se levarmos em con-
nessa área da física acabam sendo essenciais para sideração a energia elétrica usada para fazer os
o aprimoramento e manutenção dos estoques des- lasers produzirem essa luz, houve um gasto muito
se tipo de armamento. Quando ainda trabalhava maior de energia do que o liberado pela reação.”
na Universidade de Princeton, em 2016, Gustavo Para ocorrer a fusão nuclear, os núcleos atô-
Canal foi convidado a dar uma palestra no NIF. micos de deutério e de trítio precisam vencer um
Pediram para ele levar sua apresentação em um empecilho natural que os impede de se chocarem
pen drive. “Não pode entrar com computador e se fundirem: a força eletrostática. Também co-
ali”, relembra o físico da USP. “Fui escoltado até nhecida como lei de Coulomb, essa força faz com
para ir ao banheiro.” que partículas eletricamente carregadas, como
Uma crítica que alguns pesquisadores fazem prótons (positivos) e elétrons (negativos), sejam
ao experimento do NIF é o raciocínio usado para atraídas por congêneres de carga oposta e repe-
dizer que houve maior geração do que gasto de lidas pelas de carga idêntica. Portanto, em con-
FOTO  GENERAL ATOMICS  INFOGRÁFICO  RODRIGO CUNHA / REVISTA PESQUISA FAPESP

Reator de fusão nuclear


do tipo tokamak em
San Diego, nos Estados
Unidos, operado pela
empresa General
Atomics

PESQUISA FAPESP 324 | 41


dições normais, um núcleo de deutério, que tem a fusão nas estrelas. A maior temperatura nos
um próton e um nêutron, vai ser repelido por um reatores tenta compensar a menor compressão
núcleo de trítio, com um próton e dois nêutrons. proporcionada pelos campos magnéticos em rela-
Mas, se forem fortemente comprimidos um ção ao efeito da gravidade na massa das estrelas.
contra o outro, esses dois núcleos podem atin- Quase toda a pesquisa na área de fusão nuclear
gir um ponto em que, de tão próximos, a força é feita em tokamaks, de tamanhos variados – des-
eletrostática repulsiva será sobrepujada pela for- de os pequenos, como o da USP, até os grandes,
ça nuclear forte. Essa é a força que faz com que como o Joint European Torus (JET), instala-
nêutrons e prótons fiquem alojados no interior do no Reino Unido. O JET é atualmente o mais
do núcleo atômico. Quando esse grau exacerbado potente tokamak em funcionamento, mas será
de vizinhança ocorre, os dois núcleos mais leves, superado nos próximos anos pelo International
do deutério e do trítio, fundem-se e geram um Thermonuclear Experimental Reactor (Iter). Es-
núcleo mais pesado, o do hélio (com dois prótons se é o maior projeto internacional de um reator

A
e dois nêutrons). desse tipo, conduzido por sete grandes parceiros
(União Europeia, Estados Unidos, China, Índia,
s estrelas fazem esse processo Japão, Rússia e Coreia do Sul).
de modo espontâneo. O efeito Em construção desde 2010 na cidade de Ca-
de seu campo gravitacional é darache, no sul da França, o Iter tem como meta
tão descomunal que, natural- provar a viabilidade econômico-científica da pro-
mente, promove a compressão dução de energia a partir da fusão nuclear. Seu
extrema dos núcleos desses objetivo é gerar 500 megawatts (MW), 10 vezes
dois isótopos de hidrogênio, mais energia do que gastará para funcionar. Seu
criando condições ideais para custo total é estimado em aproximadamente €
que ocorra a fusão nuclear. “Em 20 bilhões (R$ 110 bilhões), cerca de três vezes
laboratório, a forma de compri- o valor de seu orçamento inicial, e deverá come-
mirmos os núcleos atômicos é çar a funcionar em 2025, se não houver atrasos.
promover seu confinamento, Apesar de, em certa medida, serem concor-
por meio da aplicação de grandes campos mag- rentes das pesquisas feitas no NIF, os dirigentes
néticos, como nos tokamaks, ou pelo uso de lasers do Iter aplaudiram o resultado divulgado em de-
potentes, como no caso do NIF”, explica Canal. zembro passado pelos colegas norte-americanos.
Nos reatores de fusão, a força de confinamento, “Quando as gerações futuras olharem para a evo-
que empurra os núcleos atômicos uns contra os lução da pesquisa em fusão nuclear, acredito que
outros, é menor do que o efeito da gravidade do [esse experimento] será reconhecido como um Construção do Iter,
no sul da França,
Sol nos isótopos de hidrogênio. Por isso, é pre- marco histórico”, disse o engenheiro eletrônico o maior reator nuclear
ciso aquecer o plasma no interior dos tokamaks italiano Pietro Barabaschi, diretor-geral do Iter, por confinamento
a temperaturas 10 vezes maiores do que ocorre em comunidado à imprensa. n magnético de plasma

ITER ORGANIZATION

42 | FEVEREIRO DE 2023
AS MÁQUINAS
QUE ESTUDAM
A FUSÃO NUCLEAR
Cerca de 90 reatores em
operação se dedicam a esse
objetivo no mundo, três deles,
de pequeno porte, no Brasil TCABR, o tokamak instalado no Instituto de Física da USP

M
ais de 130 reatores experi- onde funcionou entre 1980 e 1992. No rios pesquisadores. Na segunda metade
mentais de fusão nuclear, Brasil, o reator de plasma foi remonta- de 2021, o físico Gustavo Canal, também
públicos e privados, estão do e funciona desde 1999, passando por do IF-USP, coordenou a apresentação de
em operação, sendo cons- atualizações periódicas. “O plasma de um uma proposta de criação de um programa
truídos ou planejados em tokamak sofre instabilidades constantes e nacional de fusão nuclear para revitalizar
cerca de 50 países, segundo esse tipo de reator sempre precisa de ma- o setor na Comissão Nacional de Ener-
relatório de dezembro de nutenção”, explica o físico José Helder gia Nuclear (Cnen) e no Ministério da
2022 da Organização In- Facundo Severo, coordenador do Labo- Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI).
ternacional de Energia Atômica (IAEA). ratório de Física de Plasmas do IF-USP. Entre as ideias formuladas, mas não im-
Cerca de 90 máquinas estão em funcio- Outro tokamak, o ETE, fica no Ins- plementadas, estavam a criação de um
namento, a maioria do tipo tokamak ou tituto Nacional de Pesquisas Espaciais laboratório nacional de fusão nuclear,
stellarator, que usam formas de confi- (Inpe), que projetou e construiu uma que concentrasse e coordenasse as ati-
namento magnético para esquentar e máquina esférica, com uma geometria vidades da área, e a modernização das
comprimir um plasma e tentar obter a um pouco diferente da dos outros dois máquinas em uso no país.
fusão nuclear. Além da National Ignition projetos em funcionamento no país. O “Nos últimos anos, houve grandes
Facility (NIF), na Califórnia, apenas ou- reator está operacional desde 2000. Um avanços no setor de supercondutores
tras cinco instalações, todas menores do terceiro tokamak, o Nova, fabricado no de alta temperatura, que permitem a
que o laboratório norte-americano, usam Japão nos anos 1980, foi realocado para construção de tokamaks menores, mais
atualmente feixes de laser para estudar a Universidade Federal do Espírito San- eficientes e mais baratos”, diz Canal.
esse tipo de reação: uma na França, uma to (Ufes) no final de 2020. A máquina já “Não é mais preciso investir em pro-
no Reino Unido, duas no Japão e outra pertenceu à Universidade Estadual de jetos tão grandiosos e caros.” Segundo
nos Estados Unidos. Campinas (Unicamp) e à Universidade o físico da USP, essa nova abordagem
O Brasil é o único país do hemisfé- Federal do Rio Grande (Furg) antes de representaria uma rota acelerada rumo
rio Sul que tem reatores de fusão, três ser instalada na instituição capixaba. “O à fusão nuclear. No exterior, capital pri-
pequenos tokamaks (a Austrália plane- tokamak foi montado e já funcionou”, vado tem sido atraído para a área, que
ja ter uma máquina para estudar essa explica o físico Alfredo Cunha, da Ufes. pode ser uma alternativa de produção
reação, mas usando a tecnologia a laser “Agora estamos fazendo melhorias no de energia limpa se sua exploração co-
MARCOS SANTOS / USP IMAGENS

para estimular o processo). O maior de- sistema de medida de posicionamen- mercial se tornar viável. Grandes em-
les está instalado no Instituto de Física to do plasma para controlá-lo melhor.” presas, como a petrolífera Chevron e a
da Universidade de São Paulo (IF-USP). Os físicos brasileiros dizem que o país Alphabet, dona do Google, colocaram
Trata-se do TCABR, equipamento ori- já teve um papel de maior destaque na por volta de US$ 3 bilhões (mais de R$
ginalmente construído pelo Escola Po- fusão nuclear, mas nas últimas décadas 15 bilhões) em startups da área de fu-
litécnica Federal de Lausanne, na Suíça, a área sofreu altos e baixos e perdeu vá- são nuclear. n Marcos Pivetta

PESQUISA FAPESP 324 | 43


ASTROFÍSICA

Zona de sombra

MATÉRIA
NA ZONA
DE SOMBRA
Aglomerado com
58 galáxias é descoberto
em região obscurecida
pelo centro da Via Láctea

Ilustração mostra que,


do ponto de vista de
um observador situado
na Terra, a zona de

TERRA sombra fica atrás


do bojo da Via Láctea
mais precisamente na Terra, que olha
para o centro da Via Láctea. A visão do
que se encontra atrás do bojo da galáxia
é bloqueada pela grande concentração de
estrelas, gás e poeira dessa região. Por-
tanto, a partir do campo de visada de um
observador terrestre, tudo é obscurecido
pela presença da Via Láctea, sobretudo
de seu bojo, e cai dentro da zona de ex-
clusão. Ela abrange tanto o que está do
“outro lado” da galáxia, ainda dentro
dos limites da Via Láctea, como objetos
celestes fora dela, mas situados nessa
direção do campo de visada. Entre 10%
e 20% do céu visto da Terra fica dentro
Imagem indica da zona de sombra.
a localização A luz visível não consegue atravessar
aproximada de regiões ricas em gases e poeira estelar.
5 das 58 galáxias
identificadas
Ela é absorvida e espalhada ao se deparar
atrás da zona de com esse tipo de matéria em seu cami-
nho. Isso limita seu uso como ferramenta

E
2 sombra da Via Láctea
de observação nesse meio. “Por isso, o
scondida do campo de visão para fazer estudos mais aprofundados e novo aglomerado de galáxias não pode
de um observador situado tentar confirmar se eram realmente ga- ser observado na luz visível, com um
nos arredores da Terra pe- láxias, como suspeitavam. Para começar, telescópio óptico”, explica Riffel. Mas
la enorme concentração de queriam realizar medições na área de certas frequências do infravermelho,
estrelas, gás e poeira que espectroscopia nesse quinteto de obje- como as empregadas pelo levantamen-
forma o bojo da Via Láctea, tos. O método permite aos astrofísicos to VVV, são menos afetadas pelas altas
uma superestrutura com- medir a emissão e a absorção de diferen- concentrações de gás e poeira e podem
posta por 58 galáxias desco- tes comprimentos de onda de radiação ser úteis para garimpar objetos até então
nhecidas foi identificada por eletromagnética pelos corpos celestes. A desconhecidos nas regiões de exclusão.
uma equipe de astrofísicos da Argentina, partir desse tipo de dado, eles inferem Essa não é a primeira vez que são lo-
do Brasil e do Chile. As galáxias pare- suas propriedades, como temperatura, calizadas galáxias ou novas estruturas
cem fazer parte de um bloco de matéria constituição química e massa. na zona de sombra. Talvez a mais fa-
mais ou menos compacto, situado em O primeiro nome que veio à cabe- mosa e misteriosa delas seja o Grande
uma pequena região do espaço a uma ça de Galdeano para fazer esse estudo Atrator, uma gigantesca concentração
distância aproximada da Terra de 2,2 complementar foi o de um colega bra- de massa, da ordem de dezenas de mi-
bilhões de anos-luz. sileiro, o astrofísico Rogério Riffel, da lhares de galáxias, distante cerca de 150
A pista de que esse aglomerado de ga- Universidade Federal do Rio Grande do milhões de anos-luz da Terra. Identifica-
láxias pudesse existir foi fornecida por Sul (UFRGS), do qual havia visto uma do em 1986, o Grande Atrator (invisível
dados do levantamento Vista Variables apresentação sobre espectroscopia. A no campo óptico) funciona como uma
in Via Lactea (VVV), um projeto levado parceria foi em frente e a equipe obteve espécie de ímã espacial. Sua descomunal
a cabo pelo Observatório Europeu do tempo de observação no espectrógrafo força gravitacional puxa a Via Láctea e
Sul (ESO), sediado no Chile, que mapeou de um dos Observatórios Gemini, o do outras galáxias em direção às conste-
em frequências do infravermelho próxi- telescópio sul, situado no Chile. Brasil e lações de Hidra e Centauro. “Embora
mo a área adjacente ao bojo da galáxia, Argentina são sócios do Gemini, ao lado o aglomerado com 58 galáxias não seja
onde ocorre intensa formação de estre- dos Estados Unidos, Canadá e Coreia do tão massivo como o Grande Atrator, sua
IMAGENS 1 NASA / JPL-CALTECH / R.HURT  2 DANIELA GALDEANO

las. “Comecei a trabalhar com dados do Sul. “Dessa forma, conseguimos confir- descoberta na zona de sombra é impor-
VVV em 2017 e, desde o início, percebi mar que esses objetos eram realmente tante para os estudos do Universo local”,
que havia uma concentração de objetos galáxias e faziam parte de uma estru- comenta o astrofísico Roberto Saito, da
em uma pequena área do céu”, conta a tura maior”, conta Riffel, que também Universidade Federal de Santa Catari-
astrofísica argentina Daniela Galdea- assina o artigo. na (UFSC), que participou do levanta-
no, que faz doutorado na Universidade mento VVV, mas não é um dos autores
Nacional de San Juan, na Argentina, au- ZONA DE SOMBRA do novo trabalho. n Marcos Pivetta
tora principal do estudo publicado em O aglomerado com 58 galáxias se situa
janeiro na revista científica Astronomy em uma área do céu denominada zona
Artigo científico
& Astrophysics. de sombra ou exclusão. A definição dessa
GALDEANO, D. et al. Unveiling a new extragalactic struc-
Galdeano e seus colaboradores esco- região se dá a partir do ponto de vista de ture hidden by the Milky Way. Astronomy & Astrophysics.
lheram cinco objetos dentro dessa região um observador situado no Sistema Solar, v. 669. jan. 2023.

PESQUISA FAPESP 324 | 45


U
ASTRONOMIA m padrão de oscilação iden-
tificado nos sinais produzi-
dos por duas explosões de
raios gama, um dos eventos
mais energéticos do Univer-
so, parece indicar a existên-
cia de estrelas de nêutrons
com massa pelo menos 20%
maior do que a registrada
até hoje. O tempo de vida dessas megaes-
trelas de nêutrons, nunca observadas até
agora, seria de centésimos a décimos de
segundo. Elas se formariam após a coli-

UM NOVO
são e a fusão de duas estrelas de nêutrons
menores. Esse é um dos fenômenos asso-
ciados à produção de explosões de raios
gama de curta duração, que geram sinais

TIPO DE ESTRELA
com menos de 2 segundos de duração.
Durante sua ínfima existência, as estre-
las de nêutrons hipermassivas girariam
em torno de seu eixo a um ritmo equi-

DE NÊUTRONS
valente a 78 mil rotações por minuto, o
dobro do observado em qualquer objeto
celeste conhecido.
“Analisamos mais de 700 explosões
de raios gama de curta duração detecta-
das nas últimas décadas e encontramos
Explosões de raios gama indicam dois sinais que, segundo simulações, são
compatíveis com a existência de estrelas
que esses objetos celestes durariam de nêutrons hipermassivas”, diz a as-
menos de 1 segundo e teriam trofísica brasileira Cecília Chirenti, da
Universidade Federal do ABC (UFABC)
massa 20% maior do que a observada e da Universidade de Maryland, nos Es-
tados Unidos, autora principal de artigo dício característico da formação de uma tos mais dramáticos e energéticos do
publicado on-line na revista científica grande estrela de nêutrons de vida fugaz Universo, a colisão de duas estrelas de
Nature em janeiro deste ano. “Esse tipo é classificado como uma oscilação quase nêutrons. “O estudo indica que podemos
de estrela de nêutrons seria um estágio periódica (QPO), ou seja, a estrela oscila usar não apenas as ondas gravitacionais,
intermediário e dinâmico do processo de algumas vezes muito rapidamente e de- mas também os raios gama para estudar
fusão das estrelas menores, que vai gerar pois deixa de apresentar essa variação. o estado e a dinâmica dos instantes fi-
como resultado final um buraco negro.” De acordo com o artigo, em um ponto nais desses sistemas”, comenta Abramo,
A origem das estrelas de nêutrons do processo de fusão de duas estrelas especialista em cosmologia. “Se confir-
tradicionais (não hipermassivas) é bem de nêutrons menores, o sinal produzido madas, essas detecções podem ter mos-
conhecida. Elas se formam a partir do na região dos raios gama se intensifica trado as primeiras evidências de um tipo
núcleo remanescente de estrelas maio- e, por um breve momento, ocorre uma totalmente novo de objeto, as estrelas
res que chegaram ao final da vida, explo- emissão simultânea de duas frequências. de nêutrons hipermassivas. Esse seria
diram e expeliram suas camadas mais Simulações computacionais indicam o último estado da matéria antes de ela
externas de matéria. Essa explosão é de- que a formação de estrelas de nêutrons sucumbir à atração gravitacional e for-
nominada supernova. Uma estrela de hipermassivas deve emitir ondas gra- mar um buraco negro.”
nêutrons típica é uma esfera com cer- vitacionais (ondulações na curvatura O físico italiano Riccardo Sturani, do
ca de 20 quilômetros (km) de diâmetro do tempo-espaço) que apresentam esse Instituto de Física Teórica da Univer-
onde se acumula uma massa igual ou mesmo padrão de oscilação, QPO. “Mas sidade Estadual Paulista (IFT-Unesp),
equivalente a uma ou duas vezes à do a atual geração de observatórios terres- afirma que é difícil dar explicações mais
Sol. Detalhe: o diâmetro do Sol é cerca tres de ondas gravitacionais [Ligo, Virgo precisas sobre o significado dos resulta-
IMAGENS  GSFC-NASA / CENTRO DE PESQUISA STAG / PETER HAMMOND

de 70 mil vezes maior do que o de uma e Kagra] não tem sensibilidade suficien- dos apresentados no trabalho de Chirenti
estrela de nêutrons. Apenas buracos ne- te para captar essas variações”, explica e seus colaboradores. “Não está claro o
gros são mais compactos do que uma Chirenti, que faz seus estudos no Centro que o sinal dessas duas explosões de raios
estrela de nêutrons. de Voos Espacias Goddard (GSFC) da gama tem de particular em relação a ou-
As duas explosões que, segundo o es- Nasa. Por ora, a alternativa seria analisar tras explosões. Mas, certamente, o estu-
tudo, geraram estrelas de nêutrons hi- as explosões de raios gama para estudar do impulsiona ainda mais a procura por
permassivas foram registradas pelo Ob- essa forma elusiva de estrela de nêutrons oscilações do tipo QPO na área de ondas
servatório de Raios Gama Compton, um hipermassiva, propõe o artigo. gravitacionais”, diz Sturani, especialista
telescópio espacial da agência espacial Para o físico Raul Abramo, do Instituto nesse tipo de emissão. n Marcos Pivetta
norte-americana (Nasa), que funcionou de Física da Universidade de São Paulo
entre 1991 e 2000. A primeira delas foi (IF-USP), que não participou do traba- Artigo científico
registrada em 11 de junho de 1991 e a lho, os resultados do artigo abrem uma CHIRENTI, C. et al. Kilohertz quasiperiodic oscillations in
outra em 1º de novembro de 1993. O in- fascinante janela sobre um dos even- short gamma-ray bursts. Nature. On-line. 9 jan. 2023.

