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DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

DISCLAIMER OF LEGAL PERSONALITY

Táislla Brunnela Alves de Souzai

RESUMO

Este trabalho tem como objetivo a realização de uma análise acerca das alterações ao instituto
da Desconsideração da Personalidade Jurídica “Disregard Doctrine” constante do Código
Civil, Lei Federal n. 10.406/02, com a entrada em vigor, em 20 de setembro de 2019, da
norma intitulada Lei de Liberdade Econômica, Lei Federal n. 13.874/19, a qual trouxe
mudanças significativas ao mencionado instituto. O estudo levará em consideração o objeto
proposto pela alteração legislativa – trazer maior grau de segurança jurídica no aspecto da
separação do patrimônio incorporado ao ente criado e àquele pertencente ao próprio acervo
pessoal dos participantes do empreendimento – sob a perspectiva da doutrina, bem como os
posicionamentos da jurisprudência em suas mais recentes decisões. Ao final, avaliar-se-á
acerca do objetivo proposto e sua efetividade no plano concreto.

PALAVRAS-CHAVE: Desconsideração; Pessoa jurídica; “Disregard Doctrine”; Patrimônio


pessoal; Patrimônio integrado; Alteração legislativa.

ABSTRACT

This work aims to carry out an analysis about the changes to the Institute of Disregard of
Legal Entity "Disregard Doctrine" contained in the Civil Code, Federal Law n. 10.406/02,
with the entry into force, on September 20, 2019, of the rule entitled Economic Freedom Law,
Federal Law n. 13.874/19, which brought significant changes to the aforementioned institute.
The study will take into account the object proposed by the legislative amendment – to bring a
greater degree of legal certainty in the aspect of the separation of the patrimony incorporated
to the created entity and that belonging to the own personal collection of the participants of
the enterprise – from the perspective of the doctrine, as well as the positions jurisprudence in

iI Acadêmica do curso de direito pelo Centro Universitário UNA Contagem, endereço eletrônico:
taisllabrunnela.tb@gmail.com
its most recent decisions. At the end, it will be evaluated about the proposed objective and its
effectiveness in the concrete plan.

KEYWORDS: Disregard; Legal person; “Disregard Doctrine”; Personal heritage; Integrated


equity; Legislative change

INTRODUÇÃO

O instituto da Personalidade Jurídica, relevante instrumento de direito presente em


diversos ordenamentos jurídicos em todo o mundo, tem como um de seus principais objetivos
consubstanciado em incentivar o crescimento econômico optando aos empreendedores manter
seu patrimônio privado separado do patrimônio destinado ao exercício da atividade.
Contudo, com o transcurso do tempo, pessoas mal-intencionadas instituíram técnicas
para o propósito de utilizarem-se do mencionado instituto com a finalidade de realizar práticas
ilícitas objetivando fraudar credores, o que fez com que o direito evoluísse no sentido da
criação de mecanismos voltados a contenção de tais condutas, surgindo assim a
Desconsideração da Personalidade Jurídica.
A princípio, a desconsideração trouxe uma solução prática inibindo condutas
maliciosas de quem se aproveitava da personalidade jurídica. No entanto, seu desregrado uso
em nosso ordenamento acabou por desencadear um novo problema, a incerteza jurídica
quanto ao alcance do instituto da desconsideração.
Nesse contexto, foi decretada a Medida Provisória n.º 881, de 30 de abril de 2.019, a
qual deu origem à norma intitulada Lei de Liberdade Econômica, Lei Federal n.º 13.784, de
20 de setembro de 2.019, que alterou a antiga redação do art. 50 do Código Civil nos termos
em que se relacionava com a desconsideração da personalidade jurídica.
A alteração teve como objetivo trazer um melhor delineamento acerca das condições
que ensejam a desconsideração da personalidade jurídica e quais patrimônios a ela se submete
a fim de não comprometer a finalidade do instituto da personalidade jurídica, evitando assim
prejuízos concretos a economia, bem como preservar a manutenção práticas ilegais voltadas a
causar prejuízo aos credores.
1 DA PESSOA JURÍDICA

1.1 Conceituação

A Personalidade Jurídica consiste na união de pessoas físicas ou de outras pessoas


jurídicas com interesses integrados e, de forma compartilhada, trabalham na execução de
determinado objetivo de modo a abrir mão de parte de seu patrimônio particular realizando
sua destinação a criação de um novo ente o qual possuirá existência abstrata e fictícia com
obrigações e direitos próprios para responder perante terceiros como sujeitos de direito.
A esse respeito, dispõe a doutrina em conceituação ao instituto:

