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POR UMA MISSIOLOGIA INTEGRAL: RECONSIDERANDO AS RELAÇÕES

ENTRE MISSÃO E TEOLOGIA PARA UMA IGREJA CONTEXTUAL E


RELEVANTE1

Victor Breno Farias Barrozo2

Ao longo dos últimos anos, o tema da missão tem ganhado um lugar de


proeminência na pauta das reflexões teológicas, por todo o globo, como uma das
problemáticas centrais para se repensar a natureza da teologia e da própria igreja para o
mundo contemporâneo. Visto a cadência dessa discussão, queremos no presente texto
desenvolver um incurso teórico a respeito da reivindicada necessidade de um novo
paradigma missiológico para o desenvolvimento de comunidades cristãs locais
contextuais e relevantes. Para tanto, apresentaremos a Missão Integral como labor
teológico latino-americano que elabora-se em torno de uma hermenêutica contextual e
orienta-se rumo a constituição de uma eclesiologia encarnada e relevante.
Como introdução, nossa exposição concentrar-se-á na revisão das relações entre
missão e teologia que, histórica e conceitualmente, mantiveram-se numa situação de
polaridade, oposição e interdependência. Seguindo um viés crítico procuraremos
argumentar que não se pode condescender que a teologia torne-se um mero teologismo
(uma abstração reflexiva pura em si mesma) e nem a missão um ativismo pragmático
fortuito. É necessário o esforço de gerarmos uma teologia missionalmente
fundamentada e uma missiologia teologicamente consistente se quisermos construir
igrejas locais que desenvolvam sua missão integral de maneira relevante e
contextualizada.

1 “Missão” como um tema candente: a crise na missão contemporânea

Cada vez mais e com maior insistência, pastores, missionários e teólogos têm
evidenciado a importância missiológica de um novo paradigma para a vida e missão da
igreja. Estes têm exigido uma redefinição da natureza da Igreja, de sua missão, sua

1
Texto publicado em: BARROZO, Victor; GOMES, Ozean; CARDOSO, Samuel. (Org.). Uma teologia para
chamar de nossa. São Paulo: Editora Reflexão, 2015, p. 21-38.
2
Mestre em Ciências da Religião pela PUC Minas, por onde também é especialista. Pós-graduado em
Sociologia pela UGF, graduado em Ciências Teológicas pela FBN. Membro da Fraternidade Teológica
Latino-Americana (FTL-B) e da Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR).
razão de ser, sua relação com o Reino de Deus e seu chamado no mundo. Engen (1996,
p. 32), falando da cadência do tema da missão, diz:

Na última metade do século, os teoristas de missões, os sociólogos da


religião, os eclesiólogos e os que praticam missões ficaram cada vez
mais cientes da premente necessidade de um novo conceito da
congregação como povo missionário. O chamado para uma nova
missiologia congregacional surgiu de pelo menos três diferentes
direções. Primeira: desde a década de trinta, os missiólogos vem
exigindo uma relação mais estreita entre o conceito de missão e a idéia
de igreja, convergindo a discussão para a natureza missionária da
congregação. Segunda: os sociólogos da religião há pouco começaram
a ressaltar a importância estratégica da congregação. Terceira: os
eclesiólogos modernos desde Barth e Dietrich Bonhoeffer têm exigido
uma nova forma de visualizar a igreja, sugerindo um novo paradigma
com implicações missiológicas de longo alcance para a congregação.
Essas três áreas de pensamento convergem em um clamor urgente, a
fim de que se crie uma nova perspectiva da congregação local como
povo missionário em âmbito local.