Ondas
gravitacionais
simuladas
Brilho

Oscilações
observadas de Milissegundos
raios gama
(ver gráfico à dir.)
163,8 milissegundos

Ilustrações mostram a fusão de duas


estrelas de nêutrons menores (à esq.),
que resulta em uma estrela de
nêutrons hipermassiva (centro). Esse
novo objeto sobrevive por menos de
1 segundo e emite um certo tipo
de oscilação de ondas gravitacionais
e em frequências de raios gama
antes de se transformar em um
FONTE  GSFC-NASA / CENTRO DE PESQUISA STAG / PETER HAMMOND buraco negro (ao lado, nesta página)

PESQUISA FAPESP 324 | 47


Funcionários de
EPIDEMIOLOGIA
funerária em Xangai
conversam em
4 de janeiro ao lado
de corpos enfileirados
(sacos amarelos)

SEGREDOS A
pouco mais de uma sema-
na de celebrar o início
de um novo ano, 4721 no

DA CHINA
calendário lunar, autori-
dades de saúde da China
finalmente revelaram ao
mundo informações aparentemente mais
realistas e confiáveis sobre os óbitos no
país decorrentes do surto mais recente
de Covid-19, potencialmente o primeiro
Após semanas de falta de informação, de escala nacional. De 8 de dezembro
de 2022 a 12 de janeiro deste ano, 59.938
o gigante asiático apresentou em janeiro pessoas teriam morrido como conse-
quência direta ou indireta da infecção
dados mais plausíveis sobre o total de mortes pelo novo coronavírus. A maior parte
decorrentes do surto atual de Covid-19 (56,5%), idosos com mais de 80 anos. O
número registrado em apenas cinco se-
Ricardo Zorzetto manas é cerca de 11 vezes maior do que
o total reportado pelo gigante asiático
nos três anos anteriores da pandemia. De
novembro de 2019, quando o vírus Sars-
-CoV-2 emergiu na cidade de Wuhan, até
dezembro passado, a China havia conta-
bilizado oficialmente apenas 5.241 óbitos
pela infecção entre os seus 1,4 bilhão de
habitantes, uma das taxas mais baixas do
mundo. No mesmo período, os Estados

48 | FEVEREIRO DE 2023
Unidos, o país mais afetado pela doença, controle da doença. Reduziu as testa- 300 mil a 500 mil mortes na China até
registrou 1,1 milhão de mortes. gens, eliminou as quarentenas e baniu os o início de abril, a depender das medi-
Os novos dados chineses foram apre- lockdowns. Uma mudança na definição das adotadas pelo governo, relatou Ali
sentados em uma conferência de im- dos óbitos por Covid-19 contribuiu para Mokdad, epidemiologista do IHME, em
prensa em 14 de janeiro, após semanas distorcer os dados. Desde que pôs fim à entrevista concedida no fim de dezembro
de questionamentos das autoridades Covid Zero, a China adotou um critério ao site Think Global Health. A estimati-
internacionais. Dias antes, a Organiza- muito restritivo, que derrubou os núme- va é de que o total de óbitos passe de 1,2
ção Mundial da Saúde (OMS) havia se ros. Passaram a ser classificados como milhão até o final do ano.
queixado mais uma vez da falta de trans- óbitos decorrentes da Covid-19 apenas “O governo chinês poderia ter progra-
parência do país asiático sobre o surto as mortes por pneumonia ou falência mado uma transição mais suave para o
atual e afirmado que a China estava sub- respiratória provocadas pelo novo co- fim da Covid Zero, estruturando melhor
notificando os óbitos. Até a véspera do ronavírus. Pessoas que sofreram infar- as unidades de saúde para atender a po-
anúncio, o governo ainda garantia que só to fulminante, ou outro problema fatal, pulação e promovendo campanhas de
37 pessoas tinham morrido de Covid-19 em consequência dos danos sistêmicos vacinação inicial e de reforço, inclusive
desde o início de dezembro. causado pelo vírus, por exemplo, não com imunizantes mais eficientes forne-

E
Ao relatar os dados mais recentes à entravam na contabilidade. cidos por outros países”, afirma Stucchi,
imprensa, Jiao Yahui, a chefe do Es- da Unicamp. “Essa estratégia permitiria
critório de Administração Médica da vidências de que os núme- que, aos poucos, as pessoas fossem libe-
Comissão Nacional de Saúde, especifi- ros oficiais não correspon- radas para se expor ao vírus, correndo
cou que 5.503 óbitos foram decorrentes diam à realidade aumenta- menos risco de adoecer.”
de falência respiratória provocada ram ao longo de dezembro Em uma entrevista no final de dezem-
pelo vírus, os outros 54.435, de causas à medida que imagens de bro, Xu Wenbo, chefe do Instituto Nacio-
subjacentes à infecção. Ela afirmou hospitais lotados, corpos nal de Controle e Prevenção de Doenças
ainda que o pico de hospitalizações empilhados em necrotérios e filas em Virais da China, afirmou que cerca de 130
havia passado e o número de pessoas crematórios circularam o mundo via sublinhagens da variante ômicron do no-
internadas continuava diminuindo. redes sociais ou ilustrando notícias na vo coronavírus haviam sido detectadas
A China mantém o mundo às escuras imprensa. Reportagem publicada em 3 de nos três meses anteriores, muitas de-
sobre o avanço da Covid em seu terri- janeiro na revista Science informou que, las, com baixa frequência, como a XBB,
tório desde que as autoridades do país, enquanto o Centro de Controle e Preven- mais transmissível. As dominantes eram
nos primeiros dias de dezembro, deci- ção de Doenças (CDC) da China havia a BA.5.2 e a BF.7. Um dos temores do
diram relaxar a rigorosa política de con- confirmado pouco Ocidente é que no-
trole da infecção que vigorou nos últi- mais de 35 mil casos vas variantes com
mos três anos. Adotada desde o início na última semana alta capacidade de
da pandemia, em 2019, a estratégia que de dezembro, notas Projeções transmissão e ca-
recebeu o apelido de Covid Zero con- que vazaram de uma racterísticas des-
sistia na realização de testes em massa reunião interna do preveem a conhecidas pos-
e na imposição de restrições de viagens, órgão indicavam sam emergir com
quarentenas prolongadas para os infecta- que quase 250 mi-
ocorrência de a circulação do ví-
dos e até o lockdown de cidades inteiras lhões de chineses 300 mil a 500 rus em uma popu-
por semanas. “Essa estratégia foi boa no (18% da população) lação tão grande.
início, mas a forma como terminou foi teriam sido infecta- mil mortes “Ao relaxar to-
inconsequente”, comenta a infectolo- dos pelo novo coro- talmente as me-
gista Raquel Stucchi, da Universidade navírus nos primei- na China até didas de controle
Estadual de Campinas (Unicamp), que ros 20 dias do mês. e com o desloca-
acompanha o desdobramento do surto Em uma entrevista
o início de abril mento das pessoas
atual na China. coletiva concedida das grandes cida-
Segundo dados oficiais, o país registrou no final de dezem- des para o interior
em três anos de pandemia 397 mil casos bro, um oficial de Zhejiang, província de do país durante as comemorações do
da doença e 5.241 mortes – no Brasil, no 65 milhões de habitantes na costa leste Ano-Novo chinês, existe o risco de va-
mesmo período, houve 36,6 milhões de da China, reportou que o número de ca- riantes que tinham circulação restrita
casos e 695 mil mortes. Medidas tão res- sos diários estimados na região passava se expandirem”, alerta o microbiolo-
tritivas adotadas por um período tão lon- de 1 milhão, segundo notícia publicada gista José Eduardo Levi, pesquisador
REUTERS STAFF / REUTERS / FOTOARENA

go causaram prejuízos em vários setores em 25 de dezembro pelo jornal The New do Instituto de Medicina Tropical da
da economia e cansaço na população, York Times. Outras cidades contavam Universidade de São Paulo (USP) e su-
que, em novembro, quando o surto atual centenas de milhares de casos por dia. perintendente de pesquisa e desenvol-
começava, saiu às ruas em várias cidades Projeções realizadas pelo Instituto de vimento da rede particular de medicina
para exigir o afrouxamento das regras. Métricas e Avaliação de Saúde (IHME), diagnóstica Dasa. As festas de Ano-Novo,
Diante dos protestos, o governo deu da Universidade de Washington, nos Es- durante as quais milhões viajam, inicia-
uma forte guinada em sua política de tados Unidos, previam a ocorrência de ram-se em 22 de janeiro. n

PESQUISA FAPESP 324 | 49


IMUNOLOGIA

Técnico do Butantan
segura frascos
contendo a formulação
liofilizada (em pó)
contra a dengue

NÚMEROS
ANIMADORES
Candidata a vacina desenvolvida
pelo Instituto Butantan tem eficácia inicial
de 80% contra duas variedades do
vírus da dengue em testes em humanos
O
composto candidato a vacina Entre fevereiro de 2016, quando começou o tes-
contra a dengue desenvolvi- te, e julho de 2019, quando entrou o último par-
do pelo Instituto Butantan, de ticipante, 10.259 indivíduos foram selecionados
São Paulo, mostrou-se seguro aleatoriamente para receber a aplicação no braço
e ofereceu bom nível de prote- de uma dose do composto criado para gerar imu-
ção contra a doença, segundo nidade contra as quatro variedades (sorotipos)
dados preliminares divulgados em dezembro de conhecidas do vírus da dengue. Outros 5.976,
um ensaio clínico de fase 3, última etapa antes escolhidos também ao acaso, tomaram placebo.
do pedido de registro do produto nas agências Desde então, todos vêm sendo acompanha-
regulatórias. Os eventos adversos graves, que dos de tempos em tempos em um dos 16 centros
podem exigir internação para tratamento, foram montados com auxílio do Butantan em univer-
extremamente raros: houve três casos (ainda não sidades e institutos brasileiros para a realização
especificados) entre as 10.259 pessoas que rece- de ensaios clínicos. O objetivo do seguimento é
beram o imunizante, o correspondente a 0,03% contabilizar o total de indivíduos que desenvol-
do total. Os efeitos adversos observados com vem dengue depois de receber a formulação do
frequência maior foram bem leves: dor, inchaço e Butantan ou o placebo e registrar o surgimento
vermelhidão no local da picada e, em casos mais de possíveis efeitos adversos.
raros, febre e manchas vermelhas pelo corpo que Dois anos após o início dos testes, foram regis-
desapareceram em horas. Conhecido pelo nome trados 35 casos de dengue entre os 10.259 par-
de Butantan-DV, o candidato nacional a vacina ticipantes que tomaram a Butantan-DV (0,34%
contra a dengue também apresentou uma eficácia dos imunizados) e 100 entre os 5.976 aos quais
inicial considerada bastante animadora: reduziu foi administrado placebo (1,67%). A Butantan-DV
em 79,6% o risco de adoecer entre as pessoas parece oferecer proteção maior a quem foi ante-
que o receberam e foram depois naturalmente riormente exposto ao vírus do que a quem não
infectadas pelo vírus da dengue, em comparação foi. Ela reduziu em 89,2% o risco de dengue em
com aquelas que haviam tomado um composto pessoas que previamente haviam tido a doença e
inerte (placebo). em 73,5% naquelas que não haviam tido dengue
“Esse é um nível de proteção excelente para antes de entrar no estudo. Essa diferença no nível
uma formulação produzida com vírus vivo atenua- de proteção já havia sido observada nos testes das
do”, afirma a neurologista Fernanda Boulos, dire- duas outras vacinas contra a dengue disponíveis:
tora médica do Instituto Butantan e coordenadora a Dengvaxia, da farmacêutica francesa Sanofi
do ensaio clínico atual com a candidata a vacina. Pasteur, já aprovada para uso no Brasil em uma
Ainda em dezembro, o instituto encaminhou os população específica; e a Qdenga, da japonesa
resultados à Agência Nacional de Vigilância Sa- Takeda, que se encontra sob análise da Anvisa.
nitária (Anvisa), o órgão regulador que autoriza “A eficácia inicial do produto do Butantan foi
o uso e a comercialização de medicamentos no boa, mas a global só será conhecida ao final do
país e acompanha o desenvolvimento do poten- estudo. Até lá mais casos de dengue podem ocor-
cial imunizante. Antes de entrar com o pedido rer em cada um dos grupos e alguma queda na
de registro, porém, será preciso aguardar o tér- produção de anticorpos, como se vê com outros
mino do estudo. Só em meados de 2024, quando
se completarão cinco anos de acompanhamento 2

do último participante a ingressar na pesquisa, a


eficácia final do composto deverá ser conhecida.
FOTOS 1 INSTITUTO BUTANTAN  2 MUHAMMAD MAHDI KARIM / WIKIMEDIA COMMONS

A dengue é uma das doenças infecciosas mais im-


portantes do mundo. A cada ano, segundo dados
da Organização Mundial da Saúde (OMS), de 100
milhões a 400 milhões de pessoas são infectadas
pelo seu agente causador, um vírus transmitido
pela picada de mosquitos do gênero Aedes, em
especial da espécie Aedes aegypti. A maior parte
(80%) das pessoas não apresenta sintomas, mas
centenas de milhares acabam internadas para
tratamento e alguns milhares morrem.
Destinado a avaliar a segurança e a eficácia
da Butantan-DV, o estudo atual, possivelmente
o maior ensaio clínico de uma vacina já feito no Aedes aegypti,
mosquito transmissor
país exclusivamente por pesquisadores brasileiros, dos vírus da dengue,
conta com a participação de 16.235 voluntários febre amarela,
com idades entre 2 anos e 59 anos em 13 estados. zika e chikungunya

PESQUISA FAPESP 324 | 51


imunizantes”, conta o imunologista Mauro Tei- pelo Butantan. Os vírus DENV-3 e DENV-4 não
xeira, da Universidade Federal de Minas Gerais circulam no país há alguns anos e ainda não é
(UFMG), que coordena um dos centros que avalia possível saber como ela se comporta contra eles.
o desempenho do composto. “A análise interina, “Por causa da maneira como é formulada, a Bu-
planejada desde o início do estudo, destinava-se tantan-DV deveria, teoricamente, produzir uma
a avaliar principalmente a segurança da Butan- proteção mais baixa contra o sorotipo 2. Mesmo as-
tan-DV e se o estudo deveria continuar ou ser sim, ela foi muito boa”, explica o virologista Mau-
interrompido. A conclusão é de que ela parece rício Lacerda Nogueira, da Faculdade de Medicina
ser muito segura e devemos seguir em frente.” de São José do Rio Preto (Famerp), coordenador

O
de um dos centros que participam dos estudos
s especialistas consideram ina- com o composto do Butantan. “Não espero que
dequado comparar a eficácia de essa formulação apresente um desempenho pior
diferentes vacinas. A razão é que contra os sorotipos 3 e 4, mas isso ainda precisa
os testes costumam ser feitos se- ser demonstrado”, reforça o pesquisador.
guindo protocolos distintos, em Aferir o desempenho da Butantan-DV diante
ambientes e populações diversos. das variedades DENV-3 e DENV-4 depende de
Mesmo assim, olhar os dados do efeito protetor um fator incontrolável: que esses dois sorotipos
das vacinas da Sanofi Pasteur e da Takeda pode voltem a circular no país até o final do estudo.
dar uma ideia de como anda o desempenho da Há mais de uma década não se detectam casos
Butantan-DV. As três formulações usam vírus ate- de dengue provocados pelo DENV-3. E o sorotipo
nuados, isto é, que preservam a capacidade de se 4 foi responsável por um único surto epidêmico,
multiplicar, mas não são capazes de causar doença. entre 2012 e 2014. Caso essas variedades não rea-
A Qdenga, da farmacêutica japonesa, é produzida pareçam, a saída pode ser a realização de ensaios
a partir de uma das variedades do vírus, a DENV-2, clínicos em países nos quais os sorotipos 3 e 4 es-
modificada para apresentar as proteínas de super- tejam presentes. Há ainda outras possibilidades,
fície dos quatro sorotipos. Ela reduziu em cerca de que não integram a estratégia do Butantan. Uma
80% o risco de desenvolver dengue na população alternativa, polêmica, embora aceitável do ponto
geral e em 75% nas pessoas nunca expostas ao de vista ético, é repetir o teste realizando infecção
vírus, segundo artigo publicado em novembro de experimental em voluntários usando variedades
2019 no New England Journal of Medicine. Em de DENV-3 e DENV-4 enfraquecidas. Se nada dis-
dezembro de 2022, a Comissão Europeia aprovou so ocorrer, é possível ainda solicitar às agências
a comercialização da vacina, administrada em reguladoras a liberação do uso da Butantan-DV
duas doses, nos países do bloco para ser aplicada apenas contra os sorotipos 1 e 2.
em pessoas a partir de 4 anos de idade. Há tempos se busca um imunizante tetrava-
Já a Dengvaxia, o imunizante da Sanofi Pas- lente, que ofereça boa proteção contra as quatro
teur, é elaborada com o vírus da febre amarela variedades do vírus, porque cada uma delas pode
atenuado e modificado para apresentar as pro- infectar uma mesma pessoa em momentos dife-
teínas dos quatro sorotipos da dengue. Diversos rentes e causar a doença. Um indivíduo picado
ensaios clínicos indicaram que a vacina, aplica- por um mosquito carregando o DENV-1, depois
da em três doses, tem uma eficácia mais baixa. de recuperado, desenvolve imunidade contra es-
A Dengvaxia diminuiu em quase 60% o risco se sorotipo. Mais adiante, porém, ele pode ser
de dengue em quem já tinha sido exposto ao ví- infectado por alguma das outras três variedades Lote do composto
candidato a vacina
rus previamente e em 38% em quem não tinha. e adoecer. Além disso, uma segunda infecção, contra a dengue
Posteriormente, verificou-se que a vacina estava provocada por um sorotipo diferente daquele da usado nos testes
associada a uma frequência maior de internação primeira, tende a ser mais grave. Os anticorpos com seres humanos
hospitalar em crianças com menos de 9 anos. 1
Em 2015, a Dengvaxia foi aprovada para uso em
diferentes países, inclusive no Brasil, para pes-
soas com idades entre 9 e 45 anos que já tiveram
dengue anteriormente.
Apesar de promissores, os dados iniciais de
eficácia da Butantan-DV devem ser vistos com
alguma cautela. A razão é que, por ora, seu efeito
protetor só pôde ser conferido contra duas das
quatro variedades conhecidas do vírus da dengue:
o DENV-1 e o DENV-2. A formulação reduziu, em
média, em 89,5% o risco de desenvolver dengue
provocada pelo sorotipo 1 e em 69,6% a causada
pelo sorotipo 2, segundo os dados divulgados

52 | FEVEREIRO DE 2023
material genético. Funcionou para os sorotipos 1,
3 e 4, mas não para o 2. Os pesquisadores, então,
criaram um vírus híbrido, também chamado de
quimera, que contém a parte interna do DENV-4
e a externa do DENV-2. Os quatro componentes
foram, então, misturados em uma formulação
contra a dengue.
“Os NIH haviam fornecido o protótipo vacinal
e, no Butantan, fizemos todo o desenvolvimento
do produto vacinal, liofilizado e seguindo boas
práticas laboratoriais”, lembra o imunologista
Jorge Kalil, da Universidade de São Paulo (USP),
que dirigiu o instituto de 2011 a 2017. “A versão
fornecida pelos NIH precisava ser mantida à
temperatura de 80 graus Celsius negativos, o que
exige freezers especiais e dificultaria a distribui-
ção. A equipe de desenvolvimento do Butantan
conseguiu aumentar a capacidade de produzir o
vírus, melhorar sua purificação e liofilizar o com-
posto [transformar em pó, mais estável à tempe-
ratura ambiente] sem que perdesse a capacidade
de despertar a produção de anticorpos”, afirma.
Testes anteriores realizados no Brasil já su-
geriam que a Butantan-DV pudesse apresentar
2
boa eficácia. O ensaio clínico de fase 2, desenha-
Imagem de produzidos contra uma variedade do vírus nem do para avaliar a segurança e a imunogenicida-
microscopia eletrônica sempre neutralizam as outras de forma eficien- de em 250 adultos, mostrou que de 76% a 92%
mostra exemplares
do vírus da dengue
te, gerando proteção parcial. Essa imunização dos indivíduos que receberam o composto e não
(círculos escuros) incompleta, segundo algumas hipóteses, poderia haviam sido expostos antes ao vírus passaram a
facilitar a entrada do vírus nas células em que produzir anticorpos contra os quatro sorotipos
se reproduz e levar a uma infecção mais grave. (ver Pesquisa FAPESP nº 291). Entre os que já

O
tinham tido dengue, essa proporção variou de
s dados divulgados em dezembro 77% a 82%, segundo artigo publicado em 2020
sobre a Butantan-DV resultam de na Lancet Infectious Diseases. “Essas pessoas
mais de uma década de trabalho mantinham níveis elevados de anticorpos neu-
e do investimento de ao menos tralizantes”, conta Kalil, coautor do trabalho.
R$ 300 milhões. A verba para a Apesar de as vacinas da Sanofi Pasteur e da
vacina veio do Banco Nacional de Takeda estarem à frente, Fernanda Boulos, do
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Butantan, afirma que os resultados iniciais do
da FAPESP, da Fundação Butantan, do Ministério estudo de fase 3 representam um passo impor-
da Saúde e, mais recentemente, de uma parceria tante, embora ainda seja longo o caminho até a
com o laboratório Merck Sharp & Dohme (MSD). eventual aprovação pela Anvisa, e que é relevan-
A multinacional farmacêutica norte-americana te se chegar a um imunizante brasileiro contra a
trabalha no desenvolvimento de um imunizan- dengue. “Ter uma vacina de produção nacional
te semelhante para ser comercializado fora da garante a soberania ao país e a capacidade de
América Latina (ver Pesquisa FAPESP nº 275). atender mais facilmente ao sistema público de
Há pouco mais de uma década, o Butantan saúde”, afirma. n Ricardo Zorzetto
fechou um acordo de licenciamento com os Ins-
FOTOS 1 INSTITUTO BUTANTAN  2 FREDERICK MURPHY / CDC

titutos Nacionais de Saúde (NIH) dos Estados Projetos


Unidos para usar o protótipo de vacina criado 1. Dengue: Produção de lotes experimentais de uma vacina tetra-
pela equipe de Stephen Whitehead, especialista valente candidata contra dengue (nº 08/50029-7); Modalidade
em imunizantes contra vírus transmitidos por Auxílio à Pesquisa; Programa de Pesquisa para o SUS – Pite; Pes-
quisador responsável Isaías Raw (Instituto Butantan); Investimento
insetos, e desenvolver o produto final, com ex- R$ 1.926.149,72.
clusividade de comercialização no Brasil e nos 2. Contínuo aprimoramento de vacinas: Centro para Vigilância Viral
demais países da América Latina. e Avaliação Sorológica (CeVIVAS) (nº 21/11944-6); Modalidade Cen-
tros de Ciência para o Desenvolvimento; Pesquisadora responsável
No Laboratório de Doenças Infecciosas dos Sandra Coccuzzo Sampaio Vessoni (Instituto Butantan); Investimento
NIH, Whitehead e colaboradores conseguiram R$ 4.983.760,42.
reduzir a capacidade de o vírus da dengue causar Os demais projetos e os artigos científicos consultados para esta
doença eliminando um pequeno trecho de seu reportagem estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 324 | 53


PONTE ENTRE
EXTREMOS
Centro Nacional de Vacinas, em Minas Gerais,
deverá funcionar como elo entre
pesquisa básica de imunobiológicos e testes
diagnósticos e produto final

U
ma cerimônia realizada em “O Brasil tem um ecossistema de vacina ensaios clínicos seguindo os padrões exi-
19 de dezembro no Parque quase completo”, afirma o imunologista gidos pelas agências regulatórias, como a
Tecnológico de Belo Hori- Ricardo Gazzinelli, professor da UFMG Anvisa. Segundo Gazzinelli, no entanto,
zonte (BH-Tec), na capital e coordenador do CTVacinas, embrião essas instalações não têm sido utilizadas
mineira, marcou o início do novo centro. De um lado, as univer- para essa finalidade.
da construção de uma ins- sidades e os institutos de pesquisa têm O CNVacinas será instalado no BH-Tec,
tituição necessária no país: o Centro Na- equipes bem qualificadas para conceber próximo ao campus da UFMG no bairro
cional de Vacinas (CNVacinas). Resultado novas formulações e realizar os testes em da Pampulha. No prédio de cinco anda-
de uma parceria da Universidade Federal células e animais de laboratório. De outro, res e 8,7 mil metros quadrados, haverá
de Minas Gerais (UFMG) com o Minis- alguns grupos brasileiros têm experiência auditórios e laboratórios para o desen-
tério da Ciência, Tecnologia e Inovação na realização de ensaios clínicos de fase volvimento de tecnologias e a realização
(MCTI) e o estado de Minas Gerais, o 2/3 e a indústria farmacêutica consegue de testes de diferentes estágios, além de
centro terá como missão desenvolver produzir e envasar em grande quantidade um setor de controle de qualidade e vali-
imunizantes e produtos imunobiológicos e fazer chegar ao Sistema Único de Saúde, dação de protótipos e um laboratório de
da concepção até a primeira fase de en- que tem capilaridade para a distribuição. segurança de nível 3 para trabalhar com
saio em seres humanos, passando pelos Faltava, no entanto, uma ponte entre os organismos geneticamente modificados.
testes em animais. Se tudo sair como o dois extremos. “Nós não tínhamos a parte Também está prevista a construção de
planejado, o CNVacinas deverá suprir de inovação, que passa da prova de con- uma fábrica de lotes-piloto com capaci-
uma lacuna importante na estrutura de ceito para o ensaio clínico de fase 1. Esse dade de produzir de 300 a 30 mil doses.
inovação farmacêutica nacional e acres- será o nicho do novo centro”, explica o A indústria farmacêutica e pesquisado-
centar ao país capacidades hoje dispo- pesquisador. Recentemente seu grupo res de outras instituições poderão con-
níveis em poucas instituições públicas. completou essa etapa e iniciou os testes tratar os serviços do centro, que deve se
em seres humanos de uma formulação dedicar, ainda, ao desenvolvimento de
candidata a vacina contra a Covid-19, a imunobiológicos e testes de diagnósticos
Técnico realiza SpiN-Tec-MCTI-UFMG (ver Pesquisa para doenças humanas e veterinárias. “O
experimento FAPESP nº 321). centro fará o desenvolvimento e passará
no CTVacinas
Essa carência ficou mais evidente du- a tecnologia para a indústria produzir
rante a pandemia de Covid-19, quando em larga escala”, conta o imunologista.
surgiram várias formulações candidatas “A ideia é ajudar o país a se tornar autos-
a vacina desenvolvidas por pesquisado- suficiente em todas as etapas de desen-
res brasileiros, mas não havia no país fá- volvimento e produção de vacinas”, diz.
bricas disponíveis capazes de produzir A construção e a equipagem do novo
lotes-piloto seguindo as boas práticas de centro devem consumir R$ 80 milhões,
fabricação disponíveis. Hoje o Instituto recursos já disponíveis – são R$ 50 mi-
Butantan, em São Paulo, e o Instituto lhões pagos pelo Fundo Nacional de De-
de Tecnologia em Imunobiológicos da senvolvimento Científico e Tecnológico
Fiocruz, o Bio-Manguinhos, no Rio de e R$ 30 milhões pelo governo de Minas
Janeiro, são dois dos raros centros com Gerais. Em dezembro, máquinas realiza-
CTVACINAS / UFMG

estrutura para fazer a transição dos ex- vam a terraplanagem da área em que será
perimentos com vacinas e imunobioló- erguido o CNVacinas. A previsão é de que
gicos da pesquisa básica para a etapa de fique pronto em 2025. n Ricardo Zorzetto

54 | FEVEREIRO DE 2023
ECOLOGIA

MENOS SAPOS
NA MATA
ATLÂNTICA
Entre o final do século XIX e 2020, populações de
106 espécies de anfíbios do bioma diminuíram de
tamanho em algum momento

O
Meghie Rodrigues

rápido declínio de populações de sapos, rãs e perere-


cas, os chamados anfíbios anuros, é um dos grandes
sinais da perda de biodiversidade pelo mundo. Diver-
RENATO AUGUSTO MARTINS / WIKIMEDIA COMMONS

sos estudos apontavam, até poucos anos atrás, que o


encolhimento de seu hábitat, a poluição ambiental e
os efeitos da radiação ultravioleta do tipo B (UVB)
estavam entre as principais causas para a redução do
tamanho de suas populações. Um trabalho de revisão
publicado na edição de janeiro da revista científica Biological Conservation
sugere que mais fatores ajudariam a explicar o fenômeno, especialmente
Perereca-macaco
na Mata Atlântica, como o aumento da temperatura global e a presença
(Phyllomedusa rohdei),
encontrada no de um patógeno descoberto no final da década de 1990, o chamado fungo
Sudeste brasileiro quitrídio anfíbio, da espécie Batrachochytrium dendrobatidis.

