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LUZ, CÂMERA E ENCENAÇÃO: aproximações entre o cinema de

Michael Haneke e o teatro de Bertold Brecht. 1

LIGHT, CAMERA AND STAGING: approaches between Michael


Haneke cinema and the theatre of Bertolt Brecht.
Lívia Maria Marques Sampaio 2

Resumo: A proposta deste trabalho é fazer uma análise dos pontos de


convergência entre o teatro épico de Bertold Brecht e o cinema de Michael
Haneke, a fim de demonstrar que o cinema de Haneke utiliza diversos recursos
propostos por Brecht, o que traz como resultado um cinema reflexivo. Tomando
como base suas produções cinematográficas, pretende-se demonstrar que seus
filmes possuem digitais da sua formação como dramaturgo e do seu trabalho
como diretor de teatro, e são uma importante ferramenta de estilo que ilumina
com especial atenção os elementos postos em cena. Os planos longos e fixos, a
demora da câmera em objetos e partes do corpo dos personagens, a distribuição
minimalista de objetos, entre outros recursos específicos, mostram que a atenção
dada pela mise-en-scène em seus filmes pode funcionar como um contraponto à
ideia que de a montagem é o elemento central do cinema.

Palavras-Chave: 1. Cinema 2. Michael Haneke 3. Bertold Brecht 4. Mise-en-


scène

Abstract: The purpose of this study is to analyze the points of convergence


between the epic theater of Bertolt Brecht and the cinema of Michael Haneke in
order to demonstrate that Haneke film uses many resources proposed by Brecht,
which brings as a result a reflective film. Based on their film productions, we
intend to demonstrate that his films have marks of his training as a playwright
and his work as a theater director, and are an important styling tool that
illuminates with special attention the elements put in scene. The long and steady
shots, the time the camera takes the objects and body parts of the characters, the
minimalist distribution of objects, among other specific strategies, show even the
attention given by the mise-en-scène in his films goes against the idea of the
editing as the central element of cinema.
Keywords: 1. Cinema 2. Michael Haneke 3. Bertold Brecht 4. Mise-en-scéne

1
Trabalho apresentado na Divisão Temática Ibercom ( DTI-10 Comunicação Audiovisual) do XIV
Congresso Internacional IBERCOM, na Universidade de São Paulo, São Paulo, de 29 de março a 02 de abril
de 2015.
2
Mestranda em Comunicação e Culturas Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia – UFBA.
E-mail lmmsampaio@hotmail.com
INTRODUÇÃO

Nascido na Alemanha em 1942, Michael Haneke, naturalizado austríaco, iniciou sua


carreira no campo das artes no início da década de 60 como pianista. Ao abandonar o
piano, frustrado por sua não vocação, como lamenta em entrevistas, estudou Psicologia,
Filosofia e Dramaturgia na Universidade de Viena. Após trabalhar como crítico de
literatura passou a editar roteiros para televisão. Neste caminho, começou a escrever seus
próprios roteiros, mas ao não encontrar possibilidades de lança-los na TV, voltou-se para o
teatro e dirigiu várias peças. Sua reputação cresceu no meio artístico germânico e Haneke
retornou à televisão, na estatal German Network SWF, onde fez seu primeiro filme em
1974: After Liverpool, uma adaptação da peça de teatro do britânico James Saunders.

Para Roy Grundmann (2010), no início da década de 70, Haneke já estava engajado em
uma grande variedade de projetos artísticos, dirigindo e produzindo diversas peças de
teatro, intercalando-as com trabalhos na televisão. No teatro ele dirigiu peças de
Margherite Duras, Heinrich von Kleist, Strindberg ( inclusive sua famosa peça The Father
), Mozart, enquanto no cinema ele era um diretor ativo de Spielfilme, gênero que nos
países de língua alemã correspondia às novelas brasileiras ou às minisséries. Segundo
Adalberto Muller (2011), os Spielfilms mobilizavam parte importante do audiovisual
naqueles países, e, por sua alta qualidade, a teledramaturgia lá produzida levou muitos
desses filmes feitos para a televisão a se transformarem em cult movies na Europa. Assim,
a carreira eclética de Haneke foi se expandindo, enquanto ele ganhava fama como “diretor
estrela”, “agente provocador financiado pelo Estado”. Um “enfant terrible”. (Grundmann,
2010, p. 44).

