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A noção de paradigma
Para definir a estrutura paradigmática da psicologia social comunitária, devemos primeiro
esclarecer do que estamos falando quando usamos a palavra paradigma, pois, como se sabe, o termo
tem nada menos que 21 conotações diferentes (Masterman, 1975). Um paradigma é entendido como
um modelo ou modo de conhecer, que inclui tanto uma concepção do indivíduo ou sujeito
cognoscente quanto uma concepção do mundo em que vive e das relações entre ambos. Isto supõe um
conjunto sistemático de ideias e práticas que regem as interpretações sobre a actividade humana, sobre
os seus produtores (Munné, em 1989, fala de um modelo de homem), a sua génese e os seus efeitos
nas pessoas e na sociedade, e que indicam modos preferenciais de fazer para conhecê-los (Montero,
1993, 1996b).
Segundo Munné (1989), para que haja paradigma é preciso [...] gerar uma comunidade
científica informal, mas bem diferenciada, caracterizada por ter canais de comunicação próprios, por
compartilhar a mesma abordagem epistemológica, por utilizar uma terminologia conceptual comum,
por utilizar um determinado método ou métodos, e mesmo por assumir uma escala de valores
semelhante (Munné, 1989: 32).
Acredito que tais demandas sejam atendidas no caso da psicologia comunitária, pois se
compararmos os desenvolvimentos realizados tanto na América Latina quanto nos Estados Unidos
(corrente ecológico-cultural, psicologia para o bem-estar e libertação de Nelson e Prillekensky, 2003
), no Canadá, na Austrália (Bishop, Sonn, Drew & Contos, 2002) e na Inglaterra (Orford, 1998),
podemos encontrar diferenças em teorias específicas; Mas também é possível perceber como, nos
aspectos fundamentais de natureza paradigmática, há uma coincidência: diálogo, libertação, apoio
social, consciência, inclusão social, ética são aspectos que mais cedo ou mais tarde encontramos nas
obras do psicólogos comunitários mais destacados do último quarto de século. Pode-se dizer, então,
que existe uma comunidade diferenciada, que possui canais de comunicação (a Comissão de
Psicologia Comunitária da Inter-American Psychological Society, Divisão 27 da American
Psychological Association, a Society for Community Research and Action e um bom número de
revistas especializadas internacionais e nacionais) e que partilha inúmeras técnicas e métodos, tanto
qualitativos como quantitativos. E essa comunidade sustenta com sua práxis o paradigma que aqui se
apresenta, construído por psicólogos que trabalham com comunidades e que há mais de três décadas
vêm esculpindo arduamente um modelo de produção de conhecimento cujos produtos apresento em
cinco dimensões.
Ontológico: diz respeito à natureza e definição do sujeito cognoscente, condição que na
psicologia comunitária não se limita a um único tipo de "conhecedor" proveniente de uma única
instituição social, quase sempre a ciência. Uma vez que a psicologia comunitária reconhece a natureza
produtora de conhecimento dos membros das comunidades, então a natureza da relação entre
pesquisadores externos (psicólogos e psicólogos) e as pessoas que compõem as comunidades (aqueles
que na pesquisa tradicional são chamados de "sujeitos") é um aspecto fundamental neste paradigma.
Epistemológico: refere-se à relação entre sujeitos conhecedores e objetos de conhecimento.
conhecimento, e neste paradigma é marcado pela complexidade e pelo caráter relacional, isto é, pelo
fato de que o conhecimento é sempre produzido nas e pelas relações e não como uma ocorrência
isolada de um indivíduo solitário.
Metodológico: trata das formas utilizadas para produzir conhecimento, que na psicologia
comunitária tendem a ser predominantemente participativas, embora não sejam excluídas outras
maneiras.
Ética: refere-se à definição do Outro e sua inclusão na relação de produção do conhecimento,
respeito a esse Outro e sua participação na autoria e propriedade do conhecimento produzido.
Política: refere-se à natureza e finalidade do conhecimento produzido, bem como seu alcance
de aplicação e seus efeitos sociais -ou seja, a natureza política da ação comunitária- e a possibilidade
que qualquer entidade tem de se expressar e fazer ouvir sua voz sem espaço público.
Vejamos a seguir como esse paradigma da psicologia comunitária se configura em cada uma
dessas cinco dimensões.
