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15/08/2016 Pedro 

Cabral: "As crianças tomam demasiados calmantes" ­ Cérebro ­ Sábado

As notas de João, chamemos­lhe assim, começaram a piorar. Há uns meses, a mãe falou com
a pediatra. Decidiram voltar a um calmante (só aos dias de semana), que tomara no 5º ano, e
tirá­lo de uma das actividades físicas regulares. Num mês, perdeu três quilos e a dose foi
reduzida, somando­lhe um outro medicamento. João tem 11 anos ­ e em Portugal há muitos
mais como ele. O relatório da Direcção­Geral da Saúde (DGS) sobre Saúde Mental refere que,
em 2014, crianças até aos 14 anos tomaram mais de cinco milhões de doses de calmantes (o
metilfenidato). João continua a ter negativas e os recados para casa têm aumentado. Talvez o
seu problema não seja o comportamento, como sugere o neuropediatra Pedro Cabral. 

É entre os 10 e os 14 anos que mais crianças tomam esta medicação. Só nesta
fase se percebeu o problema que no início os pais relevaram ("é muito
mexida")?
Tem que ver com mecanismos biológicos. A maturação dos circuitos cerebrais que nos
preparam para prevenir as consequências é mais tardia do que a maturação dos circuitos
destinados a saciar um desejo, um impulso. O drama da adolescência é esse. É quando os
miúdos não conseguem estar atentos a uma coisa menos interessante. Estou farto de ver
educadoras e mães nas consultas a dizer que a criança com 2 anos é hiperactiva. Não tem
sentido. E é tramado porque está­se a medicalizar em função de queixas comportamentais
em vez de se perceber que por trás de uma criança irrequieta pode estar um mundo de coisas:
preocupações sobre dinâmicas familiares, falecimento de alguém querido ou uma irmã ou
irmão que vai nascer. Se o médico, solicitado por pais ou educadores, medica, está a passar
uma esponja sobre o que está por trás. 

Está a fazer uma má avaliação. 
Se uma criança é um robô, estamos a fazer mal de certeza. 

Dá­se esse caso? 
Fartei­me de ver crianças paradíssimas por causa da medicação. É um efeito tóxico. 

A falta de apetite é outro. 
Esse é irrelevante, porque desaparece o efeito do medicamento e o apetite reaparece ao
jantar, ao fim­de­semana ­ quando a maior parte das crianças não tomam, ou não deviam
tomar. Ouvi pediatras do desenvolvimento dizer que a criança também aprende aos sábados,
domingos, feriados e férias. É dizer: "Queremos as crianças numa situação artificial de
aprendizagem porque aprendem mesmo quando estão a brincar." Devo ter sido das primeiras
pessoas a utilizar este tipo de medicamentos, a partir dos anos 90, na Estefânia. E lembro­me
de dizer que é só o mínimo necessário e enquanto for necessário para permitir a crianças que
têm capacidades e que não conseguem, porque se dispersam muito. Quero­as mal
comportadas em casa. 

Esta medicação pode bloquear a criatividade? 
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15/08/2016 Pedro Cabral: "As crianças tomam demasiados calmantes" ­ Cérebro ­ Sábado

É um estudo que estamos a fazer. Parte da hipótese de que, quando aumentamos as
capacidades de concentração numa determinada tarefa, inibimos outras funções, como a
criatividade.

Um pediatra que vê a criança uma vez por ano pode medicá­la e avaliar se está a
melhorar? 
Seguramente que não. É uma asneira a que assisto todos os dias: há médicos a receitar sem
saber o que está a acontecer e convencidos de que isto é como os antibióticos, ao quilo. Como
cresceu, tem de tomar mais. Deve reduzir­se em vez de aumentar. Quando se pretende que as
crianças estejam bem comportadas, estamos a fazer mal. O DSM [Manual Diagnóstico e
Estatístico de Transtornos Mentais] sugere que se deve portar mal em dois ambientes. Uma
criança que só se porte mal em casa dele e dos avós, mas não na escola já obedece aos
critérios. Mas podem estar por trás disto erros crassos em casa. Pais que acharam que não há
regras para obedecer, horas para dormir. O medicamento está a ser utilizado para manter
acordada a criança em vez de ser para aumentar a atenção. O que precisamos a todo o
momento ­ de semana a semana, ou de três em três meses ­ é saber pelo próprio, por
professores e cuidadores, o que está a acontecer. Há professores que acham que a desatenção
é um problema emocional e enviam para um psicólogo. Pode ser verdade, mas não em todos
os casos. Outros pensam que é um problema genético (já o pai ou o tio eram assim) e é para
medicar. 

É como uma doença crónica em que há medicação para a vida? 
Não. Quando chegam à adolescência, pelo menos metade deixa de reunir os tais critérios
enumerados pelo DSM. Querem não tomar medicamentos. Sentem que ficam diferentes,
mais sérios e querem achar graça às coisas. 