O que torna nova a discussão e revisitação do termo missão nos nossos dias, é
que ela está sendo atacada não só a partir de fora, mas também a partir de dentro de suas
próprias fileiras. A crítica do tema nos dias atuais se dá pelo fato de que se quer, a partir
da revelação total bíblica e do contexto no qual se quer anunciar o evangelho, desde a
congregação local, teologizar uma compreensão e ação de missão que possa abarcar
todo o conselho de Deus e alcançar todas as dimensões da existência humana com a
mensagem da cruz.
Todavia, antes mesmo que se possa tentar relacionar um novo tipo de
congregação missionária no mundo, é preciso compreender de fato o que seja a missão
dessa igreja. Faz-se necessário, desse modo, um novo modelo pelo qual se fará a
interpretação da natureza e objetivos dessa missão afim de que mais fielmente ao
ensinamento bíblico total e em resposta as atuais necessidades do mundo
contemporâneo se possam através das congregações locais protagonizar uma
participação efetiva do evangelho na sociedade em que está inserida.
Com a busca de novos referenciais que possam nortear o pensamento e ação das
igrejas na atualidade, vê-se instalada uma crise profunda. Pode-se observar que a
identidade e dinamismo do povo de Deus, durante toda a história, estão intrinsecamente
relacionados à compreensão e compromisso com a sua vocação missionária no mundo.
Sendo assim, a crise na missão torna-se uma crise ainda mais ampla visto que afeta a
questão do próprio significado de igreja e qual seu objetivo e metas a partir de sua auto-
compreensão.
O problema inicial se dá no próprio conceito de missão. Visto que a palavra
missão não é encontrada na Bíblia, depara-se imediatamente com um problema de
metodologia. O que é missão? Qual sua natureza e propósitos? Como essa missão
justifica, afeta e objetiva a vida individual e coletiva da congregação local? São essas e
muitas outras perguntas que provocam uma „‟crise de identidade‟‟ na igreja do mundo
atual. Se, em relação a igreja, não se sabe a natureza e objetivo de sua existência,
dificilmente, deste modo, ela poderá protagonizar efetivamente a vocação que lhe é
intrínseca no mundo.
Diferentes respostas têm sido dadas ao longo dos anos a partir de diferentes
pressupostos e compromissos teológicos. É importante destacar o fato de que a
compreensão de missão nunca é algo que possa se definir plenamente. A respeito disso,
Bosch (2002, p. 10) nos diz:

Os esforços missionários práticos da igreja sempre permanecem, em


todas as circunstâncias, ambivalentes. Missão nunca é algo que
dispensa explicação, e em nenhum lugar – nem na prática da missão,
nem nas melhores reflexões teológicas sobre missão – consegue-se
remover toda confusão, mal compreensão, enigma e tentação.

Todavia, longe de pensar que não existam bases firmes bíblico-teológicas para a
missão da igreja, mesmo tendo em vista a consideração acima feita por Bosch, é preciso
entender que estas sim existem. Porém, Carriker (1992, p. 2) nos diz que:

[...] a aplicação destas (definições de missão) em contextos históricos,


culturais e sociais diferentes exige adaptabilidade e, por isso, um
repensamento constante. Não se pode simplesmente transferir a
conceituação missionária de um contexto embora se possa e deva
aprender valiosas lições dela. É mister que o povo de Deus sempre
volte a Bíblia para reexaminar as bases da sua identidade e vocação
missionárias a fim de melhor realizá-las dentro do seu contexto
específico e atual.

Para Bosch (2002), no que diz respeito à crise na missão contemporânea, ela se
manifesta em três áreas: o fundamento, os motivos e meta e a natureza da missão. Por
bastante tempo, a base que sustentava o empreendimento missionário era mínima.
Assim, o subsídio elementar que dava forma as práticas missionárias durante muito
tempo apoiava-se na interpretação e percepções parciais do ensinamento bíblico a
respeito da missão dessa igreja. Desse modo, a compreensão de sua natureza e
consequentemente de seus motivos e metas, tornavam-se ambíguos e indefinidos.
“Um fundamento inadequado para a missão e motivos e metas missionários
ambíguos estão fadados a acarretar uma prática missionária insatisfatória”, atenta Bosch
(2002, p. 22). Por isso é necessário se repensar o conceito de missão em nossos dias
para que não venha a se cair no erro de, pela ignorância bíblica e teológica,
negligenciarmos o que essa missão nos designa a fazer a luz do que a igreja é. Assim
sendo, Engen (1996, p. 48-49) adverte para o fato de que:

É necessário um novo paradigma missiológico na eclesiologia para


que possamos ver a Igreja missionária como uma realidade
„‟emergente‟‟, que, ao ser constituída no mundo, torna-se na realidade
o que é por fé. Se entendermos e interiorizarmos esse novo paradigma,
veremos que o nosso pensamento sobre a Igreja e a sua missão se
tornará altamente contextual, radicalmente transformacional e
poderosamente cheio de esperança, exercido com a eternidade em
mente. Essa concepção implica um processo pelo qual a Igreja é e
passa a ser. Ela é uma comunidade plenamente formada, um
sacramento vivo e um sinal diante de Deus, de seus membros e dos
que estão fora de suas paredes. Mas, ao mesmo tempo, está no
processo de tornar-se, por meio do estabelecimento de metas, do
planejamento e da avaliação cuidadosamente adaptados as
circunstâncias.

Bosch (2002, p. 23-24) também afirma:

Necessitamos, antes, de uma nova visão para sair do atual impasse


rumo a uma espécie diferente de envolvimento missionário – o que
não precisa significar que joguemos fora tudo o que gerações de
cristãos fizeram antes de nós ou condenemos com desdém todas as
suas mancadas. (...) Somos conclamados a uma nova “tarefa pioneira
que será mais exigente e menos romântica do que os feitos heróicos da
era missionária passada”.

Evidencia-se assim, a necessidade de um novo marco paradigmático nos


conceitos missionais para a missão da igreja local na atualidade que possibilitem que ela
desenvolva uma presença contextual e relevante. É necessário, pois, a utilização da
Teologia como “reflexão da crítica da fé” na busca por referenciais bíblicos e
contextuais na elaboração de uma concepção missionária para as congregações locais
em nossos dias.
2 Em busca de uma definição para missão: missão a luz da Missio Dei

O termo missão (do latim missio, enviar) foi usado primordialmente pelos
jesuítas para descrever a propagação da fé católica entre aqueles que não eram membros
da igreja católica. Historicamente, é compreendido como a propagação do cristianismo,
ainda que, muito freqüentemente, a ocidentalização dos pagãos caminhasse lado a lado
com sua cristianização. O termo específico missão, contudo, não era usado para as
atividades de alcance da igreja, tal como conhecemos hoje. Até os séculos XVI e XVII,
missão era um termo teológico utilizado exclusivamente com referência a Trindade
quando se falava do envio Deus-Filho ou Deus-Espírito Santo.
A partir do final do século XVIII, forgjou-se o que ficou conhecido como o
modelo tradicional da missão, da qual a maioria de nossas igrejas locais recebeu por
herança protestante, que tomou forma no movimento missionário moderno. Essa
perspectiva concebia a missão essencialmente em termos de transposição geográfica, ou
seja, entendia a missão como propagação da fé, expansão do reinado de Deus,
conversão dos pagãos e fundação de novas igrejas.
Percebe-se, porém, que o paradigma missiológico que reivindicou as
empreitadas missionárias das igrejas locais nestas últimas décadas, tem apresentado
uma compreensão parcial, descontextualizada e pouco relevante do ensinamento bíblico
a respeito da missão no mundo contemporâneo. Esse modelo gerou dicotomias
prejudiciais às congregações e, consequentemente, tem impedido uma protagonização
da igreja local de forma mais efetiva e integral na cultura. Parte da crise de influência e
relevância da igreja evangélica brasileira na sociedade deve-se a este fator.
Neste sentido, compreender sob quais bases e objetivos se fundamenta a missão
cristã é indispensável para protagonizar uma presença do povo de Deus relevante para a
sociedade hoje no cumprimento da vontade e dos desígnios de Deus. Pode-se observar
que a identidade e dinamismo do povo de Deus, durante toda a história, estão
intrinsecamente relacionados à compreensão e compromisso com a sua vocação
missionária no mundo. Sendo assim, a crise na missão torna-se uma crise ainda mais
ampla visto que afeta a questão do próprio significado de igreja e qual seu objetivo e
metas a partir de sua auto-compreensão.
Na atualidade, a missiologia emergente procura superar a compreensão desta
missão nos termos de uma atividade humana de propagação ou proselitismo para o
reconhecimento da missio Dei: a compreensão de que a missão é primariamente a
missão de Deus e que tudo o que fazemos emana do envio do Filho pelo Pai e da igreja
pelo Filho. Em relação a isto, precisamos fazer uma distinção didática, é necessário
diferenciar e conceituar as palavras “missão” e “missões”, costumeiramente entendidas
como sinônimos.
O primeiro conceito se refere à missio Dei. A missão de Deus diz respeito à
auto-revelação de Deus como aquele que ama este mundo de modo inefável e absoluto.
Descreve a ação de Deus através do povo de Deus e de sua presença no mundo. A
missão não é, pois, primeiramente uma atividade da igreja, mas um atributo divino. A
missão é primária; as missões são secundárias, derivadas da primeira. Sendo a missão
de Deus atividade de Deus, ela abarca tanto a igreja quanto ao mundo. A igreja é
privilegiada em virtude de sua vocação de ser parceira dessa ação de Deus, mas jamais
exclusivamente. Deste modo, as missões, ou, as missiones ecclesiae, referem-se às
diferentes formas adotadas pelas igrejas para por em prática a missão como
participantes da missio Dei. O reconhecido teólogo latino-americano Padilla (2009, p.
63), a respeito da centralidade da missio Dei no entendimento da missão da igreja assim
define a missão:

A missão cristã é primordialmente missio Dei (missão de Deus).


Nasce no coração de Deus, atua na história pelo poder do Espírito
Santo, e visa a exaltação de Jesus Cristo como Senhor do universo e
de cada área da vida humana, para a glória de Deus. Em síntese, a
missão cristã começa e termina em Deus.

Nesse sentido, a missão não é algo que surge de um departamento ou até mesmo
de atividades específicas da igreja. Ela se encontra no centro do propósito de Deus para
a igreja. Assim, missão é entendida como uma participação no mundo da existência de
Deus. Algumas outras definições são importantes na construção do entendimento de
missão nessa direção. Segundo González (2008, p. 23):

A “missão” é a atividade de Deus no mundo. Deus é o protagonista da


missão. Deus age no mundo pela sua graça, para reconciliar o mundo
consigo mesmo (2Co 5.19). A igreja é o resultado e a co-protagonista
da missão de Deus. A igreja nasce, mantém-se e transforma-se pela
missão de Deus. Ao mesmo tempo, ela também é sujeito ativo nessa
missão. Isso é, a igreja participa discerne e descobre a atividade de
Deus no mundo e dela participa.
Para Georg Vicedom (1996, p. 105, 107s), na missão, Deus é tanto o enviador
quanto o enviado e que a missão da igreja encontra-se “prefigurada na missão divina”.
Em sua obra, expõe em profundidade o conceito de missão da seguinte forma:

A missão como obras da misericórdia divina, que Deus iniciou através


do envio de seu Filho, é continuada por ele agora ao incumbir sua
comunidade, por meio de seu enviado, da propagação e da
proclamação de sua vontade salvadora. Assim o Senhor dá a ordem
missionária... (mas) esse serviço da Igreja somente é possível porque
ela mesma experimentou compaixão através da ação redentora do
Filho de Deus e agora representa a comunidade dos crentes e
justificados... Por conseguinte, esse serviço é engajamento na atuação
de Deus, obediência da fé, não estar desligado de Deus, mas ser
tomado por ele, não é algo que é acrescentado à ação de Deus, mas é
submeter-se ao agir de Deus.

Dadas às definições, é necessário agora entendermos como a teologia,


compreendida como a reflexão crítica sobre a práxis se articula com a missão e quais as
implicações dessa reflexão para um novo paradigma para a missão.