Dimensão ontológica
Dimensão epistemológica
Esta dimensão refere-se à natureza da produção do conhecimento. Tal relação é colocada com
um caráter monista, o que significa que não há distância entre sujeito e objeto. Eles não são tratados
como entidades separadas e independentes, para cuja relação e contato devem ser dadas aproximações
mediadas por procedimentos que podem ou não estar presentes em alguns sujeitos ou em alguns
objetos. É que ambos, sujeito e objeto, são considerados parte de uma mesma dimensão em uma
relação de influência mútua. O sujeito constrói uma realidade, que por sua vez a transforma, limita e
impulsiona. Ambos estão sendo construídos continuamente, em um processo dinâmico, num
movimento constante que não só é dialético, mas também pode ser analético (Dussel, 1998). Por
analética1 entende-se a extensão da dialética que permite incluir na totalidade formada pela tese, sua
antítese e a síntese de ambas, a diversidade e a estranheza do outro inimaginável, que ao entrar nessa
relação a enriquece e a amplia ao mesmo tempo. mesmo tempo. Em suma, trata-se de um monismo
dinâmico que supõe internamente um movimento contínuo de transformação mútua entre o sujeito
cognoscente e o objeto conhecido, que contém os termos dessa relação em uma única substância.
Mas, além disso, essa construção é social e, portanto, relativa, pois responde a um
determinado momento e espaço, pois é produzida historicamente. Com isso não negamos a existência
da realidade, apenas nos apropriamos daquilo que nos corresponde, pois é um mundo de
conhecimento que corresponde aos nossos esforços e histórias ao respondê-las. Assim, a realidade,
para esta concepção de conhecimento, é inerente aos sujeitos que a constroem ativa e simbolicamente
todos os dias, dando-lhe existência, e dela fazem parte. A realidade está no sujeito e ao seu redor; por
sua vez, o sujeito está na realidade, faz parte dela, não sendo possível separá-los.
Dimensão metodológica
1
O prefixo grego ana significa "do além".
Métodos capazes de produzir perguntas e respostas às suas transformações e às abordagens que
provocam. Métodos cuja característica fundamental é a capacidade de mudar de acordo com as
mudanças no problema estudado, de modo que as construções sejam geradas em uma ação crítica e
reflexiva de caráter coletivo. Pretende-se então construir uma metodologia dialógica, dinâmica e
transformadora que incorpore a comunidade "no seu auto-estudo" (Santiago, Serrano-García e
Perfecto, 1992: 285); Por isso, como já foi dito, a dialéctica alarga-se tornando-a analética,
conseguindo assim uma forma de intervenção e estudo que responde aos interesses das pessoas a
quem se supõe que os seus benefícios se destinam.
Dimensão ética
A definição do Outro e sua inserção na relação de produção do conhecimento constituem o eixo dessa
dimensão. O seu principal objetivo é a relação com o Outro em termos de igualdade e respeito,
incluindo a responsabilidade que cada um tem para com o Outro, entendendo por responsabilidade
não responder ao, mas responder pelo Outro (Dussel, 1998). É uma consideração do Outro não como
um objeto criado por quem controla certos recursos na relação, nem como um produto da imaginação
dessa pessoa, o que na psicologia comunitária significa reconhecer a existência independente da
comunidade como uma forma de grupo e de seus membros em sua singularidade, em seu caráter de
donos de uma história por eles construída, antes e depois da intervenção comunitária.
A concepção ética passa pelo caráter inclusivo do trabalho comunitário, no qual se busca integrar,
respeitando as diferenças individuais, ao invés de excluir ou separar. A comunidade como grupo ou
grupo de grupos organizados tem voz própria, e seus membros ativos têm capacidade de tomar e
executar suas próprias decisões, têm capacidade e direito de participar. Como comunidade é um
substantivo coletivo, mesmo quando se trabalha com grupos organizados da comunidade
relativamente pequena, é necessário orientar este trabalho para a participação daquelas pessoas que,
embora não façam parte desses grupos, têm participação nos processos que afetam e compõem a
comunidade.
A ética do relacionamento
De acordo com o paradigma em que se situa esta subdisciplina, fala-se no campo comunitário de uma
ética da relação, que defini assim:
Uma ética baseada no relacionamento supõe uma forma de expressão da retidão que vai além do
direito de afirmar o próprio interesse, de considerar o interesse comum acima do bem-estar individual.
[...] A equidade da ética da relação supõe reconhecer não só o caráter humano e a dignidade do outro,
mas também que a alteridade não é uma lacuna, uma diferença, algo que distingue, que separa, mas
faz parte da EU. Que cada um é outro e que cada um é um eu (Montero, 2000a).
