Você está na página 1de 18

A paisagem como direito individual e

difuso
Paulo Affonso Leme Machado
Professor na Universidade Metodista de Piracicaba. Doutor em Direito pela PUC-SP. Advogado.
Doutor Honoris Causa pela Universidade Estadual Paulista – UNESP (Brasil), pela Vermont Law
School (Estados Unidos) e pela Universidade de Buenos Aires (Argentina). Mestre em Direito
Ambiental pela Universidade Robert Schuman/Strasbourg (França). Prêmio de Direito Ambiental
Elizabeth Haub (Alemanha/Bélgica). Promotor de Justiça/SP (aposentado). Chevalier de La
Légion d´Honneur.

Resumo: O artigo trata do tema da paisagem como direito individual e


direito difuso, inicialmente, no âmbito do ordenamento constitucional
brasileiro. Em seguida, é apresentada uma breve análise do tema no direito
comparado. Por fim, aspectos processuais, penais e civis da tutela do
referido direito são discutidos.
Palavras-chave: Paisagem. Acesso à paisagem. Direito à paisagem. Fruição
da paisagem. Função social da propriedade. Observador da paisagem.
Sumário: Introdução – 1 Paisagem e a legislação constitucional e in­
fraconstitucional – 2 Amplitude da conceituação de paisagem – 3 Acesso
à paisagem – 4 Aspectos penais e processuais da paisagem – Conclusão –
Referências

Introdução
Iremos tratar da paisagem nos seguintes itens: (1) paisagem e a legislação
constitucional e infraconstitucional; (2) a amplitude da conceituação de paisa-
gem; (3) acesso à paisagem e (4) aspectos penais e processuais da paisagem.

1 Paisagem e a legislação constitucional e infraconstitucional


A paisagem foi objeto da atenção dos constituintes em diferentes constitui-
ções que o Brasil teve, em épocas e circunstâncias políticas totalmente diversas.

1.1 Legislação constitucional

1.1.1 Constituições anteriores


Na Constituição Federal de 1937, rege a matéria o art. 134, que diz:
os monumentos históricos, artísticos ou naturais, assim como as paisagens ou os locais par-
ticularmente dotados pela natureza, gozam da proteção e dos cuidados especiais da Nação,
dos Estados e dos Municípios. Os atentados contra eles cometidos serão equiparados aos
cometidos contra o patrimônio nacional.

Int. Públ. – IP, Belo Horizonte, ano 19, n. 106, p. 15-32, nov./dez. 2017

IP_106_MIOLO.indd 15 13/12/2017 14:56:14


16  Paulo Affonso Leme Machado

A Constituição Federal de 1946 estabeleceu no art. 175: “as obras, monu-


mentos e documentos de valor histórico e artístico, bem como os monumentos
naturais, as paisagens e os locais dotados de particular beleza, ficam sob a prote-
ção do poder público”.
Nas duas constituições mencionadas – a de 1937 e a de 1946 – não se valo-
riza a paisagem comum, mas aquela “particularmente dotada pela natureza” ou
a de “particular beleza”.
Na Constituição Federal de 1967, o parágrafo único do art. 172, precei-
tua: “ficam sob a proteção especial do poder público os documentos, as obras e
os locais de valor histórico ou artístico, os monumentos e as paisagens naturais
notáveis, bem como as jazidas arqueológicas”.
O art. 180 e seu parágrafo único da Emenda Constitucional nº 1/1969 têm
texto idêntico ao da Constituição de 1967.
Os dois textos constitucionais – o de 1967 e o de 1977 – condicionam a
proteção especial para a paisagem que seja “natural” e “notável”.

1.1.2 A Constituição do Brasil de 1988


O patrimônio cultural é formado pelos “conjuntos urbanos e sítios de
valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e
cien­tífico” (art. 216, inc. V, CF).
A Constituição em vigor insere uma nova noção, a de “valor paisagístico”.
Como nas constituições anteriores, será preciso avaliar-se o valor da paisagem
para ser possível a sua proteção jurídica. Contudo, a Constituição de 1988 não
exigiu que a paisagem seja notável, de particular beleza ou com especial caracte-
rística. O exame de cada caso irá possibilitar ou não a proteção da paisagem, que
pode ser, segundo o art. 216 acima citado, inclusive, uma paisagem ordinária ou
comum, mas que mereça proteção.
No art. 23, III, a Constituição fala em “paisagens naturais notáveis”.
Entendo que o art. 23 menciona as competências comuns federadas, mas não
tem por objetivo tratar em profundidade cada matéria, e, sim, visa coordenar a
divisão de poder entre os entes federados. O art. 23 não esgota cada matéria –
saúde, documentos, acesso à cultura, educação e ciência, proteção do meio
ambiente, fomento da produção agropecuária, construção de moradias, causas
da pobreza, exploração de recursos hídricos e mineração, educação do trân-
sito. O art. 216, V, da Constituição, tendo maior abrangência que o art. 23, III,
merece ser entendido como tendo uma eficácia mais ampla e como tal merece
ser acatado e cumprido.

1.2 Divisão de competências constitucionais e paisagem


No plano das competências, a União, os estados e os municípios têm com-
petência comum para proteger as “paisagens naturais notáveis” (art. 23, III). Os
três entes públicos podem e devem igualmente tomar medidas administrativas

Int. Públ. – IP, Belo Horizonte, ano 19, n. 106, p. 15-32, nov./dez. 2017

IP_106_MIOLO.indd 16 13/12/2017 14:56:14


A paisagem como direito individual e difuso  17

de proteção e conservação da paisagem. Não há na execução ou implementação


das normas jurídicas qualquer superioridade da União sobre os estados e dos
estados sobre os municípios.
Já quanto à elaboração das leis sobre paisagem, a União e os estados têm
competência concorrente para legislar sobre a “proteção do patrimônio paisa-
gístico” (art. 24, VII). A competência concorrente significa que enquanto não
houver nenhuma lei federal sobre paisagem, os estados podem legislar com com-
petência plena sobre as suas peculiaridades paisagísticas. Contudo, no momento
em que a União estabelecer normas gerais sobre a paisagem, os estados são
obrigados a adaptar a legislação, que já tiverem, às novas disposições federais.
A União não pode descer a minúcias nos textos legais sobre paisagem.
A inserção das particularidades de cada estado ou de cada município poderá ser
feita por eles, através do uso da competência suplementar, desde que se respeite
o conteúdo das normas gerais federais sobre o patrimônio paisagístico.
Interessa apontar o emprego da noção de patrimônio paisagístico. A
con­cep­ção de patrimônio é mais larga do que a de propriedade e projeta um
re­la­cio­na­mento de gerações, pois as gerações presentes conservarão paisagens
não só para si mesmas, mas para as gerações que as sucederão. O fato de a paisa-
gem inte­grar o patrimônio cultural não ocasiona sua imobilização. A percepção
da sus­ten­ta­bi­lidade da paisagem deve levar em conta os comportamentos que
ga­ran­tam a sua permanência ou sua duração e sua fruição.

