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Um pedido de desculpas para ficar na história


Luiz Felipe de Alencastro

“O Estado de São Paulo”, 17/04/2005, Aliás, p. J4

A viagem do presidente Lula à África tomou um tom mais simbólico durante


a visita à ilha de Gorée, no Senegal, e à Casa dos Escravos. Neste local, venerado
como centro da deportação dos escravos, o presidente Lula - acompanhado pelo
presidente do Senegal, Abdoulaye Wade, e pelo ministro Gilberto Gil - emocionou-
se e declarou: "Eu queria dizer ao presidente Wade, ao povo do Senegal e da África
que não tenho nenhuma responsabilidade pelo que aconteceu nos séculos 16, 17 e
18, mas que é uma boa política dizer ao povo do Senegal e da África perdão pelo
que fizemos aos negros". Trata-se de um pronunciamento histórico, da parte do
presidente do país que conta com a maior população de origem africana fora da
África. Por isso, torna-se necessário situar o evento numa perspectiva mais longa.

Note-se algo curioso. Visitada por milhares de pessoas, e pelos presidentes


Bush (filho) e Clinton, pelo papa João Paulo II e por Mandela, a Casa dos Escravos
tem uma história bizarra. Muito provavelmente, o prédio serviu de depósito de
escravos, mas nunca foi - como se pretende - o ponto central do fluxo contínuo de
escravos para as Américas. Aliás, não é preciso andar muito para esbarrar em
incoerências. Enquanto o curador da Casa dos Escravos conta que 40 milhões de
cativos foram embarcados dali, o Museu Histórico de Gorée, situado pouco adiante
e dirigido por historiadores sérios, apresenta a cifra aceita pela maioria dos
pesquisadores - perto de 10,5 milhões de escravos saídos de toda a África para as
Américas. De qualquer modo, o lugar tornou-se um símbolo que ultrapassa a
veracidade factual: é ali que os afro-americanos e as pessoas de boa vontade se
recolhem para meditar sobre a tragédia do tráfico negreiro.

Há outros portos mais relevantes que permanecem apagados da memória.


Como a ilha de Luanda, na frente da capital de Angola. Centenas de milhares de
escravos foram embarcados ali, geralmente para o Brasil, fazendo da região o mais
movimentado porto negreiro da África. Mas pouca gente sabe disso, e o lugar é
freqüentado por turistas em busca de suas praias. Nesse sentido, a Casa dos Escravos
guarda toda a sua importância. Em novembro de 2003, quando visitou Luanda, o
presidente Lula fez um discurso mencionando o drama dos escravos angolanos
trazidos para o Brasil e os "laços de sangue" unindo nossos povos. Na mesma
viagem, deu declarações sobre o peso da escravidão no Brasil, quando esteve em
Moçambique. Mas as frases se perderam nas entrelinhas dos jornais.

É preciso notar que Angola foi visitada por outros dois presidentes brasileiros.
Mas nem Sarney (em 1989), que fizera um discurso corajoso sobre a escravidão no
centenário da Abolição, em 1988, nem Fernando Henrique (em Luanda em 1996),
autor de um importante livro sobre o escravismo, manifestaram-se sobre esse tema
tão candente. Outra foi a atitude do presidente Clinton, que, em sua viagem a Uganda
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(1998), pediu desculpas pelo envolvimento dos norte-americanos na escravização


dos africanos. Ora, comparado com o Brasil, o comprometimento norte-americano
no tráfico negreiro foi muito relativo: os EUA receberam perto de 600 mil escravos
africanos (6%), enquanto o Brasil é o maior beneficiário do tráfico, com perto de 4
milhões de indivíduos (40% do total). Mais ainda, os colonos do Brasil, desde o
século 17, e os brasileiros propriamente ditos, de 1822 a 1850, tiveram participação
ativa no saque direto dos povos africanos, sobretudo em Angola. Só os colonos do
Brasil tiveram essa implicação na pilhagem negreira. Só o Brasil, como nação
independente, foi tão fundo no tráfico e na escravidão. O fato é conhecido dos
historiadores e diplomatas. Ao longo de seus cursos no Itamaraty, nossos diplomatas
devem ter tido informação sobre a maior encrenca nessa área enfrentada pelo País:
o conflito com a Inglaterra em torno da continuação do tráfico negreiro. Embora esse
comércio fosse ilegal, e considerado ato de pirataria pelas leis brasileiras, havia gente
como o senador mineiro Bernardo Pereira de Vasconcelos - eminente pai da Pátria -
achando que permanecer importando escravos era assunto de soberania nacional.

Faltava, portanto, um pronunciamento oficial sobre o assunto em solo


africano. Faltava um gesto significativo para marcar o sentimento já expresso pelo
presidente Lula em sua precedente viagem à África. O local escolhido foi a ilha de
Gorée, tudo bem. Mas a fala - que deveria ter sido bem preparada - saiu enviesada.
O presidente eximiu-se pessoalmente ("...não tenho nenhuma responsabilidade pelo
que aconteceu nos séculos 16, 17 e 18"). Obviamente o indivíduo Lula não tem nada
a ver com o que ocorreu em qualquer parte do planeta antes de sua maioridade. Mas
deveria ter assumido seu papel de presidente de um país escravista e negreiro durante
mais de três séculos. Contudo, Lula concluiu de maneira generosa: "Essas pessoas
(os africanos) e seu sofrimento ajudaram a construir o meu país. Se não fosse a
miscigenação, não teríamos o povo maravilhoso que é o brasileiro". O presidente
poderia ter dito um pouco mais. Conservadas as atuais projeções demográficas
(declínio da natalidade da população branca e queda mais lenta da natalidade dos
negros e mulatos), o Brasil será, dentro de duas décadas, uma nação formada
majoritariamente por cidadãos descendentes de africanos. Fechar-se-á, assim, um
ciclo: antes de 1850 também éramos uma nação formada em sua maioria por negros
e mulatos.

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