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Likastía IV

Rubi A. Elhalyn
DEDICAtória
Para Aline ‘Fell’ que ama as fofocas sobre a vida dos meus bebês felinos tanto quanto
amo escrever.
ÍNDICE
Capítulo 01 ..................................................................................................................... 4
Capítulo 02 ................................................................................................................... 11
Capítulo 03 ................................................................................................................... 18
Capítulo 04 ................................................................................................................... 26
Capítulo 05 ................................................................................................................... 35
Capítulo 06 ................................................................................................................... 44
Capítulo 07 ................................................................................................................... 54
Capítulo 08 ................................................................................................................... 61
Capítulo 09 ................................................................................................................... 69
Capítulo 10 ................................................................................................................... 77
Capítulo 11 ................................................................................................................... 90
Capítulo 12 ................................................................................................................. 100
Capítulo 13 ................................................................................................................. 111
Capítulo 14 ................................................................................................................. 120
Capítulo 15 ................................................................................................................. 133
Capítulo 16 ................................................................................................................. 143
Capítulo 17 ................................................................................................................. 151
Premiando a Lealdade e a generosidade.................................................................... 163
Bônus da Autora ........................................................................................................ 172
Likastía 04|4

Capítulo 01
Faz muito tempo, muito mesmo, os felinos de Likastía eram apenas um projeto teórico
na minha cabeça... Nessa época eu tinha um ajudante, porém, havia algo de errado. Eu
percebi cedo, mas cometi um erro: dei uma chance.

~o ⭐ o~
- Vovô! – Aine correu com suas perninhas curtas e agarrou as pernas de Sven, quase o
derrubando.
- Lindinha! Querida, não me chama de vovô. Fica parecendo que sou velho. – Sven
disse e Hieron e Sunny sorriram.
- Mas, vovô, o senhor é velho. – Aine, em toda a sua sinceridade infantil disse.
- HAHAHAHAHAHAHAHA! – Sunny gargalhou enquanto Hieron abanava ela que
parecia sufocar de tanto rir.
Aine olhou sem entender nada, enquanto Sven a pegava no colo.
- Eu não sou velho, lindinha. Eu sou experiente. – Sven disse.
- Aaaah... Não entindi, vovô. – Ela fez uma carinha fofa e confusa.
- Papai... – Maia chamou Hieron.
- Oi, amorzinho do papai. – Hieron pegou a filha, três anos mais nova do que Aine, no
colo. – Gaa pegou meu desenho de papatinho.
- Maia! - Aine gritou do colo de Sven, dando pulinhos. – Vovô Sven não é velho?
Maia olhou, virou a cabecinha de lado, colocou uma mecha do cabelo laranja escuro
atrás da orelha pensativa, arreganhou os braços e disse: - Velho assim, ó! Beeeeem gandão
de velho!
Sunny não aguentou e chegou a ficar sem fôlego rindo.
- Grande Kallisti! – Sven quase gritou a ver a filha vindo correndo com a carinha toda
riscada de vermelho.
- Gaaaa! – Maia gritou, se debateu até o pai soltá-la no chão, correu e abraçou a irmã,
um ano mais velha. – Qué brinca comigo?
- Gaia, meu amor, o que é isso? – Sven chegou perto.
- Linda da tia, de quem você pegou esse batom. – Sunny limpou as lágrima de riso e se
aproximou da garota que dava todos os indícios de que seria nível de sutileza à la Sunny.
Gaia mexeu na bainha do vestido, sem graça. – Tava na mesinha rosa da titia...
- Gaia! Não mexa nas coisas dos outros! Isso é feio! – Sven reclamou.
Maia e Aine ficaram imediatamente de cada lado de Gaia, protetoramente.
- Num bíga com a Gaa! Ela só quelia usa o batom da titia! – Maia fez uma cara de brava
que era quase cômica.
- Calma, Sven. – Sunny agachou na frente de Gaia, tentando não rir do ridículo que
estava a cara da menina. – Gaia, lindinha, não chora. Seu pai tem razão. Não é legal mexer
nas coisas dos outros sem pedir antes.
Likastía 04|5

- Diculpa, tia. – Gaia começou a fungar, com os olhinhos cheios de lágrimas.