PESQUISA FAPESP 324 | 55


Desde o final do século XIX, com base na coleta de dados de pesquisa-
dores que trabalhavam em campo com anfíbios, foi registrada, ao longo
de cerca de 130 anos, uma diminuição no número de indivíduos de po-
pulações de quase 15% das cerca de 700 espécies conhecidas de anuros
do bioma brasileiro. “A Mata Atlântica é o lugar do planeta com o maior
número de espécies e populações de anuros que sofreram declínio – e os
anfíbios são o grupo de animais mais ameaçados de extinção do mundo”,
conta o zoólogo Luís Felipe Toledo, do Instituto de Biologia da Universi-
dade Estadual de Campinas (IB-Unicamp), autor principal do estudo. A
FAPESP foi um dos financiadores da pesquisa.
O objetivo do trabalho foi fazer um balanço histórico de como o declí-
nio de anfíbios se deu na Mata Atlântica, da qual restam cerca de 10% da
vegetação original, desde que esses animais começaram a ser registrados
no bioma. Para isso, a equipe revisou a literatura científica, buscou dados
em coleções de museus e entrevistou especialistas da área para identificar
quais populações de anfíbios que diminuíram ou desapareceram.
Os registros analisados abarcam os estados do Espírito Santo, Minas Ge-
rais, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul Espécies da Mata Atlântica que
e vão do fim do século XIX até 2020. Dentro desse conjunto de dados, os tiveram suas populações
reduzidas em algum momento
pesquisadores verificaram, em algum momento desse período, o declínio nos últimos 130 anos
de 169 populações de anuros que pertenciam a 106 espécies. No trabalho,
foi considerado que uma mesma espécie tinha mais de uma população
Leptodactylus
quando seus grupos de indivíduos estavam separados por uma distância furnarius
de pelo menos 15 quilômetros.
Um dado preocupante foi que 128 das 169 populações que declinaram
em algum momento não foram redescobertas no mesmo lugar mais tarde
ou não se recuperaram (não voltaram a apresentar a mesma quantidade
de indivíduos). Esse número é o dobro do que aparece em levantamentos
anteriores, dizem os autores do estudo, e pode ainda estar subestimado.
“Muitos declínios recentes na população de anfíbios ainda não foram
documentados porque é preciso um certo tempo para perceber mais cla-
ramente esse fenômeno”, observa Toledo. “Provavelmente
só daqui a uns 10 ou 15 anos vamos saber de verdade que
espécies estão desaparecendo hoje.” Os grupos de anuros
mais afetados pelo encolhimento de suas populações foram
os pertencentes às famílias Cycloramphidae, Hylodidae e
Phyllomedusidae. O estudo constatou que uma população

P
de anfíbios que encolheu demora, em média, 21 anos para
recuperar o número de indivíduos perdidos.

ara o ecólogo Reuber Brandão, da Universi-


dade de Brasília (UnB), que não participou
do estudo, a perda de biodiversidade só
não é considerada maior porque o Brasil
passou a coletar sistematicamente amos-
tras de anfíbios há pouco tempo – outros
Phrynomedusa
países, mais desenvolvidos, fazem isso ro- appendiculata
tineiramente há mais tempo. “Uma grande
perda de biodiversidade ocorreu antes de os pesquisadores Allobates olfersioides
estarem em campo procurando anfíbios”, comenta Brandão. “Devido ao
histórico antigo de desmatamento da Mata Atlântica, se na época de dom
João VI [início do século XIX] já houvesse grandes universidades no país,
com muitos pesquisadores constituindo excelentes coleções biológicas,
teríamos um cenário ainda mais diferente.”
O artigo de revisão mostra que houve um grande declínio de populações
de anfíbios em 1979. Nesse ano, há registros de que apenas 235 sapos, rãs e
pererecas foram capturados na Mata Atlântica e depositados em museus
de zoologia. A título de comparação, o ano com mais amostras registra-
das pelo estudo é 2011, quando quase 4.800 espécimes foram catalogados.

56 | FEVEREIRO DE 2023
Outros fatores também podem afetar o levantamento de populações
de animais e influenciar a percepção que se tem delas, observa a bióloga
Cinthia Brasileiro, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Ela
explica que há algumas espécies que são naturalmente raras na natureza e
outras, denominadas crípticas, que são de difícil detecção por se camufla-
rem muito bem ou serem muito pequenas. “Essas características podem se
confundir com o declínio de espécies, mas o trabalho aborda essa questão.

O
Usar diferentes métodos de detecção também pode diminuir essa limita-
ção”, diz a pesquisadora, que não participou do estudo.

estudo não cobre, especificamente, as causas do declínio


das populações de anfíbios, mas destaca o impacto do
fungo quitrídio anfíbio, descrito em 1999, ao lado das
mudanças climáticas. Esse microrganismo, que altera
o batimento do coração e provoca paradas cardíacas
nos animais infectados, pode se proliferar mais rapida-
mente com o aumento da temperatura. Para Brandão,
a combinação entre a pandemia de fungo quitrídio
anfíbio e eventos climáticos extremos é uma das grandes responsáveis pela
perda de anfíbios. Segundo Brasileiro, essa junção de fatores ficou ainda
FOTOS  WIKIMEDIA COMMONS

mais forte depois da década de 2000, ao lado da perda de hábitat, visto ainda
como o fator mais determinante na mortalidade de anfíbios.
Brandão diz que o estudo é importante porque abre a possibilidade de
replicação da metodologia para a análise de populações de anfíbios em
outros biomas, como o Cerrado e a Amazônia, e mostra a importância do
papel dos museus e das coleções científicas para a conservação da biodiver-
sidade. “Há quem considere a coleta de espécimes um desvio ético e moral
Holoaden bradei
de pesquisadores por achar que a atividade causa dano à biodiversidade”,
explica o pesquisador da UnB. “Na realidade, é exatamente o contrário: por
permitir entender melhor as populações presentes na natureza, as coleções
de animais em museus são parceiras da conservação da biodiversidade.”
A perda de anfíbios pode parecer algo distante do dia a dia das pessoas,
mas tem implicações importantes para a vida em sociedade. Cada espécie
ou população que desaparece ou encolhe dificulta o acesso ao animal que
deveria ser estudado e pode carregar substâncias com potencial de remé-
dios – a pele dos anuros tem elementos que ajudam no desenvolvimento de
fármacos. “Além disso, torna o meio ambiente mais vulnerável. Os anfíbios
comem pragas agrícolas. Sem eles, o agricultor precisa usar mais agrotó-
xicos, o que aumenta o preço dos alimentos e prejudica a saúde humana e
ambiental”, comenta o zoólogo da Unicamp. “Por
serem majoritariamente herbívoros, os girinos
Phrynomedusa
marginata
ajudam a oxigenar lagos e lagoas, evitando a sua
a eutrofização [o crescimento excessivo das plan-
tas em ambientes aquáticos devido ao acúmulo
de nutrientes], fenômeno que afeta a vida de pei-
xes e causa impactos na indústria pesqueira.” n

Projetos
1. O fungo quitrídio no Brasil: Da sua origem às suas consequências
(nº 16/25358-3); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador respon-
sável Luís Felipe Toledo (Unicamp); Investimento R$ 2.853.660,74.
2. Transporte aéreo passivo de um patógeno letal para anfíbios em
áreas elevadas: Aplicações práticas para conservação de UCs do
estado de São Paulo (nº 19/18335-5); Modalidade Auxílio à Pesqui-
sa – Regular; Programa Biota; Pesquisador responsável Luís Felipe
Toledo (Unicamp); Investimento R$ 169.301,68.

Artigo científico
TOLEDO, L. F. et al. A retrospective overview of amphibian declines
in Brazil’s Atlantic Forest. Biological Conservation. v. 227. jan. 2023.

PESQUISA FAPESP 324 | 57


BIOLOGIA

Vista do acampamento
da expedição de
novembro: o mais alto
é o pico do Imeri, com
2.362 metros, norte
do estado do Amazonas,
próximo à fronteira com
a Venezuela

A PRIMEIRA
É
difícil chegar à serra do Imeri, no
norte do Amazonas, próximo à fron-
teira com a Venezuela. Com altitude

EXPEDIÇÃO
de até 2.450 metros (m) e ocupadas
por campos com bromélias, paredões
rochosos e árvores cercadas por ne-
blina, essas montanhas aparentemente nunca

À SERRA tinham sido visitadas por pessoas e devem abrigar


espécies desconhecidas de animais e plantas. Foi
lá que os pesquisadores – 12 do Brasil, um da Es-

DO IMERI
panha e outro da França (ver abaixo) – passaram
11 dias em novembro, em uma expedição científica
realizada em conjunto com o Exército brasileiro.
Os biólogos coletaram centenas de exemplares,
Pesquisadores identificaram animais parte deles representante de espécies aparente-
mente nunca descritas, e reuniram informações
e plantas isolados pela altitude, com as quais pretendem ver os parentescos en-
tre os animais e plantas dessa e de outras áreas
o que pode ajudar a elucidar parentescos altas do Brasil.
entre espécies de áreas altas do norte “Em quase 40 anos de viagens de campo, nunca
encontrei uma proporção tão grande de prováveis
da América do Sul espécies novas”, conta o zoólogo Miguel Trefaut
Rodrigues, da Universidade de São Paulo (USP)
Gilberto Stam e líder da expedição. Em seu laboratório, uma
semana depois de voltar da viagem, ele mostrou Em campo: Ana Paula Carmignotto, da UFSCar,
à reportagem de Pesquisa FAPESP dezenas de sai para checar armadilhas para pequenos mamíferos;
Rafaela Forzza (camiseta branca) e Lúcia Lohmann
potes de vidro, com lagartos e pererecas. Dois (blusa azul), auxiliadas pelo cabo Marcio Junior
lagartos são semelhantes a exemplares do gênero da Silva Garcia, descem por cordas em direção
Riolama coletados em 2017 em uma expedição aos locais de coleta; José Mario Ghellere procura
que ele liderou ao pico da Neblina, 90 quilôme- répteis e anfíbios durante a noite

tros (km) ao sudeste.


A serra do Imeri e o pico da Neblina integra-
vam um extenso planalto formado por rochas
areníticas que ocupava boa parte do chamado
escudo das Guianas antes do soerguimento dos
Andes. Sua erosão, ao longo de milhões de anos,
ajudou a formar os solos das florestas de regiões
baixas adjacentes, deixando muitas espécies de
animais e plantas ilhados nos picos, montanhas
aplainadas ou tabulares, os chamados tepuis,
como o da Neblina, e serras isoladas. O zoólogo
Taran Grant, da USP, coletou no Imeri uma es-
pécie de perereca do gênero Myersiohyla e viu
semelhanças com as do gênero Hyloscirtus, que
vivem nos ambientes montanhosos distantes
mais de mil quilômetros nos Andes da Colômbia.
Os lagartos eram capturados durante o dia, em
armadilhas ou à mão, geralmente entre pedras
ou nas árvores à noite, enquanto dormiam, e os
sapos à noite. Grant, com sua equipe, saía à noi-
te, seguindo as pererecas pelas vocalizações até
vê-las às margens de riachos. “Quatro pererecas
e uma cecília, um tipo de anfíbio, talvez sejam
espécies novas”, avalia Grant.

AMBIENTE INÓSPITO
Poucas espécies se adaptaram ao solo pobre e
pedregoso e às variações diárias médias de 20
graus Celsius (°C) do alto da serra do Imeri. Por
isso, a diversidade lá é bem menor que na floresta
baixa vizinha. São espécies endêmicas, ou seja,
aquelas isoladas que, em muitos casos, só exis-
tem naquela região.
“Encontramos poucas espécies para a maior
parte das famílias de plantas coletadas, indicando
que essas linhagens se diversificaram pouco na
serra ou deram origem a espécies já extintas”,
comenta a botânica Lúcia Lohmann, da USP,
especializada em cipós da família das Bignoniá-
ceas. “Por outro lado, a serra parece representar
o berço de muitos grupos botânicos.” Segundo
ela, é possível que diferentes famílias de plan-
tas com flores e frutos, as angiospermas, tenham
surgido ali e depois chegado à Mata Atlântica e
a porções mais baixas da Amazônia, onde se di-
versificaram bastante.
Um exemplo é Brocchinia hechtioides, uma
HERTON ESCOBAR / USP IMAGENS

bromélia que cobre os solos encharcados da ser-


ra do Imeri, identificada por Rafaela Forzza, do
Jardim Botânico do Rio de Janeiro e participante
da expedição. “É uma espécie de bromélia carní-
vora, com apenas dois registros no país”, diz ela.
“Apesar de termos encontrado uma única espécie

PESQUISA FAPESP 324 | 59


do gênero Brocchinia, é uma espécie abundante
nos campos de altitude da serra e constitui uma
das linhagens mais antigas de Bromeliaceae, fa-
mília de plantas particularmente diversa na Mata
Atlântica.” As 1.200 amostras de 220 espécies de
plantas coletadas serão distribuídas entre espe-
cialistas do Brasil e de outros países que irão co-
laborar na identificação desse material.
“Por serem um grupo que entrou na América
do Sul mais tardiamente que outros de animais
e plantas, considerando o tempo geológico, os 1

pequenos mamíferos foram provavelmente os úl-


timos grupos de animais a ficar isolados no topo
da serra e ali se especializarem”, conta o zoólogo
Alexandre Reis Percequillo, da Escola Superior
de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP.
Em uma avaliação preliminar, o marsupial, as três
espécies de roedores e as três de morcegos que
ele e a bióloga Ana Paula Carmignotto, da Uni-
versidade Federal de São Carlos (UFSCar), cole-
taram são parecidos com os do pico da Neblina.
Além de coletar plantas e animais, alguns pes-
quisadores fizeram experimentos. O zoólogo
Agustin Guerrero, também da USP, colocava rép-
teis e anfíbios em uma caixa acoplada a resistên-
cias térmicas e os aquecia até eles saírem. A tem- 2

peratura de saída indicava locais quentes demais


para a sobrevivência dessas espécies.
“Os répteis e anfíbios do Imeri têm baixa tole-
rância a temperaturas altas, já que todos saíram
da caixa a menos de 34 °C”, observou Guerrero.
“Eles estariam em perigo se seus refúgios aque-

FOTOS  1 A 5 HERTON ESCOBAR / USP IMAGENS 6 ANDRÉ DIB / DIVULGAÇÃO  INFOGRÁFICO  ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP
cessem até essa temperatura.”

A
ntes da expedição, os pesqui-
sadores treinaram embarque e
desembarque do helicóptero por
içamento, para eventuais emer-
gências — que não aconteceram.
Um grupo de 22 militares acom-
panhou a expedição e transportou biólogos e 3

equipamentos em oito viagens de helicóptero.


A expedição desembarcou em uma área de
solo bastante úmido a 1.900 m de altitude. Por
essa razão, o helicóptero que os havia transpor-
tado apoiava de leve no solo para não afundar na
lama. A equipe militar tentou em vão descobrir
um acesso por terra, mas nem os indígenas Yano-
mami, originários da região, sabiam como chegar
ao alto da serra, por causa do relevo íngreme.
No primeiro dia no acampamento, o grupo
abriu três trilhas com cerca de 1 km cada uma,
algumas tão íngremes que só se caminhava com
o apoio de uma corda. Três pesquisadores ma-
chucaram costelas, olhos e ombros e foram tra-
tados pela equipe médica do Exército. A água 4

das chuvas incessantes e a lama invadiam as bar- Depois de coletados, animais como esses roedores (primeira foto
racas. A vida só melhorava um pouco quando o no alto), plantas e amostras de sangue precisam ser preparados
sol aparecia. e encaixotados para serem examinados em detalhes em laboratório

60 | FEVEREIRO DE 2023
PATÓGENOS
No topo da Amazônia O general Sinclair Mayer, chefe do escritório de
Campinas do Sistema Defesa Indústria e Aca-
Mesmo perto do pico da Neblina e dentro de terra demia de Inovação (Sisdia), órgão do Depar-
yanomami, a serra do Imeri era até agora inexplorada tamento de Ciência e Tecnologia do Exército,
um dos organizadores da expedição, ressaltou
a importância de conhecer novas áreas do ter-
VENEZUELA ritório brasileiro por meio de expedições como
essa. Em uma reunião no Instituto de Estudos
Pico da Avançados (IEA) da USP, em 16 de dezembro,
BRASIL Neblina Serra
do Imeri ele destacou os estudos sobre patógenos feitos
pelo parasitologista Bruno Fermino, da USP, que
coletou amostras de sangue de anfíbios, lagartos,
Terra
Indígena aves, mamíferos e insetos hematófagos e afirma
Yanomami
ter encontrado novas espécies de protozoários
Parque
do gênero Trypanosoma.
Nacional Pico
Área da Esses protozoários existem há mais de 100 mi-
da Neblina
expedição lhões de anos, podem ter infectado os dinossauros
e hoje vivem em todas as classes de vertebrados,
de peixes a mamíferos. “Espécies coletadas no
pico da Neblina e outras na Venezuela podem
Rio Neg
ro ser aparentadas, parecidas com os ancestrais de
Santa
Isabel do milhões de anos atrás”, diz Fermino. Em seres
20 km Rio Negro humanos, T. cruzi causa a doença de Chagas e
T. brucei a doença do sono.
FONTE  JORNAL DA USP

COLABORAÇÃO
“A expedição não teria sido possível sem o Exér-
cito. Todos foram muito cuidadosos com nossa
segurança e interessados no que fazíamos”, re-
conhece Rodrigues. O físico Paulo Muzy, do IEA,
contou no encontro de dezembro que a parceria
entre a USP e o Exército começou em 2015, para
viabilizar a viagem ao pico da Neblina. Especia-
lista em aves, o biólogo Luís Fábio Silveira, do
Museu de Zoologia da USP, gostou da parceria:
“Os militares foram muito prestativos, até saíam
à noite para nos ajudar a descer uma escarpa por
corda e fazer coletas”. Silveira coletou 56 exem-
plares de aves aparentemente exclusivas da região.
5 A maioria é pequena, com penas marrons, e vive
em uma região com poucos recursos alimentares.
O próximo objetivo de Rodrigues, aos 69 anos,
é fazer coletas na serra de Tulu-Tuloi, cerca de
200 km ao nordeste do Imeri, também no estado
do Amazonas. “Existe ali outro conjunto de ser-
ras, isoladas do Imeri pelo vale do rio Padauari,
que constituem outro experimento evolutivo
natural”, diz ele. “Como populações da mesma
espécie, quando isoladas, se modificam e podem
originar espécies novas, perguntamo-nos se ali
não haveria outro núcleo de endemismos [espé-
cies únicas] com parentesco no Imeri.” n

6
Projeto
Filogeografia comparada, filogenia, modelagem paleoclimática e
Helicóptero do Exército transportava as equipes taxonomia de répteis e anfíbios neotropicais (no 11/50146-6); Mo-
e os equipamentos ao alto da serra; os pesquisadores dalidade Programa Biota; Pesquisador responsável Miguel Trefaut
e os militares que participaram da expedição (acima) Rodrigues; Investimento R$ 6.183.134,96.