1.3 Previsão da paisagem nas leis ordinárias federais

1.3.1 Decreto-Lei nº 25, de 30.11.1937

Art. 1º [...]
§2º Equiparam-se aos bens a que se refere o presente artigo e são também sujeitos a tom-
bamento os monumentos naturais, bem como os sítios e paisagens que importe conservar e
proteger pela feição notável com que tenham sido dotados pela natureza ou agenciados pela
indústria humana.

A norma abrange a paisagem notável, quer seja natural, quer seja fruto
da ação humana. Interessa assinalar que a legislação do patrimônio vinha sendo
elaborada através de projeto de lei no Congresso Nacional, mas ocorreu o golpe
de 10.11.1937, o que levou à transformação do projeto em decreto-lei.1
A norma acima mencionada pretende disciplinar “sítios e paisagens que
importe conservar e proteger”. Conservar é manter, é fazer perdurar no tempo
e no espaço. Proteger é fazer uma gestão que evite danos aos sítios e paisagens.
As duas noções têm muito em comum, mas podem ser focalizadas separada-
mente.

1
MACHADO, Paulo A. L. Direito ambiental brasileiro. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2017. p. 1153.

Int. Públ. – IP, Belo Horizonte, ano 19, n. 106, p. 15-32, nov./dez. 2017

IP_106_MIOLO.indd 17 13/12/2017 14:56:14


18  Paulo Affonso Leme Machado

As paisagens estão sujeitas ao processo de tombamento, como menciona


o §2º do art. 1º do Decreto-Lei nº 25. A matéria será tratada em outro tópico.

1.3.2 Lei nº 7.347, de 24.7.1985

Art. 1º Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de res-
ponsabilidade por danos morais e patrimoniais causados: [...]
III - a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; [...].

As ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados


a bens e direitos de valor paisagístico poderão ser propostas pelo Ministério
Público Federal ou Estadual, pelas associações que tenham por finalidade pro-
teger o meio ambiente, aí incluídas, implicitamente, a paisagem e as entidades
públicas mencionada na lei.
A ação civil poderá ter por objeto a condenação em dinheiro ou o cumpri-
mento de obrigação de fazer ou não fazer, conforme a Lei nº 7.347.
A Constituição de 1988 repetiu a mesma expressão constante na Lei
nº 7.347, de 1985, ao empregar a expressão “valor” paisagístico. O termo “valor”
não tem somente uma conotação econômica, mas implica a proteção de um bem
que tenha importância social, histórica e científica. Estudos serão feitos para
avaliar a existência do valor do bem paisagístico a ser protegido.

1.3.3 Lei nº 9.985, de 18.7.2000, que institui o Sistema Nacional de Unidades


de Conservação da Natureza
O Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza – SNUC –
art. 3º – tem como um de seus objetivos: “VI - proteger paisagens naturais e
pouco alteradas de notável beleza cênica; [...]”.
Não há de se confundir a unidade de conservação, onde se possa proteger
uma paisagem, com o direito a determinada paisagem. Numa unidade de conser­
vação é possível uma pluralidade de paisagens, que possam ser protegidas, com
regras jurídicas próprias, especialmente levando-se em conta a sua preservação.

1.3.4 Lei nº 10.257, de 10.7.2001 – Estatuto da Cidade

Art. 2º A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções
sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais: [...]
XII - proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patri-
mônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico; [...].

A política urbana deverá planejar e atuar no sentido da proteção do patri-


mônio paisagístico, ordenando o pleno desenvolvimento das funções sociais da
cidade e da propriedade urbana. Ressalte-se que a Lei nº 10.257 – lei federal –
não ficou presa à noção de notabilidade do patrimônio paisagístico, mas desde

Int. Públ. – IP, Belo Horizonte, ano 19, n. 106, p. 15-32, nov./dez. 2017

IP_106_MIOLO.indd 18 13/12/2017 14:56:14


A paisagem como direito individual e difuso  19

que esse patrimônio tenha valor social, histórico e científico, merecerá ser con-
servado e protegido.
É relevante que o Estatuto da Cidade tenha utilizado a expressão “patri-
mônio” com referência à cultura, à história, à arte, à paisagem e à arqueologia.
Patrimônio é um conjunto de valores que abarca o passado e o presente com
vistas ao futuro. Reitera-se que a conservação de um patrimônio tem uma liga-
ção íntima com sustentabilidade ou com durabilidade dos bens. O conceito de
propriedade está mais próximo da utilização imediata do bem, enquanto que o
conceito de patrimônio paisagístico não se liga tanto ao gozo material do bem,
mas à fruição intelectiva, sentimental e educativa presente e futura.
Ao tratar do Estudo de Impacto de Vizinhança, determina a Lei nº 10.257,
em seu art. 37:
Art. 37. O Estudo de Impacto de Vizinhança – EIV será executado de forma a contemplar
os efeitos positivos e negativos do empreendimento ou atividade quanto à qualidade de vida
da população residente na área e suas proximidades, incluindo a análise, no mínimo, das
seguintes questões: [...]
VII - paisagem urbana e patrimônio natural e cultural.

Um dos aspectos da ordenação da cidade é o planejamento da paisagem


urbana. Dentro das concepções de paisagem, a de paisagem urbana abrange o
visual da cidade, como as suas casas, seus prédios, suas ruas, suas calçadas, suas
lojas, suas fábricas e seu setor de serviços. A paisagem urbana merece ser anali-
sada no seu aspecto de beleza ou de desorganização e até de feiura. O Estudo de
Impacto de Vizinhança não pode ignorar a paisagem urbana existente e a paisa-
gem urbana desejável no futuro. “O urbanista deve levar em conta as dimensões
visíveis, sonoras, táteis e olfativas do espaço para oferecer uma qualidade urbana
nova”.2
Aponte-se que o Estudo de Impacto de Vizinhança é integralmente
pú­bli­co (art. 37, parágrafo único) e, na gestão democrática da cidade, na qual se
inclui a presença e o gerenciamento da paisagem, devem ser utilizados debates,
au­diên­cias e consultas públicas (art. 43, II).