É frequente a comparação entre o teatro de Bertold Brecht e o cinema de Haneke. Embora


este diga não ser um grande fã de Brecht, os pontos de convergência nas obras dos dois
realizadores são marcantes. Haneke, inclusive, por ter trabalhado muitos anos como diretor
de teatro, viveu a dramaturgia alemã e certamente conheceu com profundidade a
dramaturgia brechtiana. De acordo com Grundmann (2010) as práticas realizadas por
Haneke no teatro constituem o valor de suas obras e são sua principal ferramenta de estilo.
Ele busca um controle total do dispositivo cinematográfico através de uma seleção rigorosa
dos recursos que aparecem nos planos para alcançar os efeitos pretendidos, entre eles, o
mais evidente: provocar o espectador.

Este trabalho vai trazer alguns conceitos desenvolvidos por Bertold Brecht na sua teoria do
Teatro Épico, para identifica-los nos filmes de Michael Haneke, a fim de compreender
como eles são articulados no cinema para alcançar um resultado similar ao pretendido por
Brecht: distanciar o espectador da ficção e aproximá-lo da realidade para que ele possa
encontrar na representação uma possibilidade de reflexão.

O TEATRO ÉPICO DE BERTOLD BRECHT

A Teoria do Teatro Épico de Brecht 3, proposta no início do século XX, buscou romper as
convenções do teatro clássico (teatro aristotélico), que se caracterizava essencialmente pelo
efeito ilusionista, propondo uma nova teoria de representação que suprimisse a ideia de
ilusão, através, especialmente, do “efeito distanciamento”, que, afirma Gerd Bornheim “
trata-se da verdadeira coluna dorsal de tudo o que se faz em cena, ele é o grande meio
técnico do qual vai depender a própria essência do caráter épico do teatro”. (1992, p. 251)
Para isso, Brecht criou um método baseado na exibição do dispositivo que, ao revelar os
procedimentos técnicos, poderia suprimir a ilusão do espetáculo, provocando no espectador
um olhar consciente e realista sobre os fatos.

Brecht atribuiu ao ator um papel crucial para cumprir basicamente duas funções:
representar os problemas sociais e causar uma atitude crítica no espectador. Ele procurava
fazer o público entender as questões sociais como algo humano, e por isso, a mediação
entre o texto e a representação deveria estar centralizada no ator, o que não significava
esquecer os demais recursos (no caso do teatro são principalmente o palco, a iluminação e
os sons), ao contrário: todos os elementos necessitam, sempre, de controle, pois tudo o que

3
“A expressão ‘ teatro épico ‘ justifica-se por duas razões. A primeira, mais exterior, é que ela estava em
moda, representava uma novidade introduzida por Piscator e que começava a contagiar Brecht. E a outra está
precisamente no fato de que Brecht toma consciência cada vez mais clara dos recursos necessários para que
se codificasse aquilo que logo mais seria assumido por ele como definidor do teatro épico ”. (Bornheim
1992, p. 69).
é posto em cena deve atuar obrigatoriamente. Nada deve estar no palco que possa desviar a
atenção sobre o fato encenado. O artista tem que criar um universo diegético totalmente em
conexão com o sentido ideológico da obra.

Segundo Brecht

As premissas para a utilização do efeito distanciamento com o fim citado são que
se limpe o cenário e a zona do público de todo elemento “mágico” e que não se
formem “campos hipnóticos” […] há que neutralizar com determinados meios
técnicos a tendência do público em embarcar-se em uma de essas ilusões (Brecht,
2004, p.131). 4Aspas do autor

Dentro das especificidades da dramaturgia brechtiana, entender o conceito de gestus social