De tal concepção ética decorrem consequências que se manifestam em todas as dimensões
paradigmáticas. Para a psicologia comunitária, o respeito ao outro, sua inclusão em toda a sua
diversidade, sua igualdade, seus direitos e obrigações se expressam no campo ontológico, na definição
de seu objeto de estudo; nos aspectos epistemológicos, na relação de produção conjunta de
conhecimento entre agentes externos e internos, e nessa forma de defini-los como produtores de
conhecimento; na dimensão metodológica, na medida em que transforma as formas e modos de
conhecer, e na vertente política da disciplina, ao apontar os seus objetivos e o efeito que podem ter no
espaço público e na sociedade em geral. Essas consequências podem ser resumidas da seguinte forma:
• O Outro não é um objeto criado pelo Um2. Para além da construção que se faz desse Outro, existe
uma existência que por sua vez constrói a si mesma e aos que a rodeiam. Isso se traduz na psicologia
comunitária em sua definição da existência independente e histórica da comunidade como forma de
grupo, e de seus membros em sua singularidade. Como já foi dito, a comunidade como grupo ou
grupo de grupos organizados tem voz própria, e seus membros ativos têm capacidade de tomar e
executar suas próprias decisões, têm capacidade e direito de participar.
• A cultura e as suas modalidades refletem-se tanto na comunidade e nos seus agentes internos como
nos agentes externos. E os padrões de relacionamento para entender e errar, ao se desenvolverem
culturalmente, se transformam no relacionamento (Montero, 2000a).
• A relação é sempre dialógica e tem caráter discursivo. Isso significa que as relações humanas devem
estar abertas a uma multiplicidade de vozes. Impor silêncio a determinadas categorias sociais é
antiético e é uma forma de suprimir ou excluir o outro.
• Consequentemente, a psicologia comunitária está aberta à pluralidade de formas de produzir
conhecimento e transformação. Aceitar que o conhecimento pode ser dado em diferentes ambientes,
por diferentes meios, é uma noção que na psicologia comunitária está ligada ao princípio de que teoria
e prática não podem ser separadas (ver Capítulo 5).
• O aspecto crítico se expressa na reflexão permanente sobre o que está sendo feito e leva à
conscientização sobre o que se apresenta como uma forma natural de ver as coisas.
Parece inútil, se não redundante, definir ética. A vida cotidiana é repleta de menções e usos
relacionados à ética. Em qualquer rua ou mesa de qualquer cidade, todos os dias alguém diz a alguém
que Fulano "assumiu uma atitude ou posição ética" ou que Zutano "não tem ética". Da mesma forma,
todos os dias alguém é lembrado de "manter uma conduta ética", ou códigos de ética profissional são
citados ou invocados. E tudo isso é feito como algo natural e típico das tarefas diárias. Mas será que a
mesma coisa está sendo falada nos exemplos apresentados? Na conversa cotidiana, as palavras que
avaliam ou julgam o comportamento de alguma pessoa conhecida parecem referir-se a um cânone que
regula o comportamento e o humor das pessoas no convívio social. No caso dos chamados códigos de
ética profissional, trata-se de conjuntos de disposições que regem a forma como a profissão específica
a que se referem deve ser exercida na sua relação com as pessoas com quem vai lidar. Parece então
que existem diferentes níveis de significado referidos à ética. E de fato é. Os referidos códigos tratam
de normas deontológicas relativas aos diferentes exercícios profissionais. E a deontologia trata dos
deveres e do seu correcto cumprimento.Assim, cumprir o código deontológico da profissão de
psicólogo, por exemplo, é fazê-lo através de boas práticas, observando as normas que regulam o
exercício da profissão.
Por outro lado, quando alguém é acusado de falta de ética, violando a ética ou indo contra ela,
aludindo a condutas condenáveis, está-se entrando no campo da moralidade. Ou seja, o que trata do
bem em geral e do caráter mau ou bom das ações conforme a cultura em que se vive. X deve ter
observado um determinado comportamento, de outra forma esperado, de pessoas como as envolvidas
em uma situação específica. Mas X não agiu da maneira adequada e esperada, por isso é acusado de
ser antiético, de violar a ética. Parece então que a ética se refere ao substrato sobre o qual se baseiam
as práticas desejadas e desejáveis e consideradas boas em cada cultura (moral), e a partir do qual se
regulam os comportamentos julgados ótimos para cada profissão (deontologia).
Na psicologia, como em muitas outras áreas profissionais, é comum encontrar uma fusão
entre ética, moral e deontologia. É muito bom que existam normas que regulem as práticas
profissionais, mas é igualmente oportuno explicitar os princípios éticos que constituem o substrato
dessas normas. E, em geral, os três níveis de distinção entre bom e mau devem ser localizados em seu
grau de especificidade e generalidade.