1.3.5 Lei nº 12.651, de 25.5.2012

Art. 3º Para os fins desta Lei, entende-se: [...]


II - Área de Preservação Permanente - APP: área protegida, coberta ou não por vegetação nativa,
com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geoló-
gica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar
o bem-estar das populações humanas; [...].

2
ASCHER, François. Les nouveaux principes de l´urbanisme. Paris: Éditions de l´Aube, 2011 apud LOPEZ, Elise.
La convention européenne du paysage et le droit français du paysage. Dissertação – Université Lumière de
Lyon 2, 2016.

Int. Públ. – IP, Belo Horizonte, ano 19, n. 106, p. 15-32, nov./dez. 2017

IP_106_MIOLO.indd 19 13/12/2017 14:56:14


20  Paulo Affonso Leme Machado

A lei florestal de 2012 estabeleceu como área de preservação permanente –


APP a área protegida, coberta ou não por vegetação nativa, que tenha entre
suas funções ambientais a de preservar a paisagem. Nada é desprezível na lei e,
portanto, nenhuma das sete funções da área de preservação permanente pode
ser ignorada.
Deve-se proteger ou cuidar da APP – área de preservação permanente –
como uma paisagem florestal e hídrica. De alta relevância a existência dessa
pai­sagem, pois é um bem a ser preservado no interesse ambiental, ecológico,
social e econômico. A paisagem florestal da área de preservação permanente é
um tipo que deve ser levado em conta na gestão e na recuperação dessa área e
na sua tipificação criminal. Um curso de água não deve ser visto somente pelas
suas águas, mas, também, pelo seu entorno, nos quais está a área de preservação
perma­nente florestada.

2 Amplitude da conceituação de paisagem

2.1 Conceituação da paisagem no direito internacional e comparado

2.1.1 Convenção Europeia da Paisagem3


A Convenção Europeia da Paisagem (2000) exprime o seguinte con-
ceito: “‘Paisagem’ designa uma parte do território, tal como é apreendida pelas
populações, cujo carácter resulta da ação e da interação de fatores naturais e/ou
humanos”.
Quando da ratificação da Convenção da Paisagem – Conselho da Europa –
pelo Senado francês salientou-se: “trata-se de uma política particularmente
difícil a ser executada porque deve definir um equilíbrio entre imperativos, algu-
mas vezes divergentes: economia, meio ambiente, quadro de vida e regras de
urbanismo”.4
Este direito foi construído entorno de dois eixos principais: de uma parte, o reforço signi-
ficativo do papel do Estado em favor das paisagens em evolução, sensíveis e algumas vezes
ameaçadas, passando ele a ser o garantidor dos grandes equilíbrios e, de outra parte, a
preocupação da efetividade, que se caracteriza pela execução dessas políticas numa escala
geográfica adaptada.5

3
O trabalho sobre a Convenção foi iniciado em 1994 pelo Congresso dos Poderes Locais e Regionais do
Conselho da Europa. O projeto foi elaborado por um grupo de trabalho, coordenado por Ricardo Priore,
funcionário do Conselho da Europa e composto dos seguintes especialistas: Régis Ambroise, Michael Dower,
Bengt Johansson, Yves Luginbuhl, Michel Prieur e Florencio Zoido-Naranjo. A Convenção foi assinada na
cidade de Florença, Itália, em 20.10.2000.
4
PROJET de loi autorisant l’approbation de la convention européenne du paysage. Sénat. Disponível em:
<https://www.senat.fr/rap/l04-361/l04-361_mono.html>. Acesso em: 21 maio 2017. Minha tradução.
5
ROUSSO, Anny . Le droit du paysage: un nouveau droit pour une nouvelle politique. Courrier de
l’environnement de l’INRA, n. 26, 2. Minha tradução.

Int. Públ. – IP, Belo Horizonte, ano 19, n. 106, p. 15-32, nov./dez. 2017

IP_106_MIOLO.indd 20 13/12/2017 14:56:14


A paisagem como direito individual e difuso  21

A referida Convenção da Paisagem reconhece, no seu preâmbulo, que


“a paisagem é em toda a parte um elemento importante da qualidade de vida
das populações: nas áreas urbanas e rurais, nas áreas degradadas bem como
nas de grande qualidade, em áreas consideradas notáveis, assim como nas áreas
da vida quotidiana”. A paisagem nessa convenção deverá receber de cada país
signatário o comprometimento de reconhecer juridicamente a paisagem como
uma componente essencial do ambiente humano, uma expressão da diversidade
do seu patrimônio comum cultural e natural e base da sua identidade (art. 5º).
A paisagem, por sua consistência material ou física e imaterial ou psicológica, responde às
necessidades sociais e culturais importantes, sendo importante sua contribuição às funções
ecológicas e econômicas. Este sincretismo único, no seu gênero, que reflete a multifunciona-
lidade da paisagem, merece ser sublinhado.6

2.1.2 Bélgica
A Bélgica, na região flamenga, adotou em suas disposições gerais concer-
nentes à política ambiental (decreto de 5.4.1995), em seu art. 1.2.1:
Em benefício das gerações atuais e futuras, a política ambiental tem por finali­dade: [...] 3. a
conservação da natureza e a promoção da diversidade biológica e paisagística para a manu-
tenção, o restabelecimento e o desenvolvimento dos “habitats” naturais, de ecossistemas e de
paisagens com valor ecológico e a preservação das espécies selvagens, especialmente daque-
las que são ameaçadas, vulneráveis, raras ou endêmicas.

Acentue-se a noção inovadora da diversidade paisagística. A paisagem, por-


tanto, não existe somente como um conjunto de bens naturais autóctones, sem
relação com a percepção humana pelas atuais e futuras gerações.