é imperativo, inclusive para estabelecer esta comunicação entre o teatro de Brecht e o
cinema de Haneke. Gestus social pode ser definido como a expressão gestual das relações
sociais. O uso apropriado do gestus, segundo Brecht, cria um processo de interação entre o
ator e o espectador que permite definir a representação da realidade, ou seja, o gestus deve
ser politicamente útil para a ação. Para este dramaturgo, o gesto estilizado, que costuma ser
excessivamente dramático, não deve ser usado em nenhum caso, o que converge com o
pensamento de Haneke que inclusive escreveu em seu texto Terror e Utopia da Forma:
“sempre me pareceu obsceno assistir a um ator retratar, com fúria dramática, alguém que
estivesse sofrendo ou morrendo − é roubar daqueles que estão realmente sofrendo ou
morrendo sua ultima posse: a verdade” (HANEKE in CAPISTRANO, 2011, p. 20). O
movimento dos atores, sua expressão, seus gestos, são sempre exatos para representar cada
fato em cada cena. Não há excessos, o que se assemelha também às ideias de Robert
Bresson, um dos cineastas que inspirou Haneke.

Um suspiro, um silêncio, uma palavra, uma frase, um barulho, uma mão, seu
modelo inteiro, seu rosto, imóvel, em movimento, de perfil, de frente, um imenso

4
Tradução livre de “Las premisas para la utilización del efecto distanciador con el fin citado son que se
limpie el escenario y la zona del publico de todo elemento «magico» y que no se formen «Campos
hipn6ticos». [...] hay que neutralizar con determinados medios técnicos la tendencia del publico a embarca
rse en una de esas ilusiones (Brecht, 2004, p. 131).
ponto de vista, um espaço restrito. Cada coisa exatamente no seu lugar: seus únicos
recursos. 5 (Bresson, 1979, p. 32)

É dentro desta lógica que está outro conceito de Brecht : parquedad, palavra que quer dizer
parcimônia, o que significa que o esvaziamento, a austeridade, são necessários e não
devem ser entendidos como uma instância pobre, inclusive porque o excesso pode
significar uma carência artística.

Na realidade, o excesso de objetos não é mais do que uma falta de espaço. Muitas
vezes, as casas mais pobres são mais ricas em objetos. Uma impressão de
parquedad também se deve à construção cênica do ilusionista que não se contenta
em sugerir características, trabalhar com abstrações, deixando a cargo do
espectador a tarefa de concretizar. Se opõe a paralização e atrofia a fantasia.6
(Brecht, 2004, p. 203)

Assim, tanto o movimento dos atores quando tudo o que é posto em cena deve obedecer a
um critério essencial: necessidade. Se não é necessário para representar a trama, não deve
existir. É a quebra da quarta parede, entretanto, que descortina - literalmente - a relação
palco/plateia. Um jogo de cena que arrasta e surpreende o espectador.

Consta que a teoria da quarta parede foi proposta pelo teatro italiano, em meados do século
XIX. Na arquitetura desse teatro – ainda hoje predominante nos espaços cênicos -, a visão
do público deve ser frontal e distante do palco, em um formato quadrangular, tendo,
portanto, três paredes. A quarta parede seria imaginária, fazendo “com que o ator seja
como a pintura: observado por duas dimensões como o que nos permite a moldura do
quadro” (ROUBINE, 1998, p. 82). Nas palavras de Ismail Xavier

No século XVIII, o teatro assumiu com mais rigor a “quarta parede” e fez a mise-
en-scène se produzir como uma forma de tableau que, tal como uma tela composta

5
Tardução livre de “Un suspiro, un silencio, una palabra, una frase, un estrepito, una mano, tu modelo
entero, su cara, quieto, en movimiento, de perfil, de frente, una vista inmensa, un espacio restringido. Cada
cosa exactamente en su lugar: tus únicos recursos. ( Bresson, 1979, p. 32)
6
Tradução livre de “En realidad, el exceso de objetos no es mas que una falta de espacio. A menudo las
viviendas pobres son las mas ricas en objetos. Una impresión de parquedad también se debe a que la
construcción escenica no ilusionista se contenta con sugerir características, trabaja con abstracciones,
dejando a cargo del espectador el trabajo de concretar. Se opone a la paralización y a la atrofia de la
fantasia”. (Brecht, 2004, p 203)
com cuidado pelo pintor, define um espaço contido em si mesmo, sugere um
mundo autônomo de representação, totalmente separado da plateia. Como queria
Diderot, a “quarta parede” significa uma cena autobastante, absorvida em si
mesma, contida em seu próprio mundo, ignorando o olhar externo a ela dirigido,
evitando qualquer sinal de interesse pelo espectador, pois os atores estão “em outro
mundo”. (Xavier, 2003, p. 17).