3 O lugar do labor teológico na reflexão missiológica

A teologia encontra na missão o nascedouro, significado e propósito. Justamente


por isso faz-se necessário repensar-se os fundamentos nas quais a teologia repousa hoje
visando sempre uma reflexão que tenha por objetivo a missão da igreja. A teologia deve
ser o crivo interpretativo e avaliativo no processo de construção de um novo paradigma
missiológico. Carriker (1992, p. 7) diz que “[...] a teologia consiste primeiramente de
reflexão acerca da missão, não sendo esta mera aplicação consequente daquela, mas
missão está no âmago da teologia”.
Em nosso meio, poucos são os cristãos que consideram a reflexão teológica
indispensável para a vida e missão da igreja. Em partes isso ocorre pelo fato de que a
teologia se profissionalizou e isolaram-na de outras disciplinas humanas, privando
assim, que ela desenvolvesse uma concreção histórica. É necessário entender que a
teologia só tem sentido se ela se mantiver vinculado ao modo de ser e agir da igreja.
René Padilla (2009, p. 25), diz que “no que tange a vida e missão da igreja, não
basta pragmatismo, ou seja, a ênfase no como divorciado do por que e do para quê”.
Assim sendo, o labor teológico tem sua necessidade pelo fato de que sem a iluminação
da Palavra, a ação se transforma em um ativismo sem direção. Outra razão é que a fé
tem que se articular de tal forma que responda aos novos desafios e interrogações que
surgem da situação do mundo contemporâneo. Desse modo, Padilla (2009, p. 27) diz:

Se a missão tem a ver com a manifestação do reino de Deus no mundo


por meio da palavra e da ação da igreja para a glória do trino Deus, a
teologia é a reflexão que quer colocar tal palavra e tal ação em
consonância com o evangelho em cada situação específica.

Por conseguinte, a falta de interesse de nossos cristãos é somente um sintoma da


despreocupação com a fidelidade do evangelho e sua relevância para com a nossa
missão. Então, segundo ele “[...] se toda a igreja é missionária e se a teologia é
inseparável da missão, então a reflexão teológica é uma tarefa que compete a todo o
povo de Deus”. (PADILLA, 2009, p. 28). Ele ainda complementa que “... a reflexão
teológica não é algo optativo, algo que pode ou não estar presente na vida da igreja: é
uma responsabilidade cristã inegável”. (PADILLA, 2009, p. 119)

4 Elementos para uma teologia da missão

Assim como a igreja deixa de ser igreja se não for missionária, a


teologia cessa de sê-lo se perder seu caráter missionário...
Necessitamos de uma pauta missiológica para a teologia, não apenas
de uma pauta teológica para a missão; porque a teologia, se entendida
corretamente, não tem outra razão de existir senão a de acompanhar
criticamente a missio Deus. (BOSCH, 2009, p. 589-590).

Nisto nos lembra David Bosch a responsabilidade de se submeter tanto as


práticas missionárias quanto o escopo da teologia a uma constante revisão a luz dos
objetivos da missão, a missio Dei. Queremos mostrar o quão imprescindível e
necessária é a teologia para a igreja no empreendimento de como se desenvolve sua
missão. Todavia, o que se viu nos meios cristãos a respeito da reflexão teológicas
concernente a missão é um distanciamento da teologia e da missão. O missiólogo Kirk
(2006, p. 36) expõe que o mundo cristão se encontra no meio de um debate crucial sobre
o relacionamento entre teologia e missão. Tradicionalmente, o estudo da missão tem
sido tratado como uma disciplina no meio de muitas outras dentro do amplo espectrum
do currículo teológico inteiro.
Ainda de acordo com ele, há dois tremendos obstáculos que a teologia deve
transpor, no todo e em partes, antes de se transformar em uma teologia missionária.
Primeiro, esta relacionado a confusão existente sobre a natureza da missão. Segundo,
que as outras disciplinas teológicas tem se recusado a ver suas matérias como
intrinsecamente missionárias. Raiter (2006, p. 90), discorrendo sobre o isolamento da
reflexão missiológica da grade teológica em geral, diz:

A grande tragédia para a missiologia moderna é que essas disciplinas


que deveriam estar estabelecendo seus rumos e informando seu
pensamento tem sido marginalizadas. Os estudos bíblicos e o
pensamento cristão, em particular a teologia e a história da igreja,
ocupam posições na periferia do pensamento do pensamento
missiológico. Inversamente, disciplinas que deveriam aparecer como
adjuntas ao curso, dignas de estudo e contribuindo com um pouco de
sabedoria, mas sem qualquer status de autoridade e inapropriadas para
determinar a natureza e o foca da missão, acabaram se tornando
pilares e determinadoras do programa para o estudo e prática da
missão.