As pessoas jurídicas, denominadas pessoas coletivas, morais, fictícias ou abstratas,


podem ser conceituadas, em regra, como conjuntos de pessoas ou de bens
arrecadados, que adquirem personalidade jurídica própria por uma ficção legal.
Apesar de o Código Civil de 2002 não ter repetido, originalmente, o teor do art. 20
do CC/1916, a pessoa jurídica não se confunde com seus membros, sendo essa regra
inerente à própria concepção da pessoa jurídica (TARTUCE, 2021, p. 254).

No mesmo sentido, temos a definição dada pelos doutrinadores Gagliano e Filho


(2014, p. 244): “Podemos conceituar a pessoa jurídica como o grupo humano, criado na forma
da lei, e dotado de personalidade jurídica própria, para a realização de fins comuns. ”
Diante das conceituações apresentadas, podemos afirmar que a figura da pessoa
jurídica nada mais é do que a vontade de entes privados; sejam eles pessoas físicas ou
jurídicas que, unidas em prol de um interesse em comum, coadunam-se a investir bens e
valores. Sua importância resta evidenciada principalmente quando na seara econômica sendo
de suma relevância para o incentivo da economia, pois com a divisão dos patrimônios que se
dá a partir do nascimento desta pessoa jurídica, os participantes restam mais seguros quanto a
distinção entre o patrimônio privado e o direcionado.

1.2 Do Nascimento da Pessoa Jurídica

A instituição da pessoa jurídica reconhecida como um ser independente detentor de


direitos e deveres assumidos pelo ordenamento, depende da obtenção do atributo da
personalidade o qual somente poderá ser adquirido a partir do procedimento formal instituído
no Código Civil – Lei Federal n. 10.406 de 10 de janeiro de 2.022.
Tal procedimento se constitui para fins jurídicos como início ou nascimento da
pessoa jurídica tendo como marco inicial, quando entidades de direito privado, a inscrição do
ato constitutivo no respectivo registro, observada, quando necessário, a autorização ou
aprovação pelo Poder Executivo.
Segundo Cesar Fiúza, o surgimento da pessoa jurídica de acordo com o ordenamento
jurídico brasileiro dar-se-á da seguinte maneira:

Registro é o ato que dá início a personalidade jurídica, pelo menos das pessoas
jurídicas de direito privado. Quanto às de Direito Público, como regra, são criadas
por lei. Assim, para que uma sociedade se torne pessoa jurídica, será necessário
inscrever seu contrato social no Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas ou
na Junta Comercial, dependendo de se tratar de pessoa simples ou empresária. O
mesmo acontece com as associações e fundações privadas. Já as empresas públicas
são criadas conforme os procedimentos estabelecidos em lei especial. Que autorize
sua criação. Além disso, o registro servirá para dar segurança, autenticidade e
eficácia a todos os documentos das pessoas jurídicas (FIUZA, 1999, p. 43).

Em nossa legislação, temos a tipificação do referido ato mencionado no art. 45 do


Código Civil, acrescido nas disposições constantes da Lei de Registros Públicos, Lei n.
6.015/73.

Art. 45. Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a
inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de
autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as
alterações por que passar o ato constitutivo (BRASIL, 2002).

Esclarecido acerca do mencionado dispositivo pelos doutrinadores:

A pessoa jurídica de direito privado encontra sua gênese no ato de manifestação de


vontade de uma pessoa humana, que se consubstancia no ato constitutivo da pessoa
jurídica. A partir de então, afirma-se já existir o ente moral; em termos mais
técnicos, o negócio jurídico fundante já se revela válido e eficaz. Daí por que se
afigura possível falar, por exemplo, em sociedade não personificada. O início da
personalidade jurídica, no entanto, requer a inscrição do ato constitutivo da pessoa
jurídica no registro competente, momento no qual se dá à efetiva dissociação
patrimonial entre o ente abstrato e seus criadores. Eventual defeito do ato de
constituição da pessoa jurídica, seja formal ou substancial, importará sua
anulabilidade, submetida, de acordo com o parágrafo único, a prazo decadencial
trienal. O termo a quo para a contagem do referido prazo é a data da publicação do
ato de inscrição no registro (SCHREIBER. et. al. 2021, p. 172).