Já vimos do que se trata a ética. A moralidade é o conjunto de prescrições e normas culturais através
das quais se expressa a ética, cujo cumprimento se insta a cumprir num momento e numa determinada
sociedade ou cultura. Como indica sua etimologia (vem do latim mores, ou seja, costumes), a moral
diz respeito aos modos de fazer e de se comportar.
2
As letras maiúsculas são usadas nas palavras Outro e Um para indicar o caráter genérico da alteridade (Outro) e da unidade
(Um), referindo-se ao sujeito de cuja perspectiva uma relação é colocada.
Ética e moral caminham juntas, a primeira influenciando a segunda, mas não são termos
intercambiáveis. No entanto, como foi dito, o que se costuma falar, e o que se encontra
frequentemente nos manuais e tratados científicos, é a deontologia, ou seja, o conjunto de regras a
seguir para observar um comportamento moralmente impecável, mas não necessário e totalmente
ético, uma vez que normas socialmente aceitáveis podem excluir certas categorias ou grupos, ou
podem permitir práticas que os prejudiquem. Ao mesmo tempo, tudo isso reflete uma posição ética
anterior a eles que determina seu sentido e orientação. Os códigos de ética profissional, então, são
conjuntos de regras de conduta pertencentes à ordem moral que se enquadram no campo, sempre
aplicado, da deontologia ou teoria dos deveres.
Dimensão política
A ideia da relação como esfera fundamental do ser e do saber começou a ser sentida no
campo das ciências sociais latino-americanas no início da segunda metade do século XX. A obra
inicial de Paulo Freiré (1988) expressa-o com grande clareza. “Somos seres de relações em um mundo
de relações”, afirma, referindo-se à necessidade de entender que o conhecimento não é produzido em
pessoas isoladas, mas na intersubjetividade que é produto da relação. A filosofia da libertação, outro
produto latino-americano, continuou a elaborar a ideia (Dussel, 1973; 1998) e no campo da psicologia
foi trabalhada por Moreno (1993) e por Guareschi (1996).
Guareschi (1996: 82) define a relação como “o ordenamento ou direção intrínseca de uma
coisa na direção de outra”, e cita uma frase dita por uma jovem em uma comunidade: “uma relação é
algo que não pode ser ela mesma se não haveria outro" (1996: 82). Parece-me que tal concepção
responde ao que é a essência do social, indicando que não se está apenas na relação, mas que se está
na relação, pois ninguém pode ficar sem o outro, assim como esse outro é , igualmente , o correlato do
eu. Guareschi (1996: 83) fala de pessoas-relação, o que se explica porque a pessoa só pode existir em
relação. Para além da relação só existe o mundo das coisas, que é o mundo na medida em que a nossa
relação com ele o define. A não-relação é o vazio, o nada. Mas vou mais longe: nem a coisa, nem o
nome, nem eu nem você, existem senão na relação. A relação faz os seres que a constroem.
A psicologia comunitária é definida como uma psicologia de relacionamentos criada para um
mundo relacional. Seu objeto trata de formas específicas de relacionamento entre pessoas unidas por
laços identitários construídos em relações historicamente estabelecidas, que por sua vez constroem e
delimitam um campo: a comunidade. Portanto, não é possível realizar ações comunitárias a partir de
uma concepção fragmentária da comunidade, construída a partir da soma de indivíduos isolados. O
ser, como entidade individual, é uma noção incompleta que omite, por um exercício intelectual, uma
parte de si: o Outro, com o qual se relaciona e do qual é alter.
Resumo
O que aqui se descreve configura um modelo de ação, delineia também uma práxis de
reflexão crítica e insere-se numa corrente, numa forma de fazer ciência e especificamente psicologia
que integra um paradigma, isto é, uma forma de produzir e organizar o conhecimento. forma de
compreender o mundo e o ser humano. Tal modelo surgiu em uma psicologia da ação para a
transformação, na qual pesquisadores e sujeitos estão do mesmo lado da relação de estudo, ambos
fazendo parte da mesma situação.
O paradigma assim construído é analisado em suas cinco dimensões: ontologia,
epistemologia, metodologia, ética e política; são indicadas as características que as configuram e é
apresentada a perspectiva holística e relacional em que se baseia. Aspectos éticos relativos não só à
prática da psicologia comunitária, mas também aos seus produtos e à questão da autoria e coautoria do
conhecimento são discutidos.
Destaca-se a episteme da relação com a sua concepção de uma ontologia e de uma
epistemologia em que a relação é o espaço fundamental da construção do ser, do conhecimento e da
ética como fundamento das formas de se relacionar e da práxis comunitária.
3
Como é o caso das crianças selvagens
Tabela 4
Estrutura do paradigma da construção e transformação crítica