A quebra da quarta parede, proposta por Brecht, ocorre quando um personagem se dirige
ao espectador e/ou fala/faz algo em cena que mostra ao público que aquelas ações são
ficcionais. À primeira vista parece ambivalente pretender um distanciamento do público se
aproximando ele, lembrando-o de que o que ele está assistindo não é real, porém a ideia é
que, ao romper o limite - a quarta parede - entre quem assiste (e está na plateia, ou seja, em
um espaço da sua vida real) e quem atua ( dentro do espaço de representação ), o
espectador se depara com um dado de realidade : ele está assistindo a uma peça de teatro. É
isso que cria o “efeito distanciamento”. Primeiro, se suprime da representação tudo que
não é necessário – com o gestus e o parquedad – , aproximando ao máximo a história
contada da realidade, para depois quebrar a ilusão, mostrando elementos que dão forma o
teatro, como equipamentos de luz, cortinas, escadas, etc. O som também é utilizado com a
mesma função: ele não enfatiza ações, e sim, pontua quebras de cenas e/ou é colocado em
substituição a algumas falas, por exemplo. A orquestra, quando existe, está à vista, no
palco.

De fato, no ilusionismo do século XVIII, o teatro buscava fazer o público entrar ao


máximo na história, se esquecendo de que estava assistindo a uma encenação. A quebra da
quarta parede, em suma, propõe “cuidar para que não surjam campos hipnóticos’ que
magnetizem o espectador” (BORNHEIM 1992, p.258). É bom lembrar que a quebra da
quarta parede já era usada na comédia antiga, como, por exemplo, em prólogos e epílogos
nas comédias de Plauto e Terêncio, mas o propósito de Brecht era romper o ilusionismo
conscientizando o espectador sobre a realidade social.

O TEATRO ÉPICO E O CINEMA DE MICHAEL HANEKE


Como já foi dito na pequena biografia de Haneke, antes de trilhar seu caminho no cinema,
ele passou pelo teatro e pela televisão, o que certamente influenciou seu estilo
cinematográfico. Há um forte tom teatral em suas obras, percebido especialmente pela
rigorosa construção da mise-en-scène que inclui a interpretação dos atores. Esta maneira de
Haneke filmar exemplifica a colocação de David Bordwell: “a feitura de um filme é uma
avalanche de escolhas mínimas [...]. Ao fazer suas escolhas, o cineasta é guiado pelo ofício
que dominou, pelos modelos que conhece, pelos ensaios, erros e hábitos da experiência”
(2013, p. 205).

Na fase inicial do cinema havia um enaltecimento da técnica da montagem por ser


puramente cinematográfica, em detrimento da encenação que remetia ao teatro. Os críticos,
muito atentos à montagem, praticamente ignoravam a mise-en-scène. Com o cinema
sonoro a encenação ganhou mais espaço, ainda que até hoje a montagem habilidosa
costuma ser mais elogiada do que uma encenação bem elaborada. Segundo Bordwell, isso
pode ser explicado pelo fato de que os recursos usados para a elaboração da mise-en-scène
são mais sutis do que os da montagem.

Tarkovsky, um grande defensor da mise-en-scène cinematográfica, usou a expressão


“tempo impresso“ para se referir à precisão de uma obra fílmica na qual só deveria estar
em cena personagens e objetos que tivessem função no enredo. As técnicas
cinematográficas teriam que ser contidas, exatas, para dar um efeito de concentração no
que estava sendo mostrado, sem dar espaço à dispersão, de forma muito similar aos
conceitos de Brecht. Segundo ele, era preciso “deixar as mãos livres”, tirando “todos os
elementos desnecessários, inadequados ou irrelevantes, e fazê-lo de tal forma que a questão
das necessidades do filme e das coisas que deveriam ser evitadas fosse resolvida por si
própria” (1998, p. 111). Ele dá o exemplo de Bresson, que fazia seus filmes sem “
nenhuma introdução especial de material, nada de forçado, nada que lembre generalização
deliberada (1998, p. 112).

