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VILL’ALCINA

VILL’ALCINA
55 CASAS
Teoria Geral de Organização do Espaço

VILL'ALCINA
Sérgio Fernandez
1971-1974

Diana Barros Júlia Davico Tiago Martins

Turma 6
2022/2023
Introdução
De passagem em Caminha é impossível não mencio-
nar esta construção, de nome Vill'alcina, mas apelida-
da Casa de Caminha. Localizada a norte de Portugal,
onde as grandes altitudes e vegetação densa tomam
conta da paisagem e onde desagua o rio Minho, que
delimita a fronteira com a terra vizinha espanhola.
Com tais características, a temperatura nunca é muito
alta, o frio é dominante no inverno, mas o verão é
ameno e a paisagem ainda mais bela.

- Monte de Santa Tecla, visto de Caminha. Rodrigo Delgado


Rompendo por entre as árvores for-
mam-se as ruas pelas quais se criam
as habitações, numa destas ruas, a
rua de Fraga, avistamos os portões
de um vermelho singular, contras-
tante naquela envolvente natural. É
numa encosta inclinada que Sérgio
Fernandez traçou linhas precisas e
criou duas casas gémeas, abertas pa-
ra a paisagem magnífica habitada
pela água e com vista privilegiada
sob o Monte de Santa Tecla. Execu-
tadas com uma especial atenção ao
terreno e à sua topografia, sendo no-
tável a forma como os eixos, sob os
quais a casa se forma, estão em con-
cordância com as curvas de nível.
Além disso, é em pormenores cui-
dados como a inclinação do teto,
que segue a inclinação do terreno, o
desnivelamento dos espaços interio-
res e a própria escolha dos mate-
riais, que dão a casa ao terreno e o
terreno à casa e os fundem num só.
“Afinal, também as Tábuas e as pedras da casa passaram a fazer parte da
paisagem deslumbrante do lugar, da informalidade tranquila do uso, do
conforto da caruma dos pinheiros e do ar do monte refrescado pela brisa
do ar ”

TAVARES, André, “O salto”


In: TAVARES, A., BANDEIRA, P., Só nós e Santa Tecla. Porto: Dafne Editora, 1a. ed., 2008, pg. 45
- Vill’Alcina. Ines D’Orey
Encomendada para ser uma casa de férias, S. Fernandez constrói duas
casas idênticas, porém não simétricas (tal romperia a adaptação de tais e-
dificações ao espaço), uma para si e outra para um cliente. A criação da
casa segue um regime simplista e pragmático, os espaços criados trans-
versalmente ao longo de um eixo horizontal que guia toda a com-
posição, são desenhados para cumprir as suas funções e não muito mais
que isso.

A casa de férias surge em contraposição a uma habitação doméstica, na


forma como a caracterização dos espaços pela sua espacialidade e ligação
é feita, existe uma maior liberdade na criação da composição, conse-
quente da falta de rotinas e horários e também contrária a hierarquias e
protocolos. A cozinha como “cerne” da habitação, a sala a uma cota infe-
rior apresenta-se mais recolhida e as alcovas oferecem uma possibilidade
de reinvenção, tudo contribui para uma reposição de significados da es-
pacialidade e forma como se habita uma casa. Sem esquecer a poderosa
relação com a natureza, e a forma como a paisagem assume um papel
cenográfico a todos os movimentos daquela habitação sazonal.
“A representatividade cedeu lugar ao pragmatismo, à ergonomia, ao
bem-estar.”

OLIVEIRA, Maria Manuel, “Linha de sombra”


In: TAVARES, A., BANDEIRA, P., Só nós e Santa Tecla. Porto: Dafne Editora, 1a. ed., 2008, pg. 32
- Visiting Vill’Alcina. Brandão Alves Costa

Entrar
Caminhar e passar os portões, de-
parar-mo-nos com um pórtico, a en-
trada, um espaço vazio que nos re-
cebe e liga as duas habitações, do
qual vemos a placa Vill’Alcina a
chamarmo-nos a entrar. Passamos a
casa do lado e dirigimo-nos para a
nossa esquerda, vamos descendo
escadas que nos encaminham, e
marcam um percurso em contacto
com as irregularidades de um espa-
ço tão inclinado.
- The architectural archive of Tintin and Milou. Elara
Fritzenwalden