PESQUISA FAPESP 324 | 61


ENERGIA

USINAS SOLARES
FLUTUANTES

GERARD JULIEN  / AFP VIA GETTY IMAGES

62 | FEVEREIRO DE 2023
Plantas instaladas em lagos e represas são alternativa
sustentável para elevar a geração de eletricidade no país

Domingos Zaparolli

A
capacidade instalada de geração O outro trabalho, que teve como enfoque a ca-
de energia por painéis solares fo- pacidade dos SFVF em evitar a evaporação de
tovoltaicos responde por cerca de água em açudes do semiárido, foi apresentado
11% da matriz elétrica brasileira. inicialmente como tese de doutorado defendida
Esse percentual tem grande po- no PPE pela engenheira agrícola Mariana Padilha
tencial para crescer com a insta- Campos Lopes, sob a orientação de Marcos Au-
lação desses sistemas em telhados, rélio Vasconcelos Freitas e David Castelo Branco,
galpões, terrenos e plataformas ambos da Coppe. Depois, um artigo com os resul-
sobre superfícies aquáticas. Es- tados da tese foi divulgado no Journal of Cleaner
tudo realizado no país mostra que a cobertura Production, em novembro de 2020.
de apenas 1% dos corpos d’água de represas “Qualquer tipo de cobertura sobre a água inter-
artificiais com usinas solares instaladas sobre fere nas variáveis que geram a evaporação, como
bases flutuantes permitiria ao Brasil gerar ener- a incidência direta de radiação solar sobre a su-
gia elétrica limpa e renovável suficiente para perfície, a velocidade do vento e a temperatura
atender 16% do consumo de eletricidade do do ambiente”, explica Lopes. “Os SFVF, além de
país. É o equivalente ao abastecimento pro- reduzirem a evaporação, geram energia que po-
porcionado pela usina hidrelétrica de Itaipu, de ser utilizada para alimentar bombas de água
a segunda maior do mundo. e sistemas de irrigação ou mesmo para inserção
A geração elétrica não é o único benefício pro- da energia na rede de distribuição.”
porcionado pelos chamados sistemas fotovoltai- O trabalho da pesquisadora usou como estudo
cos flutuantes, conhecidos entre especialistas de caso os 618 açudes da bacia Apodi-Mossoró,
pela sigla SFVF. Eles também são capazes de no Rio Grande do Norte, onde em média 45% da
reduzir a evaporação dos reservatórios de água, capacidade volumétrica dos reservatórios é eva-
tornando-se um reforço hídrico para localidades porada anualmente. Isso faz com que os açudes
que não têm segurança no abastecimento, como recorrentemente atinjam volumes considerados
a região do semiárido brasileiro. críticos, obrigando os gestores públicos a trazer
As constatações foram feitas pela equipe do água de outras localidades para o abastecimento
Programa de Planejamento Energético (PPE) do local com caminhões-pipa.
Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-gradua- A instalação de SFVF apenas sobre a área ocu-
ção e Pesquisa de Engenharia, da Universidade pada pelo volume morto dos açudes da bacia do
Federal do Rio de Janeiro (Coppe-UFRJ). Dois Apodi-Mossoró seria suficiente suprir a demanda
artigos com os resultados dos trabalhos foram de energia elétrica de 1,33 milhão de residências,
Painéis fotovoltaicos publicados em revistas científicas internacionais. ou seja, abasteceria com folga toda a população
da maior usina solar
flutuante da Europa, em
O estudo sobre o potencial técnico de geração de do Rio Grande do Norte, que soma 1,23 milhão de
operação desde 2019 eletricidade por meio de SFVF saiu na edição de moradias. Volume morto é a reserva de água mais
em Piolenc, sul da França janeiro de 2022 da Renewable Energy. profunda, que fica abaixo dos canos de captação.

PESQUISA FAPESP 324 | 63


O estudo apontou que a água poupada anualmen-
O POTENCIAL te somaria 20,6 milhões de metros cúbicos (m³),

REGIONAL DE GERAÇÃO algo como três vezes o volume da lagoa Rodrigo


de Freitas, no Rio de Janeiro. Se as usinas solares
Considerando a cobertura de 1% ocupassem 50% do total da área dos açudes da
bacia Apodi-Mossoró, a geração de energia seria
dos reservatórios de água artificiais
suficiente para abastecer 5 milhões de residências
e a água preservada encheria 13 vezes a lagoa Ro-

A
drigo de Freitas.
23,3% 19,7%
Sudeste Norte tecnologia empregada nos SFVF não
se diferencia da utilizada nas usinas
em solo ou nos sistemas instalados
sobre telhados e galpões, que se tor-
naram comuns em todo o país, a não
18,8%
43.256 MWp*TOTAL
Centro-Oeste
ser pela necessidade de montar os pai-
néis sobre uma plataforma flutuante e
fixá-la com um sistema de ancoragem
(ver infográfico abaixo). A Empresa de
Pesquisa Energética (EPE) do Ministério de Mi-
nas e Energia (MME) publicou em 2020 uma nota
24,5% 13,7% técnica, “Expansão da geração – Solar fotovoltaica
Nordeste Sul
flutuante”, na qual calcula que os flutuadores e a
ancoragem podem representar um acréscimo de
25% aos custos de instalação de uma usina fotovol-
*MEGAWATT-PICO. WATT-PICO É A UNIDADE DE MEDIDA USADA PARA taica em solo. Quando levados em conta todos os
INFORMAR A POTÊNCIA MÁXIMA FORNECIDA PELOS PAINÉIS FOTOVOLTAICOS,
NOS MOMENTOS DE MAIS ALTA INSOLAÇÃO fatores envolvidos – entre eles o valor de aquisição
FONTE  LOPES, M. P. C. ET AL. RENEWABLE ENERGY. 18 JAN. 2022 e preparo de um terreno para a instalação da usina
em solo –, a EPE calcula que os sistemas flutuantes
tenham, em média, um custo 18% superior.
Na mesma nota técnica, a EPE também infor-
TECNOLOGIAS SIMILARES ma que os sistemas flutuantes podem ser mais

Flutuadores e sistema de ancoragem diferenciam


as centrais sobre a água das usinas terrestres

1. Módulos 2. Plataformas flutuantes 3. Ancoragem e amarração


fotovoltaicos Estrutura de suporte para instalação Para fixação da plataforma flutuante
Captam a irradiação dos módulos proporciona nas margens e/ou no fundo do corpo
solar e convertem estabilidade e flutuabilidade. d’água. Precisa resistir aos esforços
em energia elétrica Em alguns casos, tem suporte para causados pelo vento e pela variação
os cabos elétricos e inversores do nível d’água

64 | FEVEREIRO DE 2023
eficientes na geração de energia. As células de lação. Esse dado faz parte de compilação. feita
silício dos painéis fotovoltaicos perdem efi- pelos autores do artigo publicado na Renewable
ciência com o aumento da temperatura. A ins- Energy. Os países onde o uso da tecnologia é mais
talação dos módulos sobre a água permite uma disseminado são Japão e Coreia do Sul, devido à
temperatura operacional entre 5% e 20% infe- baixa disponibilidade de áreas em solo para a ins-
rior ao observado em solo, conforme o clima de talação de usinas, e China, que usa o sistema flu-
cada região. O volume do ganho de eficiência, tuante principalmente sobre lagos de mineração.
porém, não é consenso entre especialistas in- Em países como Austrália, Espanha, Índia, Irã,
ternacionais do tema. Estudos experimentais Jordânia, Chile e Estados Unidos, o investimento
mostram resultados distintos, que vão de bene- no sistema privilegia regiões áridas e semiáridas
fícios inexpressivos até resultados superiores a com o objetivo de reduzir a evaporação de água
20%. As estimativas mais usuais são de ganhos e aumentar a segurança hídrica. Portugal é outro

O
entre 9% e 15%. país onde o sistema já é empregado.
O geógrafo Freitas, da Coppe, avalia que o cus-
to inicial de investimento retarda o avanço mais Brasil apresenta potencial promissor
rápido dos SFVF no país. “Usinas flutuantes têm para a instalação de SFVF, segun-
grande potencial, mas elas ainda não são a bola do Lopes, em razão da variedade
da vez entre os investidores”, afirma. “O Brasil e quantidade de corpos d’água em
tem muita área disponível para a implementação seu território. São cerca de 241 mil
INFOGRÁFICOS  ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

de centrais fotovoltaicas em solo, uma operação corpos d’água catalogados pela ANA,
já conhecida e testada.” Outro obstáculo é que entre reservatórios hidrelétricos,
ainda não há estudos no Brasil sobre o impac- lagos, lagoas, açudes, represas, rios
to dos SFVF no ambiente aquático nem mesmo e bacias. Os corpos d’água artificiais,
procedimentos estabelecidos de licenciamentos considerados no estudo do Coppe, somam 174,5
e autorizações da Agência Nacional de Águas mil, entre represas de hidrelétricas, tanques de
(ANA) para o uso dos espelhos d’água com a fi- pequenas hidrelétricas e outros reservatórios
nalidade de geração de energia. de água para irrigação e consumo humano. Co-
No mundo, a geração elétrica proveniente de mo não são reservas naturais, mas criadas pelo
SFVF alcançou em 2020 2,6 gigawatts-pico de homem, seu aproveitamento apresenta menor
potência (GWp) — essa medida representa o pi- impacto ambiental.
co de produção, ou seja, a geração máxima de O estudo considerou que a instalação de pai-
energia das usinas no momento de pico de inso- néis solares sobre 1% da superfície dos corpos

4. Cabos elétricos
Responsáveis pela
transmissão da
energia gerada
Subestação Linhas de distribuição

FONTE  EMPRESA DE PESQUISA ENERGÉTICA (EPE)

PESQUISA FAPESP 324 | 65


d’água artificiais, o que corresponderia a uma
A EXPERIÊNCIA BRASILEIRA área de 45,5 mil quilômetros quadrados (km²),
geraria 79.377 gigawatts hora (GWh) por ano de
Primeira usina flutuante comercial no país eletricidade oriundos de uma potência instalada
será construída em Fernando de Noronha de 43.276 megawatts-pico (MWp). Representaria
cerca de 12,5% da geração total de eletricidade
O Brasil tem apenas usinas fotovoltaicas flutuantes no Brasil, enquanto Itaipu responde por 12,7%.
experimentais. A Centrais Elétricas Brasileiras (Eletrobras) A energia gerada com os SFVF seria suficiente

O
mantém uma geração de 5 megawatts (MW) na usina para abastecer cerca de 41 milhões de domicílios.
hidrelétrica de Balbina, no Amazonas, e uma geração de
1 MW no reservatório da hidrelétrica de Sobradinho, na Bahia. s reservatórios das usinas hidre-
A Companhia de Energia de São Paulo (Cesp) produz létricas são os principais espelhos
50 quilowatts (kW) na usina de Rosana, em São Paulo. d’água artificiais disponíveis para a
No arquipélago de Fernando de Noronha, em Pernambuco, instalação de usinas fotovoltaicas. De
o grupo Neoenergia e a Companhia Pernambucana de acordo com o estudo, sozinhos eles
Saneamento (Compesa) anunciaram em outubro do ano respondem por 73% do potencial to-
passado a construção de uma usina fotovoltaica flutuante no tal do país. Freitas ressalta que essas
espelho d’água do açude do Xaréu, uma área de 4.900 m2. represas têm uma vantagem compe-
Estima-se que o sistema terá uma geração anual de 1.238 titiva importante para projetos SFVF,
megawatt-hora (MWh) e será responsável por suprir mais de uma vez que a geração conjunta hidrelétrica e
40% do consumo de energia na ilha. A troca de geração solar poderia proporcionar sinergias, como o
térmica por solar reduzirá em 1,6 mil toneladas de dióxido de uso conjunto da rede de transmissão de energia.
carbono (CO2) emitido anualmente em Fernando de Noronha. Para Rodrigo Sauaia, presidente-executivo da
O investimento é estimado em R$ 10 milhões. Associação Brasileira de Energia Solar Fotovol-
De acordo com Ana Christina Mascarenhas, taica (Absolar), as usinas flutuantes têm carac-
superintendente de eficiência energética da Neoenergia, terísticas interessantes, sendo as principais o
a instalação da usina sobre o açude do Xaréu, que responde aproveitamento de áreas alagadas, reduzindo a
por cerca de 25% dá água distribuída na ilha, é importante demanda por terrenos, a maior eficiência na gera-
porque há uma limitação de terrenos para a instalação ção e a redução da evaporação nos reservatórios.
de sistemas fotovoltaicos em Fernando de Noronha. “Esse conjunto de atrativos desperta o interesse
“A possibilidade de evitar a evaporação e reter água no dos investidores. Temos vários associados bus-
reservatório também influenciou a decisão, apesar de não cando informações”, afirma.
ter sido o motivo principal”, afirma Mascarenhas. Segundo Sauaia, o que faltava para os SFVF era
uma regulamentação adequada, que veio com a
Uma das usinas flutuantes experimentais brasileiras, Lei nº 14.300, de janeiro de 2022. Entre outras
no reservatório da hidrelétrica de Sobradinho, na Bahia definições, essa legislação classificou as usinas
solares flutuantes na mesma categoria das mi-
cro e minigeradoras de energia (até 5 MW) e
estendeu a elas os benefícios fiscais do Regime
Especial de Incentivos para o Desenvolvimento
da Infraestrutura (Reidi).
Em novembro, a capacidade de geração de
energia solar no Brasil alcançou 22 gigawatts
(GW) na soma das usinas de grande porte em
solo, responsáveis por 7 GW, e dos sistemas de
geração própria em telhados, sobre galpões e em
pequenos terrenos, que respondem por 15 GW.
“A geração solar é a que mais cresce no país e as
usinas fotovoltaicas flutuantes apresentam um
grande potencial para expandir ainda mais a ge-
ração de energia renovável”, diz Sauaia. n

Artigos científicos
LOPES, M. P. C. et al. Technical potential of floating photovoltaic
ELETROBRAS-CHESF

systems on artificial water bodies in Brazil. Renewable Energy. 18


jan. 2022.
LOPES, M. P. C. et al. Water-energy nexus: Floating photovoltaic
systems promoting water security and energy generation in the
semiarid region of Brazil. Journal of Cleaner Production. 10 nov. 2020.

66 | FEVEREIRO DE 2023
Casa projetada pela
Archflex: ferramenta
da startup informa
a pegada de carbono
do empreendimento

E
ARQUITETURA stabelecer previamente o custo finan-
ceiro e o impacto ambiental de uma

PROJETOS
obra não é tarefa simples para cons-
trutores, engenheiros e arquitetos.
Fazer esses cálculos em tempo real,
simultaneamente ao desenvolvimento

SOB
do projeto arquitetônico, e ainda recalcular os
custos de acordo com mudanças na concepção da
obra ou no material empregado, seja aço, madeira

MEDIDA
ou concreto, é a proposta de um software que está
sendo desenvolvido pela startup paulista Archflex,
fundada pelos arquitetos Taís de Moraes Alves e
Fulvio Ramos Roxo.
O software, inédito no mundo, é voltado para a
construção modular, método construtivo onde as
Software permite definir durante partes da edificação (ou módulos) são padroniza-
das e produzidas em fábricas e apenas montadas
a concepção do empreendimento no local da obra, dando mais agilidade ao proces-
so e reduzindo desperdícios. O desenvolvimento
custos financeiros e impacto ambiental do programa, ainda em fase de protótipo, recebeu
de obras de construção modular apoio do Programa Pesquisa Inovativa em Peque-
nas Empresas (Pipe), da FAPESP.
Com a ferramenta, arquitetos e engenheiros res-
ponsáveis pela empreitada podem criar o projeto
arquitetônico acessando uma biblioteca de com-
ponentes disponibilizada em nuvem e atualizada
em tempo real pelos fornecedores. A plataforma
também permite o acesso remoto do cliente final,
que poderá aprovar, rejeitar ou sugerir modifi-
cações em cada etapa do projeto e saber imedia-
tamente o custo e a pegada de carbono de cada
mudança sugerida.
ARCHFLEX

Embora Alves e Roxo planejem apresentar o


software ainda no primeiro semestre de 2023, o

PESQUISA FAPESP 324 | 67


sistema da construtech – empresa de base tec- plataforma da Archflex pode impulsionar a cons-
nológica que atua na área da construção civil – trução modular no país ao permitir que o usuário
já desperta interesse no Brasil e no exterior. Em final participe da concepção do projeto.
2022, a proposta levou Alves a ser uma das ven- O software da construtech pressupõe a possibi-
cedoras na categoria Profissionais Iniciantes lidade de combinação de tecnologias e materiais
da competição global Falling Walls Lab Brazil de diferentes fornecedores. Para isso, as empresas
(FWL Brazil), etapa local do concurso de ideias precisam adotar padrões abertos e compatíveis
multidisciplinares de alto potencial de impacto para que seus componentes modulares sejam in-
ambiental e social, promovido anualmente pelo tercambiáveis, ou seja, as peças precisam seguir
Centro Alemão de Ciência e Inovação (DWIH), um padrão de tamanho e formato e um mesmo
de São Paulo, e pela Falling Walls Foundation. sistema de conexão, possibilitando, por exemplo,
Em novembro do ano passado, após fazer um que uma laje de um fornecedor se encaixe per-
pitch do software – uma breve apresentação do feitamente em uma viga de outro e no painel de
conceito, na linguagem das startups – na final um terceiro. Da mesma forma, janelas, portas ou
do concurso em Berlim, a arquiteta participou telhados podem vir de qualquer fabricante con-
de rodadas de conversas com representantes de forme a preferência do consumidor.
universidades, centros de pesquisas e fornecedo- Levar as empresas a convergir para padrões uni-
res de módulos construtivos da Alemanha, Suí- versais é um dos principais desafios para o sucesso
ça, Áustria e Espanha, países onde a construção da proposta da Archflex. No Brasil, muitos fabri-
modular é muito desenvolvida. cantes de módulos optam por soluções proprietá-

S
rias, sistema no qual fornecem um combo comple-
egundo a arquiteta, a interface ami- to, incluindo o projeto, todos os componentes e a Os projetos podem
gável do novo software foi uma das execução da obra. “É a estratégia predominante, ser acompanhados
em tempo real
características que despertaram o mas essa é uma cultura que está em transformação. pelo cliente na
interesse internacional. “É um pro- Cada vez mais empresas, principalmente grandes tela do celular e do
grama muito fácil de ser usado. É fornecedores de insumos, têm interesse em padrões computador
intuitivo e imersivo, não demanda abertos que possam disseminar a construção mo-
um treinamento específico”, descreve Alves. Tam- dular”, observa Roxo. “Já estabelecemos conver-
bém causou interesse o fato de o software ter sido sas com vários interessados nos padrões abertos.”
criado utilizando técnicas de gamificação – em O núcleo das discussões de uma estratégia na-
outras palavras, foi inspirado na construção de cional de padronização aberta dos componentes
programas de jogos on-line, que são elaborados ocorre no âmbito da Aliança da Construção Mo-
de forma a permitir ao usuário aprender a ma- dular, instituição que reúne 43 participantes en-
nipular as ferramentas computacionais apenas tre empresas das indústrias do aço e de painéis
com a prática do uso. de madeira, concreteiras (firmas que produzem
Além disso, a ferramenta disponibiliza a ren- e vendem concreto), escritórios de engenharia e
derização de imagens em tempo real do proje- de arquitetura e startups. A Aliança é ligada ao
to. Ou seja, são criadas imagens tridimensionais Centro de Inovação em Construção Sustentá-
realistas da obra à medida que o projeto é cria-
do, reproduzindo os efeitos de luz e sombras e
permitindo, por exemplo, prever o efeito da luz
solar em uma janela e a iluminação que deverá
ser gerada no ambiente. “Para um leigo, é muito
mais fácil entender o projeto renderizado do que
observar um desenho técnico”, compara o arqui-
teto Milton Braga, da Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-
-USP) e consultor da Archflex.

PADRÕES UNIVERSAIS
No Brasil, o método construtivo predominante
é o tradicional, em concreto armado e alvenaria,
e os sistemas modulares estão restritos a nichos
de mercado. Um exemplo comum são as casas de
alto padrão construídas em módulos de madei-
ra e geralmente erguidas na praia ou no campo.
Edificações em módulos de aço e concreto são
mais empregadas em empreendimentos comer-
ciais, mas também são minoritárias. Para Braga, a

68 | FEVEREIRO DE 2023
A ideia de um marketplace – ou shopping cen-
ter virtual – da construção modular, permitindo
ao usuário do software concluir a aprovação do
projeto com a aquisição on-line dos componen-
tes modulares, é uma possibilidade de modelo
de negócio em estudo pelos empreendedores
da Archflex. Se for adiante, a construtech não
precisará cobrar pelo uso do software, e seria
remunerada pelas vendas no shopping on-line.
“É onde planejamos chegar. Queremos estabe-
lecer parcerias com as empresas que integram a
Aliança da Construção Modular para compor a
configuração inicial do marketplace. Depois pre-
tendemos abranger fornecedores de tintas, peças
de acabamento e paisagismo”, antecipa Roxo.

O
utro desafio que ainda precisa ser
superado pela startup é aperfei-
çoar o cálculo da pegada de car-
bono dos projetos desenvolvidos
na ferramenta. O primeiro passo
será automatizar a integração do
software a bases de dados confiáveis, como é o
caso do Sistema de Informação do Desempenho
Ambiental da Construção (Sidac), que permite
calcular indicadores de desempenho ambiental
de componentes com base em dados brasileiros
e nos conceitos da Avaliação do Ciclo de Vida
(ACV). No futuro, o software deverá incluir dados
de georreferenciamento de fornecedores e obras,
de modo a contabilizar as emissões associadas ao
transporte de insumos no cálculo do balanço de
carbono do projeto.
O propósito original que levou à constituição
da Archflex era desenvolver um sistema cons-
trutivo modular em madeira industrializada pa-
ra edificações de até cinco andares, acessível à
classe média urbana, e para empreendimentos
comerciais, uma ideia que continua no horizonte
da construtech, mas sem previsão de lançamen-
A startup pretende vel (Cics) da Escola Politécnica (Poli) da USP, à to comercial.
criar um marketplace aceleradora de startups HousingPact e ao Hub O software ganhou importância no plano de
(acima) com todos
os componentes usados
de Inovação e Construção Digital (Hubic), uma desenvolvimento da construtech após os sócios
em suas construções iniciativa da USP e da Associação Brasileira de Alves e Roxo participarem do Programa de Trei-
modulares Cimento Portland (ABCP). namento em Empreendedorismo de Alta Tecno-
“As empresas do setor industrial precisam de logia (Pipe-Empreendedor) da FAPESP e, tam-
escala para ser viáveis. Um sistema com padrões bém, em razão de conversas com profissionais
abertos, em que os componentes produzidos por e fornecedores. “Percebemos que a necessidade
diferentes companhias possam ser intercambiá- real da sociedade não era de mais uma fábrica
veis, é a única estratégia com potencial de impul- de módulos construtivos, mas de uma forma de
sionar a cadeia produtiva brasileira da construção integrar os módulos já existentes e, assim, ex-
modular”, destaca o engenheiro civil Vanderley pandir o mercado”, contextualiza Roxo. A cons-
John, membro da coordenação do Cics. “Nossa tatação levou à convicção da necessidade de pa-
proposta é que a Aliança da Construção Modular drões abertos de módulos e à ideia do software
busque desenvolver padrões abertos. Nesse cená- para viabilizar o intercâmbio de tecnologias e
rio, o software da Archflex pode ser o grande faci- fornecedores. n Domingos Zaparolli
FOTOS ARCHFLEX

litador do desenvolvimento da construção modular


brasileira, principalmente se a plataforma evoluir Os projetos consultados para esta reportagem estão listados na
para um marketplace”, diz o professor da Poli. versão on-line.