A busca de descrever a essência do estudo missiológico deve estar relacionada a


compreensão da natureza e propósito da missão, bem como também o estabelecimento
do estudo da missão como disciplina acadêmica. Raiter (2006, p. 91) ainda reitera que
“a necessidade atual mais importante dos estudos missiólogos é trazer a disciplina de
volta para seus fundamentos teológicos apropriados”. O que vem a ser então uma
teologia da missão que seja ao mesmo tempo teologia missionária? Uma boa definição
nos é dada por Kirk (2006, p. 38):

A Teologia da Missão é um estudo disciplinado que lida com questões


que surgem quando o povo da fé procura entender e cumprir os
propósitos de Deus no mundo, tal como demonstrados no ministério
de Jesus Cristo. É uma reflexão crítica sobre as atitudes e ações
adotadas pelos cristãos em busca do cumprimento do mandato
missionário. Sua tarefa é validar, corrigir e estabelecer sobre um
melhor fundamento toda a prática da missão.

Complementado o pensamento de Kirk, Zwetsch (1998, p.197) diz que a


teologia da missão “tem por objetivo servir ao evangelho e ao povo de Deus, para que a
comunidade cristã se torne sal, luz, fermento, referencial de justiça e solidariedade no
contexto onde está inserida, Para isto ela existe. A missão é sua razão de ser”.
Compreendendo que a teologia da missão quer ser esse labor de tentar sondar mais
fielmente possível os fundamentos e objetivos da missão, queremos agora apresentar
como tradicionalmente essa missão tem sido entendida e praticada e logo em seguida
mostrarmos a necessidade de um novo paradigma para a missão.
Como modelo e proposta de uma nova relação entre missão e teologia para o
desenvolvimento de uma missiologia contextual e relevante pelas igrejas locais,
queremos apresentar brevemente alguns elementos metodológicos e hermenêuticos da
Teologia da Missão Integral.

5 Metodologia e Hermenêutica da Teologia da Missão Integral

A Teologia da Missão Integral como uma tentativa de configurar esquematicamente


as verdades bíblicas é uma reflexão que busca interpretação geral a respeito do
significado do Evangelho e suas implicações. Justamente por isso a Missão Integral é
uma Teologia. Isso quer dizer que ela é um saber elaborado que possui pressupostos e
metodologia específica no seu fazer. Todavia, a autora Regina Sanches (2009, p. 106)
destaca um ponto fundamental em relação à tarefa teológica da Teologia da Missão
Integral:

Ainda que não fechada em um sistema teológico, pois não é esta sua
proposta teológica, a Teologia da Missão Integral requer a observação
de alguns aspectos que a orientam. O fato de ser assim, não a torna
menos teologia, pois como Teologia Latino Americana sua primeira
libertação é metodologia, conforme afirmava Juan Luís Segundo.

Como Teologia, a Missão Integral nesse sentido, não é algo premeditado, mas
fruto das inquietações sobre um engajamento verdadeiro e comprometido da Igreja no
mundo. Surge da práxis para a sistematização e não o inverso. Assim,
panoramicamente, de forma breve, queremos apresentar os caminhos do teologizar a
partir da Missão Integral.