- Você promete não fazer mais isso? – Sven perguntou, mais controlado.
- Eu pométe, papai. – Gaia disse quase como um juramento.
- Então, vem com a tia. Vamos limpar seu rosto pra você brincar com suas amigas. E
prometo que vou te ensinar como usar batom e, quando você tiver idade, vou te dar seu
primeiro batom. – Sunny pegou Gaia pela mão.
- Memelho? – Gaia perguntou.
- Vermelho. Promessa da tia.
- Vem, Maia. Vamo arrumar o milante no jardim pra gente brinca de chazinho chique.
– Aine puxou Maia pela mão.
- Oba, chazinho. – Hieron sorriu, dando um tapinha no ombro de Sven.
Aine e Maia pararam, cruzaram os braços e olharam bem sérias.
- Não, vovô! Você não pode toma chazinho! – Aine disse.
- É! Você é me-ni-no! Menino não entla no milante das me-ni-nas! – Maia se virou,
jogando os cabelos curtos para trás.
- É, amigo. A gente não tem mais nem permissão para beber chá com os jovens.
Ninguém respeita mais os velhos. – Hieron brincou, já esperando a resposta.
- Só se for você. Eu não sou velho. Sou experiente. – Sven começou a rir, e logo tossiu
porque ne.... Velho não pode rir que a tosse logo se manifesta.

~o ⭐ o~
- Aine, não esqueça de tomar bastante água. Ah e leve a escova de calcanhar. E não
fique comendo besteiras. Ah e...
- Mãe! – Aine riu. – Eu vou para a casa da minha amiga do outro lado do pátio. Relaxa.
- Ane, amor, Aine não é mais uma criança faz tempo, querida. – Calíope se sentou
devagar.
- Eu sei, mas...
- Pronta? – Scylla perguntou da porta.
- Sim, tia. – Aine deu um beijo no rosto da mãe e outro no da avó e saiu com Scylla. –
Como ela está?
- Triste, mas sua presença vai ajudar.
Aine parou na frente de Scylla que ergueu uma sobrancelha. – E a senhora? Como a
senhora está?
- Querida, você é maravilhosa. – Scylla nem sabia porque ainda se surpreendia com
essas atitudes. – Estou bem, minha linda. Amei Sven tanto quanto amei Hieron.
Infelizmente, na minha idade, a gente meio que se prepara para encarar o chamado de
Kallisti para o outro mundo.
- Eu sei, mas...perder o vô Sven e o vô Hieron em tão curto tempo não deve ser fácil.
- Não é. Mas eu me preocupo mais com o coração das minhas filhotas agora.
Likastía 04|6