Passada a porta, descemos outras escadas estreitas e


não entramos virados para casa. Não, esse momento é
guardado até ao final dos degraus percorridos, quando
somos obrigados a virar e a encarar um espaço amplo.
Amplo mas não vasto, o teto que desce sob as nossas
cabeças não o permite. São perceptíveis desde logo
dois momentos, o primeiro logo ali, a cozinha sim-
plista e a sua mesa redonda, claro espaço das refei-
ções. Mais abaixo surge a sala aberta ao exterior por
vãos singulares e a lareira que sobe até ao teto e cen-
traliza aquela espacialidade quase quadrada.
- Vill’Alcina. Ines D’Orey

- The architectural archive of Tintin and Milou. Elara Fritzenwalden


- Vill’Alcina. Ines D’Orey

Comer
Cozinhar, sentar e comer. A pare-
de que se forma à nossa direita é
percorrida por um balcão, e nele
reúne-se o mero necessário para
classificar aquele espaço da cozi-
nha. Oposto a este está a mesa de
jantar redonda, onde um janelão,
com vista para o estuário do rio,
surge por de trás e ambientaliza
todo aquele espaço. Este serve de
paisagem a quem confecciona e de
cenário ao ato de comer, transfor-
mando-o quase num ato teatral.
Cozinhar, sentar e comer.
- Vill’Alcina. Ines D’Orey
Ali parados, vemos toda a casa, um corredor por
descobrir e uma sala que quase pertencia à cozinha
não fosse o banco espesso que se prolonga da área de
refeição e cria o muro que divide tais espaços.
Sentados nele, quase nos passa despercebido a sua
importância naquele espaço open space: conservar a
singularidade das áreas. Ao mesmo tempo, permite
manter a longitudinalidade da casa, abalada pela trans-
versalidade gerada pelo surgimento do espaço da sala.
- Vill’Alcina. Ines D’Orey

Estar
Talvez atraídos pela paisagem, ou encaminhados por
um teto inclinado, ou ainda pela curiosidade de um
lugar tão perto, descemos e chegamos à sala, ao
espaço de estar. Como que encostada à parede in-
visível que divide aqueles dois espaços surge a lareira,
atribuindo verticalidade, ao centro daquele lugar mais
recolhido. E à parte desta, não há muitos mais ele-
mentos que caracterizam aquele espaço, depreende-se
assim que assume a função de vazio aglutinador. Sem
algo que o defina fortemente serve de ligação entre os
outros espaços, estes sim, bem definidos. Na sua sim-
plicidade de forma e conteúdo interliga os diferentes
conceitos na casa, num espaço cuja função é verda-
deiramente parar. Estar.
- Vill’Alcina. Ines D’Orey

Serve ainda de ligação entre o interior e exterior através de aberturas


envidraçadas que o tornam quase um miradouro. Ali observamos a na-
tureza e tal visão faz nos viajar até Leça da Palmeira, à Casa de Chá da
Boa Nova, e na forma como também Álvaro Siza Vieira insere uma
edificação num terreno tão instável e inclinado e se serve da redução do
teto e ainda de uma pala exterior para emoldurar a paisagem. Também é
água, mas desta vez não o mar, o rio, que naqueles janelas é emoldu-
rado com recurso a um teto descendente.
- Casa de Chá da Boa Nova. João Morgado

- Casa de Chá da Boa Nova. João Morgado


- Vill’Alcina. Ines D’Orey

Descansar
Pouco mais falta para completar a deambulação pela
aquela casa. Subimos novamente as escadas, e ainda
mais uns degraus para lá chegar, aos quartos, melhor
dizendo, às alcovas.