2.1.3 Espanha
Três concepções tiveram acolhimento na Espanha. Na primeira,
a paisagem foi entendida, por muito tempo, como o aspecto visual do território. Mais
adiante, a paisagem passou a ter valor como um patrimônio cultural, no qual as populações e
suas atividades contribuíram para modelar e manter muitas das paisagens atuais, incluindo-
-se seu estilo de vida. A última fase, mais recente, con­sidera a paisagem como uma parte dos
habitats em um contexto ecológico ou como uma rede territorial na qual as relações entre
os aspectos socioeconômicos e ecológicos são valorizados no contexto do planejamento ter-
ritorial.7

6
PRIEUR, Michel. Politiques du paysage: contribution au bien-être des citoyens européens et au développement
durable: approches sociale, économique, culturelle et écologique. In: DEUXIEME CONFERENCE DES ÉTATS
CONTRACTANTS ET SIGNATAIRES DE LA CONVENTION EUROPEENNE DU PAYSAGE. Rapport... Strasbourg:
Conseil de l’ Europe, Palais de l’ Europe, 2002. Minha tradução.
7
LAGO CANDEIRA, Alejandro. Paisaje, protección. In: ALONSO GARCIA, Enrique; LOZANO CUTANDA, Blanca
(Org.). Diccionario de derecho ambiental. Madrid: Iustel, 2006. p. 909-910. Minha tradução.

Int. Públ. – IP, Belo Horizonte, ano 19, n. 106, p. 15-32, nov./dez. 2017

IP_106_MIOLO.indd 21 13/12/2017 14:56:14


22  Paulo Affonso Leme Machado

2.1.4 Itália
“O valor estético da beleza natural não pode limitar-se à mera intuição
individual, mas deve corresponder a uma avaliação tradicional, em conseqüência
da qual a beleza constatada tenha um mais intenso conteúdo expressivo e edu-
cativo”. “Deve tratar-se do gosto estético da coletividade, segundo um critério
de avaliação que tende a afirmar-se como objetivo”, como entendem Tommaso
Alibrandi e Piergiorgio Ferri.8
O Decreto Legislativo nº 42, de 22.1.2004, considera como bens paisa-
gísticos aqueles compreendidos no art. 136, nos quais leva-se em conta a beleza
natural.

2.1.5 França
“Deve-se considerar que, atualmente, há um direito à paisagem através
do direito a meio ambiente sadio, na medida onde o meio ambiente inclui os
sítios e as paisagens (L 110-1 Código Ambiental e art. 1º da Carta Constitucional
do Meio Ambiente)”.9 “Um regulamento de urbanismo pode decidir que, numa
certa zona, a autorização para construir possa ser recusada, se a construção des-
truir a estética da paisagem”.10

2.1.6 Argentina/Província de Córdoba


“Paisagem ou cenário: o contexto integrado de elementos constitutivos
naturais e artificiais do ambiente que, por particular combinação, em certo
espaço, provoca no homem sensações visuais e estados psíquicos de distinta
índole”.11

2.2 A paisagem e sua relação com o observador e com a sociedade


“A noção de paisagem é difícil de ser apreendida pelo direito. Ela não
vale ‘senão para quem a olha’ (Baudelaire) e não se faz ‘com a geometria’ (Victor
Hugo)”.12

Há ausência de definição legal da paisagem no direito brasileiro, por apresentar uma for-
mação muito ampla, a paisagem não possibilita um conceito bem definido, porque ele varia

8
ALIBRANDI, Tommaso; FERRI, Piergiorgio. I beni culturali e ambientali. Milano: Giuffrè, 1978. p. 197. Minha
tradução.
9
PRIEUR, Michel et al. Droit de l’environnement. 7. ed. Paris: Dalloz, 2016. §615. p. 491.
10
PRIEUR, Michel et al. Droit de l’environnement. 7. ed. Paris: Dalloz, 2016. §1248. p. 1047.
11
Lei nº 7.343/1985 apud MOREL ECHEVARRIA, Juan C. El derecho al disfrute del paisage: alcance, limites
y técnicas para su protección en el ordenamento argentino. Tese – Universidad de Alicante, 2015. Minha
tradução.
12
MORAND-DEVILLER, Jacqueline. Le droit de l’environnement. 11. ed. Paris: PUF, 2015. p. 58. Minha tradução.

Int. Públ. – IP, Belo Horizonte, ano 19, n. 106, p. 15-32, nov./dez. 2017

IP_106_MIOLO.indd 22 13/12/2017 14:56:14


A paisagem como direito individual e difuso  23

segundo o momento, o local, os fatos que ocorreram, as emoções e lembranças que pode
transmitir, e, ainda, envolve a cultura, o desenvolvimento econômico e a linguagem.13

A paisagem estruturada juridicamente não é para ser escondida, não é


para ficar isolada numa reserva biológica, onde não se prevê a presença humana.
A paisagem, seja rural ou urbana, é para ser vista, para ser levada em conta por
quem quer vê-la, senti-la ou simplesmente passar por ela. Muitos podem ser os
comportamentos do observador da paisagem: de embevecimento ou de encan-
tamento, de contemplação, de indiferença ou até de rejeição.
A paisagem é a materialização da indissociável união entre sociedade, cultura e natureza.
A partir da visualidade concreta com que se apresenta nos espaços, a paisagem pode ser
apreendida de diferentes formas pelo olhar subjetivo do observador. A apreciação é cultural
e pode dar-se de forma única, particular, de acordo com a experiência individual, mas que
pode caminhar para um senso comum, coletivo, construído culturalmente. Nessa última
instância pode tornar-se representativa de um lugar ou um grupo social.14

Ressalto na excelente abordagem de Luís Henrique Assis Garcia e Rosilene


Conceição Maciel que a percepção da paisagem pode passar do individual para
o coletivo, construindo-se uma cultura da paisagem. Vou mais além, afirmando
que a institucionalização jurídica da paisagem merece ser objeto de consulta
pública ou, em casos de conflito, de audiência pública. É preciso a participação
da comunidade, a partir da vizinhança do bem, para ser um elemento de susten-
tação da razoável gestão dessa paisagem.
Ao entender que a paisagem deve possibilitar uma relação com o obser-
vador, não se afirma que essa relação deva ser exclusivamente visual. Um cego
pode ter uma relação com determinado tipo de paisagem, tendo uma fruição
especial de determinada conjuntura física, por exemplo, que lhe possibilita escu-
tar o ruído de uma cascata ou o cântico dos pássaros.