PESQUISA FAPESP 324 | 69


ENGENHARIA BIOMÉDICA

A
IDADE
DOS
PREMATUROS

Sem ultrassom
obstétrico no início
da gravidez, a idade
gestacional de metade
dos recém-nascidos
no Brasil é imprecisa
Aparelho estima idade gestacional
de bebês e pode ajudar nos cuidados com
aqueles que nascem antes do tempo

Suzel Tunes

N
esse exato momento, um bebê pe- cerca de 15 centímetros de comprimento, estima
queno, com peso menor do que o a idade ao nascer pela análise da maturidade da
esperado, pode estar nascendo em pe­le do recém-nascido. Ele faz isso emitindo um
algum lugar do Brasil. Talvez ele feixe de luz de LED (diodo emissor de luz) na so-
seja um dos 40 prematuros que la do pé do bebê. A medida de reflexão da luz –
vêm ao mundo por hora no país. quando ela retorna para o dispositivo – revela a
Ou não, pois nem sempre é fácil saber se aquela idade da criança (ver infográfico na página 72).
criança de baixo peso nasceu a termo ou é pre- “Quanto mais prematuro ela for, mais trans-
matura, ou seja, com menos de 37 semanas de parente será a pele. Com isso, grande parte da
gestação. Cerca de metade dos recém-nascidos radiação será absorvida e haverá pouca reflexão.
no Brasil tem idade gestacional imprecisa em Com maior tempo de gestação, a pele se torna
razão da não realização de um ultrassom obsté- mais espessa, refletindo mais luz, que é captada
trico nos três primeiros meses de gravidez (ver pelo sensor do aparelho”, explica Reis. “Testamos
Pesquisa FAPESP nº 271). Quando essa dúvida luzes de vários comprimentos de onda e optamos
surge, o neonato corre risco, pois se for prematuro pela infravermelha, que penetra mais na pele”,
precisará de cuidados especiais imediatos para acrescenta Guimarães, destacando que a inci-
evitar intercorrências que podem lhe custar a dência da luz e sua absorção pela pele não traz
vida ou trazer prejuízos permanentes à saúde. nenhum prejuízo à saúde dos recém-nascidos.
“A idade gestacional ao nascimento é a in- A informação sobre a maturidade da pele, jun-
formação mais importante para determinar o tamente com o peso do bebê, alimenta um softwa-
prognóstico de um recém-nascido, sua chance re dotado de algoritmos de inteligência artificial
de sobreviver e os cuidados de que necessitará e permite ao equipamento mensurar a idade ges-
nas primeiras horas de vida”, destaca a gineco- tacional. O aparelho também considera o peso do
logista Zilma Reis, da Faculdade de Medicina da recém-nascido e se a gestante utilizou corticoi-
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). des durante o pré-natal, pois esse medicamento
“Na ausência de informação confiável, a prema- acelera a maturação do feto – a informação sobre
turidade pode ser negligenciada e, com isso, a o uso de corticoides é colhida com a gestante e
probabilidade de sobrevida se reduz”, comple- inserida no programa do Preemie-Test. “Não há
menta a médica, que também coordena o Centro tecnologia similar no mercado para identificar
de Informática em Saúde da faculdade mineira. a cronologia da gestação”, diz a pesquisadora.
Foi para oferecer uma resposta rápida e segura O Preemie-Test é fabricado pela BirthTech,
a essa situação, sobretudo em localidades carentes startup criada por Guimarães, que fez um acordo
LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP

de profissionais especializados, que Reis juntou de licenciamento com a UFMG. Com sede em Be-
forças com o físico Rodney Guimarães e um grupo lo Horizonte, tem filial no pequeno município de
de pesquisadores da UFMG das áreas de neonato- Figueiró dos Vinhos, na região central de Portu-
logia e obstetrícia, enfermagem, fisioterapia, físi- gal, onde o físico reside e produz o equipamento.
ca, ciência da computação e de dados. O resultado “Optei por Portugal pelas facilidades burocráticas
de sete anos de trabalho transformou-se em um no processo de fabricação e exportação. Recebe-
produto e começou a ser vendido em outubro do mos apoio financeiro do Fundo Social Europeu
ano passado. Batizado de Preemie-Test, o dispo- para contratação de funcionários. Com esses re-
sitivo, parecido com um termômetro digital, com cursos, pagamos 40% do salário de nossos quatro

PESQUISA FAPESP 324 | 71


Semanas de gestação

Prematuridade funcionários, entre eles um engenheiro, todos recursos foram utilizados para fazer a prova de
em números portugueses”, relata Guimarães. conceito, correlacionando os dados de reflexão
Da Europa, o Preemie-Test foi exportado no da luz com a maturidade da pele. Os resultados
Criança nascida primeiro mês de vendas para Índia, Costa Rica, dessa pesquisa foram publicados na revista cien-
40 a termo de 37 a 41
semanas de gestação
Guatemala, México, Colômbia e Trinidad e Toba- tífica PLOS ONE, em 2017. Cerca de um ano e
go. No total, foram comercializadas 20 unidades. meio depois, a tecnologia e o dispositivo foram
A startup ainda não tem clientes em Portugal e no patenteados em nome da UFMG e da Fapemig.
Brasil. “Obtivemos em novembro autorização da Em 2018, o projeto foi selecionado pelo pro-
Prematuro moderado: Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) grama Grand Challenges Canada, financiado pelo
de 32 a 36 semanas para vender o dispositivo no país”, diz Guimarães. governo canadense. Com o apoio, o equipamento

O
foi usado na avaliação de 305 recém-nascidos com
dispositivo pioneiro nasceu da peso inferior a 2,5 quilos no Brasil e em Moçambi-
união de saberes da ginecologista que entre junho de 2020 e abril de 2021. “Dificul-
Muito prematuro: e obstetra que largou um curso de dades são oportunidades”, pontua a pesquisadora
30 de 28 a 31 semanas engenharia civil pela metade para da UFMG. “Tendo em vista a escassez de recursos
fazer novo vestibular para medi- para pesquisa, passamos a focar em editais inter-
cina e do doutor em astrofísica nacionais. Apostamos em parcerias para além do
Prematuro extremo: que, encantado pela área da saúde, realizou um Brasil, a fim de ampliar os resultados e captar mais
menos de 28 semanas pós-doutorado em biomedicina. “Nos conhece- recursos.” A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz),
mos quando a Zilma participou da banca de um de que tem escritório em Maputo, capital moçambi-
meus alunos de mestrado que, em sua pesquisa, cana, também participou do teste, cujos resultados
havia criado um oxímetro”, lembra Guimarães, estão sendo organizados para publicação.
então professor do Senai Cimatec, na Bahia. O Segundo Reis, ensaios de eficácia do aparelho
1 em cada 10 princípio do oxímetro, aparelho que estima o
nível de oxigênio no sangue por meio de feixes
tiveram uma precisão superior a 90%. Em um
dos estudos, realizado com 781 recém-nascidos
20 bebês nasce antes
de 37 semanas de de luz que atravessam a pele, foi a inspiração de cinco hospitais brasileiros entre 2019 e 2021,
gestação anualmente para o Preemie-Test. o dispositivo discriminou corretamente os bebês
no mundo
O sistema voltado a bebês prematuros só se a termo e os prematuros, com um índice de acer-
concretizou graças ao apoio financeiro da Fun- to de 91%. Um artigo foi publicado no Journal of
Cerca de dação Bill & Melinda Gates, em 2015, que teve Medical Internet Research, em setembro de 2022.
15 milhões contrapartida da Fundação de Amparo à Pesqui-
sa do Estado de Minas Gerais (Fapemig). “O in-
Em 2020, nova patente com aprimoramentos da
tecnologia foi depositada em nome da UFMG, Fa-
de bebês prematuros
nascem no planeta vestimento de Bill e Melinda Gates foi essencial pemig e BirthTech. A novidade envolve uma redu-
por ano para viabilizar o projeto. Eles acreditaram em ção do formato original do aparelho e o acréscimo
um resumo de duas páginas”, conta Rodney. Os de uma nova função associada à saúde pulmonar
10
Complicações da
prematuridade são a

FOTO  DANIEL MANSUR / REVISTA PESQUISA FAPESP  INFOGRÁFICOS  ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP
1ª causa de morte
entre menores de 5 anos Como é calculada a idade gestacional
Brasil ocupa a Dispositivo é não invasivo e pouco maior do que um termômetro
10ª posição
entre os países com 1. Dotado de emissores 2. Prematuros têm a pele
maiores taxas de e receptores de luz em mais fina e boa parte da luz
partos prematuros sua ponta, o aparelho mede penetra nela, havendo pouca
0 a maturidade da pele do reflexão. Em bebês que
FONTES ORGANIZAÇÃO recém-nascido por meio de nascem a termo, a pele é mais
MUNDIAL DA SAÚDE E
FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ reflexão da luz na sola do pé espessa e mais luz é refletida

Dispositivo

Pele
3. Com apoio de
inteligência artificial,
indicadores da maturidade
da pele são processados
com o peso ao nascer
e o uso de corticoides pela
mãe na gravidez para
avaliar a idade gestacional
Dispositivo semelhante
a um termômetro
estima a idade ao
nascer pela análise
da maturidade da pele
do recém-nascido

do recém-nascido. “A versão inicial só oferecia a po, o ultrassom é o método que permite calcular
datação da gravidez. A segunda versão traz um a idade gestacional de forma mais acurada, con-
prognóstico de complicações pulmonares relacio- siderado padrão-ouro, com uma margem de erro
nadas à maturidade gestacional”, informa Reis. de até cinco dias, explica a pediatra.
Ela explica que existe uma relação direta entre No processo de validação do Preemie-Test, os
a maturidade pulmonar e a capacidade da pele de pesquisadores da UFMG chegaram a resultados
reter calor, ambas dependentes do tempo de vida muito próximos aos do ultrassom feito no primei-
intrauterina. Os ensaios clínicos que comprovam ro trimestre de gestação. “Na média, a diferença
essa sincronia entre o pulmão e a pele, últimos das idades gestacionais obtidas pelo teste foi de
órgãos do corpo humano a amadurecer, alimen- 1,3 dia, para menos, em relação aos cálculos do
tam o algoritmo e permitem estimar o risco de ultrassom”, afirma Reis.
que o bebê sofra dificuldades respiratórias que Na ausência do ultrassom, a alternativa é sub-
venham a exigir cuidados intensivos. meter o recém-nascido a exames físicos, que de-

O
pendem da experiência do profissional e podem
s criadores do Preemie-Test es- ter margem de erro maior. Publicado em 2017 na
clarecem que o aparelho não tem revista Pediatrics, um estudo de revisão sobre o
o propósito de substituir as for- exame de Ballard, um dos mais utilizados para ava-
mas convencionais de datação liar a maturidade física e neuromuscular do neo-
gestacional, mas proporcionar nato, indicou que esse teste pode estimar a idade
um suporte aos profissionais da gestacional com um erro de cerca de 3,8 semanas.
saúde, especialmente onde faltam recursos tec- Para a neonatologista Walusa Ferri, da Facul-
nológicos e humanos. O grupo também criou um dade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da
aplicativo, Preemie Care, que pode ser baixado USP e chefe da área de Neonatologia do Hospi-
gratuitamente e tem orientações sobre os pri- tal das Clínicas da mesma instituição, a análise
meiros cuidados a prematuros. da maturidade da pele do neonato é valiosa por
A pediatra e neonatologista Ruth Guinsburg, si só, independentemente de sua relação com a
da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) maturidade pulmonar. Ela explica que o monito-
e coordenadora científica da Rede Brasileira de ramento da pele do bebê prematuro é essencial
Pesquisas Neonatais, elogia a iniciativa mineira. para prevenir intercorrências graves.
“Pode ajudar na tomada de decisão do profissional, “O prematuro perde água pela pele – ela eva-
que precisa agir rapidamente nos primeiros cui- pora através da epiderme, extremamente fina – e
dados”, opina. Ela enfatiza que as primeiras ações necessita de uma reposição intravenosa do líqui-
do profissional na sala de parto são cruciais para do perdido. Se não receber essa reposição, pode
4. Recursos de prevenir a mortalidade e a ocorrência de alterações desidratar a ponto de sofrer um sangramento
automação facilitam no desenvolvimento neuropsicomotor dos bebês. intracraniano”, alerta a especialista. Com a in-
a interação do usuário No entanto, os dados disponíveis sobre o recém- formação sobre a maturidade da pele, explica,
com o dispositivo. Se o -nascido costumam ser limitados e imprecisos. o profissional da saúde pode estimar o volume
bebê se move durante “Para fazer o cálculo de idade gestacional, con- da reposição intravenosa necessária. “Em locais
o exame, o equipamento sideramos inicialmente a data da última mens- com poucos recursos, o dispositivo pode ser de
solicita que nova medida truação – quando o ciclo da mãe é regular e ela grande valia”, enfatiza Ferri. n
seja feita tem certeza do dia – e o exame de ultrassom rea-
lizado até a 12ª semana de gestação”, esclarece Os artigos científicos consultados para esta reportagem estão listados
FONTE BIRTHTECH Guinsburg. Quando feito nesse intervalo de tem- na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 324 | 73


POLÍTICAS PÚBLICAS

PORTOS
EM ALERTA

74 | FEVEREIRO DE 2023
Pesquisadores se unem a
formuladores de políticas públicas
para reduzir os efeitos de
eventos climáticos extremos
na costa brasileira
Christina Queiroz

P
ortos brasileiros já sentem
os efeitos da crise climática
e os ancoradouros marítimos
de Aratu-Candeias, na Ba-
hia; Santos, em São Paulo; e
Rio Grande, no Rio Grande
do Sul, são alguns dos que
apresentam as maiores vul-
nerabilidades. Os três terminais estão no topo
da lista de estudo coordenado pela Agência Na-
cional de Transportes Aquaviários (Antaq) que
analisou a situação de mais de duas dezenas de
portos públicos localizados na costa do país,
com a proposta de fornecer dados para subsidiar
políticas públicas. O esforço integra um conjunto
de iniciativas do Sistema de Informações e Aná-
lises sobre Impactos das Mudanças Climáticas
(AdaptaBrasil), desenvolvido em 2020 pelo Insti-
tuto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em
colaboração com a Rede Nacional de Pesquisa e
Ensino (RNP) e a Rede Brasileira de Pesquisa em
Mudanças Climáticas Globais (Rede Clima), com
a liderança do Ministério da Ciência, Tecnologia
e Inovação (MCTI).
“Responsáveis, em 2019, por movimentar 95%
do comércio exterior nacional, portos são elos
logísticos centrais à distribuição de cargas. Quase
PAULO FRIDMAN / CORBIS VIA GETTY IMAGES

tudo que chega nas gôndolas dos supermerca-


dos passa antes por eles”, diz o engenheiro Jo-
sé Gonçalves Moreira Neto, gerente de desen-
Navio ancorado no volvimento e estudos da Agência Nacional de
porto de Santos, que Transportes Aquaviários (Antaq). O relatório
apresenta risco alto
em consequência do
“Revisão do transporte marítimo de 2022”, da
aumento do nível Conferência das Nações Unidas sobre Comércio
do mar e de vendavais e Desenvolvimento (Unctad), identificou que o

PESQUISA FAPESP 324 | 75


Itaqui

Fortaleza

Natal

Cabedelo

Recife

Suape

Aratu

Salvador

Ilhéus

EVENTOS
CLIMÁTICOS
Vitória EXTREMOS
Projeção para 2050 dos
riscos que tempestades,
vendavais e o aumento
do nível do mar oferecem
Niterói a portos brasileiros
Rio de Janeiro
TIPO INTENSIDADE
Itaguaí DE RISCO DO RISCO

Angra dos Reis Vendavais Muito baixo


São
Tempestades Baixo
Sebastião

Santos Aumento do Médio


nível do mar
Alto
Paranaguá
São Francisco Portos Muito alto
do Sul

Itajaí

Imbituba

FONTE  IMPACTOS E RISCOS DA MUDANÇA DO CLIMA


NOS PORTOS PÚBLICOS COSTEIROS BRASILEIROS. BRASÍLIA:
WAYCARBON, ANTAQ, GIZ, INPE, 2022

Rio Grande
76 | FEVEREIRO DE 2023
comércio marítimo aumentou 3% na América nove. Em relação a essa ameaça o porto de Rio
Latina e no Caribe em 2021, projetando uma Grande está exposto aos maiores riscos. Isso por-
expansão de 1,4% para 2022. No documento, a que a interação de suas infraestruturas portuárias
Unctad alerta para a necessidade de gestores se com o aumento da frequência e da intensidade
prepararem para enfrentar as consequências da dos ventos no sentido Sul-Sudoeste pode elevar
crise climática, o que inclui investir na transi- a demanda por manutenção, causando impactos
ção para energias de baixo carbono em portos e em custos e reduzindo sua capacidade operacio-
frotas marítimas, especialmente em países em nal. Alguns fertilizantes agrícolas transportados
desenvolvimento, caso do Brasil. Entre as me- em navios que utilizam o porto também podem
didas gerais recomendadas pelo relatório estão formar poeira em suspensão e prejudicar a ope-
a identificação dos riscos e vulnerabilidades es- ração de guindastes.
pecíficas de cada porto e o desenvolvimento de Até 2030, o aumento do nível do mar, por sua
estratégias de resposta com o objetivo de acelerar vez, deve afetar 11 dos 21 portos avaliados. O

E
a recuperação depois de eventos causados por porto de Aratu-Candeias foi identificado como
ameaças climáticas. o mais vulnerável ao fenômeno envolvendo as
marés. Como recomendações gerais, a pesquisa
m linha com as diretrizes da sugere que os embarcadouros construam bases
Unctad, pesquisas desenvol- de dados sobre paradas operacionais e danos
vidas pela Antaq, em parceria causados por eventos climáticos, aprimorem seus
com a Cooperação Alemã para processos de manutenção e constituam grupos de
o Desenvolvimento Sustentá- trabalho para planejar e implementar as medidas.
vel, por meio da Deutsche Ge- No caso de Rio Grande, o estudo também apon-
sellschaft für Internationale ta a necessidade de reformar a infraestrutura de
Zusammenarbeit (GIZ), com armazenagem. Em relação ao porto de Santos,
a consultoria WayCarbon e com o Inpe, mapea- a ameaça climática de maior probabilidade são
ram os riscos que o aumento do nível do mar, chuvas fortes, classificadas como de risco médio
chuvas torrenciais e ventos fortes oferecem a para o embarcadouro, podendo impactar o acesso
21 portos públicos do Brasil. Afora os 36 portos viário e equipamentos de içamento. Até 2050, o
públicos marítimos, o Brasil dispõe de centenas estudo indica que o porto de Santos enfrentará
de instalações privadas. Todos os portos públicos riscos muito altos para a elevação do nível do
marítimos brasileiros foram convidados a par- mar e vendavais. Por essa razão, recomenda que
ticipar da pesquisa e 21 deles aceitaram. “Além o terminal realize a substituição das passarelas
de avaliar a situação atual, o estudo mensurou para passagem de nível, eleve a frequência e o
como as ameaças podem impactar esses portos volume da dragagem nos canais e na bacia de
projetando cenários para 2030 e 2050”, relata evolução, e reforce suas estruturas.
Porto de Aratu,
Neto. Ele recorda que os riscos climáticos no As unidades localizadas na região Sul são as na Bahia, deve sofrer
setor portuário ficaram evidentes depois das mais vulneráveis à elevação do nível do mar (ver com mudanças
chuvas torrenciais de 2008, que colapsaram o infográfico na página ao lado). “Danos na infraes- climáticas
FOTO  SECOM BAHIA / WIKIMEDIA COMMONS  INFOGRÁFICO  ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

cais do porto de Itajaí, em Santa Catarina. “Esse


foi o momento em que ficou claro para muitos
gestores que a crise climática já estava afetando
os serviços e a eficiência dos portos brasileiros.”
Do estudo faz parte um ranking elaborado de
acordo com o nível de vulnerabilidade de cada
porto. Além disso, também foram desenvolvidas
análises mais específicas sobre os portos de Aratu,
Santos e Rio Grande, que correm os maiores ris-
cos com os efeitos da crise climática. O objetivo é
auxiliar autoridades portuárias e o poder público
a definir prioridades de investimento. Conforme
identificado na pesquisa, os fenômenos climáticos
que trazem riscos mais críticos para o conjunto de
estruturas avaliadas são os vendavais. Sete dos 21
portos apresentam risco alto ou muito alto para
esses eventos. O Nordeste é a região do país com
maior concentração de portos com risco alto ou
muito alto nessa categoria. Se nada for feito nos
próximos anos, esse grau de risco pode atingir 16
portos até 2050, ou seja, os sete atuais e outros

PESQUISA FAPESP 324 | 77


produziu recomendações de medidas estruturais
e de gestão para ampliar a capacidade de respos-
ta de cada um deles. “Por exemplo, portos que
utilizam guindastes para movimentar contêi-
neres precisam paralisar as operações quando
são registrados vendavais acima de determina-
da velocidade, que varia conforme cada lugar.
Grande parte deles desconhece a frequência
desses eventos. A pesquisa recomenda o moni-
toramento meteorológico dos fenômenos e dos
respectivos impactos em suas atividades, com o
registro das informações em bancos de dados”,
detalha a engenheira ambiental Marina Lazza-
rini, analista de sustentabilidade e mudança do
clima da WayCarbon.
Outro exemplo trazido pela engenheira am-
biental envolve os portos por onde transitam
Porto de Paranaguá, trutura, inundação de terminais, de pátios e de mercadorias que não podem ser molhadas, ca-
no Paraná, é um dos zonas urbanas próximas, além da paralisação so do açúcar. “Por serem mais vulneráveis às

U
maiores exportadores
agrícolas do país
de operações, são alguns problemas causados chuvas torrenciais, ao conhecer a probabilidade
por eventos climáticos extremos”, explica Neto. de o fenômeno acontecer, esses lugares podem
criar comitês de crise e elaborar planos de ações
m dos desafios da análi- emergenciais”, exemplifica Lazzarini. Além de
se, segundo o engenheiro mapear vulnerabilidades e propor recomenda-
ambiental Pablo Borges de ções, outra contribuição do estudo, na avaliação
Amorim, assessor técnico de Neto, da Antaq, é incentivar a incorporação
da GIZ, foi transformar da variável risco climático em planos estratégi-
os dados cientificamente cos de portos. “O estudo auxilia as autoridades
coletados em linguagem portuárias a identificar as medidas de adaptação
acessível aos tomadores de que devem ser consideradas prioritárias em seus
decisão. “Contamos com diversas informações investimentos”, reforça.
climáticas levantadas no âmbito acadêmico, O pesquisador Lincoln Muniz Alves, do Inpe,
mas existe um hiato entre os dados científicos explica que os estudos integram as estratégias da
e a possibilidade de eles serem utilizados para plataforma AdaptaBrasil MCTI, que informa os
a tomada de decisão e a formulação de políticas riscos oferecidos pela crise climática a segmentos
públicas.” De acordo com ele, o estudo atual re- que incluem os recursos hídricos, a segurança
presenta um avanço no esforço de superar esse alimentar e energética, a saúde e os setores fer-
obstáculo. “Durante a pesquisa, climatologistas roviário e rodoviário. A pesquisa com os portos
do Inpe compreenderam o contexto de atuação é a primeira a ser disponibilizada como parte
do universo portuário, identificando o tipo de das ações da plataforma que, além do Inpe e do
dado que pode colaborar com a gestão dos riscos MCTI, também conta com a participação da Re-
climáticos, enquanto formuladores de políticas de Brasileira para Educação e Pesquisa (RNP).
públicas conheceram melhor como funcionam “Um dos desafios que todos os setores estraté-
as metodologias de pesquisa sobre o clima e o gicos enfrentam é reconhecer que já sentem os
tipo de informação que conseguem entregar”, efeitos da crise climática”, pondera. De acordo
explica. Amorim diz que o trabalho conjunto foi com o pesquisador, nos primeiros meses deste
balizado pelo conceito de serviços climáticos, ano o Inpe deve concluir o desenvolvimento de
criado em 2009 pela Organização Meteorológica outro estudo, elaborado em parceria com o Mi-
Mundial (OMM). Tal conceito envolve o estabe- nistério da Infraestrutura, em que estão sendo
CHRISTOPHER GREGORY PETER / WIKIMEDIA COMMONS

lecimento de formatos e linguagens para fornecer analisados os riscos climáticos para rodovias e
dados científicos adaptados ao entendimento de ferrovias. “Um dos resultados preliminares indica
tomadores de decisão, de forma que colaborem que esses segmentos não contam com um proto-
para subsidiar a formulação de políticas públicas. colo de registro comum a todas as concessioná-
Para elaborar o índice de risco climático, o es- rias, de forma que as informações sobre eventos
tudo cruzou a probabilidade da ocorrência das climáticos estão fragmentadas e incompletas,
três ameaças em cada uma das cinco regiões do dificultando a prevenção e a gestão”, finaliza. n
país com as características dos portos, explica
a geógrafa Melina Amoni, gerente de Risco Cli- Os relatórios consultados para esta reportagem estão listados na
mático e Adaptação da WayCarbon. A partir daí, versão on-line.