Além do dispositivo mencionado e comentado, vejamos o que dispõe a Lei de


Registros Públicos, Lei Federal n. 6.015/73, em seu art. 114:
Art. 114. No Registro Civil de Pessoas Jurídicas serão inscritos: I – os contratos, os
atos constitutivos, o estatuto ou compromissos das sociedades civis, religiosas, pias,
morais, científicas ou literárias, bem como o das fundações e das associações de
utilidade pública; II – as sociedades civis que revestirem as formas estabelecidas nas
leis comerciais, salvo as anônimas. III – os atos constitutivos e os estatutos dos
partidos políticos (BRASIL, 1973).
Importa ainda destacar que, para agir perante terceiros sem que se coloque o
patrimônio particular a sujeição de eventual objeto para pagamento de dívidas, faz-se
necessário que a constituição da pessoa jurídica esteja em estrita observância às formalidades
exigidas. Atividades que, agindo de forma organizada em um empreendimento em comum,
mas que não cumprem os requisitos outrora mencionados estarão sujeitas a responsabilidade
pelo pagamento das dívidas oriundas da atividade de forma indistinta a de seu patrimônio
particular, consideradas a existência de uma situação fática ou sociedade de fato.

Assim, bem leciona o doutrinador André Luiz Santa Cruz:

A sociedade em comum, segundo afirmam alguns autores, é a que conhecemos


tradicionalmente com os nomes de sociedade irregular ou sociedade de fato. Outros
autores, todavia, não comungam dessa mesma interpretação, conforme veremos
adiante. Segundo o art. 986 do Código Civil, tratam-se da sociedade que ainda não
inscreveu seus atos constitutivos no órgão de registro competente: Junta Comercial,
em se tratando de sociedade empresária, e Cartório de Registro Civil de Pessoas
Jurídicas, em se tratando de sociedade simples. Eis o teor da norma em comento:
“enquanto não inscritos os atos constitutivos, reger-se-á a sociedade, exceto por
ações em organização, pelo disposto neste Capítulo, observadas, subsidiariamente e
no que com ele forem compatíveis, as normas da sociedade simples (CRUZ, 2020,
p. 543).

Assim, podemos observar que a segurança relativa do patrimônio particular depende


das observâncias formais que dão ensejo ao nascimento da pessoa jurídica e, somente a partir
deste reconhecimento legal, tem-se a real distinção entre os patrimônios.
No entanto, essa distinção é relativa e não absoluta, portanto, ainda com o verificar
do mau uso da pessoa jurídica, diante de práticas maliciosas realizadas no propósito de lesar
credores, poderá haver a desconsideração da separação patrimonial de forma excepcional e
precisa.

2 DA DESCONSIDERAÇÃO

2.1 Conceito

Apesar de louváveis os propósitos perseguidos com a criação da Personalidade


Jurídica, a maliciosidade humana não ficou alheia ao instituto e os objetivos por ela
perseguidos acabaram comprometidos com as arquitetadas técnicas que o fizeram ser uma
forma eficiente de lesar credores.
Assim, neste contexto, fez-se surgir uma ponderação a proteção atribuída ao instituto
da personalidade jurídica, nascendo, de maneira forçosa, um novo instituto o qual fora
intitulado de Desconsideração da Personalidade Jurídica.
A Disregard Doutrine ou Disregardof legal entity no direito anglo-americano; abus
de lanotion de personnalitésociale no direito francês, teoria do superfaturamento dela
personalità na doutrina Italiana; teoria da penetração – Durchgriff der juristischenPersonen
na doutrina alemã, e no ordenamento jurídico brasileiro como Desconsideração da
Personalidade Jurídica.
Vários doutrinadores conceituaram o que vem a ser o instituto da desconsideração e
sua real função.
A doutrina nos explica o surgimento e o conceito da seguinte forma:

A desconsideração da personalidade jurídica é instituto concebido na experiência


anglosaxônica como forma de permitir o salto sobre a pessoa jurídica para alcançar
diretamente o patrimônio de seus sócios ou administradores. É usualmente referida
com as expressões inglesas disregard doctrine, ou ainda, lifting the corporate veil,
que consiste precisamente em “erguer o véu da pessoa jurídica” para atingir quem
estiver por trás de sua utilização (SCHREIBER et. al., 2021, p. 184).