No cinema é mais difícil do que no teatro dar funções a todos os elementos colocados em
cena, pois os filmes costumam carregar mais os espaços com objetos, porém em
praticamente todos os filmes de Haneke a composição do cenário aparece reduzida a seus
limites. Mesmo que os indícios sejam de que alguns personagens possuem uma vida
financeira abastada, o cenário costuma ser simples. Importante observar que na maioria dos
filmes de Haneke o espaço predominante é a casa, e nesta casa, a sala costuma ter como
decoração prateleiras com muitos livros ou paredes cheias de quadros, ou seja, os
ornamentos remetem à cultura dos personagens. Percebe-se, por exemplo, que o garoto
Benny, de Benny´s Video (1992), pertence a uma família rica, e não só pelas obras de arte
que estão nas enormes paredes da sala, como também no próprio aparato tecnológico de
Benny que, em 1992, só era acessível às pessoas que poderiam pagar uma alta quantia por
aquilo, mas o apartamento não é ostensivo. O mesmo ocorre com a casa de férias dos
Schober´s em Funny Games (1997) e Funny Games U.S (2007), e com o casal em Amor
(2012). Certamente um cenário luxuoso, com móveis vistosos, tapetes e lustres
chamativos, poderia ofuscar as ações dos personagens. Os cenários, austeros, estão dentro
do conceito de parquedad. Em um universo de 11 filmes, somente três destes – 71
Fragmentos – Uma Cronologia do Acaso (1994); O Tempo do Lobo (2003) e A Fita
Branca (2009) 7 – possuem uma quantidade razoável de cenas externas, e nestes, o cenário
– tanto nas tomadas internas quanto nas externas – também é enxuto.

Da mesma forma, os atores, como componentes essenciais do distanciamento, só aparecem


em cena para mostrar algo ao público. Haneke trabalha com poucos personagens que
normalmente estão centrados em um núcleo familiar composto de pai, mãe e um filho/a. 71
Fragmentos – uma Cronologia do Acaso e A Fita Branca são exceções, pois possuem
diversos núcleos, e, consequentemente, um maior número de personagens, mas todos eles
têm uma função importante no enredo, inclusive é difícil identificar “personagens
secundários”, uma vez que quase todos protagonizam cenas.

Distribuição minimalista de objetos e pessoas dentro do quadro, silêncios significantes,


quadros vazios, entre outros aspectos, mostram que Haneke usa a teatralidade de forma
muito similar ao Teatro Épico, inclusive como contraponto ao cinema espetacular. Em seus
filmes é o plano fixo que predomina, e o movimento de câmera é reduzido ao máximo para

7
Títulos em inglês: 71 Fragments of a Chronology of Chance, Time of the Wolf e The White Ribbon
respectivamente.
manter a concentração do espectador, com exceção de casos isolados necessários para
acompanhar determinadas cenas. A combinação do plano fixo, com movimentos de câmara
contidos e vários closes em partes dos corpos e em objetos, produz um efeito semelhante a
um olhar que percorre um cenário lentamente, fixando esse olhar, às vezes, em algum
objeto ou pessoa. O próprio autor diz que prefere filmar planos longos porque os atores,
principalmente os de teatro, desenvolvem com mais fluência suas emoções quando não há
cortes nem interrupções. Faz a ressalva de que no caso de cenas externas e/ou com muitos
coadjuvantes fica difícil manter a qualidade de um plano longo, com seis, sete minutos, por
exemplo, pois ao trabalhar com muitas pessoas, especialmente não se tratando de atores
profissionais, é difícil não haver dispersão (MONTMAYEUR, 2013). Trabalhando com
esses planos de longa duração, a composição dos quadros é meticulosa. É como se o
quadro fosse um palco de teatro onde atores e objetos ganham movimento.