al·co·va |ô|
(árabe al-qubba, abóbada, cúpula)
nome feminino

1. Pequena câmara interior para dormir.


2. Quarto de dormir.

"alcova", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa


[em linha], 2008-2021,
https://dicionario.priberam.org/alcova [consultado em
22-02-2023].
- Vill’Alcina. Ines D’Orey
Dispostas ao longo de um corredor com aberturas
diretas para a paisagem, surgem três pequenas aber-
turas à nossa esquerda. Neles, deitados junto ao chão
num espaço pequeno, grande o suficiente para dor-
mir, o que nos separa daquela natureza imensa são
apenas duas cortinas esverdeadas. Porém fechadas
cortam qualquer relação com o exterior e qualquer
iluminação que daí provenha, restando-nos apenas
aquele cubículo de madeira, com uma mesa que se
estende à cabeceira, e dois colchões alaranjados. Dis-
tinto dos primeiros dois espaços a terceira alcova, é
mais resguardada, por uma parede que a separa do
resto e lhe atribui a privacidade de um quarto, enqua-
nto ainda lhe confere as características simplistas das
outras. Características estas pensadas sob um olhar
pragmático do arquiteto, que muito nos lembra dos
ideias de Le Corbusier, e como estes espaços a-
ssumem a configuração de máquina de viver. Sen-
timo-nos quase num campismo e facilmente dete-
tamos as semelhanças com uma tenda ou roulote,
objetos desenhados para a função única de descansar e
percebemos que estas alcovas reúnem o mero nece-
ssário, e em tais detalhes vemos surgir a arquitetura
moderna concretizada na edificação.
- Vill’Alcina. Ines D’Orey
- Vill’Alcina. Ines D’Orey

Contemplar
O contacto com o exterior é das
características mais importantes des-
ta casa. Os vãos abertos para a natu-
reza atribuem simbolismo a todos
os espaços e permitem-nos parar e
contemplar. De uma forma é como
se a natureza entrasse para dentro
das casas e também ela habitasse
aquele lugar. Porém é de salientar
que o facto da casa estar tão bem in-
serida na envolvente natural não é
definido pela vista integral do am-
biente exterior, mas que ainda assim
este proporciona a conexão com a
mesma.
- Fundación Docomo Ibérico

Existem ainda momentos no exte-


rior, pequenos pátios, que seguindo
o alinhamento com o terreno contri-
buem para ligar toda a envolvente e
dão-nos ainda mais espaço para a-
preciar a paisagem.
- Arquitectura e modos de habitar, Conversas com arquitectos. Carlos Nuno Lacerda Lopes
Conclusão
Não tão menos importante que descrever os espaços
que constituem esta casa, está em observar cuida-
dosamente os materiais, muitos locais, que a com-
põem. Analisemos então a forma como o betão ex-
terior se distancia da madeira interior, e como esta di-
ferença caracteriza toda a composição. Chegados à
casa são a dureza da pedra, do tijolo, do granito e do
betão que nos recebem, mas apenas para camuflarem
de forma única toda a construção na envolvente na-
tural. Assim como a brutalidade dos métodos constru-
tivos e falta de remates externos, transmitem-nos a
sensação de que nada, nenhum objeto, se distingue
naquela colina. Mas ao entrarmos a delicadeza da ma-
deira, do vidro e do mosaico do chão, deixam-nos
confortáveis e em perfeito alinhamento com as cores
quentes escolhidas para a decoração, fazem-nos sentir
em casa. Tudo iluminado por uma luz que invade as
aberturas, mas apenas contribui mais para tornar
aquele lugar acolhedor e protetor.
- Vill’Alcina. Ines D’Orey

- Vill’Alcina. Ines D’Orey


“Os materiais empregues assumirão, sem subterfúgios, a sua expressão
própria.”

FERNANDEZ, Sérgio, Percurso, Arquitetura portuguese 1930-1974. Porto: FAUP Editorial, 2a. ed.,
1988, pg. 89
Nos inícios dos anos 70, ocorrre
redescoberta da arquitetura popular,
advinda de uma escolha pelo artesa-
nato nos métodos construtivos e a
reinvenção da arquitetura moderna
em Portugal que se gera durante os
anos 50 e 60, altura na qual também
se forma a 'novíssima geração’ de
arquitetos, da qual Sérgio Fernandez
faz parte.

É possível perceber na casa os


aspetos que caracterizavam esta
revolução arquitetónica modernista
voltada para a noção de realismo e
racionalismo: na forma como reco-
nhece e se relaciona com o contexto
geográfico e urbanístico, em como
se liga com o meio e o local. Socio-
lógico e antropológico, em como se
cria a partir de conceções de habi-
tação distintas às de uma habitação
doméstica, entre outros patentes na
relação do corpo com o espaço e o
meio envolvente. Na forma como
os espaços essencialistas se resu-
mem às suas funções, mas como
também são geradores de reinven-
ção e ainda como respondem ao
programa de forma inventiva ao
mesmo tempo que simplista, crian-
do uma relação própria com quem
as utiliza.
- Vill’Alcina. Ines D’Orey
"terrra quanto a vejas, casa quanto
baste"

Adaptado do ditado transmontano referido por


Sergio Fernandez, Entrevista a André Tavares e
Pedro Bandeira, Caminha 20 de Out. 2007

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