É uma diferença entre querer e necessitar. Já não precisam? 
É preciso que eles percebam que há coisas que podem não passar pela medicação, mas pelo
café ou uma actividade desportiva regular. Há universidades inglesas em que fazem desporto
três vezes por dia. Tem de ser pensado caso a caso. Eu quero que esteja atento na aula, mas
também que esteja contente no intervalo. Não tenho nenhum medicamento que o faça.

A que sinais devem os pais estar atentos? 
Há coisas imediatas, como a perda de apetite. Se a criança fica muito parada, está a receber
dose a mais. Terceiro, uma sensação inicial: dor de cabeça ou barriga nos primeiros dois dias,
algum tremor. As que tomam desde muito cedo e de forma continuada todos os dias,
sábados, domingos, feriados e férias, podem ficar menos altas. E há a sensação de que só
estudam se estiverem a tomar a medicação. Não é verdade. Os ansiolíticos e neurolépticos
são hiperusados nas consultas de pediatras e pedopsiquiatras para manter as crianças bem­
comportadas, esquecendo o trabalho que é preciso fazer em casa e na escola. Até aos 4 anos,
muitos dos medicamentos são esses neurolépticos. 
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Miúdos que até aos 4 anos os pais entendem que são hiperactivos? 
Que fazem muitas birras. E há um excesso de medicação de neurolépticos que, a prazo, têm
efeitos sobre o corpo: ganho de peso, subida das gorduras no sangue e da glicémia; é factor de
risco a tudo o que é doença vascular precoce. E sobre o cérebro porque modifica a dinâmica
dos circuitos cerebrais. As crianças ficam paradas, com diminuição das capacidades
cognitivas. 

Deveria responsabilizar­se os clínicos que prescrevem em excesso e, às vezes,
com pouca noção da realidade das crianças? 
Acho que sim. Médicos de clínica geral e pediatras estão a usar estes medicamentos (há
imensos que são cuidadosos) de forma quase selvagem. 

Tem de se fazer uma avaliação a cada pessoa. 
Claro. E reavaliar. Agora que tem 2 anos, o problema é outro. Deixou de ser hiperactivo,
como deixam de ser a maior parte das crianças que ainda estão em excesso de actividade
antes da puberdade. A desatenção é que lá está e continua a minar o insucesso escolar e a
relação com os pares. 

A criança não fica atenta só porque tomou um calmante?
O objectivo é aumentar a atenção. O metilfenidato aumenta as catecolaminas no cérebro e,
portanto, a adrenalina e a dopamina. Estas ajudam a focalizar a atenção ­ e a criança fica
mais sossegada. É o que acontece ao guarda­redes à espera do penálti. Uma criança que está
a olhar para a professora, está a ouvir o que ela diz e filtra como não importante a informação
que continua a chegar ao cérebro: o barulho, alguém que riu, o telemóvel que tocou, a
sensação de barriga cheia, uma comichão ou preocupação sobre se no recreio alguém a vai
chatear. Estas coisas, que não são pertinentes para a apreensão do que se passa na escola,
rompem na paisagem cerebral daquela que não está bem acordada. 

Há crianças que passam o dia em estado de adormecimento? 
São inteligentes, mas a todo o momento entram imagens. É a perturbação de défice de
atenção. 

Que outras estratégias, antes da medicação, se devem tentar? 
Queremos ter as crianças mais acordadas. Pô­las na primeira fila. Solicitá­las com frequência.
Dar uma aula interessante, motivá­las. E se vê que estão com muita dificuldade para
sossegarem, pedir­lhes para se levantarem, para apagar o quadro... 

Numa turma heterogénea é difícil um professor dominar a sala. Estas crianças
deveriam estar com outras com as mesmas dificuldades? 
Não concordo nada com isso. Entre 1990 e 1997, em 7 anos, o consumo de metilfenidato nos
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EUA subiu 700%. Há gente a mais a tomar medicamentos a mais em Portugal. Aliás, passo
mais tempo a tirar medicação do que a pô­la. O primeiro grande erro, que não é só nosso:
pensar num desatento como um hiperactivo. A perturbação do défice de atenção sim, [é
relevante], porque há miúdos menos atentos que são hiperactivos e outros que não, que são
hipoactivos ­ estão a cismar, a olhar para a professora e a pensar que ela tem macacos no
nariz em vez de no que ela diz.

Tem de haver um trabalho mais próximo entre o professor, os médicos e os pais
para perceberem o tipo de alunos que têm? 
O problema não é só a escola. A família mudou: pais com menos crianças, que chegam
cansados e já delegaram nos centros de estudo os TPC. Não querem fontes de conflito, como
fazê­los. Uma criança só, em vez de duas ou três. 

Sem exemplos… 
Sem exemplos em casa de que é preciso esperar pela sua vez e sincronizar­se com os outros,
em vez de serem os outros a sincronizar­se com ela. Com o iPad à mesa, só adormece com a
televisão no quarto e só faz o que quer. Com estas modificações emergiu uma percentagem de
crianças e adolescentes que, apesar de terem competências escolares, não estão enquadráveis
sem apoio nos tempos das aulas. E os professores querem gente sossegada.

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