~o ⭐ o~
- Eu não entendo como ela pode ficar tão calma, Celi! – Maia comentou com sua serva
que, pacientemente, escovava seus cabelos até brilharem. – Tio Sven era muito legal. Aí o
avô dela morre e ela nem fica depressiva?
- Sim, senhorita. – Celi disse no automático.
- Quer dizer, Gaia está lá sofrendo daquele jeito. Meio exagerado, é verdade. Mas pelo
menos é mais normal. Eu sinto a perda do tio Sven também, ele era como um segundo pai
pra mim. A gente nem se recuperou da morte do meu pai direito.... Mas, sabe... Era pra ela
ficar mal, acabada, e tal. Mas tinha que ser a perfeitinha de sempre.
- Sim, senhorita. – Celi disse, fez três tranças finas na lateral esquerda do cabelo,
deixando o resto solto. – Está pronto, senhorita.
- Muito bom, Celi. Obrigada. – Maia levantou, verificou sua roupa para que não tivesse
nada fora do lugar, pegou seu caderno de desenhos e saiu com Celi um pouco atrás. – Eu
acho, Celi, que tudo aquilo é só aparência. Ninguém sorri tanto assim... Amiga! – Maia
mudou logo sua fala ao ver Aine e Scylla entrar. O olhar de Scylla irritado, no entanto,
deixou bem claro que ela tinha captado mais uma vez os pensamentos de Maia. Aine deu
um abraço forte na amiga que logo teve seu olhar atraído para as garras de Aine, bem
pintadas de azul. – Lindo esmalte.
Scylla apertou os dentes para não começar um sermão de novo.
- Obrigada. Como você está, amiga? – Aine perguntou.
- Sabe como é... Não posso ficar chorando pelos cantos. – O tom ácido disfarçado de
Maia atraiu um olhar assassino de sua mãe.
- Celi, leve Aine para ver Gaia, por favor. Maia precisa de algum tempo sozinha. –
Scylla disse, desafiando a filha a contestar sua ordem.
- Sim, senhora. – Celi saiu com Aine depois que esta última deu um beijo no rosto da
amiga.
- Mãe, eu...
- Agora não, Maia. Agora não. – Scylla saiu temendo descontar na filha a dor do luto.
Mais tarde ela lidaria com os sentimentos perigosos da moça.

~o ⭐ o~
- Lesath, você vai lá? – Lucius perguntou.
- Não. Infelizmente, tenho uma tropa nova para treinar. Lich disse que ia. – Lesath
respondeu.
- Vou mandar um convite. – Lucius passou um documento para ele dar sua assinatura.
- Não sei se ela vem. Calíope está com um pé na morte também.
- Les! – Lucius ficou bravo.
- O que? É a verdade.
- Você é pior que a mãe. – Lucius reclamou.
- Que feio. Falando mal da mamãe pelas costas. – Sunny brincou.
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Os dois rapazes se levantaram em respeito à Rainha leonina. Lucius puxou a cadeira