A quebra da quarta parede é usada em apenas três de seus onze filmes, mas de forma
marcante: em Código Desconhecido8 e nas duas versões de Funny Games. No primeiro,
em uma cena emblemática, Anne, uma atriz, interpretada por Juliette Binoche está
ensaiando a cena de um filme, quando a câmera se aproxima e uma voz ( não se vê o dono
da voz) diz que ela caiu em uma armadilha, que ela não sairá mais dali e que ele – a voz é
masculina – ficará lá, assistindo a morte dela. A atriz se desespera, pergunta o que ele quer,
ao que ele responde “quero sua verdadeira face”, mas o espectador não sabe se é a voz do
próprio Haneke brincando com Binoche ou a voz de um personagem ( que pode
interpretado por Haneke ) brincando com a personagem Anne. Passados alguns momentos
da cena, pelo desespero dela, percebe-se que não é possível que seja uma cena totalmente
improvisada, mas ao colocar em dúvida se a pessoa que fala está dirigindo à personagem,
ou a atriz, e, mais, se quem fala é o próprio Haneke ou não, desestabiliza a certeza do
universo ficcional. Mais tarde, em um palco no teatro, Binoche/Anne anda de um lado
para o outro, rindo histericamente e falando com uma pessoa que pode ser ou não o diretor
(novamente só se ouve a voz masculina. Não é mostrado o contracampo). Em outra cena,
Anne/Binoche e o ator que trabalha com ela no filme estão dentro do estúdio, colocando as
falas de uma cena que eles participaram e um homem – o diretor – chama a atenção dos

8
Título em Inglês : Code Unknown.
dois. Novamente ela ri. Novamente não se sabe se quem riu foi Anne ou Binoche, nem o
rosto do diretor.

Funny Games9, por sua vez, é um filme que quebra a quarta parede de diversas formas.
Neste, são basicamente quatro tipos de ações que “chamam o espectador à razão”,
alertando-o, lembrando-o de que ele está assistindo a um filme. A primeira, sutil, é na
abertura, quando a família se encontra dentro do carro ouvindo música clássica e o
espectador vê, no primeiro plano, outra cena: a dos créditos em letras vermelhas que
surgem na tela ao som de outra música: os gritos caóticos de Bonehead, música do
compositor e saxofonista John Zorn. Minutos depois, Paul (um dos torturadores) olha para
a câmera pela primeira vez, ou seja, para o público (ele olha quatro vezes ao longo do
filme). Outro tipo de comunicação com o espectador ocorre através de diálogos travados
entre eles, mas que remetem a questões que não são parte da ficção como, por exemplo,
quando Anna, que está sendo torturada, pergunta a Peter (o outro torturador) por que eles
não nos os matam logo, e ele responde “não se esqueça do valor da diversão. Não devemos
nos privar do nosso prazer”, ou quando Paul tira a mordaça que impede Anna de gritar e
comenta que vai fazer isso porque “Os mudos não sofrem de maneira espetacular. Temos
que mostrar ao público. Perder a vida às vezes pode ser uma grande festa”, ou ainda
quando, novamente questionados porque não acabam logo com aquilo, Paul diz “Ainda
não cumprimos o tempo do longa-metragem”. ( HANEKE,1997; 2007).

Por fim, a ruptura total da ficção: quando Paul rebobina a cena na qual Anna mata Peter. A
famosa cena do controle remoto em Funny Games fez história. Quase ao final do filme, em
um descuido dos sequestradores, Anna pega a arma e atira em Peter. Em entrevista a
Toubiana (2005), Haneke contou que na exibição no Festival de Cannes, a plateia aplaudiu
em pé este momento, porque, finalmente, após quase duas horas de tortura, o jogo virou.
Um bandido foi morto. Infere-se que o segundo também será. Anna e Georg vão
sobreviver, e com um deleite de vingança: Anna mata Peter! Pronto! Um final que caminha
para um happy end. Porém, o controle remoto que estava na sala cumprindo sua função
cotidiana de mudar o canal da televisão é procurado por um Paul em desespero que brada