2.3 A paisagem como um conjunto de bens


A paisagem é um conjunto de bens. Uma árvore ou uma casa não consti-
tuem uma paisagem, por maior valor que tenham em beleza, história ou valor
botânico. Paisagem supõe pluralidade de bens com certa relação de proximi-
dade. Os bens culturais individualizados têm outro tipo de proteção jurídica
diferente da paisagem.15
Os bens integrantes de determinada paisagem não necessitam ter o
mesmo valor histórico, científico, ecológico, social e econômico. A diversidade de

13
CUSTÓDIO, Maraluce. Introdução ao direito de paisagem: contribuição ao seu reconhecimento como ciência
no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p. 119.
14
GARCIA, Luiz H. A.; MACIEL, Rosilene C. Paisagem, identidade, museus e patrimônio cultural. In: OLIVEIRA,
Márcio L.; CUSTÓDIO, Maraluce M.; LIMA, Carolina C. (Org.). Direito e paisagem: a afirmação de um direito
fundamental individual e difuso. Belo Horizonte: D’Placido, 2017. p. 156.
15
O Poder Público federal, estadual ou municipal poderá “declarar qualquer árvore imune de corte, por motivo
de sua localização, raridade, beleza ou condição de porta-sementes” (art. 70, II, da Lei nº 12.651/2012).

Int. Públ. – IP, Belo Horizonte, ano 19, n. 106, p. 15-32, nov./dez. 2017

IP_106_MIOLO.indd 23 13/12/2017 14:56:14


24  Paulo Affonso Leme Machado

valor dos elementos constantes de uma paisagem não a torna desmerecedora


de proteção, desde que o conjunto possa ser valorizado em si mesmo.
“A paisagem é uma realidade complexa. É tanto um espaço organizado
em relação com as atividades humanas, como uma descrição subjetiva de um
meio vivido” acentua Carlos Carrasco Muñoz de Vera.16 A paisagem deve ser
focalizada “dentro de um contexto histórico, político, cultural, ecológico, esté-
tico e socioeconômico”.

2.4 A paisagem e o tempo


A paisagem é imutável? Os bens que integram determinada paisagem
podem sofrer danos e até desaparecer. Portanto, a paisagem pode ser uma trans-
formação acidental ou até voluntária. Para que a paisagem mereça continuar
a ser protegida, dentro de determinado regime jurídico, deve ser constatada a
permanência de um mínimo de bens que deram origem à vontade social e polí-
tica de sua conservação.

3 Acesso à paisagem

3.1 Proteção da paisagem e função social da propriedade


A propriedade privada ou pública, que contenha paisagem a ser conser-
vada ou valorizada, poderá ser limitada.
O direito de propriedade não é absoluto. Ele é garantido pela Constituição
Federal (art. 5º, XXII). Contudo, o direito de propriedade atenderá à sua função
social (art. 5º, XXIII).
A função social da propriedade não é uma faculdade, mas um dever
constitucional. A Constituição Federal volta a indicar esse parâmetro social e,
também, ambiental no tratar da ordem econômica e financeira (art. 170, III e VI
da Constituição Federal).
“A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigên­
cias fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor” (art. 182,
§2º, CF). Importante, pois, que a paisagem urbana a ser conservada, ou gerida
especialmente, seja incluída no plano diretor da cidade.
A paisagem urbana ou a paisagem rural enquadram-se na função social
da propriedade (art. 5º, XXIII e art. 170, III, CF). Há de ser acentuado que a
pro­priedade garantida (art. 5º, XXII, CF), atenderá à sua função social (art. 5º,
XXIII, CF). Oportuno salientar que a Constituição da Itália estabelece que
“a propriedade privada é reconhecida e garantida pela lei, que determina os
modos de aquisição, de fruição e seus limites, com a finalidade de assegurar sua
função social e torná-la acessível a todos” (art. 42).

16
MARTÍNEZ NIETO. La protección del paisage en el derecho espanol. Revista de Derecho Ambiental, n. 10,
p. 9-45, 1994.

Int. Públ. – IP, Belo Horizonte, ano 19, n. 106, p. 15-32, nov./dez. 2017

IP_106_MIOLO.indd 24 13/12/2017 14:56:15


A paisagem como direito individual e difuso  25

Não há uma propriedade que possa não atender à sua função social, tendo
finalidade exclusivamente privada. Esse é o mandamento básico constitucional
no Brasil, que merece ser aprofundado, quanto ao meio ambiente, no sentido
de que o cumprimento da função social da propriedade exige “aproveitamento
racional e adequado” e “utilização dos recursos naturais disponíveis e preserva-
ção do meio ambiente” (art. 186, I e II da Constituição Federal).
Essa também é a orientação do Código Civil de 2002, no qual está assen-
tado que o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas
três finalidades: econômicas, sociais e ambientais, e, no caso em espécie, para
que sejam preservadas as belezas naturais (art. 1.228, §1º).

3.2 Direito de acesso à paisagem, tombamento e estudo de impacto


ambiental
O acesso, a visita e a contemplação são elementos para a vivência de
uma paisagem rural ou urbana. “O Estado garantirá a todos o pleno exercício
dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional” (art. 215, caput da
Consti­tuição) e o Plano Nacional de Cultura deve conduzir à “democratização
do acesso aos bens de cultura” (art. 215, §3º, IV da Constituição).
De longa data, tenho entendido:
dentre as formas de acesso aos bens ambientais destaquem-se pelo menos três: acesso visando
ao consumo do bem (captação de água, caça, pesca), acesso causando poluição (acesso à água
ou ao ar para lançamento de poluentes; acesso ao ar para a emissão de sons) e acesso para a
contemplação da paisagem.17

O primeiro elemento é fundamental: assegurar-se o acesso ao local, seja


de forma gratuita ou através de um pagamento de taxa. A paisagem como inte-
grante do meio ambiente é um “bem de uso comum do povo” (art. 225, caput, da
Constituição Federal) e, assim, não se pode admitir que o proprietário privado
ou público coloque obstáculo ao acesso à paisagem, que tenha sido formalmente
instituída. É um contrassenso reconhecer-se juridicamente uma paisagem e pre-
tender-se restringir a visita ou deixar a fruição da paisagem somente para o
proprietário. Retorno à Constituição italiana, já mencionada, no sentido de que
na implantação da função social da propriedade devem existir os elementos de
sua fruição e da acessibilidade à propriedade.
A ação civil pública será um instrumento processual apto para compelir o
proprietário a “cumprir a obrigação de fazer”, que abrirá porteiras e cadeados
de um proprietário, sem “conscientização pública para a preservação do meio
ambiente” (art. 225, §1º, VI da Constituição Federal).
A paisagem como integrante do patrimônio cultural brasileiro será
protegida pelo Poder Público, com a colaboração da comunidade, “por meio

