que ecoa de minha boca no pleno exercício árduo do pensamento. Sentado, encolhido e triste aqui estou eu no imenso vazio do universo. Estou morto. Não há mais vida ao meu redor. O calor de minhas memórias tem sido o meu cobertor diante deste inverno. Nesse inverno, não há sol, embora enxergue às estrelas. Eu diria que grande parcela das coisas que tenho pensado tem sido sobre ela, a senhora Singer. Coitada, não me aturou em vida e não será aqui nesse imenso vazio da morte que regressará. A senhora Singer foi minha esposa durante 20 anos. A certeza de nosso relacionamento era o pedido de divórcio dela. A minha certeza se confundia com a minha tristeza: o pedido de divórcio dela. Destes 20 anos com ela, 30 anos eu amava-a. Destes 20 anos, 21 anos ela me amou, acho. Uma mulher tão incrível, fez até hora extra pra me amar. Que bonitinha! Era sublime os ósculos pela manhã, nossos olhares remelentos e a preocupação de que teríamos de voltar vivos para nos devorarmos a noite. Olha aí, mal comecei a lembrar dela e já estou falando sobre como era bom transar com ela. Em síntese sempre foi assim: rainha fora; vadia dentro. E aquela gostosa amava isso! Mas só disso não viveu comigo. Uma pena. Eu fui viciado em álcool, charuto e no meu emprego como tradutor de francês. No começo, talvez, parecesse ser atraente para as mulheres ver um cara com uma puta confiança, sorriso safado, poliglota e perigoso no flerte. Eu não podia ver um rabo de saia que os meus olhos perseguiam para aquela direção. Minha boca salivava e na mente me vinha um bocado de poesia misturado com safadezas. Segundo Freud: libido. Se músico fosse, teria sido Vinicius. E não foi diferente ao ver a senhora Singer. Eis que estive em meu bar favorito, misturando Whisky Jameson com cerveja e tira gosto e folheava o texto em que estava traduzindo. Ela, magnífica, entra com um vestido preto, posava feito uma renascentista. Passos leves, olhar firme, postura séria e claramente dava pra sentir que ali havia muita ternura, sabedoria e que eu estava fodido. A senhora Singer se direcionou até o balcão onde os alcoólatras solitários ficam, pois é, esse sou eu na vida, ou costumava ser. E pede ao garçom um vinho Montrachet, aquilo logo me deu um orgasmo cultural ao ouvir a pronúncia. Que voz gostosa. E como um policial a paisana vigiando o bandido, lá estava eu olhando discretamente pra ela. Receoso da embriaguez pedi ao meu camarada bartender uma água com gás e limão. Singer regressa ao balcão minutos depois e em minha direção pergunta: licença, desculpa invadir sua privacidade, mas vi que está com uns papéis em francês. Você fala francês? - Perfeitamente - respondi. Ali, naquele instante, eu vi com os meus próprios olhos o fogo infernal da paixão bater em mim. Fui nocauteado! Aquela mulher não estava pra brincadeira. Fodeu comigo sem dizer o seu nome e as outras coisas que constam em seu RG. Ah! Esqueci de dizer, o único medo na vida que tinha era o de estar apaixonado. A vulnerabilidade de se entregar a alguém é muito danosa pra mim. Sou fracote mesmo. Por questões traumáticas? Deve ter sido na adolescência, não lembro. E aquela noite foi o único contato que tivemos e aquilo já me era o suficiente. Naquele momento eu já a amava; ela gravara a minha feição. Daquele dia em diante comecei a vê-la frequentemente, a sorte ou o bom acaso me perseguiam para angustiar a mim. Até porque, meu amor, era a mais nova moradora do bairro. O melhor de tudo é que do bairro ela não se mudou, mas de casa sim. Veio pra minha 9 anos depois. Namoramos por 1 ano e ficamos casados por 20 anos. Hum? Já disse isso antes, mesmo morto as manias de velho repetitivo se permanecem. Que caralho! Aqueles foram os melhores momentos da minha vida. Aqui, diante do imenso vazio, o céu seria viver aquilo novamente e poder me corrigir afim de evitar o divórcio. Enquanto o inferno, onde estou, é lembrar da melhor passagem da vida que tive, que justamente foi essa. Eu acredito em reencarnação, ela não. Que droga, assim que eu ressuscitar ela não vai vir junto. A crença deve ter dessas tragicomédias, de repente. Ao reencarnar, espero que lá possa haver um outro amor para eu viver, quem sabe uma nova dor pra se sentir, as bebidas certas para tentar te esquecer, afastar os demônios da vida passada. Não sei ao certo. Lá, também, procurarei em tanta gente um espelho dela. Um amor, penso eu, não acaba em uma única vida. Pelo menos não o amor que eu sinto. Bauman se orgulharia de mim se me conhecesse. Enquanto ainda possuo essas memórias e se elas pudessem navegar diante desse imenso vazio e chegasse até você, Singer, eu adoraria te encher delas demasiadamente. Porém, aqui no imenso vazio que tenho vivido – ironicamente falando – as correspondências sejam por pensamentos proferidos a outrem. Ao chegar, saiba que, nossa música ainda é Ex Amor do Martinho, nosso restaurante favorito ainda tem uma mesa pra gente às 20h e que até estando morto o meu amor por você vive.
C'est le temps de l'amour, le temps des copains. Ils
s'en vont amoureux sans peur du lendemain. Je t'aime, Singer![*]
Em francês não poderia me esquecer de dizer
alguma coisa a ti. Mesmo morto, me canso. Vou repousar um pouco... até daqui a pouco.
[*]É tempo do amor; o tempo da amizade. Nos apaixonamos por isso sem medo do dia seguinte. Amo você, Singer!