para a mãe sentar e Lesath serviu uma caneca enorme de suco morno, do jeito que ela
gostava. Desde que os trigêmeos começaram com esse ritual matinal tão naturalmente,
ainda na infância, ela não conseguia evitar de lembrar sua antiga vida na casa onde fora
tratada como escrava e coisas piores. Quando ela comentou isso com Alart, tudo que ele
pôde fazer foi abraça-la e encher sua esposa de carinho, tentando aliviar o trauma dela e a
culpa que ele sempre sentiu pela primeira vez em que estiveram juntos.
- Eu só estava falando da falta de sutileza dele. – Lucius olhou feio para o irmão e
estendeu um guardanapo de tecido no colo da mãe.
- Desta vez ele tem razão. – Lich disse, saindo de um canto mais escuro, perto de uma
cortina.
- AAAAH! – Lesath, Lucius e Sunny gritaram de susto. Algo tão comum que os guardas
e Alart nem se abalavam mais.
- Meu filho, ainda vou ter um troço com esses seus passos silenciosos. – Sunny esticou
a mão.
Lich se aproximou sem emitir nenhum ruído, pegou a mão dela e deu um beijo. –
Desculpa, mãe.
- Tudo bem, meu bebê. Eu sei que é natural pra você.
- Já que você obviamente ouviu, - Lucius se sentou com cara feia – você vai?
- Sim. Darei seu recado. – Lich se sentou e pegou uma única fruta pequena.
- Eu queria muito ir... – Lesath reclamou.
- Você tem uma tropa para cuidar, filho. – Sunny disse, sem olhar para ele.
- Eu poderia ir. Afinal, um convite meu seria mais oficial e... – Lucius começou.
- Você tem que governar, querido. – Sunny disse enquanto mordia um doce.
- Meninos, amor. – Alart apareceu, beijou a esposa e se sentou ao lado dela como
sempre. – Lich irá. – Ele decretou, nem precisando perguntar para saber do que eles
falavam. Os tri, como os irmãos eram conhecidos, só falavam nisso desde a morte de Sven a
alguns dias.
- Sim, pai. – Lich respondeu e se levantou para sair.
- Ei, mocinho. Pode sentar aí e comer direito. – Sunny não tinha olhado ele comer em
nenhum momento, mas não precisava. Lich sempre comera tão pouco que ela passou a
vida toda temendo que seu caçula morresse de anemia a qualquer segundo. Ilogicamente,
Lich sempre fora muito forte, extremamente musculoso.
- Mãe, não est... – Lich começou.
- Você nunca está com fome. Senta aí e come direito! Quer matar sua mãe de
preocupação? – Sunny fez o drama que aprendera desde cedo o poder que tinha sobre os
irmãos.
Lich sentou, sentindo-se culpado e recebendo um olhar chateado dos irmãos por
terem feito sua mãe se preocupar. Alart direcionou um olhar cúmplice para Sunny e sorriu.
- Pai, tenho uma reunião com o conselho amanhã, mas... – Lucius disse.
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- Não vou assumir para você ir treinar, filho. Você será coroado em poucas semanas.
Isso é sua responsabilidade agora. – Alart disse, sem brecha para discussões. – Ah, os três
precisam passar pela avaliação dos magos, principalmente você, Lich.
- Mas de novo...? – Lesath, o menos paciente com magias, perguntou.
- Sim, de novo. Trigêmeos é muito incomum, filho. Os magos precisam acompanhar
vocês para documentar o progresso de suas magias e se o nascimento triplo não interfere
em nada nelas... – Sunny comentou.
- Eu sei, mãe. É só que... Isso é muito chato. – Lesath disse.
- É para um bem maior. – Lich disse, se forçando a comer.
- Eu acho relaxante. – Lucius comentou.
- Chato. – Lesath resmungou. – Prefiro ficar aqui com essa linda rainha maravilhosa. –
Ele piscou para a mãe, com seu melhor modo sedutor.
- Ei! – Alart disse. – Eu a vi primeiro!
Lesath jogou um pedaço de bolo no pai. – Escolha seu bolo e vamos duelar por essa
bela dama!
- Você vai se arrepender de tentar pegar minha bela dama, garoto. – Alart pegou um
pedaço de bolo e se preparou.
- Meninos... – Sunny riu.
- Mãe. – Lich se materializou agachado ao lado dela, uma névoa densa e negra se
firmando na forma de um leonino alaranjado.
- Oi, meu bebê sorrateiro. – Sunny fez um carinho na cabeça do filho enquanto Alart e
Lesath jogavam bolo um no outro como se estivessem em uma guerra e Lucius ficava
colocando lenha na fogueira, torcendo ora para um, ora para o outro.
- Obrigado por ontem. Eu...não conseguia mais aguentar.
- Eu sei, amor. Mas saiba que você sempre pode falar comigo e com seu pai. É para
isso que estamos aqui. Você não precisa e não deve carregar tudo sozinho aqui. – Ela
apontou para o coração dele. - Acredite, eu sei como é se sentir sozinho e isso, meu filhote,
é o pior dos venenos.