17
MACHADO, Paulo A. L. Direito ambiental brasileiro. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2017. p. 82.

Int. Públ. – IP, Belo Horizonte, ano 19, n. 106, p. 15-32, nov./dez. 2017

IP_106_MIOLO.indd 25 13/12/2017 14:56:15


26  Paulo Affonso Leme Machado

de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras


formas de acautelamento e preservação” (art. 216, §1º da Constituição).
A Convenção Europeia da Paisagem conceitua “gestão da paisagem” como
a ação visando assegurar a manutenção de uma paisagem, numa perspectiva de
desenvolvimento sustentável, no sentido de orientar e harmonizar as alterações
resultantes dos processos sociais, econômicos e ambientais”. A manutenção do
desenvolvimento sustentável e a conservação da paisagem estão entrelaçadas no
conceito forjado pela Convenção da Paisagem.
O estudo prévio de impacto ambiental é um valioso instrumento de pre-
venção de danos à paisagem. Assim, as atividades a serem desenvolvidas na área
da paisagem protegida e que possam ter significativo impacto sobre essa área
devem ser analisadas no sentido de serem permitidas ou não as atividades pro-
jetadas. As “apreciações de ordem visual e estética devem estar presentes no
estudo de impacto”.18 Necessário que nos voltemos para os conceitos da Lei de
Política Nacional de Meio Ambiente – Lei nº 6.938/1981 (art. 3º), que se encon-
tram no inc. III – “a poluição é a degradação da qualidade ambiental resultante
de atividades que direta ou indiretamente afetem as ‘condições estéticas’ do
meio ambiente” (alínea “d”). Portanto, o estudo prévio de impacto ao meio
ambiente tem necessariamente de focalizar se as condições estéticas – nas quais
as paisagens se incluem – estão ou estarão protegidas ou degradadas no projeto
analisado.

3.3 A informação e a participação na gestão da paisagem conforme a


inovação do art. 216-A da Constituição Federal

A informação ambiental e cultural precisa ser coletada e organizada, tornar-se disponível


por todos os meios de comunicação, ser verdadeira, integral, contínua, verificável, e ser
transmitida em linguagem compreensível pela população. Quem não conhece não tem con-
dições de gostar do patrimônio cultural e, em consequência, defendê-lo. [...]
À semelhança do que se fez, com êxito, na Política Nacional do Meio Ambiente (Lei
6.938/1981), o pedido de autorização, feito pelo proprietário, necessita constar de um meio
de comunicação (eletrônica, escrita ou oral). Da mesma forma a decisão integral do órgão
do patrimônio cultural.19

No sentido do que aqui se preconiza, a Constituição, pela Emenda Cons­ti­


tucional nº 71/2012, determina que o Sistema Nacional de Cultura se conduza pelo
princípio da “transparência e compartilhamento das informações” (art. 216-A,
§1º, IX).
A participação é o procedimento que irá ensejar as pessoas e as associações atuarem nas deci-
sões administrativas. A novidade desse princípio é que a participação das pessoas e dos
corpos sociais não termina nas votações periódicas para postos nos Poderes Executivos e

18
ROMI, Raphaël. Droit de l’environnement. 9. ed. Issy-les-Moulineaux: LGDJ, 2016. p. 634.
19
MACHADO, Paulo A. L. Direito ambiental brasileiro. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2017. p. 1190.

Int. Públ. – IP, Belo Horizonte, ano 19, n. 106, p. 15-32, nov./dez. 2017

IP_106_MIOLO.indd 26 13/12/2017 14:56:15


A paisagem como direito individual e difuso  27

Legislativos. A prática da participação visa a abrir e manter canais entre a Administração


Pública e a sociedade. É a oxigenação da administração do patrimônio através da opinião
e da contribuição de pessoas ou associações, que estão fora dos quadros políticos e dos pró-
prios governos.20

A Constituição, pela Emenda Constitucional nº 71/2012, ordena que o


Sistema Nacional de Cultura reja-se pelo princípio da “democratização dos pro-
cessos decisórios com participação e controle social” (art. 216-A, §1º, X).
As manifestações culturais das minorias e das pessoas comuns, vulneráveis porque não
encontram apelo comercial ou não se vendem facilmente no mercado de bens de consumo,
devem ser preservadas pelo Estado e fiscalizadas pelo poder público e pela sociedade civil.
Elas se encontram na base da economia da cultura e da construção de nossa identidade.21

4 Aspectos penais e processuais da paisagem

4.1 Proteção penal do patrimônio paisagístico

4.1.1 Destruição, inutilização e deterioração da paisagem


O art. 62 da Lei nº 9.605/1998 diz:
Destruir, inutilizar ou deteriorar:
I - bem especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial;
II - arquivo, registro, museu, biblioteca, pinacoteca, instalação científica ou similar protegido
por lei, ato administrativo ou decisão judicial:
Pena - reclusão, de um a três anos, e multa.
Parágrafo único. Se o crime for culposo, a pena é de seis meses a um ano de detenção, sem
prejuízo da multa.

O art. 62 está dividido em duas partes. A primeira parte contempla o bem


especialmente protegido por lei, por ato administrativo ou por decisão adminis-
trativa. Não se especifica qual a espécie ou qualidade do “bem” a ser protegido.
O crime está inserido na Seção IV da Lei nº 9.605/1998 – dos crimes contra o
ordenamento urbano e o patrimônio cultural e, dessa forma, é lógico entender-
-se que o bem a ser protegido esteja relacionado com o ordenamento urbano e
com o patrimônio cultural.
O bem a ser protegido pode ser uma paisagem. Assim, a destruição, a
inutilização e a deterioração da paisagem serão consideradas crime, quando a
proteção tiver origem numa lei, em um ato administrativo ou numa decisão judi-

20
MACHADO, Paulo A. L. Direito ambiental brasileiro. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2017. p. 1191.
21
BAGOLIN, Luiz A. O direito à cultura e as minorias. Aliás, política cultural. O Estado de São Paulo, 19 fev.
2017. C7.