9
Como são duas versões praticamente idênticas, a referência a Funny Games, aqui, é em relação a ambos:
tanto à versão de 1997 quanto à versão de 2007.
“cadê, cadê o controle?”. Quando o encontra no sofá, Paul rebobina a cena, voltando ao
mesmo ponto onde estavam os personagens. A arma que Anna tenta pegar é tomada por
um Paul irônico, certo de que o jogo não vai mudar, como de fato não mudará, e a
felicidade do público é frustrada impiedosamente. Eles não falam com o espectador, não
olham para a câmera, mas mostram que o que ali ocorre é tão ficcional que pode ser
alterado por eles, personagens de um filme de ficção. E mostram, com isso, a impotência
do espectador que não tem um controle remoto que possa modificar alguma cena. Quem
está no controle é o diretor, e não o público. Este pode sair da sala do cinema, desligar o
aparelho de DVD, fechar os olhos, tapar os ouvidos, mas a história está lá, pronta, com
começo, meio e fim, e nada vai modificá-la, o que torna muito angustiante, neste filme, o
contato do personagem com o espectador: além de não poder responder, quando
questionado, o público não pode interferir na história. A situação do público é
claustrofóbica: Paul pode perguntar, mas se alguém responder, não será ouvido. Paul pode
rebobinar e alterar uma cena, mas o espectador, mesmo que tenha um controle remoto em
mãos, e rebobine cenas, não poderá modificá-las.

O som é outro elemento caro à obra de Haneke. Usado com extrema cautela, todos os
elementos sonoros dos seus filmes acompanham as ações, que às vezes servem para
contrapor a imagem e em outras para reforçá-la. Ele não faz uso do som para preencher
vazios na trama. Ao tratar do uso do som em O Sétimo Continente 10, Hernández chamou o
realizador de “gourmet do som” (HERNÁNDEZ, 2009, p. 28). Por som, entende-se a
música, os ruídos e os efeitos sonoros. Segundo Aumont e Marie:

O som que um filme oferece raramente intervém sozinho. Ele supõe um


agenciamento entre vários eixos: ruídos, falas e, às vezes, música. Procede de uma
certa arte da composição sonora. Além disso, o som fílmico é acompanhado de
uma percepção visual, até mesmo nos casos-limite em que a tela fica escura. A
percepção fílmica é, portanto, áudio (verbo) visual e faz intervir numerosas
combinações entre sons e imagens: redundância, contraste, sincronismo ou
dessincronismo ou dessincronização etc. (Aumont, Marie, 2010, p. 276).

10
Título em inglês : The Seventh Continent
A função do som de pontuar uma cena no cinema é enfatizada por Chion (2008).
Remetendo à encenação no teatro, este autor retoma o significado de “pontuar cenas”, seja
através de pausas, respiração, gestos e outras expressões, ou através das múltiplas
pontuações no cinema mudo: gestuais, visuais, inclusive dos cartões que serviam no
cinema mudo como elemento de pontuação. Nas obras de Haneke, existem sons que se
repetem, como o barulho do motor do carro, ruídos mecânicos e de aparatos tecnológicos,
sendo mais frequentes o som do rádio e da televisão. Estes sons acompanham as cenas, o
movimento dos personagens, pontuam momentos da trama, também de forma similar à
proposta de Brecht.

Em The violence of silence: vocal provocation in the cinema of Michael Haneke, Lisa
Coulthard observa que nos filmes de Haneke

[.....] uma uniformidade de estilo é facilmente identificável e é uma identidade


formal formada em grande parte por tendências acústicas: poucos diálogos, raros
casos de música que estão sempre, de alguma forma diegeticamente motivados e
uma enorme amplitude dinâmica que muda de forma abrupta e violenta entre o
ruído e o silêncio 11(Coulthard, 2012, p. 89)

Os sons usados por Haneke, em todos os seus filmes, também se adequam à proposta de
Brecht, dentro do conceito de distanciamento. “Se o espetáculo é composto de música,
palavra e cena, trata-se de saber manter as distâncias e atribuir a cada um desses elementos
a maior autonomia possível” (BORNHEIM, 1992, p. 179). Lembra Bornheim que, ao
escrever seu ensaio Sobre o emprego da música no teatro épico, Brecht usa também o
conceito de gestus, pois a música deve estar vinculada ao trabalho do ator, sendo executada
dentro dos princípios do distanciamento. “ Os três elementos – ação, música e quadro
cênico – aparecem unidos e ao mesmo tempo separados” ( BRECHT in BORNHEIM,
1992, p. 301). Da mesma forma que se refere à música, Brecht se refere aos sons que
devem estar sempre no mesmo compasso da representação.