~o ⭐ o~
Os olhos de Gaia ainda estavam inchados e ela havia emagrecido bastante nos últimos
dias. Sentada com a agulha no tecido, não prestando atenção em nada, sua mente aérea.
Sua mãe falava com sua irmã a alguma distância, brigando com ela como vinha
acontecendo frequentemente. Mas Gaia não ouvia nada, focada demais em si mesma,
tentando seguir os conselhos de Aine para sair daquele poço de tristeza no qual ela
mergulhara.
- Você vai sim! E não quero ouvir mais, Maia! Você pediu ajuda. Bem, estou ajudando.
Uma temporada no templo, longe de tudo, vai te ajudar a aprender a se controlar, se
dominar.
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- Mãe, o baile da duquesa é daqui a dias! Eu não posso deixar de estar perfeita! E se eu
ficar trancada num templo, como vou tratar meus pelos, minhas garras, m...
- Maia! Você é vaidosa, não fútil. Muito menos burra. – Scylla massageou as têmporas.
– Você não vai nesse baile. Você vai focar exclusivamente em crescer aqui dentro. – Ela
apontou para o coração da caçula. – Filha, eu te amo e não quero ver você afundar nesse
sentimento mais do que já afundou. Você sabe a maldição que isso é.
- Eu sei, mãe... – Maia ficou irritada por Gaia não ir defende-la e pela irmã, mesmo tão
abalada e magra, continuar sendo mais bonita do que ela. Mas aquele pensamento sobre a
irmã que ela amava tanto, foi o impulso que precisava. Ela não queria continuar sentindo
inveja de sua irmã e de sua amiga. Aquilo a sufocava. – Eu vou.
Scylla sentiu todos os pensamentos dela. – Graças à Kallisti. – Ela suspirou. – Faça
todas as tarefas, todos os treinos que as sacerdotisas mandarem, filha.
- Mãe.... E se... Se eu não conseguir? Se não tiver mais jeito...
- Maia, sempre há um jeito para quem quer mudar, quem quer crescer. E eu sei que
você pode vencer isso, filha. Você só precisa focar e deixar as sacerdotisas ajudarem. Eu fiz
o que pude, querida, mas o fato de ser sua mãe às vezes pode atrapalhar porque eu sempre
vou querer ver o melhor em você, nem sempre vou ter a frieza necessária para lidar com
algo tão sério em minha filha. Mas eu tenho certeza que lá você vai superar isso.
Maia abraçou a mãe e sentiu a esperança de se livrar daquela inveja que a perseguia a
tantos anos.
- Gaia.
- Ahn? – Gaia levantou os olhos e aceitou um bolo salgado do Tiger forte. – Obrigada,
Amon, mas não estou com fome.
- Imagino. Mas é melhor comer. – Amon tirou gentilmente a costura das mãos dela e
colocou arrumado sobre a mesa de centro. – Por favor?
Gaia mordeu o bolo e só então percebeu que realmente estava com fome. Em menos
de dois minutos ela comeu tudo.
- Assim está melhor. – Os olhos dele brilharam de alegria.
- Querida, vamos? – Scylla chamou enquanto Maia caminhava para dentro. – Amon.
- Senhora. – Ele cumprimentou a sacerdotisa, meio sem graça.
- Obrigada pelo bolo. – Gaia disse e sua mãe olhou ocultando um sorriso. A horas ela
tentava em vão fazer Gaia comer pelo menos um pouco. Scylla nem precisava ouvir os
pensamentos do rapaz porque o olhar dele dizia tudo. Gaia deu um beijo na bochecha dele.
– Você é um grande amigo, quase um irmão.
Scylla olhou chocada para a filha e depois com pena para o rapaz que parecia ter seu
mundo destruído. Não é possível! Quantos anos mais vai demorar pra essa tonta perceber o
olhar bobo desse menino? Poderosa Kallisti, eu criei uma cega?! Scylla resmungou
mentalmente.
Amon ficou lá, parado, sufocado pelas palavras de Gaia que pareceram punhais em
seu peito. No dia seguinte, Maia viajou para um templo dedicado aos anéis Anuin e às luas
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de Likastía, no topo de uma colina, cercada por uma densa floresta. Uma viagem que
levaria alguns dias já que Scylla não a enviou por um portal, pois a viagem pelas estradas
pedregosas era parte do “tratamento” que Maia passaria. No mesmo dia, Lich chegou no
palácio Tiger com uma mensagem para Gaia e outra para Aine.
No mar, perto de um deck antigo e abandonado, uma figura encurvada e mancando
saiu de uma cabana velha, caindo aos pedaços e entrou na floresta carregando uma caixa
de madeira escura, sumindo de vista.