Atentemos a que não se trata de toda e qualquer situação a que o juiz estará
autorizado a aplicar o instituto, a não ser, em situações pontuais, onde se demonstra a conduta
dolosa dos membros fundadores ou detentores da pessoa jurídica, e prejuízos desencadeados.
Ainda assim, até as inovações legislativas as quais deram origem a modificação da
redação contida no Código Civil no que se refere às hipóteses de incidência, muitas incertezas
jurídicas pairavam acerca do mencionado mecanismo.

2.2 Breve disposição acerca da origem da desconsideração

Tudo indica que a primeira hipótese do surgimento do instituto se deu na Inglaterra,


final do século XIX, episódio em que ficou conhecido como Salomon vs. Salomon &Co. Ltd.,
ocasião em que as partes, Aaron Salomon, acionista detentor de 2.001 das 2.007 ações de um
empreendimento, litigava em face de sua esposa e filhos, os quais eram detentores do restante
das ações.
Resumidamente, tem-se que de forma maliciosa, Aaron forneceu seu fundo de
comércio particular à sociedade de forma superfaturada, passando a ser credor da sociedade
pela diferença tendo ainda uma garantia real em favor próprio, quando decretado a falência da
sociedade foi permitido a ele não honrar os débitos da sociedade já que dispunha da
prerrogativa de limite de responsabilidade, e de posteriormente executar seu crédito
preferencialmente em consideração aos demais credores.
Diante de tal situação o Tribunal Superior, aplicou a teoria da desconsideração
condenando Aaron ao pagamento dos débitos sociais inadimplidos ao fundamento da
existência da confusão patrimonial, apesar de extrema importância tal julgamento, ele foi
reformado no ano de 1987, em recurso proposto diante do Tribunal de Recurso.
No Brasil, a Teoria da Desconsideração foi introduzida em nosso ordenamento
através do jurista Rubens Requião no ano de 1969, através de publicação de seu artigo que
assim relatava:

A sociedade transforma-se em um novo ser, estranho à individualidade das pessoas


que participam de sua constituição, dominando um patrimônio próprio, possuidor de
órgãos de deliberação, que ditam e fazem cumprir a sua vontade. Seu patrimônio, no
terreno obrigacional, assegura sua responsabilidade direta em relação a terceiros. Os
bens sociais, como objeto de sua propriedade, constituem a garantia dos credores,
como ocorre com os de qualquer pessoa natural (REQUIÃO, 2014, p. 21)

Desta forma, vemos que o artigo ensina que não se trata de considerar ou não
considerar nula a personificação e sim de torná-la ineficaz para determinados atos.
O primeiro diploma normativo a tratar o tema foi à Lei Federal n. 8.078 de 11 de
setembro de 1.990, intitulada Código de Defesa do Consumidor a qual dispõe em seu art. 28,
com relação ainda vigente:

Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando,


em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração
da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estudos ou contrato social. A
desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de
insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocada por má
administração. §2º. As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades
controladas são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste
código. §3º. As sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas
obrigações decorrentes deste código. §4º. As sociedades coligadas só responderão
por culpa. § 5º. Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua
personalidade for de alguma forma obstáculo ao ressarcimento de prejuízos
causados aos consumidores (BRASIL, 1990).

Após tal previsão legal, passou-se a ser instituída em diversos ramos do direito com
seus respectivos diplomas normativos, tal como art. 18 da lei nº 8.884/94, revogada lei que
instituía o CADE, no direito Ambiental está prevista na lei nº 9.605/98, no Direito tributário
encontramos nos arts. 134 e 135 do Código Tributário nacional dentre outras, em âmbito Civil
em 2002, com a entrada em vigor da Lei nº 10.406/02, intitulada Código Civil, encontramos
presente em seu art. 50 com a seguinte redação originária:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de
finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da
parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os
efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens
particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica (BRASIL, 2002).

Partindo dos mencionados dispositivos, observa-se que não há consenso entre os


ramos do direito, quanto às situações práticas que ensejam a desconsideração, porquanto
nosso sistema jurídico se posiciona a reconhecer a existência atual de duas teorias a justificar
a desconsideração, Teoria Menor e Teoria Maior.