11
Tradução livre de “ “ .... the uniformity of style is readily identifiable and it is a formal identity shaped in
large part by acoustic tendencies: minimal dialogue, only rare instances of music that are always in some way
diegetically motivated, an intensification of foley sounds associated with bodily movement and a massive
dynamic range that shifts abruptly and violently between noise and silence.” (Coulthard, Lisa, 2012 , p. 19 ).
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Oriundo do teatro, Haneke utiliza muitos elementos da práxis teatral em seus filmes. Este
trabalho procurou mostrar as aproximações entre Brecht e Haneke, fazendo a ressalva de
que apesar desta relação ser referência frequente em críticas e trabalhos acadêmicos,
Haneke coloca em seus filmes um vasto repertório teatral que não se limita a Brecht. Os
conceitos de gestus, parquedad, o uso do som e a quebra da quarta parede, no entanto, são
marcas da dramaturgia brechtiana que buscam o “efeito distanciamento” para fazer do
espectador um agente ativo da representação, o que condiz com a proposta explícita de
Haneke. Como diz Borheim “O distanciamento não constitui uma experiência
especificamente teatral, embora, desde que utilizado no teatro, chegue a ostentar uma
especificidade teatral” (1992, p. 243).

Levantar diversas questões e não dar nenhuma resposta, deixando ao espectador a tarefa de
busca-las é a proposta de Haneke, seja qual for o tema do seu filme, exatamente para fazer
o espectador refletir sobre o que está sendo mostrado. Diz ele:

Por anos venho tentando devolver aos espectadores um pouco do tipo de liberdade
que eles têm em outras artes. Música, pintura, as belas artes dão aos receptores
espaço para respirar em suas considerações sobre a obra. As artes que envolvem a
língua já circunscrevem essa liberdade consideravelmente porque elas são
obrigadas a chamar as coisas pelo seu nome.[...]Em outras palavras, o cinema tem,
desde o início, uma tendência a a desautorizar o receptor. Mas se o cinema aspira
ser uma arte, deve levar o público ao qual se dirige a sério e, tanto quanto possível
tentar devolver a ele a liberdade perdida. Mas de que forma? Eu acho que esta é
uma pergunta muito decisiva, com a qual todos os cineastas sérios devem se
engajar. [..] É preciso encontrar a construção que permita ao espectador voar – em
outras palavras, que agite sua imaginação 12 (HANEKE in GRUNDMANN, 2010,
p 605-606).

12
Tradução livre de “For years, I have been trying to restore to spectators a little bit of the kind of freedom
they have in the other arts. Music, painting, the fine arts give recipients breathing space in their consideration
of the work. The language-bound arts already circumscribe this freedom considerably, because they are
forced to name things by their name [...]In other words, film has, from the outset, a tendency towards
disenfranchising the recipiente. But if film aspires to be na art, it must take it addressee seriously and, as
much as possible, attempt to restore the lost freedom to the later. But what it means ? I think this is a very
decisive question, with whitch all serious filmmakers engage. [...]One has to find a construction that lets the
viewer fly-- in other words, that stirts the viewer imagination ” ( Haneke in Grundmann, 2010, p 605-606).
Assim, ao utilizar recursos do Teatro Épico e propondo um cinema que busca o
engajamento do público, Haneke infiltra e maneja elementos da dramaturgia brechtiana em
suas obras, desencadeando diversos dilemas sobre os temas abordados, cujo impacto é
reforçado pela forma com a qual que busca contar ao espectador suas histórias
perturbadoras.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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___________( Director/Writer). Stefan Arndt & Veit Heiduschka ( Producers) ( 2009) The White
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___________( Director/Writer). Stefan Arndt & Veit Heiduschka (Producers) (2012) Amour
[DVD]. France/ Germany : Les Films du Losange/ X-Filme Creative Pool

Montmayeur, Y (Director/Writer), Serge G. & Vincent L. (Producers) (2013). Michael H.


Profession: Director. [DVD]. Austria/France: Wildart Film/Les Films du Losange.

WEB SITE
Toubiana,S.(2005) Entrevista com Michael Haneke. (Tradução livre). Acesso em 13 mar. 2015.
Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=28Q8m1Lr4GY>

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