78 | FEVEREIRO DE 2023
DEMOGRAFIA

NOVAS
U
ma plataforma aberta, com interface
amigável, que compila informações de
múltiplas bases de dados oficiais deve
viabilizar novas investigações acerca

DIMENSÕES
das desigualdades raciais no Brasil.
Desenvolvido pelo Centro de Estudos
e Dados sobre Desigualdade Racial
(Cedra), sediado no Rio de Janeiro,

DAS
o sistema lançado em dezembro de
2022 permite cruzar informações sobre renda,
ocupação, habitação e escolaridade conforme
critérios de cor, raça e sexo da população e visa

DESIGUALDADES
oferecer subsídios à elaboração de políticas pú-
blicas e investigações científicas sobre a temática.
Um de seus criadores é o economista Eduardo

RACIAIS
Pereira Nunes, ex-presidente do Instituto Brasilei-
ro de Geografia e Estatística (IBGE) e ex-profes-
sor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (PUC-RJ). Ele explica que a plataforma
combina dados do Censo de 2010 e da Pesquisa
ILUSTRAÇÃO  JÚLIA CHEREM RODRIGUES COM FOTOS DE LÉO RAMOS CHAVES

Nacional por Amostra de Domicílios Contínua


Plataforma permite (Pnadc), entre 2012 e 2019, para oferecer méto-
dos inéditos de leitura de dados do IBGE. O físico
cruzamentos inéditos de Marcelo Tragtenberg, da Universidade Federal
de Santa Catarina (UFSC) e também fundador
dados oficiais de áreas do Cedra, informa que a plataforma não inclui
como saúde e educação dados sobre populações indígenas por causa da
falta de amostragem representativa dessa parce-
la da sociedade na Pnad. “A Pnad não chega até
terras indígenas e, com isso, os erros estatísticos
das amostragens são muito grandes”, justifica.
Segundo Nunes, a base do sistema são os dados
sobre os responsáveis pelos 57 milhões de domi-
cílios registrados no Censo de 2010. “Algumas

PESQUISA FAPESP 324 | 79


FREQUÊNCIA NO ENSINO SUPERIOR
Presença de pessoas negras aumentou entre 2010 e 2019, mas desigualdade persiste

População geral Mulheres entre Analfabetismo entre


entre 18 e 24 anos 18 e 24 anos maiores de 15 anos
Aumento proporcional de negros foi Mais negras ingressaram, mas diferença
acompanhado de crescimento na desigualdade em relação às brancas se manteve
18,7%

Negros Brancos Negras Brancas

30,7%
28,5%
Matriculados no ensino superior

Matriculadas no ensino superior


22,2%
19,9% 7,8%
17,8%
15,4%

9,3%
7,8%

Negros Brancos
2010 2019 2010 2019

FONTE  IBGE CENSO 2010 E PNAD 2019 ELABORAÇÃO CEDRA

das informações reveladoras trazidas pela pla- em que a maioria das pessoas era branca. A pla- Em 2010, a taxa de
taforma referem-se a raça, cor e gênero”, diz o taforma também evidenciou que a renda média analfabetismo entre
economista. Foi possível identificar, por exemplo, dos brancos é mais alta mesmo em ocupações em pessoas negras acima
que, em 2010, em 33,8% das residências do país que a maioria dos trabalhadores é negra. “Identi- de 60 anos era

o dobro
moravam somente negros, 27,3% eram habitadas ficamos que quanto menos sofisticado o grau de
por moradores negros e pessoas de outra cor ou exigência da mão de obra, maior será a presença
raça, enquanto 38,9% das casas não eram habi- de pessoas negras”, afirma o economista. Na pers-
tadas por moradores negros. “Esses números in- pectiva de Nunes, apenas por meio de iniciativas da identificada entre

dicam que a miscigenação ocorre de forma mais como as políticas de cotas é possível mudar esse pessoas brancas

intensa nas camadas de rendas média e baixa da cenário. “Como contar com mais pessoas negras
sociedade”, diz Tragtenberg. Para a historiadora na medicina, por exemplo, se suas condições de
Wânia Sant’Anna, do Instituto Brasileiro de Aná- vida são diferentes das dos brancos desde a ori-
lises Sociais e Econômicas (Ibase) e fundadora gem familiar, de forma que elas precisam trabalhar
do Cedra, os dados sobre a configuração de lares enquanto estudam, e brancos contam com uma
brasileiros oferecem contrapontos à ideia de que situação mais favorável para poder se preparar

E
a sociedade nacional é intensamente miscigenada para os vestibulares?”
e o país vive uma democracia racial, na medida
em que, em 2010, somente 27,3% das casas reu- m relação às diferenças em percentuais
niam negros e pessoas de outras raças. “Por meio de pessoas negras e brancas matricu-
da plataforma, nosso objetivo é propor reflexões ladas no ensino superior, Sant’Anna,
desestabilizadoras como essa”, informa. do Ibase, considera o fenômeno uma
Também em 2010, a renda média por morador consequência da falta de políticas des-
INFOGRÁFICOS  ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

em casas resididas apenas por negros era de R$ tinadas a superar essas desigualdades.
598, em domicílios ocupados por negros e não “Para isso, não basta, por exemplo, in-
negros era de R$ 627 e em lugares sem moradores vestir somente na criação de escolas
negros era de R$ 1,4 mil. “Os dados indicam uma de tempo integral. É preciso elaborar
situação de exclusão social”, comenta Nunes. Em ações para que crianças negras acessem e perma-
relação ao mercado de trabalho, o economista neçam nessas instituições, de forma que consigam
destaca que outro cruzamento de dados inédito chegar até o ensino superior”, diz, apontando
feito pela plataforma evidenciou as ocupações o ensino médio como etapa central de atenção
onde a maioria das pessoas é branca ou negra. quando se deseja melhorar o nível de qualificação
Em 2010, nos trabalhos em que predominavam de jovens negros.
pessoas negras, o rendimento médio por hora O sistema mostra que negros eram responsá-
correspondia a 20% do valor médio de ocupações veis pela maioria das casas na linha da pobreza

80 | FEVEREIRO DE 2023
DOMICÍLIOS BRASILEIROS EM 2010 Percentual de domicílios chefiados
Plataforma mostra que a renda média era mais alta por mulheres, entre a população
em casas sem moradores negros que recebia menos de 12,5%
de um salário mínimo mensal

38,9% 33,8% O rendimento médio


de casas sob
Negras 31,1%

Sem Apenas
a responsabilidade
moradores moradores Brancas 9,8%
de mulheres
negros negros
negras era de

42%
da renda média
per capita de
Renda média mensal
dos trabalhadores, em 2010

Negros R$ 871

27,3%
domicílios sob a
responsabilidade de
Negros e homens brancos Brancos R$ 1,6 mil
outras raças

FONTE  IBGE CENSO 2010 ELABORAÇÃO CEDRA

extrema, ou seja, com renda média mensal de até Sant’Anna e Tragtenberg, o Cedra foi fundado
Cerca de 12,5% do salário mínimo. Outro dado levantado é em 2020 pelos economistas Hélio Santos, pre-

2,7milhões
que o número de negros em regiões periféricas era sidente da Oxfam Brasil, e Mário Theodoro, da
mais do que o dobro dos brancos. Considerando Universidade de Brasília (UnB).
moradores na periferia das cidades, o acesso ao Durante evento de lançamento em dezembro
ensino superior era desigual entre brancos e ne- em São Paulo, Santos explicou que a plataforma
de casas sob a
gros em 2010: 5,9% das mulheres negras, contra pretende funcionar como uma “usina de dados
responsabilidade de um
11,5% das mulheres brancas. Tragtenberg expli- que induz a implementação de políticas públicas”.
negro não dispunham de
ca que o conceito de áreas periféricas utilizado Na perspectiva do economista, nos últimos qua-
banheiro de uso exclusivo
pela plataforma parte da proposta de aglome- tro anos a universidade pública foi enfraquecida,
para seus moradores.
rados subnormais do IBGE, ou seja, zonas que “justamente em um momento em que negros am-
Entre os brancos eram
abarcam comunidades e habitações com déficit pliavam sua presença nessas instituições”, sendo
750 mil moradias
de serviços públicos de urbanização. “Mesmo
nessas áreas periféricas, pessoas brancas têm o
necessário “adotar ações afirmativas sistêmicas”.
Para a demógrafa Bernadette Cunha Waldvogel,
dobro de probabilidade de ter ensino superior”, da Gerência Demográfica da Fundação Sistema
afirma. Em 2010, 55% dos negros com 15 anos Estadual de Análise de Dados (Seade), a nova pla-
ou mais não tinham instrução ou apresentavam taforma é um instrumento importante para os estu-
ensino fundamental incompleto. Entre brancos dos demográficos, a elaboração e o monitoramento
o valor equivalente era de 37,5%. de políticas públicas que buscam diminuir as desi-
A plataforma recebeu investimento e apoio dos gualdades raciais. “A grande inovação do sistema
institutos Çarê, Galo da Manhã e Ibirapitanga, da consiste, justamente, em seu formato que reúne,
Fundação Itaú e do Banco Itaú Unibanco e está em um mesmo espaço, informações produzidas e
sendo aperfeiçoada para, no decorrer de 2023, disponibilizadas por diferentes fontes de dados,
passar a incorporar informações do Sistema Único facilitando o uso conjunto e ampliando o escopo
de Saúde (SUS), Instituto Nacional de Estudos e e o alcance de estudos”, considera Waldvogel. Por
Pesquisas Educacionais (Inep) e estatísticas ofi- fim, a antropóloga Sandra Garcia, coordenadora do
ciais sobre violência. “A inclusão desses novos Núcleo de População e Sociedade do Centro Bra-
bancos de dados permitirá conhecer a incidência sileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), avalia
de mortes violentas em domicílios cujas mulheres que a plataforma permitirá renovar os esforços de
negras são as responsáveis, entre outras informa- colaboração entre pesquisadores e formuladores
ções, por saúde e educação”, detalha Nunes. No de políticas públicas “na direção de melhor iden-
futuro, o economista informa que os dados do tificar e compreender os fatores interrelacionados
Censo de 2022, que estão sendo coletados, tam- que tornam as inequidades raciais persistentes
bém alimentarão a plataforma. Além de Nunes, por gerações”. n Christina Queiroz

PESQUISA FAPESP 324 | 81


MÚSICA

FORA
DO
TOM
Pesquisadores avaliam como a desigualdade de gênero
prejudica a trajetória de musicistas

Ana Paula Orlandi  |  ILUSTRAÇÕES  Veridiana Scarpelli

“V
ocê toca como homem.” Vá- poucas professoras de jazz e programadoras em
rias das 12 musicistas brasilei- festivais desse gênero de música”, observa.
ras entrevistadas pelo projeto O problema não está circunscrito ao jazz. Na
“AMPLIFYhER: Voicing the música erudita um dos casos emblemáticos é o de
experience of women musi- Maria Anna Mozart (1751-1829), que na infância
cians in Brazil” relataram ter manifestava tanta facilidade para a música quanto
ouvido esse tipo de comentário o irmão, Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791).
ao longo da carreira musical. Entretanto, foi impedida de apresentar-se em pú-
“Não conheço uma mulher des- blico, porque naquele momento era socialmente
se campo do conhecimento que inaceitável que uma mulher seguisse carreira co-
não tenha se deparado com es- mo instrumentista. No livro Minha história das
sa fala machista disfarçada de mulheres (Editora Contexto, 2006), a historiadora
elogio”, constata Lilian Campesato, artista ligada francesa Michelle Perrot anota: “E a música? Aí
à cena da música experimental paulistana e uma se acumulam obstáculos. Por parte das famílias
das pesquisadoras do projeto. para começar [...]. O pai de Félix [1809-1847] e
Concluído no ano passado, o projeto finan- Fanny [1805-1847] Mendelssohn, igualmente do-
ciado pelo Global Challenges, do Reino Uni- tados, escreve a esta última, em 1820, a respeito
do, reuniu pesquisadores da Escola de Comu- da música: ‘É possível que, para ele, a música
nicações e Artes da Universidade de São Paulo venha a ser uma profissão, enquanto, para você,
(ECA-USP), como é o caso de Campesato, com não será mais do que um ornamento’”. Pianista
um pós-doutorado em música, e de duas insti- e compositora alemã, Fanny deixou um catálogo
tuições britânicas: as universidades Manchester com cerca de 460 obras.
Metropolitan e Edinburgh Napier. “Trata-se de “O machismo é disseminado no meio musical”,
um estudo-piloto que buscou avaliar os desafios constata Rogério Luiz Moraes Costa, do Depar-
enfrentados pelas mulheres no meio musical tamento de Música da ECA-USP e coordenador
brasileiro”, explica o pesquisador português Jo- das atividades do AMPLIFYhER no Brasil. “No
sé Dias, idealizador da iniciativa e professor do projeto ouvimos musicistas não apenas ligadas
Centre for Arts, Memory and Communities da ao jazz, mas também à música experimental,
Universidade de Coventry, no campus situado na erudita e popular”, informa.
cidade de Coventry, no Reino Unido.
Guitarrista e estudioso da cena do jazz, Dias RAÇA E IDADE
conta que a ideia surgiu a partir de um descon- Um dos recortes da investigação científica é ge-
forto pessoal. “Na história do jazz os homens são racional. Foram entrevistadas musicistas tanto
protagonistas, enquanto as mulheres seguem em início e no meio da carreira quanto profissio-
sendo relegadas a papéis secundários. Práticas nais veteranas, acima dos 55 anos. “É uma ques-
do passado continuam a reverberar: há muito tão universal: muitas mulheres param de tocar
mais mulheres cantando do que tocando con- quando engravidam e depois enfrentam dificul-
trabaixo, por exemplo. Sem contar que existem dades para retomar a atividade profissional. Há

PESQUISA FAPESP 324 | 83


uma série de obstáculos para quem é mãe. Uma no Reino Unido, que, entre outras ações, lançou
de nossas entrevistadas, por exemplo, contou ter um manifesto para que nos festivais europeus de
sido convidada para se apresentar em Nova York música houvesse o mesmo número de homens e
nos anos 1990, quando o filho era bebê, mas de- mulheres no palco. “Falta investigar se essas ini-
sistiu da viagem por causa da pressão do marido, ciativas vêm sendo de fato eficazes no sentido de
também músico, e da própria família. Todos acha- trazer maior representatividade às mulheres na
vam que ela deveria ficar no Brasil, cuidando da cena europeia de música”, comenta Dias.
criança”, relata Dias. Ainda hoje essas questões
acontecem. Não por acaso, segundo ele, algumas MULHERES NA COMPOSIÇÃO
das musicistas ouvidas declararam ter aberto mão O relatório “O que o Brasil ouve – Edição mu-
ou postergado a maternidade por motivos pro- lheres na música”, divulgado em março de 2022
fissionais. “Os músicos não se deparam com esse pelo Escritório Central de Arrecadação e Distri-

O
dilema em se tratando da paternidade.” buição (Ecad), oferece pistas do abismo entre as
participações feminina e masculina no mercado
utro recorte utilizado na pes- musical brasileiro. De acordo com o documen-
quisa foi o da raça. Metade das to, em 2021 foram distribuídos R$ 901 milhões
entrevistadas é negra, metade em direitos autorais. Às mulheres foi destinado
é branca. “Todas as musicistas pouco mais de 7% desse valor. No mesmo ano, na
negras declararam que a falta lista dos 100 autores com maior rendimento, as
de recursos econômicos impos- compositoras representaram apenas 4% do total.
sibilitou a trajetória profissio- “Há searas no mundo da música que são domi-
nal, seja impedindo a compra de nadas pelos homens. A composição é uma delas”,
instrumentos ou a frequência indica a musicista e compositora Isabel Nogueira,
em oficinas de aprendizagem do Instituto de Artes da Universidade Federal do
musical na infância e adolescên- Rio Grande do Sul (UFRGS). Desde 2016, ela vem
cia”, exemplifica Campesato. E mapeando a produção de mulheres que transitam
acrescenta: “Optamos por trabalhar um universo pelo campo da música experimental e da arte so-
pequeno de mulheres para que fosse possível nora no Brasil e fazem uso de tecnologia. “A músi-
investigar a fundo suas trajetórias”. Além das en- ca experimental, por não ter essa separação entre
trevistas individuais e em grupo, os pesquisadores quem compõe e quem interpreta, poderia ser, em
promoveram palestras e workshops para que as tese, um lugar mais inclusivo para as mulheres.
participantes pudessem aprimorar a forma de Mas não é o que se observa”, constata Nogueira,
divulgar seus trabalhos, inclusive no meio digital. que coordena o Sônicas: Grupo de Pesquisa em
Um relatório e 12 vídeos com depoimentos de Estudos de Gênero, Corpo e Música da UFRGS.
cada uma das entrevistadas estão depositados em “Além disso, aquelas que atuam nesse segmento
Sonoras: Músicas e Feminismos, site que também também se deparam com o preconceito de que
é parceiro do projeto. A rede colaborativa, criada mulher não sabe lidar com tecnologia.”
em 2015, em São Paulo, reúne artistas e pesquisa- Estudiosa da relação entre gênero e música
doras, como Campesato, para discutir questões há 25 anos, Nogueira desenvolve atualmente um
de gênero no universo da música e tem apoio do projeto sobre mulheres compositoras em Por-
NuSom – Núcleo de Pesquisas em Sonologia da to Alegre. Parte dele acontece em parceria com
USP (ver Pesquisa FAPESP n° 290). “A ideia é que Laila Rosa, da Escola de Música da Universidade
esses vídeos possam ser usados em sala de aula Federal da Bahia (UFBA), que realiza a mesma
por professores do ensino fundamental para criar
modelos de inspiração e incentivar as meninas a
seguirem uma carreira musical”, explica Costa.
No momento, Dias prepara o desdobramento
do projeto, que deve traçar um paralelo entre as
cenas musicais de Brasil, Portugal e Reino Unido. EM PAÍSES EUROPEUS,
“São realidades diferentes. A situação na Euro-
pa está longe de ser perfeita, mas já se observa COMO NO REINO UNIDO,
aqui um impacto efetivo dos estudos de gênero
sobre as políticas culturais, sobretudo em paí-
ESTUDOS DE GÊNERO
ses da União Europeia”, afirma o pesquisador.
Conforme Dias, isso permite, por exemplo, que
TÊM CAUSADO IMPACTOS
fundos estatais garantam estabilidade financei- EM POLÍTICAS CULTURAIS
ra a associações independentes que lutam pela
paridade de gênero na indústria da música. É o
caso do Keychange, movimento criado em 2018

84 | FEVEREIRO DE 2023
análise na cidade de Salvador. “A ideia é ir além pianista Ambrosina de Saint-Brisson Corrêa (?-
do mapeamento dessas compositoras e criar uma 1937), autora, entre outras, da polca Anarchista

S
rede entre elas”, explica a pesquisadora gaúcha. (1892) e da valsa Alma errante (1898).
Murgel diz que ao longo do estudo encontrou
egundo Nogueira, na cena mu- compositoras que tiveram autorias creditadas em
sical brasileira, a questão de gê- discos, mas não registradas no Ecad. É o caso da
nero ainda é pouco discutida. poeta e embaixadora brasileira Dora Vasconcellos
“Em áreas como história e lite- (1910-1973), parceira do maestro e compositor Hei-
ratura, os simpósios temáticos tor Villa-Lobos (1887-1959) em canções como Cair
em congressos acontecem há da tarde e Melodia sentimental. “Há muitas grava-
três décadas. Na Anppom [As- ções dessas canções, justamente por suas letras, mas
sociação Nacional de Pesquisa o Ecad só recolhe o direito autoral de Villa-Lobos.
e Pós-graduação em Música] À exceção da canção Eu te amo, de 1956, o nome de
isso começou em 2018”, afirma. Dora Vasconcellos não consta dessas parcerias no
Outra dificuldade, conforme a escritório de arrecadação”, afirma Murgel.
especialista, diz respeito ao Parte dos dados coletados por Murgel pode ser
cânone, integrado em sua maioria por homens acessada, de forma provisória, no repositório Car-
brancos do hemisfério Norte. “Até hoje muitos tografias da canção feminina. Ali estão nomes como
livros trazem textos escritos exclusivamente por o da escritora Carolina Maria de Jesus (1914-1977),
homens. Obviamente isso tudo vai criando obstá- que lançou o disco Quarto de despejo – Carolina
culos para as mulheres nesse meio”, acrescenta Maria de Jesus cantando suas composições (1961,
a compositora, que recentemente organizou o RCA-Victor) (ver Pesquisa FAPESP n° 308), e de
livro The body in sound, music and performance Carmen Miranda (1909-1955), que, segundo Murgel,
(Routledge, 2022) com Linda O’Keeffe, da Uni- assina duas das canções gravadas por ela mesma
versidade de Edimburgo, no Reino Unido. A obra nos anos 1930: Os hôme implica comigo, composta
reúne 17 artigos de pesquisadoras de países como em parceria com Pixinguinha (1897-1973), e Por ti
Brasil, Austrália, Estados Unidos e Noruega. estou presa, com Josué de Barros (1888-1959). “Jor-
nalistas e críticos costumam se referir a nomes mais
FALTA DE CRÉDITO conhecidos como Chiquinha Gonzaga [1847-1935],
A partir de sua pesquisa de pós-doutorado rea- Maysa [1936-1977] e Dolores Duran [1930-1959],
lizada na Universidade Estadual de Campinas mas há muitas outras compositoras que precisam
(Unicamp) entre 2014 e 2017, com apoio da FA- ser reconhecidas e estudadas”, conclui Murgel. n
PESP, a historiadora Ana Carolina Arruda de
Toledo Murgel identificou 7.675 mulheres com-
positoras (letra e música) entre os séculos XIX e Projeto
XXI no Brasil. A maioria é do século XX, porém Cartografias da canção feminina: Compositoras brasileiras no século XX
(nº 13/26195-2); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisadora
há registros de autoras já no século anterior: na responsável Luzia Margareth Rago; Bolsista Ana Carolina de Arruda
lista figuram o nome de 102 delas, a exemplo da Toledo Murgel; Investimento R$ 241.085,77.