5.1 Do Método Teológico

Uma primeira consideração importante a se fazer, é que não há dentro da


Teologia da Missão Integral um tratamento sistemático do método que ela utiliza. Isso
não quer dizer que só seja possível chegar à conclusão a respeito de sua metodologia
por intuição. Sua ordenação metodológica tem sido formulada pelos diversos
articuladores, teólogos e congressos que tratam especificadamente dos textos. É da
análise dos documentos originários do movimento que se pode esquematizar o modo
pelo qual se estabelece o método.
O método teológico é importante principalmente por dois motivos: primeiro, é
que está metodologia específica será o fator modelador do conteúdo diferenciado e
específico para qualquer teologia, e constituinte do seu estatuto próprio. Isso quer dizer
que para que a Missão Integral mostre seu caráter próprio de teologizar em relação
àquilo que já foi pensado e definido em outro momento por outras teologias, ela precisa
apresentar um modo diferente de organizar sua grade teológica. Segundo, porque é
necessário dar resposta, ordenada e consistente, ao contexto e problemas sócio-
históricos específicos de onde se quer desenvolver uma teologia.
A Teologia da Missão Integral parte da revisão histórica da prática missionária
que lhe deu antecedência missiológica para a crítica, avaliação e reordenação do
específico para o fazer teológico. Num processo de autonomia no discernir e produzir de
um pensamento contextual a respeito de sua missão, a Missão Integral pretende romper
com as marras metodológicas que lhe foram trazidas por meio dos projetos e teologias
vindas do estrangeiro, e propõe uma forma mais local a luz das necessidades na qual a
igreja é chamada a missionar.
Assim, o modo metodológico da Teologia da Missão Integral encontra-se no
surgimento de uma nova maneira de pensar a missão da igreja a luz dos problemas
sócio-culturais do contexto e da crítica histórica ao movimento de missão. Ela vai sendo
forjada assim, pela realidade na qual a igreja se encontra e suas demandas históricas,
eclesiais e sociais.

5.2 A Hermenêutica Contextual e o Reino de Deus como chave hermenêutica

A Missão Integral faz uso do círculo hermenêutico como processo dinâmico e de


constante revisão crítica quanto àquilo que seja o conteúdo bíblico do evangelho e as
demandas do contexto. É uma constante ida e vinda a partir das escrituras sagradas ao
contexto e do contexto de volta as escrituras. Desse modo, a mensagem da teologia e da
igreja nunca se encontra em dissonância com a realidade histórica da igreja. Onde quer
que ela esteja, estará sempre apresentando uma mensagem e atuação compromissada e
relevante. Sanches (2009, p. 137) diz:

A Hermenêutica Contextual é utilizada pela Teologia da Missão


Integral como princípio interpretativo que possibilita a dupla tarefa:
perceber a palavra de Deus nas situações da vida do texto bíblico, ou
seja, no contexto bíblico; perceber a realidade histórica e de vida
atual, julgá-la a luz da palavra de Deus, compreendida
contextualmente sob a ótica do Reino de Deus.

Sanches diz que “contextualização teológica é mais do que uma necessidade, é


condição inevitável para que a Palavra de Deus se mostre Palavra de Deus dentro de
uma realidade concreta” (2009, p. 117). Padilla (Apud, SANCHES, 2009, p. 116) fala
que “é uma nova leitura do evangelho a partir de dentro da situação histórica concreta e
sob a direção do Espírito Santo”.
É utilizando uma hermenêutica circular, inter-relacionando constantemente o
contexto e a Palavra de Deus, que a igreja pode se mostrar efetivamente engajada em
oferecer respostas as necessidades do povo e da sociedade e apresentar a mensagem
salvadora e libertadora de Cristo ao mundo. Dentro dessa compreensão, para que haja
de fato uma interpretação contextual das escrituras sagradas, é fundamental a utilização
de uma chave hermenêutica na mediação no entendimento do texto bíblico. Para isso, a
Teologia da Missão Integral vale-se do Reino de Deus como Chave Hermenêutica para
o seu fazer teológico. Sanches (2009, p. 141, 143) diz de em relação ao Reino de Deus
como chave Hermenêutica que:

Ele perpassa toda a dinâmica teológica, alinhavando todos os seus


momentos, seja na tarefa hermenêutica em relação a Palavra de Deus,
na compreensão da natureza missionária da igreja como comunidade
do reino, como para o entendimento e julgamento dos problemas que
afetam o mundo e a realidade concreta. [...]O Reino de Deus e sua
justiça é que abrirão para o entendimento das Escrituras, na leitura
contextual. É na ótica do Reino de Deus e a sua justiça que se realiza o
julgamento do contexto histórico sócio-cultural e se faz denuncia
teológica das suas injustiças.