Int. Públ. – IP, Belo Horizonte, ano 19, n. 106, p. 15-32, nov./dez. 2017

IP_106_MIOLO.indd 27 13/12/2017 14:56:15


28  Paulo Affonso Leme Machado

cial transitada em julgado. Os atos agressores da paisagem podem ser parciais,


isto é, não precisam abarcar a totalidade do bem.
A tipificação da conduta criminosa supõe que a dimensão e a localiza-
ção da paisagem estejam visivelmente explicitadas. Temos que lembrar que a
pai­sagem a ser protegida não é só a parte que se vê, ou se quer ver, dessa paisa-
gem, mas abrange, também, os locais onde os espectadores se colocam para ver
e observar. Por exemplo, nas Cataratas do Iguaçu, não se protege penalmente
somente o rio, as quedas de água e a vegetação do entorno, mas as passarelas e
as trilhas, nas quais os visitantes andam, param e contemplam.
Destruir uma paisagem pode abranger diversos comportamentos: derru-
bar árvores, muros, telhados, janelas, cavar a terra, remover a terra, tudo que
en­volva a estrutura física da paisagem. Inutilizar a paisagem é torná-la impres-
tável aos fins para os quais foi instituída, sendo a inutilização uma das variantes
da destruição. Deteriorar uma paisagem é debilitar a qualidade dessa paisagem,
como sujar as paredes de muros ou de prédios que integram a paisagem; é fazer
cortes impróprios nas árvores ou plantações; é lançar resíduos na área protegida;
é mudar a pintura dos bens que integrem a paisagem; é emitir ruídos que difi-
cultem a fruição da paisagem (audição de aparelhos musicais na área delimitada
como paisagem).

4.1.2 Alteração de local especialmente protegido


O art. 63 da Lei nº 9.605/1998 diz:
alterar o aspecto ou estrutura de edificação ou local especialmente protegido por lei, ato
administrativo ou decisão judicial, em razão de seu valor paisagístico, eco­lógico, turístico,
artístico, cultural, religioso, arqueológico, etnográfico ou monu­mental, sem autorização da
autoridade competente ou em desacordo com a concedida.
Pena: reclusão de um a três anos, e multa.

Alterar é modificar. A alteração pode até ser para melhorar a edificação


ou o local, mas o crime fica materializado se não houver autorização da auto­
ridade ou se a modificação não obedecer aos limites da autorização. O crime
configura-se quando a alteração é realizada no aspecto ou na aparência de
edificação ou de local e na estrutura de edificação ou de local protegidos por lei,
ato administrativo ou decisão judicial.
A lei, o ato administrativo e a decisão judicial devem proteger a edificação
e o local em razão dos interesses constantes no art. 63. A vigência do ato admi-
nistrativo e da decisão judicial merece ser interpretada no sentido de evitar-se a
alteração nociva e precipitada.
Sabendo, ou podendo saber, que a edificação ou o local estão legalmente
protegidos, assume o risco de produzir o resultado (a alteração), quando o sujeito
ativo age sem autorização ou em desacordo com essa proteção.

Int. Públ. – IP, Belo Horizonte, ano 19, n. 106, p. 15-32, nov./dez. 2017

IP_106_MIOLO.indd 28 13/12/2017 14:56:15


A paisagem como direito individual e difuso  29

É lamentável que não tenha sido prevista a forma culposa para o crime
do art. 63. A imprudência, a imperícia ou a negligência podem manifestar-se no
extrapolar os limites da autorização concedida.

4.1.3 Deixar de cumprir obrigação de relevante interesse ambiental


O art. 68 da Lei nº 9.605/1998 diz:
Deixar, aquele que tiver o dever legal ou contratual de fazê-lo, de cumprir obrigação de
relevante interesse ambiental:
Pena – detenção, de um a três anos, e multa.
Parágrafo único. Se o crime é culposo, a pena é de três meses a um ano, sem prejuízo da
multa.

“Trata-se de tipo penal aberto, ou seja, cuja abrangência alcança uma


grande quantidade de situações fáticas. É preciso que a obrigação de interesse
ambiental seja relevante, é dizer, importante, significativa”, acentuam os irmãos
Vladimir e Gilberto Passos de Freitas.22
Há situações essenciais para tipificar o crime do art. 68 da Lei nº 9.605/
1998: constatar quem tem o dever legal ou contratual de agir de determinada
forma, e que deixa de cumprir esse dever. Outra situação é a relevância do inte-
resse ambiental. No caso do acesso à paisagem, o proprietário ou o posseiro de
um imóvel deixa de possibilitar o acesso à paisagem.
Há de indagar-se: o proprietário ou o posseiro têm o dever legal de con-
cordar com a entrada no imóvel com o fim de contemplar-se ou visitar-se uma
paisagem? O dever legal decorre da declaração de que determinada área deva
ser conservada por ter valor paisagístico. Esse valor paisagístico não decorre da
opinião de uma pessoa ou de um grupo de pessoas, ainda que sejam pessoas qua-
lificadas culturalmente, mas deve ser expresso através de um ato administrativo,
de uma lei ou de uma decisão judicial. Já foram apontadas as bases constitu-
cionais e infraconstitucionais que tratam da valorização e defesa da paisagem,
textos que, por si só, mostram a significância das paisagens como integrantes do
patrimônio cultural brasileiro e internacional.
A relevância da obrigação de permitir o acesso à paisagem advém dos
objetivos cívicos e educativos da fruição desse bem ambiental, comum a todos.
Não é de somenos importância que todos possam ter acesso a um bem
cultural, como marcadamente proclama o art. 215 da Constituição. Seria uma
incoerência gritante que uma paisagem fosse regularmente instituída e houvesse
a negativa de acesso a esse bem, ficando esse descumprimento do dever legal
sem qualquer reprimenda penal.

22
FREITAS, Vladmir P.; FREITAS, Gilberto P. Crimes contra a natureza. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2012. p. 288.