2.3 Das Teorias da Desconsideração

As teorias da desconsideração buscam justificar as razões incidentes no caso


concreto, em nosso ordenamento foram adotadas duas teorias constituídas em Teoria Menor e
Teoria Maior.
Na Teoria Menor, verifica-se dela utilizar uma forma mais abrangente na
desconsideração, visto que os requisitos necessários para a sua incidência não exigem a
demonstração de meio fraudulento para lesar credores, o seu utilizar de forma abusiva ou
comprovação de confusão patrimonial para fazer uso de sua aplicação, o credor basta
esclarecer acerca do efetivo prejuízo, como bem explica o doutrinador Carlos Roberto
Gonçalves:

“teoria menor”, que considera o simples prejuízo do credor motivo suficiente para a
desconsideração. Esta última não se preocupa em verificar se houve ou não
utilização fraudulenta do princípio da autonomia patrimonial, nem se houve ou não
abuso da personalidade. Se a sociedade não possui patrimônio, mas o sócio é
solvente, isso basta para responsabilizá-lo por obrigações daquela (GONÇALVES,
2012, p. 238)

No mesmo sentido, ainda temos a definição dada por Rogério Andrade Cavalcanti:

Resta, ainda, analisar a teoria menor da personalidade jurídica. Informa o Superior


Tribunal de Justiça incidir “com a mera prova de insolvência da pessoa jurídica para
o pagamento de suas obrigações, independentemente da existência de desvio de
finalidade ou de confusão patrimonial (ARAÚJO, 2022, p. 384).

Evidente resta à facilitação de aplicação dessa teoria, não incidindo comprovação de


vontade por parte do devedor para que possa ser aplicada. Ela incide incidente em alguns
ramos específicos – Direito Ambiental e do Consumidor.
Diversamente à Teoria Menor, em nosso ordenamento também temos os casos de
incidência da Teoria Maior. Por esta, a qual a aplicação é o objeto principal deste trabalho,
tem-se que para a ocorrência do instituto da desconsideração, é necessário a observância de
um número específico de requisitos para a sua aplicação.
Esclarece acerca da teoria mencionada o doutrinador Flávio Tartuce:

A teoria maior da desconsideração, regra geral no sistema jurídico brasileiro, não


pode ser aplicada com a mera demonstração de estar à pessoa jurídica insolvente
para o cumprimento de suas obrigações. Exige-se, aqui, para além da prova de
insolvência, ou a demonstração de desvio de finalidade (teoria subjetiva da
desconsideração), ou a demonstração de confusão patrimonial (teoria objetiva da
desconsideração) (TARTUCE, 2021, p. 302).

Portanto, antes de se verificar acerca da incidência da desconsideração, faz-se


necessário uma breve análise acerca de qual teoria o caso concreto se relaciona e a
necessidade ou não da observância de requisitos.
Não obstante, uma importante questão ainda há de ser considerada, trata-se de qual o
patrimônio passará a ser objetivamente alcançada uma vez reconhecida a necessidade da
desconsideração. Fato ao longo desde a entrada em vigor do Código Civil mostrava-se em
desconformidade com a própria finalidade da constituição da pessoa jurídica. O que, para
tanto, foi-se necessária uma nova redação a ser inserida no Código Civil.

2.1 Do Patrimônio Objeto da Desconsideração

O Código Civil, quando da sua publicação em 2002, estabeleceu os requisitos


necessários à Desconsideração da Personalidade Jurídica em observância a Teoria Maior,
obrigatoriedade de demonstração da prova do desvio de finalidade ou da confusão patrimonial
de forma a evidenciar a existência de abuso da personalidade jurídica.
Nestes termos, preconizava a redação originária do Código Civil, quando de sua
publicação:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de
finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da
parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os
efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens
particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica (BRASIL, 2002).