Quer-se deste modo, perceber a realidade histórica e humana integralmente na


tentativa de oferecer uma resposta coerente do evangelho transformador e redentor.
Como observamos, a Teologia da Missão Integral constitui-se de um modo de
teologizar que leva a sério os princípios de contextualização, integralidade e utiliza o
Reino de Deus como chave hermenêutica na interpretação do seu construto teórico.
Assim sendo, ela se mostra com vitalidade e vigência para ser uma nova referência nos
conceitos e praticas missionárias para a igreja local.
Assim, gestada e fomentada a partir da realidade Latino Americana, nasce a
Teologia Evangélica da Missão Latino-americana ou Teologia da Missão Integral, um
modo de teologizar tipicamente latino-americano que não se ocupa da teologia apenas
pela teologia, mas visa o serviço da Igreja, da sociedade em geral e do mundo. Ela é
gerada e protagonizada por pessoas comprometidas com sua tradição protestante-
evangélica, mas também com a realidade sócio-histórica e cultural da América Latina.
Ela surge como resultado do esforço por busca de autonomia e identidade de
diversos pastores, missionários, professores e teólogos na busca de uma vivência
eclesial a partir da América Latina e com uma maneira específica de elaborar uma
compreensão de sua fé missionária. Sobre o modo de produção teológica da Missão
Integral, Cunha (2010), teólogo batista, diz:

A reflexão teológica da Missão Integral buscou uma compreensão


adequada dos problemas da América Latina esforçando-se por
promover uma reflexão teológica autóctone, contextualizada. Grande
atenção foi dada à questão da pobreza e da justiça social, à questão da
estratégia missionária, e à educação teológica. Nesse processo é
possível observar um diálogo com as ciências humanas, como
instrumento de análise para melhor compreensão da situação latino-
americana, bem como com os teólogos da libertação. (...) Como o
nome indica, o movimento da Missão Integral influenciou
principalmente a hermenêutica bíblica e a reflexão missiológica,
havendo uma reflexão menor a respeito de outras áreas.

Foi especialmente em instituições de educação teológica e em igrejas na


América Latina que a Teologia da Missão Integral ganha espaço de reflexão e prática.
Assim, igrejas e seminários, com menos subjugo da matriz norte-americana viram na
Missão Integral a possibilidade de fazer missão nos moldes propostos pelo Pacto de
Lausanne. Os autores da Teologia da Missão Integral buscaram romperam assim com o
modo estrangeiro de se pensar teologia e consequentemente missão.
Fizeram isso através de uma análise crítica da história missionária marcada
especialmente pelo neocolonialismo norte-americano e pelos projetos políticos liberais,
e a repensar a missão da igreja desde uma ótima latino-americana (SANCHES, 2009).
Essa releitura crítica da história missionária foi feita sem deixar de reconhecer o valor
do movimento evangélico estrangeiro na plantação de igrejas evangélicas em todo o
continente latino-americano e sem negar seu legado de fé evangélica bíblica.

CONCLUSÃO
A discussão em torno da constituição de uma missiologia integral para a
dinâmica das igrejas locais contemporâneas é naturalmente uma questão em aberto.
Entretanto, propomos a Teologia da Missão Integral como novo paradigma missional
que perfaz uma releitura das relações entre missão e teologia favorecendo o
desenvolvimento de uma eclesiologia cada vez mais contextual e relevante. O desafio
que se segue é o de pensar sobre que formas nossas comunidades cristãs podem se
alinhar à esta perspectiva em vista uma presença transformadora no mundo atual.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOSCH, David. Missão transformadora: mudanças de paradigma na teologia da


missão. São Leopoldo: Sinodal, 2002.

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