Int. Públ. – IP, Belo Horizonte, ano 19, n. 106, p. 15-32, nov./dez. 2017

IP_106_MIOLO.indd 29 13/12/2017 14:56:15


30  Paulo Affonso Leme Machado

4.2 A ação civil pública e a ação popular – Meios processuais civis


conservadores da paisagem
A ação civil pública tem como um dos seus objetivos a proteção do “patri-
mônio paisagístico” (art. 1º da Lei nº 7.347 de 24.7.1985). O cidadão não pode
utilizar-se dessa ação judicial, de forma isolada. Mas dois ou mais cidadãos e/ou
pessoas que se agrupem numa associação podem usar a ação civil pública para
defender uma paisagem.
O Ministério Público Federal ou dos estados pode ser procurado para
abrir um inquérito civil ou apresentar a ação civil pública.
O patrimônio paisagístico a ser protegido não precisa estar previamente
classificado por ato do Poder Público Federal, Estadual ou Municipal. O juiz ou
o Tribunal têm competência para declarar uma paisagem protegida, diante das
provas produzidas no processo civil, especialmente através do testemunho e lau-
dos dos especialistas.
O conceito de arte, de estética, de história, de turismo e de paisagem deve ser somado ao
conceito de valor desses bens e direitos. Essa junção e conceituação muitas vezes não será
tarefa fácil, mas, nem por isso, o juiz poderá furtar-se de fazê-las. A prova documental,
pericial e mesmo a prova testemunhal ajudarão para o fornecimento da devida prestação
jurisdicional.23

A ação popular é um direito processual reservado ao cidadão. A Consti­


tuição Federal de 1988 instituiu uma “ação popular ambiental” (art. 5º, LXXIII),
podendo encaixar-se aí a defesa da paisagem. A ação popular não enseja o acesso
direto do cidadão ao Poder Judiciário, pois há necessidade da contratação ou da
nomeação de advogado para o patrocínio da causa.

Conclusão
Cabe aos geógrafos, ecólogos, biólogos e outros operadores das ciências
da natureza identificarem e delimitarem as paisagens a serem tuteladas juri-
dicamente, propondo ao Poder Público o tombamento delas. Além disso, os
especialistas têm uma tarefa indelegável – a de auxiliar na gestão adequada des-
ses espaços de interesse geral.
A paisagem, como direito individual e como direito difuso, faz parte do
direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e à sadia quali-
dade de vida através de sua conservação e de sua fruição intelectiva, sentimental,
estética e educativa para as gerações presentes e futuras.

23
MACHADO, Paulo A. L. Ação civil pública (ambiente, consumidor, patrimônio cultural) e tombamento. 2. ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987. p. 16.

Int. Públ. – IP, Belo Horizonte, ano 19, n. 106, p. 15-32, nov./dez. 2017

IP_106_MIOLO.indd 30 13/12/2017 14:56:15


A paisagem como direito individual e difuso  31

The landscape as an individual and collective right


Abstract: The article deals with the theme of landscape as an individual
right and collective right, initially, within the spectrum of the Brazilian
constitutional order. Then, a brief analysis of the subject in Comparative
Law is presented. Finally, procedural, criminal and civil aspects of the
protection of this right are discussed.
Keywords: Landscape. Access to the landscape. Landscape rights. Fruition
of the landscape. Social function of property. Landscape observer.

Referências

ALIBRANDI, Tommaso; FERRI, Piergiorgio. I beni culturali e ambientali. Milano: Giuffrè,


1978.
BAGOLIN, Luiz A. O direito à cultura e as minorias. Aliás, política cultural. O Estado de
São Paulo, 19 fev. 2017. C7.
CUSTÓDIO, Maraluce. Introdução ao direito de paisagem: contribuição ao seu reconheci-
mento como ciência no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.
FREITAS, Vladmir P.; FREITAS, Gilberto P. Crimes contra a natureza. 9. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2012.
GARCIA, Luiz H. A.; MACIEL, Rosilene C. Paisagem, identidade, museus e patrimô-
nio cultural. In: OLIVEIRA, Márcio L.; CUSTÓDIO, Maraluce M.; LIMA, Carolina C.
(Org.). Direito e paisagem: a afirmação de um direito fundamental individual e difuso. Belo
Horizonte: D’Placido, 2017.
LAGO CANDEIRA, Alejandro. Paisaje, protección. In: ALONSO GARCIA, Enrique;
LOZANO CUTANDA, Blanca (Org.). Diccionario de derecho ambiental. Madrid: Iustel, 2006.
LOPEZ, Elise. La convention européenne du paysage et le droit français du paysage. Dissertação
– Université Lumière de Lyon 2, 2016.
MACHADO, Paulo A. L. Ação civil pública (ambiente, consumidor, patrimônio cultural) e tomba-
mento. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987.
MACHADO, Paulo A. L. Direito ambiental brasileiro. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2017.
MACHADO, Paulo A. L. Paisagem – paisagens. In: OLIVEIRA, Lívia de; PHILADELPHO,
Suely Marion Calderini (Org.). 3º Encontro interdisciplinar sobre “Estudo da paisagem”. Rio
Claro: Unesp, 1998.
MARTÍNEZ NIETO. La protección del paisage en el derecho espanol. Revista de Derecho
Ambiental, n. 10, 1994.
MORAND-DEVILLER, Jacqueline. Le droit de l’environnement. 11. ed. Paris: PUF, 2015.
MOREL ECHEVARRIA, Juan C. El derecho al disfrute del paisage: alcance, limites y técnicas
para su protección en el ordenamento argentino. Tese – Universidad de Alicante, 2015.
PRIEUR, Michel et al. Droit de l’environnement. 7. ed. Paris: Dalloz, 2016.

Int. Públ. – IP, Belo Horizonte, ano 19, n. 106, p. 15-32, nov./dez. 2017

IP_106_MIOLO.indd 31 13/12/2017 14:56:15


32  Paulo Affonso Leme Machado

PRIEUR, Michel. Politiques du paysage: contribution au bien-être des citoyens européens


et au développement durable: approches sociale, économique, culturelle et écologique.
In: DEUXIEME CONFERENCE DES ÉTATS CONTRACTANTS ET SIGNATAIRES DE
LA CONVENTION EUROPEENNE DU PAYSAGE. Rapport... Strasbourg: Conseil de l’
Europe, Palais de l’ Europe, 2002.
PROJET de loi autorisant l’approbation de la convention européenne du paysage. Sénat.
Disponível em: <https://www.senat.fr/rap/l04-361/l04-361_mono.html>. Acesso em:
21 maio 2017.
ROMI, Raphaël. Droit de l’environnement. 9. ed. Issy-les-Moulineaux: LGDJ, 2016.
ROUSSO, Anny . Le droit du paysage: un nouveau droit pour une nouvelle politique.
Courrier de l’environnement de l’INRA, n. 26, 2.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação


Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

MACHADO, Paulo Affonso Leme. A paisagem como direito individual e difuso.


Interesse Público – IP, Belo Horizonte, ano 19, n. 106, p. 15-32, nov./ dez. 2017.

Recebido em: 15.09.2017


Aprovado em: 24.11.2017

Int. Públ. – IP, Belo Horizonte, ano 19, n. 106, p. 15-32, nov./dez. 2017

IP_106_MIOLO.indd 32 13/12/2017 14:56:15

Você também pode gostar