A doutrina questionava insistentemente a redação do mencionado dispositivo legal


ao argumento de que a Desconsideração não individualizava de maneira suficiente quem
seriam os responsáveis em caso de constatado abuso.
Nesses termos temos o posicionamento da doutrina:

Tal norma viria de muito bom grado, em nosso sentir, pois a falta de critérios para a
concessão da medida supressória da personalidade — em nível episódico, como
vimos — não poderia decorrer apenas de uma situação de insolvência, mas sim do
atendimento dos seus pressupostos legais específicos. A desconsideração tem uma
evidente natureza punitiva, e, como toda sanção, deve ser aplicada com cautela e
responsabilidade. Assim, não se poderia presumir fraude, abuso ou desvio de
finalidade, devendo a matéria ser deduzida expressamente, com a indicação
necessária e objetiva de “quais os atos praticados e as pessoas deles beneficiadas”
(art. 2.º, caput), explicitando que o “juiz somente poderá declarar a desconsideração
da personalidade jurídica ouvido o Ministério Público e nos casos expressamente
previstos em lei, sendo vedada a sua aplicação por analogia ou interpretação
extensiva” (art. 5.º, caput) (GAGLIANO; FILHO, 2014, p..293 e 294).

No mesmo sentido se manifestava a jurisprudências, em especial, do Superior


Tribunal de Justiça:

AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS À


EXECUÇÃO. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA.
SÓCIO MINORITÁRIO. INDIFERENÇA. PREENCHIMENTO DOS
REQUISITOS. REEXAME DE PROVAS. SÚMULA 7/STJ. 2. EX-SÓCIO.
INAPLICÁVEIS AS REGRAS DOS ARTS. 1.003 E 1.032 DO CC. SÚMULA
83/STJ. 3. AGRAVO DESPROVIDO. Nos termos da jurisprudência desta Corte
Superior, não há distinção entre os sócios da sociedade empresária no que diz
respeito à disregard doctrine, de forma que todos eles serão alcançados. Assim,
tendo o acórdão a quo asseverado estarem preenchidos os requisitos para a
desconsideração da personalidade jurídica, torna-se inviável infirmar tais conclusões
sem que se esbarre no óbice da Súmula 7/STJ. 2. Não se aplicam os arts. 1.003 e
1.032 do CC para os casos de desconsideração da personalidade jurídica, a qual tem
como fundamento o abuso de direito efetivado quando a parte ainda integrava o
quadro societário da pessoa jurídica alvo da execução. Acórdão recorrido em
harmonia com a jurisprudência desta Corte Superior, atraindo a incidência da
Súmula 83/STJ. 3. Agravo interno desprovido. (AgInt no AREsp n. 1.347.243/SP,
relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 18/3/2019,
DJe de 22/3/2019).

Tamanha era a problemática trazida pela previsão legal que, com a entrada em vigor
da Lei de Liberdade Econômica, Lei Federal n. 13.874, de 20 de setembro de 2.019, nova
redação foi introduzida ao Código Civil. A principal novidade consiste na necessidade de se
identificar quais são os sócios ou administradores que foram beneficiados diretamente ou
indiretamente com a prática do abuso para que a desconsideração seja direcionada ao
patrimônio destas.

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de


finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do
Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que
os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens
particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídicas beneficiadas direta
ou indiretamente pelo abuso.  § 1º Para os fins do disposto neste artigo, desvio de
finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para
a prática de atos ilícitos de qualquer natureza. § 2º Entende-se por confusão
patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada
por: I - cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do
administrador ou vice-versa; II - transferência de ativos ou de passivos sem efetivas
contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e III – outros
atos de descumprimento da autonomia patrimonial. § 3º O disposto no caput e nos
§§ 1º e 2º deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de
administradores à pessoa jurídica. § 4º A mera existência de grupo econômico sem a
presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a
desconsideração da personalidade da pessoa jurídica. § 5º Não constitui desvio de
finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade
econômica específica da pessoa jurídica (BRASIL, 2002).

Nessa nova redação, tem-se por objetivo claro do legislador em que seja agora
identificado não somente a existência das condições estabelecidas na redação original do
Código Civil – prova do desvio de finalidade ou da confusão patrimonial de forma a
demonstrar a existência de abuso da personalidade jurídica – como inclusivo a identificação
do beneficiamento direto ou indireto dos sócios ou administradores superando o entendimento
prevalecente até então na jurisprudência.
Destaca-se também a introdução dos esclarecimentos acerca do que se constitui o
desvio de finalidade e o que é a confusão patrimonial, bem como a possibilidade de se atingir
também o patrimônio de grupo econômico.
Assim já bem tem se manifestado os tribunais em obediência ao novo dispositivo,
como se observa na decisão do Superior Tribunal de Justiça:

RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL EM FASE DE


CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. COOPERATIVA HABITACIONAL.
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. INCIDÊNCIA DO
CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. SÚMULA 602/STJ. APLICAÇÃO
DA TEORIA MENOR. INCLUSÃO DE MEMBRO DO CONSELHO FISCAL.
IMPOSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE PRÁTICA DE ATOS DE GESTÃO. 1.
Cinge-se a controvérsia a saber se é possível responsabilizar membro do conselho
fiscal de cooperativa por dívidas desta, tendo em vista o deferimento do pedido de
desconsideração da personalidade jurídica. 2. Ao contrário do que estabelece o
Código Civil (art. 50), que adota a teoria maior da desconsideração da personalidade
jurídica, a qual exige a demonstração de abuso da personalidade, consubstanciado
no desvio de finalidade ou confusão patrimonial, o Código de Defesa do
Consumidor acolhe a teoria menor, segundo a qual a responsabilização dos sócios
ou administradores será possível sempre que a pessoa jurídica for obstáculo ao
ressarcimento dos prejuízos causados ao consumidor (CDC, art. 28, § 5º). 3. Na
hipótese em julgamento, considerando que a cooperativa executada é do ramo
habitacional, em cujo conselho fiscal participou o recorrente, deve ser aplicada a
teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica, pois, nos termos da
Súmula n. 602/STJ, "o Código de Defesa do Consumidor é aplicável aos
empreendimentos habitacionais promovidos pelas sociedades cooperativas". 4. No
entanto, mesmo sendo aplicada a teoria menor no presente caso, em que não se
exige a prova do abuso da personalidade jurídica, o art. 28, § 5º, do Código de
Defesa do Consumidor não pode ser interpretado de forma tão ampla a
permitir a responsabilização de quem jamais integrou a diretoria ou o conselho
de administração da cooperativa, como no caso do ora recorrente, que exerceu,
por breve período, apenas o cargo de conselheiro fiscal, o qual não possui
função de gestão da sociedade. 5. Dessa forma, salvo em casos excepcionais, em
que houver comprovação de que o conselheiro fiscal tenha agido com fraude ou
abuso de direito, ou, ainda, tenha se beneficiado, de forma ilícita, em razão do cargo
exercido, não se revela possível a sua responsabilização por obrigações da sociedade
cooperativa. 6. Recurso especial provido. (REsp n. 1.804.579/SP, relator Ministro
Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 27/4/2021, DJe de 4/5/2021.)
(grifo nosso)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desta forma, com o elaborar deste trabalho, podemos observar que longo foi o
desenvolvimento jurídico acerca do tema Pessoa Jurídica e a Desconsideração.
A função principal do instituto é assegurar a diferenciação entre patrimônios a fim de
dar uma maior segurança jurídica aos envolvidos e assim incentivar o desenvolvimento
econômico e social.
Apesar de claros serem os objetivos perseguidos pelo instituto da Pessoa Jurídica, o
direito é uma ciência constante e pessoas mal-intencionadas, usando de meios ardis, puseram-
se a utilizar da pessoa jurídica em prol de objetivos ilícitos para os fins de lesar credores.
Diante de tais condições foi instituído a Desconsideração da Personalidade Jurídica,
instrumento jurídico que excepciona a condição de separação patrimonial para os fins de
ressarcir credores prejudicados por prática ilícita desencadeada pelos responsáveis pela pessoa
jurídica.
Tal mecanismo de contenção aos mal-intencionados foi instituído na redação original
do Código Civil, mas de forma não especificada, o que acabou por gerar enormes incertezas e
problemas em relação ao patrimônio a ser atingido. Assim, fez-se necessário que o legislador
interviesse alterando a redação do dispositivo constante do Código Civil com precisas
indicações voltadas a orientar o judiciário quando da aplicação.
As alterações já estão sendo observadas pelos aplicadores do direito e, atualmente,
não mais a ocorrência da desconsideração necessariamente ocasiona a responsabilidade de
todos os sócios, mas tão somente aqueles que tiveram atuado e/ou se beneficiado direta ou
indiretamente das condutas maliciosas realizadas acobertadas pela pessoa jurídica, o que está
a trazer maior certeza às relações jurídicas e, consequentemente, maior benefício a toda a
sociedade.
REFERÊNCIAS

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Paulo: Foco, 2022.

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Ministro Marco Aurélio Bellizze. Julgamento: 27/04/2021. Disponível em:
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