PESQUISA FAPESP 324 | 85


OBITUÁRIO

A LINGUISTA
DA LÍNGUA
COMO ELA É
Remontando à origem da disciplina
gramatical na Grécia Antiga, Maria Helena Maria Helena
de Moura Neves:
de Moura Neves se tornou expoente dos “O que leva um
povo a elaborar
estudos funcionalistas no Brasil a gramática de sua
própria língua?”
Diego Viana

U
m dos principais nomes da Sete anos antes de se tornar professo- pela editora da Unesp. “É uma obra que
linguística no Brasil come- ra efetiva da Unesp, em 1971 começou a explora questões filosóficas em torno da
çou sua carreira universitá- lecionar grego na mesma instituição. Ob- gramática, o que abre diversos caminhos
ria com quase 40 anos, após teve a livre-docência em 1984 e, três anos de investigação”, afirma Jesus.
mais de duas décadas dedi- mais tarde, aposentou-se. Continuou, po- Em parceria com sua professora de
cadas às aulas de língua portuguesa no rém, trabalhando na universidade como grego na graduação, Daisi Malhadas, da
ensino fundamental e médio. Maria Hele- professora voluntária e, mais tarde, na Unesp, e uma orientanda que hoje é do-
na de Moura Neves, que morreu em Ara- condição de emérita. Em 2003, passou a cente da mesma universidade, Maria Ce-
raquara (SP), em 17 de dezembro do ano lecionar também na Universidade Pres- leste Consolin Dezotti, Neves organizou
passado, em consequência de um aciden- biteriana Mackenzie, em São Paulo. Era o primeiro Dicionário grego-português,
te vascular cerebral, já tinha criado seus coordenadora do Grupo de Pesquisa Gra- publicado inicialmente em cinco volu-
três filhos quando iniciou a graduação mática de Usos do Português, cadastrado mes entre 2006 e 2010, e reunido em vo-
em letras português-grego na Universi- no Conselho Nacional de Desenvolvi- lume único em 2022. Ela se referia a esse
dade Estadual Paulista (Unesp), campus mento Científico e Tecnológico (CNPq). trabalho como um dos capítulos “mais
de Araraquara, em 1967. A curiosidade acerca do impulso para significativos” de sua vida profissional.
Seu objeto de pesquisa surgiu ainda na formular uma gramática foi o que levou A trajetória da linguista, que publi-
graduação, a partir de uma curiosidade Neves a pesquisar os gregos, primeiro cou mais de 20 livros, pode ser dividida
que guiaria sua carreira: “O que leva um povo no Ocidente a formalizar o estudo em três vertentes principais. Os estudos
povo a elaborar a gramática de sua pró- de seu idioma, de acordo com o latinista em torno do grego e da gramática clás-
pria língua?”. Com base nessa questão, Carlos Renato Rosário de Jesus, da Uni- sica constituem a primeira. Segundo o
Neves concluiu o doutorado em 1978, na versidade Estadual do Amazonas (UEA), também linguista André Vinícius Lopes
Universidade de São Paulo (USP). Sob a que foi supervisionado por Neves em Coneglian, da Faculdade de Letras da
orientação de José Cavalcante de Souza um projeto de pós-doutorado encerra- Universidade Federal de Minas Gerais
(1925-2020), defendeu a tese “A emer- do em 2020. Essa e outras questões são (Fale-UFMG), esse pode ser considera-
gência da disciplina gramatical entre exploradas no livro A vertente grega da do o grande “ponto de entrada” de seu
os gregos”. Antes disso, em 1974, para gramática tradicional (Hucitec, 1987), pensamento, aquele que orientou e or-
poder consultar obras de seu interesse, resultante da pesquisa de doutorado de ganizou todo o conjunto de suas preo-
graduou-se também em alemão. Neves, revisado e reeditado em 2005 cupações teóricas.

86 | FEVEREIRO DE 2023
e continuada, nos cursos de letras ou pe-
dagogia, deve ser lançado este ano pela
editora Contexto. Segundo Coneglian,
o livro oferece propostas de exercício
a partir de pontos teóricos das gramá-
ticas de usos desenvolvidas por Neves.
“Formular exercícios é uma das coisas
mais difíceis para o professor que está
começando. O aluno de pedagogia pouco
aprende a prepará-los”, observa o pro-
fessor da UFMG.

S
eus colegas e estudantes se
referem à Neves como uma
pessoa enérgica, que fazia
questão de manter uma co-
municação constante com
orientandos e colaboradores. “Come-
cei a interagir com ela quando ainda es-
tava na graduação e rapidamente per-
cebi que era muito dedicada”, recorda
Coneglian, orientando da linguista no
mestrado e doutorado. “Eu ainda nem
era oficialmente seu aluno e já nos reu-
níamos toda semana. Eu mandava textos
e ela os devolvia corrigidos.” “Receber
a notícia de sua morte foi como ouvir
que faleceu uma pessoa jovem, não uma
nonagenária. Porque ela era muito ati-
va, cheia de projetos e novas ideias”,
diz Jesus. A linguista seguia trabalhan-
A segunda vertente é a da teoria fun- do intensamente. Orientava pesquisas,
cionalista da gramática, da qual a profes- redigia artigos e deixou três livros no
sora da Unesp foi também um dos prin- prelo. Em fevereiro, recebeu o prêmio
cipais expoentes no Brasil. Essa teoria Ester Sabino, instituído no ano anterior
surgiu simultaneamente em diferentes A paixão pela pelo governo do estado de São Paulo
partes do mundo na segunda metade do para homenagear mulheres cientistas.
século XX, quando linguistas passaram
linguagem Para Coneglian, o amor à linguagem
a se dedicar às questões da gramática, a começou de sintetiza a personalidade de Neves. Foi
partir de suas próprias teorias sobre o uma paixão que começou de forma es-
modo como as pessoas se comunicam
forma pontânea durante sua infância no inte-
com o idioma, oralmente ou por escri- espontânea, rior de São Paulo. Seus pais, professores
to, segundo Jesus. “Maria Helena não se primários, assinavam revistas em espa-
filiou a uma vertente funcionalista espe-
durante a nhol e italiano e ela se dedicava a com-
cífica, mas construiu uma visão própria infância de Neves parar as estruturas desses idiomas com
a partir de várias influências”, observa a do português.
Coneglian. “Sua gramática é organizada Sobre a carga de trabalho, que a leva-
com base na construção de enunciados. va a jornadas de até 20 horas por dia, a
Categorias como substantivo, verbo e professora não reclamava de peso ex-
adjetivo são submetidas ao processo pe- cessivo. Dizia que envolvia um grande
lo qual a linguagem se constrói. Nesse com Francisco da Silva Borba e Sebastião prazer. Seu principal contentamento,
processo, o verbo tem posição central e Expedito Ignácio e outros). porém, vinha da vida familiar, relata Co-
em torno dele são distribuídos os parti- A terceira vertente da trajetória de neglian: Neves gostava de relatar para os
DIVULGAÇÃO / EDITORA UNESP

cipantes do enunciado”, resume. Duas Neves é o próprio ensino da língua por- colegas os almoços que preparava aos
obras são apontadas como fundamentais tuguesa. Um dos livros que a linguis- domingos para os dois filhos (o terceiro
nessa vertente do trabalho de Neves: a ta deixou pronto para publicação, em morreu ainda jovem), sete netos e seis
Gramática de usos do português (Edito- coautoria com Coneglian, chama-se La- bisnetos, além do genro e da nora, que
ra Unesp, 2000) e o Dicionário de usos boratório de ensino de gramática. Desti- também considerava como filhos. Era
do português (Ática, 2002, em coautoria nado a professores em formação inicial viúva desde 2010. Tinha 91 anos. n

PESQUISA FAPESP 324 | 87


OBITUÁRIO

ALFABETIZAÇÃO
E JUSTIÇA SOCIAL
Olhar de Magda Becker Soares sobre letramento infantil
influenciou a formulação de políticas públicas

Christina Queiroz

P
esquisar a alfabetização infantil de Ouro Preto (Ufop), destaca a preocu- De acordo com a pedagoga Carlota
por meio de uma perspectiva pação de Soares em pensar sobre o que Boto, diretora da Faculdade de Educa-
multifacetada, integrando aná- a universidade pode fazer pelas cama- ção da Universidade de São Paulo (FE-
lises de métodos de ensino com das populares. Além disso, ele explica -USP), a educadora defendia que o le-
perspectivas sociais, políticas que as pesquisas da educadora passaram tramento deveria acontecer dialogando
e históricas, foi uma das principais con- por diferentes momentos históricos en- com o contexto em que o aluno se inse-
tribuições da educadora Magda Becker volvendo concepções da linguagem, do ria. “Ela pensava o desenvolvimento de
Soares, professora emérita da Universi- ensino e da alfabetização, e ela nunca uma sociedade letrada como forma de se
dade Federal de Minas Gerais (UFMG). teve medo de rever ou repensar suas pró- criar, também, uma sociedade mais jus-
A pesquisadora morreu em 1º de janeiro, prias análises. “Magda não tinha receio ta, com melhor distribuição da riqueza
aos 90 anos, em decorrência de um cân- de assumir novas posições sobre o que e com todos acessando bens culturais”,
cer, e deixou três filhas e dois filhos, além escrevia”, afirma. comenta. Boto destaca a centralidade
de quatro netos e dois bisnetos. Corrêa foi próximo a Soares desde o do viés inovador de seus estudos sobre
Graduada em letras neolatinas na início de sua trajetória como pesquisa- alfabetização infantil.“Pela leitura de
UFMG em 1953, Soares defendeu o dou- dor, logo depois de concluir a graduação, seus livros, também nos formamos como
torado em didática na mesma instituição, em 1989. “Magda pensava a alfabetização alfabetizadores.”
em 1962. Em 1990, como docente da Fa- não apenas do ponto de vista cognitivo, “Ao propor que o processo era mais do
culdade de Educação da UFMG, fundou mas também conforme os usos e funções que ensinar letras e fonemas, mas também
o Centro de Alfabetização, Leitura e Es- da escrita”, diz. Outra colaboração da um meio de se perceber a função social do
crita (Ceale), onde desenvolveu pesqui- educadora foi levar essa visão inovadora texto, Magda revolucionou a forma como
sas sobre alfabetização, orientou projetos sobre a alfabetização para políticas pú- os pedagogos pensavam a alfabetização
e formou alunos, durante décadas. blicas, especialmente a partir dos anos infantil”, enfatiza Renata Junqueira de
Ao afirmar que a educadora inaugu- 2000. “O Programa Nacional de Alfa- Souza, da Universidade Estadual Paulista
rou os estudos de letramento de crian- betização na Idade Certa, de 2012, foi (Unesp), campus de Presidente Prudente.
ças no Brasil, a partir do diálogo com as criado a partir de seus estudos sobre le- Segundo ela, Soares partiu dos estudos de
teorias de Paulo Freire (1921-1997), de tramento, dentre outras contribuições”, Paulo Freire sobre alfabetização de adul-
quem foi discípula e amiga, Hércules afirma Corrêa, que também é pesquisa- tos para criar metodologias orientadas ao
Tolêdo Corrêa, da Universidade Federal dor do Ceale. letramento infantil.

88 | FEVEREIRO DE 2023
Magda Soares
durante entrevista
concedida em
sua casa em
Belo Horizonte
(MG), em 2015

Utilizando elementos do cotidiano Com 12 livros publicados, algumas de


das crianças para alfabetizá-las, Soares suas obras de destaque são Alfabetiza-
apresentava uma visão diferente da con- ção no Brasil: O estado do conhecimento
cepção tradicional, que se apoiava em (Inep, 1989); Letramento: Um tema em
cartilhas e no ensino de famílias fonéti- O que a três gêneros (Autêntica, 1998); Linguagem
cas. “Ela defendia que era preciso partir e escola: Uma perspectiva social (Ática,
do que a criança sabia antes de chegar
universidade 2002); Alfabetização: A questão dos méto-
na escola para alfabetizá-la com suces- pode fazer dos (Contexto, 2016), que venceu o Prêmio
so”, explica Souza. Assim, Soares criou Jabuti, em 2017; e Alfaletrar: Toda criança
o conceito de alfaletrar, que une a ideia
pelas camadas pode aprender a ler e escrever (Contexto,
de letramento com perspectiva social e populares 2020), escrito com base na experiência de
a necessidade de se ensinar, também, as 20 anos na rede escolar de Lagoa Santa.
famílias fonéticas.
preocupava Em 2015, ela recebeu o Prêmio Almirante

S
Soares Álvaro Alberto para a Ciência e Tecnolo-
ouza trabalhou com Soares gia do Conselho Nacional de Desenvolvi-
quando ela foi coordenadora mento Científico e Tecnológico (CNPq).
executiva do Programa Na- Até pouco tempo antes de falecer, Soa-
cional Biblioteca da Escola res trabalhava na redação de um livro
(PNBE) do Ministério da sobre o uso da literatura no ensino da
GLÁUCIA RODRIGUES / REVISTA PESQUISA FAPESP

Educação, de 1998 a 2015. “Magda era da rede municipal de educação em La- leitura e da escrita. Como questões em
uma pessoa simples e modesta, sempre goa Santa (MG), coordenar projetos de aberto, Boto, da USP, avalia que ela dei-
disposta a dividir seu conhecimento com alfabetização na rede pública de ensi- xou o desafio de ampliar a aplicação de
as outras pessoas. Muito ativa e inquieta, no da cidade e criar bibliotecas em es- seu legado intelectual. “Essa poderia ser
até poucos meses antes de morrer ia até colas. “A atuação de Magda em Lagoa a grande pergunta a ser enfrentada pelo
a UFMG dirigindo seu carro”, recorda. Santa trouxe melhorias significativas novo governo que se inicia no Brasil. O
Aposentada da UFMG em 2000, Soa- para o município no Índice de Desen- sonho de Magda era ver um mutirão em
res seguiu colaborando com o Ceale-U- volvimento da Educação Básica [Ideb]”, prol de uma política efetiva de alfabeti-
FMG, além de atuar como consultora assegura Souza. zação no Brasil”, finaliza Boto. n

PESQUISA FAPESP 324 | 89


MEMÓRIA
Retrato de 1963
do médico e político
pernambucano e mapas
do Geografia da fome
sobre a situação
alimentar do Brasil no
final dos anos 1940

AS
RAÍZES
DA
FOME
Josué de Castro expôs as bases econômicas,
sociais e biológicas da desnutrição contínua

Danilo Albergaria e Carlos Fioravanti  1

90 | FEVEREIRO DE 2023
Q
uase 50 anos após a mor- alimentação é precária e, por não forne- “Essa combinação resultava em uma
te do médico pernam- cer os nutrientes indispensáveis para o baixa produção de alimentos nos lati-
bucano Josué Apolônio funcionamento adequado do organismo, fúndios, conservava relações de traba-
de Castro (1908-1973), favorece o surgimento de doenças. lho arcaicas, herdeiras da escravidão, e
que identificou as raí- Seus estudos culminaram em seu li- jogava os camponeses em condições de
zes mais profundas da vro mais conhecido, Geografia da fome. vida aviltantes, dificultando-lhes o ple-
desnutrição, o Brasil voltou em 2022 ao Publicado em 1946, “é considerada uma no acesso a terras cultiváveis”, comenta
Mapa da Fome da Organização das Na- obra de denúncia do flagelo da fome no o sociólogo Ricardo Abramovay, titular
ções Unidas (ONU), do qual havia saído Brasil”, sintetiza o historiador Helder da cátedra Josué de Castro da Faculdade
em 2014. No país, 33 milhões de pessoas, Remigio de Amorim, da Universidade de Saúde Pública da Universidade de São
o equivalente a 15% da população, vivem Católica de Pernambuco (Unicap), em Paulo (USP) e autor do livro O que é fome
a chamada insegurança alimentar gra- sua tese de doutorado, defendida em (Brasiliense, 1983). 
ve – quando uma pessoa passa fome por 2016 na Universidade Federal de Per- Em Geografia, traduzido para mais de
não ter dinheiro para comprar comida. nambuco (UFPE), que deve ser publi- 25 idiomas, Castro concluía que a solu-
Outros 33 milhões vivem uma inseguran- cada como livro neste ano. ção para o problema da fome passava
ça alimentar moderada, por não terem Em Geografia da fome, logo premiado necessariamente pela reforma agrária.
quantidade suficiente de comida. Menos pela Associação Brasileira de Escritores “Ele era uma das autoridades mais res-
da metade da população desfruta de uma e pela Academia Brasileira de Letras, peitadas no mundo sobre essa questão”,
segurança alimentar plena, sabendo que Castro divide o Brasil em cinco regiões comenta Abramovay. “Em um encontro
terá alimentos em quantidade e qualidade geográficas, de acordo com a dieta e a acadêmico de 1982 na França, encon-
satisfatórias nos dias seguintes. eventual carência de proteínas e vitami- trei pessoas que diziam que liam Josué
Josué de Castro mostrou que a fome nas (ver mapas). Com base nessa análise, de Castro na escola”, conta Abramovay. 

N
não é inevitável, resultado do cresci- o médico concluiu que, quando não há
mento da população, da guerra ou de secas intensas, o regime alimentar do a década de 1940, Castro
catástrofes climáticas. Ele inovou ao sertanejo “se apresenta quantitativa- estudou as origens e as
FOTOS 1 CENTRO DE ESTUDOS E PESQUISAS JOSUÉ DE CASTRO  2 REPRODUÇÃO DE GEOGRAFIA DA FOME (EDITORA BRASILIENSE, 1957)  3 ACERVO DIGITAL DA BIBLIOTECA NACIONAL

aprofundar a análise das causas sociais mente suficiente para suas necessidades consequências da fome
e econômicas da fome, até então retra- básicas, sem sobras, sem margem para nos Estados Unidos, na
tada como algo episódico em jornais e excessos”, como verificado por ele nas Argentina, no México e
romances do começo do século XX, a regiões Sudeste e Sul. “A frugalidade se na França, a convite dos
exemplo de O quinze, da escritora cea- ajusta sabiamente dentro do equilíbrio respectivos governos. Em 1951, publicou
rense Rachel de Queiroz (1910-2003), alimentar”, observou. Ao mesmo tempo, Geopolítica da fome, que examina as defi-
e A bagaceira, livro do paraibano José Castro encontrou manifestações de fome ciências e insuficiências da alimentação
Américo de Almeida (1887-1980). Em e de doenças causadas pela desnutrição, no mundo. Premiado no ano seguinte
um artigo de 2020 na revista História, principalmente em três das cinco áreas pela Academia Americana de Ciências
Ciência, Saúde – Manguinhos, a historia- alimentares, a Amazônia, a Zona da Mata Políticas dos Estados Unidos, foi publi-
dora Adriana Salay Leme, doutoranda e o sertão nordestino. Entre as causas do cado também na então União Soviética.
da Universidade de São Paulo (USP), problema no Nordeste, ele identificou a Castro entrou aos 15 anos na Faculdade
relata como em 1932, para evitar que os monocultura de cana-de-açúcar e gran- de Medicina da Bahia e completou o cur-
retirantes que fugiam da fome e da seca des extensões de terra concentradas nas so em 1929 na então Universidade do
chegassem às cidades, o governo federal mãos de poucos proprietários. Rio de Janeiro, atual Universidade Fede-
criou sete campos de concentração no
3
Nordeste – o maior deles, no Crato, no
Ceará, com quase 60 mil pessoas.
Com base em sua experiência pes-
soal – viu a fome de perto quando era
criança nos manguezais da cidade do
Recife, onde nasceu –, em estudos que
começavam a propor abordagens mais
amplas do problema e em suas próprias
pesquisas de campo, Castro examinou a
fome à luz da medicina, da fisiologia, da
nutrição e da geografia. Sua conclusão é
que se tratava de um fenômeno biológico
enraizado em estruturas sociais, políti-
cas e econômicas. O médico identificou
dois tipos de fome: a epidêmica, associa-
da às guerras ou a secas, que provocam
a escassez de alimentos; e a endêmica,
até então desconsiderada, quando uma Crianças atingidas pelas secas de 1877 e 1878 no Ceará

PESQUISA FAPESP 324 | 91


medidas implantadas foi a criação de
restaurantes com refeições a preços mui-
to baixos. Também naquele ano Castro
assumiu a presidência da recém-criada
Sociedade Brasileira de Alimentação,
com o propósito de promover estudos e
ações para melhorar os hábitos alimen-
tares da população.
Até meados dos anos 1950, ele tra-
balhou como médico especializado em
nutrição, atendendo em consultório. Na
então capital federal, aproximou-se da

FOTOS  1, 2, 5 E 6 JOSUÉ DE CASTRO – ACERVO FUNDAÇÃO JOAQUIM NABUCO – MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO  3 E 4 REPRODUÇÃO DE JOSUÉ DE CASTRO: POR UM MUNDO SEM FOME, DE FRANCISCO REGINALDO DE SÁ MENEZES (MERCADO CULTURAL, 2004)
elite política e tornou-se médico da fa-
mília de Getúlio Vargas (1882-1954). De
1952 a 1956, ele presidiu o Conselho Exe-
Retrato de 1926,
cutivo da Organização das Nações Uni-
quando cursava das para a Alimentação e a Agricultura
medicina na Bahia (FAO). Os amigos contam que ele ficou
1
decepcionado com a inanição dos órgãos
ral do Rio de Janeiro. Retornou ao Recife nos cursos superiores. Como faltavam internacionais que deveriam combater a
e foi contratado em 1932 como professor especialistas nessas duas áreas, sua ex- fome, mas quase nada conseguiam fazer.

E
de fisiologia da Faculdade de Medicina. periência foi reconhecida como notório
Tinha 24 anos.   saber e lhe permitiu ensinar antropologia m 1954, elegeu-se deputado
Três anos depois, ele investigou as na Universidade do Distrito Federal, no federal por Pernambuco pelo
condições de vida de operários da ca- Rio de Janeiro, de 1935 a 1938. Dois anos Partido Trabalhista Brasilei-
pital pernambucana e concluiu que eles depois, em substituição a um professor ro (PTB), o mesmo de Vargas.
apresentavam fadiga crônica por cau- que havia retornado à França, ele assu- Reeleito em 1958, pretendia
sa da má alimentação e, às vezes, mor- miu a cadeira de geografia humana na sensibilizar os governantes pa-
riam de doenças associadas à fome, co- Universidade do Brasil. ra o problema da fome, mas se desiludiu ao
mo anemia, hipotireoidismo e diarreias Em 1940, durante o Estado Novo ver os colegas do Congresso defenderem
infecciosas. Até então, apenas diabetes, (1937-1945), ele ajudou a planejar e di- os interesses dos grandes proprietários
obesidade, gota e reumatismo eram as- rigiu por dois anos o Serviço de Alimen- rurais, segundo o geógrafo José Raimundo
sociados à desnutrição. tação da Previdência Social, por meio Ribeiro Junior, da Universidade Federal do
Como autodidata, Castro estudou do qual o governo pretendia solucionar ABC (UFABC): “Aos poucos, ele começou
geografia e antropologia, cujo ensino o problema da alimentação, principal- a pensar a atuação dos movimentos sociais
e pesquisa davam os primeiros passos mente para a classe operária – uma das como forma de superar a fome”. 
2 3
Castro percebeu que só haveria refor-
ma agrária com organização e pressão
popular, mas argumentava que mudan-
ças estruturais deveriam ser feitas pelos
caminhos institucionais democráticos.
“Ele acreditava no diálogo com as elites
ao mesmo tempo que se aproximou dos
movimentos sociais, como as Ligas Cam-
ponesas”, enfatiza Leme. O médico era
próximo de Juscelino Kubitschek (1902-
1976), presidente da República de 1956 a
1961, e de intelectuais ligados ao Partido
Comunista Brasileiro, “mas, politicamen-
te, nunca foi um revolucionário”, diz a
pesquisadora da USP. “Josué de Castro
era um socialista humanista, mas não um
comunista”, reitera a historiadora Ma-
rina Gusmão de Mendonça, da Univer-
sidade Federal de São Paulo (Unifesp).
“Ele não aceitava nenhuma forma de
ditadura, nem a do proletariado.”
Em viagem para treinamento a Miami,
Estados Unidos (1943), e em manguezal As nuances não importaram. Os milita-
no Recife (1967) res do golpe de 1964 viam-no como sub-
Em visita à então União Soviética,
em 1955 (à esq.), e ao receber o prêmio
Cidadãos do Mundo, em Paris (1968)

4 5

versivo e o colocaram na primeira lista de “Castro subestimou a capacidade de mentar a produção de alimentos se par-
exilados. Desde 1962, Castro era embai- povos nativos da Amazônia de obter celas da população não conseguissem
xador brasileiro na ONU em Genebra, na seus próprios alimentos, porque os viu ter dinheiro para comprá-los. “Ele já
Suíça, e foi destituído do cargo. Mudou-se com lentes eurocêntricas, ignorando o defendia uma agricultura que pudesse
para a França, onde se tornou professor na conhecimento dos indígenas sobre ali- alimentar adequadamente a população,
Universidade de Paris. Em 1965 ele fundou mentação, que ele considerava precário e que não priorizasse apenas a exportação
e presidiu até 1973, na capital francesa, o ineficiente”, conta. Apesar dos eventuais de commodities [mercadorias primárias
Centro Internacional para o Desenvolvi- enganos, diz ela, sua obra continua atual. de origem agrícola, pecuária, mineral e
mento (CID), que prestava assessoria para “Se na época de Josué de Castro a fo- ambiental]”, comenta Mendonça. Leme,
governos de países em desenvolvimento. me tinha muito a ver com a oferta de por sua vez, observa: “A forma como
Até morrer por infarto, em setembro de alimentos menor que a demanda, ho- Castro via a fome, ligada a estruturas
1973, voltou ao Brasil duas vezes para vi- je decorre da incapacidade do sistema econômicas, sociais e políticas, é hoje
sitas rápidas a familiares, “sempre acom- agroalimentar e dos governos de per- majoritária”. 
panhado pelos órgãos de vigilância da di- mitir que os alimentos cheguem a baixo De acordo com o geógrafo Bernardo
tadura civil-militar”, observa Amorim. custo às pessoas que dele necessitam”, Mançano Fernandes, da Universidade
Para a historiadora Leme, da USP, o diz Abramovay. O médico pernambu- Estadual Paulista (Unesp), sua obra e
médico também cometeu equívocos. cano argumentava que não basta au- atuação política inspiraram programas
de combate à fome não apenas no Brasil,
6
mas também em outros países da Amé-
rica Latina e da África. “Mas o debate
que ele começou demorou meio século
para ter resultados concretos.” Para Fer-
nandes, há relação entre as propostas
de Castro e os programas de combate à
fome criados a partir de 2003.
Para Amorim, suas ideias se enraízam
também no movimento Ação da Cida-
dania contra a Fome, criado pelo soció-
logo Herbert José de Sousa, o Betinho
(1935-1997), e no Manguebeat, movi-
mento cultural de valorização da cul-
tura nordestina. Segundo o historiador,
um dos líderes do movimento, o cantor
e compositor Francisco de Assis Fran-
ça, mais conhecido como Chico Science
(1966-1997), citou Josué de Castro “em
diversas músicas produzidas ao longo
No escritório
dos anos 1990 no auge do neoliberalismo
de Paris, no final no Brasil, quando o problema da fome
dos anos 1960 se aprofundava no país”. n

PESQUISA FAPESP 324 | 93


ITINERÁRIOS DE PESQUISA

NAS MÃOS DE
UMA PAULISTA,
NOVA
TECNOLOGIA
DE LÁTEX
1

A química Juliane Pereira dos Santos fala


sobre a produção científica industrial

S
empre fui de muitos porquês. vestigar problemas complexos e tive a modificados, utilizando uma técnica que
Na escola, prestava bastante sorte de contar com um orientador que consiste em depositar monocamadas de
atenção nas aulas, mas o que me ofereceu várias opções de pesqui- tensoativos insolúveis em água e substân-
me interessava eram as lacunas, sa. A princípio foi difícil escolher, mas, cias com atividade eletroquímica.
ou seja, aquilo que eu não compreendia. com a ajuda do professor Assis Vicente Cursei uma parte do doutorado na
Levava minhas dúvidas aos professores. Benedetti, construí um projeto sobre o Universidade de Windsor, no Canadá.

FOTOS 1 LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP  2  REPRODUÇÕES DO VÍDEO


Isso me ajudou a aprender e a fixar os efeito da solvatação nas propriedades Meu objetivo era voltar para lá, depois
conteúdos das disciplinas. Sou egressa de oxirredução do ferro, ou seja, como da defesa, em 2001, para um estágio pós-
da rede pública de ensino e, durante a diferentes composições de solventes afe- -doutoral. Sem apoio financeiro, acabei
minha formação escolar, percebi que à tam a mobilidade e a transferência de ficando por aqui mesmo. Pouco tempo
medida que buscava novos conhecimen- elétrons entre o íon ferro e o eletrodo, depois fui aprovada em um processo se-
tos impactava positivamente a rotina usando a técnica de voltametria cíclica. letivo para um estágio de pós-doutorado
dos meus professores, motivando-os No último ano da graduação, fiz um na Rhodia. Foi quando comecei a traba-
em seu trabalho. curso de verão na Universidade de São lhar, ao lado de outros pesquisadores,
Minhas indagações se intensificaram Paulo [USP], no campus de Ribeirão Pre- no recém-criado laboratório de físico-
quando, em 1990, ingressei no curso de to, e conheci pesquisadores e projetos -química daquela indústria. Ali passei
química na Unesp [Universidade Esta- de diversos campos, com destaque para a investigar o látex sintético, produto
dual Paulista], no campus de Araraqua- as áreas de eletroquímica e de monoca- que segue sendo meu objeto de pesqui-
ra, aos 17 anos. A afinidade com a área madas. Minha ideia inicial era unir esses sa e que me propiciou, em certa medida,
de físico-química encaminhou minha dois ramos num projeto científico. Assim, conquistar em 2022 o Prêmio Mulheres
iniciação científica para os processos no mestrado e em parte do doutorado, Latino-americanas na Química, na cate-
eletroquímicos. Estava engajada em in- realizados na USP, desenvolvi eletrodos goria Líder da Indústria.

94 | FEVEREIRO DE 2023
2

Processo de sintetização de látex no laboratório da Oxiteno, empresa em que Santos atua como pesquisadora  

Anos mais tarde, fui contratada, co- que contenham matérias-primas reno- mento no segundo setor. Mesmo fora
mo pesquisadora sênior, pela Petroflex, váveis, nos alinhamos às novas deman- da universidade, pesquiso, ensino, dou
empresa que tinha grande know-how na das do século XXI no quesito ambiental. mentoria e, claro, aprendo, inclusive
coagulação do látex e sua venda para o A Oxiteno mantém parcerias com com os clientes.
mercado de borracha. Estive nessa em- órgãos públicos e privados, no Brasil e Os projetos científicos na indústria
presa entre 2005 e 2008, período no qual no exterior, que agregam valor às nossas visam atender às necessidades tecno-
fui responsável pelo desenvolvimento formulações. lógicas do mercado. De modo geral, a
de material para a produção de luvas, Ao refletir sobre as frustrações que en- academia se abstém desse compromisso
espumas, adesivos e solados de sapato. volvem a produção científica, tenho em mercadológico. No entanto, ambas estão
Quando saí de lá, trabalhei com polí- mente que estamos diante de um trabalho envolvidas com a produção e a difusão
meros para tubulação de petróleo. Em de formiguinha. Fazemos experimentos científica. A indústria, vale reforçar, não
2010, voltei ao látex, ao ser contratada nos laboratórios, testamos muitas variá- está apartada da universidade. Quando
pela Oxiteno. Estou há 12 anos na em- veis, mas chegamos mais frequentemente necessário, contratamos especialistas
presa como pesquisadora no segmento ao não do que ao sim. Nesse sentido, um que desempenham o papel de consul-
de revestimentos. Integro a área de pes- único acerto tem um valor enorme. Em tores. Em analogia ao que acontece na
quisa e desenvolvimento e sou conhecida resumo: da pesquisa no laboratório até o universidade, na indústria os orientado-
como a “menina do látex”. Desenvolvo lançamento de um determinado produ- res e os supervisores de pesquisa seriam
solventes para formação de filme de lá- to há muitas cabeças e mãos envolvidas. nossos gestores e clientes. São eles que
tex e tensoativos para polimerização em O recente prêmio que recebi não seria impõem o formato dos projetos e as cor-
emulsão de látex. Tenho várias patentes possível sem meus colegas, sobretudo as reções de rota. Atualmente, dispomos de
de minha autoria registradas pela em- mulheres da instituição, absolutamente ferramentas tecnológicas voltadas para a
presa, além de produtos desenvolvidos empenhadas em suas atribuições. gestão de projetos, mas não renuncio ao

E
para o mercado de tintas decorativas. tradicional caderno para anotações das
Há pelo menos 20 anos identifico limi- ssa forte dedicação dos colabora- mais variadas. Tenho uma rotina bem
tações e gargalos que precisam ser supe- dores tem se manifestado prin- próxima à de uma pesquisadora acadê-
rados na manipulação do látex sintético. cipalmente no que se refere às mica: reuniões semanais, produção de
Em razão disso, tento colaborar com a patentes, que servem tanto para relatórios e artigos científicos, elabora-
melhoria tecnológica do látex voltado proteger quanto para divulgar descober- ção de patentes e muita leitura, além de
para tintas que utilizam a água como ba- tas científicas. Se determinado assunto é participação em congressos científicos.
se. Isso porque essas tintas apresentam protegido pelo registro de uma patente, Infelizmente poucas empresas brasi-
algumas limitações técnicas que restrin- para explorá-lo é preciso, antes, solici- leiras contam com centros de pesquisa.
gem sua durabilidade em relação às que tar o direito de uso e pagar pelos seus Há cientistas disponíveis no mercado de
utilizam como base solvente. Esse esfor- royalties por um período estipulado. Pa- trabalho, mas a absorção ainda é lenta.
ço gera substâncias que tendem a ser ra pesquisadores da área de inovação, a Como mulher negra, minha sensibilidade
mais amigáveis ao meio ambiente. Desse responsabilidade é imensa, pelo alto in- está permanentemente direcionada a re-
modo, ao buscar desenvolver produtos vestimento financeiro e humano. Antes conhecer as diversas potencialidades que
de conquistar meu primeiro emprego na me cercam no meio profissional. Desde a
indústria, fiz concursos públicos para o educação básica, passando pelos mestres
ensino superior. Naquele momento, já acadêmicos, tive meu talento reconhe-
SAIBA MAIS
havia uma discrepância entre a quanti- cido. Sempre fui acolhida e estimulada
Vídeo produzido pela dade de vagas e o número de candidatos. intelectualmente. Na indústria, tenho
Oxiteno para mostrar
No estágio de pós-doutorado na Rhodia, convivido com pessoas muito dedicadas
a sintetização do
látex no laboratório pude constatar a beleza que envolve a e empenhadas na interlocução, o que é
da indústria ciência aplicada. Hoje posso afirmar decisivo para o crescimento coletivo. n
que sou feliz em disseminar conheci- DEPOIMENTO CONCEDIDO A ALINE NOVAIS DE ALMEIDA

PESQUISA FAPESP 324 | 95


RESENHA

As universidades não podem ser uma bolha


Elizabeth Balbachevsky

E
ntender as transformações que a univer- 30% dos jovens entre 18 e 22 anos, esse modelo
sidade contemporânea vem passando nas é simplesmente perverso. Nesse sentido, cha-
últimas décadas compõe um programa in- ma a atenção o rico debate sobre a experiência
telectual de grande envergadura. Estar à frente de da Unicamp com uma política de diversificação
uma grande universidade de pesquisa constitui dos caminhos de ingresso. Cito apenas as mais
um desafio de outra natureza, mas de igual mag- inovadoras: o “vestibular indígena”, as “vagas
nitude. É raro encontrar numa mesma pessoa as olímpicas” e a experiência do Programa de For-
competências para alcançar sucesso nessas duas mação Interdisciplinar Superior (ProFIS). Essas
empreitadas. A acuidade intelectual necessária experiências mostram que é possível, com algu-
para entender as sutis mudanças por que passa a ma ousadia, desmontar o mito da onipresença
universidade contemporânea e a energia e compe- do vestibular (ou sua encarnação atual, o Enem)
tência para conduzir com sucesso uma instituição como mecanismo de seleção de novos alunos.
Reflexões sobre do porte da Universidade Estadual de Campinas Outra discussão relevante para nossa experiên-
educação superior: durante alguns de seus momentos mais críticos: cia pós-pandemia é a força do conservadorismo
A universidade
e seu compromisso
o enfrentamento da crise de financiamento vi- no ensino. A mudança tecnológica pode ter subs-
com a sociedade vida pelas universidades paulistas desde 2015 e tituído o quadro-negro pelo PowerPoint, mas, no
Marcelo Knobel o estresse trazido pela pandemia. Pois esse é o fundo, continuamos aferrados ao velho modelo,
Blucher perfil do físico Marcelo Knobel, professor e ex- onde um fala e os demais escutam, com graus
244 páginas
R$ 71,00
-reitor da Unicamp. variados de atenção. Será que, com o esforço pa-
O livro Reflexões sobre educação superior traz ra apagar a memória da pandemia, não estamos,
um resumo de suas análises, ao longo de mais de fato, anulando a curva de aprendizagem que
de uma década, sobre os grandes desafios que se tivemos com modelos diferentes de ensino? Não
colocam para a universidade pública no Brasil. seria o caso de avaliar e consolidar nossa expe-
Traz também ecos de sua experiência como reitor riência recente e salvar aquilo que foi positivo?
(2017-2021) dessa que é uma das mais importantes Essas são questões que me vieram à mente ao ler
universidades do Brasil. São artigos, manifestos, o capítulo dedicado a esse problema.
discursos e análises – cobrindo diferentes as- Enfim, essas são amostras que permitem ao
pectos e questões do ensino superior como um leitor vislumbrar o conteúdo do livro: uma cole-
todo e das universidades públicas em particular. tânea de artigos que abordam temas centrais para
A obra aborda diferentes temas, todos caros a nossa educação superior. Alguns trabalhos foram
quem tem compromisso com a universidade: os produzidos no calor da hora, no debate dentro
dilemas do financiamento público, as transfor- da política universitária, outros com o distancia-
mações que as políticas de ação afirmativa trou- mento analítico de um artigo acadêmico. Cada um
xeram, as transformações por que têm passado conta com um comentário que explica o seu con-
a pesquisa e a pós-graduação, as vicissitudes da texto e atualiza o tema. Em todos eles, transpira
carreira acadêmica etc. Dentre esses, destaco um a urgência da mudança e a responsabilidade das
tema que me parece apontar para um dos desafios escolhas que se colocam para os dirigentes das
centrais para a universidade pública brasileira: universidades públicas do Brasil. Termino aqui
o acesso. Em diferentes partes, o livro aborda a fazendo referência às palavras que encerram a
discussão – abafada em nossa literatura – acer- obra: “O mundo se transforma de maneira avas-
ca dos efeitos regressivos que nosso modelo de saladora, e as universidades têm que acompanhar
seleção de acesso impõe, não apenas às próprias essas mudanças ou ficarão obsoletas”. Elas não
políticas de ação afirmativa, mas ao ensino médio. podem ser uma bolha.
Em suas palavras, com a onipresença dos exames
de acesso, o ensino médio acaba se convertendo Elizabeth Balbachevsky é professora no Departamento de Ciência
num “longo curso preparatório para uma uni- Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e autora de A profissão
versidade”. Em um país onde as matrículas no acadêmica no Brasil: As múltiplas facetas de nosso sistema de ensino
ensino superior alcançam bem menos do que superior (Editora Funadesp, 1999).

96 | FEVEREIRO DE 2023
FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO
COMENTÁRIOS cartas@fapesp.br

PRESIDENTE
Marco Antonio Zago

VICE-PRESIDENTE
Ronaldo Aloise Pilli

CONSELHO SUPERIOR
Ciência cidadã (edição 322). Temos orgulho dessas pes-
Excepcional a reportagem “A ciência em quisadoras extraordinárias.
David Everson Uip, Helena Bonciani Nader, Herman Jacobus
Cornelis Voorwald, Ignácio Maria Poveda Velasco, Liedi Legi
Bariani Bernucci, Mayana Zatz, Mozart Neves Ramos, Pedro
Luiz Barreiros Passos, Pedro Wongtschowski, Thelma Krug parceria com o público” (edição 323). Aracy Pereira Silveira Balbani
CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO Apoio irrestrito a pessoas que têm e
DIRETOR-PRESIDENTE
Carlos Américo Pacheco
usam o cérebro, não apenas aos que es-
DIRETOR CIENTÍFICO tão nos redutos da academia. Basta dar Vídeos
Luiz Eugênio Mello
oportunidades. Pertinentíssimo o assunto explorado em
DIRETOR ADMINISTRATIVO
Fernando Menezes de Almeida Norberto Garcia-Cairasco “O que é deepfake?”, com conteúdo extre-
mamente atualizado à realidade de hoje.
Edson Fernando Souza
ISSN 1519-8774 Inovação frugal
COMITÊ CIENTÍFICO
As inovações frugais (“Seja simples”, edi- Muito bom o trabalho. Espero que de-
Luiz Nunes de Oliveira (Presidente),
Agma Juci Machado Traina, Américo Martins Craveiro, Anamaria
ção 322) arregimentam, dominantemente, senvolvam ferramentas eficazes para a
Aranha Camargo, Ana Maria Fonseca Almeida, Angela Maria Alonso,
Carlos Américo Pacheco, Claudia Lúcia Mendes de Oliveira, Deisy
recursos e conhecimentos endógenos, de detecção de deepfakes e seja elaborada
das Graças de Souza, Douglas Eduardo Zampieri, Eduardo de Senzi
Zancul, Euclides de Mesquita Neto, Fabio Kon, Flávio Vieira Meirelles,
origem local, aos territórios, elevando uma regulamentação eficaz no Brasil, ou
Francisco Rafael Martins Laurindo, João Luiz Filgueiras de Azevedo,
José Roberto de França Arruda, Lilian Amorim, Lucio Angnes, Luciana
a produtividade com maior incorpora- teremos problemas sérios em um futuro
Harumi Hashiba Maestrelli Horta, Luiz Henrique Lopes dos Santos,
Mariana Cabral de Oliveira, Marco Antonio Zago, Marie-Anne Van Sluys,
ção local dos resultados. Na Amazônia, bem próximo.
Maria Julia Manso Alves, Marta Teresa da Silva Arretche, Reinaldo
Salomão, Richard Charles Garratt, Roberto Marcondes Cesar Júnior,
observam-se dilemas estratégicos entre Sebastião Vilaça
Wagner Caradori do Amaral e Walter Collii
tecnologias endógenas (predominante-
COORDENADOR CIENTÍFICO
Luiz Nunes de Oliveira mente frugais) e exógenas (dependentes Legal o conteúdo do vídeo “Microrga-
DIRETORA DE REDAÇÃO da fronteira tecnológica). Na economia do nismos estão por todos os lados (e isso
açaí, por exemplo, concorre a tecnologia não é um problema)”. Será de grande
Alexandra Ozorio de Almeida

EDITOR-CHEFE
Neldson Marcolin dos pequenos “batedores de açaí”, que, es- aprendizado para levar à comunidade
EDITORES Fabrício Marques (Política C&T), Glenda Mezarobba
(Humanidades), Marcos Pivetta (Ciência), Yuri Vasconcelos
calonada paroquialmente para a indústria, em que trabalho.
(Tecnologia), Carlos Fioravanti e Ricardo Zorzetto (Editores especiais) produz a melhor polpa. Já a tecnologia Eliane Munhoz
REPÓRTERES Christina Queiroz e Rodrigo de Oliveira Andrade
genérica para polpa de frutas gera um
MÍDIAS DIGITAIS Fabrício Marques (Coordenador), Maria
Guimarães (Editora executiva), Renata Oliveira do Prado (Editora
produto sofrível. É realmente relevante Atuo na saúde primária e quanto mais
de mídias sociais), Jayne Oliveira (Analista digital), Kézia Stringhini
(Redatora on-line), Vitória do Couto (Designer digital) e
difundir esses matizes conceituais. conhecimento, melhor, como esse vídeo
Sarah Caravieri (Produtora do programa de rádio Pesquisa Brasil)
Francisco de Assis Costa dos microrganismos. Ajuda a fazer um
ARTE Claudia Warrak (Editora),
Júlia Cherem Rodrigues e Maria Cecilia Felli (Designers), bom trabalho com a minha equipe na
Alexandre Affonso (Editor de infografia), Felipe Braz (Designer digital),
Amanda Negri (Coordenadora de produção) área de abrangência em que opero.
FOTÓGRAFO Léo Ramos Chaves Entrevistas Cláudio Costa
BANCO DE IMAGENS Valter Rodrigues Parabéns pelas ótimas entrevistas com
REVISÃO Alexandre Oliveira e Margô Negro Marta Azevedo (edição 321), Maria Sua opinião é bem-vinda. As mensagens poderão ser re-
COLABORADORES Aline Novais de Almeida, Ana Paula Orlandi,
Diego Viana, Domingos Zaparolli, Elizabeth Balbachevsky,
Cristina Kupfer e Yvonne Mascarenhas sumidas por motivo de espaço e clareza.
Fernanda Quaglio, Gilberto Stam, Giselle Soares, Maíra Mendes,
Meghie Rodrigues, Rodrigo Cunha, Sinésio Pires Ferreira,
Suzel Tunes, Veridiana Scarpelli

REVISÃO TÉCNICA Ana Maria Fonseca de Almeida, Américo


Craveiro, Celio Haddad, Deisy de Souza, Luiz Vitor de Souza Filho,
ASSINATURAS, RENOVAÇÃO CONTATOS
Francisco Laurindo, José Roberto Arruda, Humberto Breves Coda,
Marta Arretche, Rafael Oliveira, Ricardo Hirata, Walter Colli
E MUDANÇA DE ENDEREÇO revistapesquisa.fapesp.br
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PESQUISA FAPESP 324 | 97


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Sua pesquisa rende fotos bonitas? Mande para imagempesquisa@fapesp.br


Seu trabalho poderá ser publicado na revista.

Cavernas nascidas do mar


Há cerca de 1 bilhão de anos era mar nos arredores de
Coromandel, cidade no oeste de Minas Gerais. Os únicos seres
vivos existentes eram microrganismos que habitavam o fundo:
cianobactérias capazes de fazer fotossíntese e arqueas.
Seu metabolismo induzia a precipitação de carbonato de
cálcio, formando as estruturas conhecidas como estromatólitos.
Os domos empilhados registrados na fotografia indicam uma
situação razoavelmente protegida, na qual as águas tinham
corrente de fundo, mas sem quebra de ondas. Só centenas
de milhões de anos depois, há no máximo 10 mil anos, a água
esculpiu essas rochas formando as cavernas.

Imagem enviada pela paleontóloga Fernanda Quaglio,


professora no campus de Diadema da Universidade Federal
de São Paulo (Unifesp)

98 | FEVEREIRO DE 2023
TENHA
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