~o ⭐ o~
O projeto que eu criei era perfeito em suas imperfeições. Não perfeito porque não
tinha defeitos. Mas perfeito porque cada um, com suas virtudes e defeitos, era único,
apenas ele era ele. Cada um com seus erros, seus acertos, suas ambições, seus sonhos...
Sempre amei quem conhece suas características e se orgulha delas assim como eu me
orgulho de todos eles. Ah quem dera meu ajudante pensasse assim também...
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Capítulo 02
Houve um momento em que o projeto de uma raça inteligente ficou pronto. Não era a
primeira que eu criava... Longe disso. Mas confesso que eu tinha um carinho especial por
essa espécie nova. Faltava a chama de vida. Apenas isso. Mas essa não era a única fonte de
vida possível. Era a única sensata, mas não a única...

~o ⭐ o~
Aine e Gaia chegaram no reino leonino com Lich por um portal relativamente novo,
instalado onde antes ficava uma área com uma banheira de águamassagem, destruída por
Alart com uma marreta anos antes. A área de águamassagem agora ficava em um setor
completamente do lado oposto do palácio, enquanto ali agora ficava um portal usado
exclusivamente pelos trigêmeos quando queriam sair sem atrair atenção de qualquer outra
pessoa no palácio.
- Acho essa parte do palácio tão linda. – Gaia suspirou. – Não sei porque o Rei e a
Rainha nunca vêm aqui.
- Também não sei. Todo mundo muda de assunto quando a gente pergunta. – Aine
respondeu, com um braço entrelaçado no da amiga.
Lich era o único da nova geração que conhecia o motivo de ninguém dentre seus pais e
os amigos deles gostarem dali. Era por um motivo parecido que sua mãe nunca ia na
propriedade dela no litoral Tiger e passou o ducado dali para Lich, o único que tinha algum
interesse no local e governava ele com firmeza e impiedade aos nobres corruptos.
- Divirtam-se. – Lich disse, cumprimentou as duas elegantemente na porta da sala e
saiu sem olhar para trás.
- Nunca vou entender ele. – Gaia sentia um pouco de medo de Lich, sempre tão
calado, surgindo do nada como um fantasma, com aquele olhar que parecia ver a alma das
pessoas.
- Lich é legal, só mais quieto. – Aine respondeu e se virou para cumprimenta Sunny.
- Tia. – Gaia abriu um sorriso ainda meio triste.
- Oi meus amores.. – Sunny deu um abraço nas duas e focou seu olhar em Gaia. –
Querida... Sinto muito. Sei que já disse isso no velório, mas...
- Obrigada, tia. – Gaia respondeu, os olhos nublando com lágrimas teimosas.
Sunny puxou a menina para o sofá e a abraçou. – Tudo bem, linda da tia, deixa sair.
Aine ficou mais distante, dando privacidade para as duas, aliviada por que Sunny tinha
uma ligação forte com sua amiga e era sua esperança para dar alguma paz à menina.
Sorrateiramente, Aine saiu por outra porta e seguiu o caminho do qual se lembrava.
Guardas espalhados pelo caminho cumprimentavam respeitosamente a princesa Tiger com
um aceno de cabeça, para alguns Aine perguntava algo sobre sua família, pessoas que ela
tinha ajudado em algum momento, sempre atenciosa com todos.
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Essa era uma das coisas que mais incitavam a inveja de Maia. Aine sempre fora
atenciosa com todos, sempre pronta para ajudar, sempre gentil e sorridente, respeitada e
amada em ambos os reinos.
- Capitão Justino. – Aine cumprimentou o guarda na porta de saída para a ala dos
escritórios. – Como vai sua tia? Ela conseguiu terminar aquele casaco de linho?
- Alteza. – O Capitão fez um sinal de respeito com o punho sobre o coração. – Sim. Ela
agradeceu pelo conjunto de agulhas e o manequim que a senhorita enviou. Está cada vez
melhor nisso.
- Fico feliz por ela. – Aine deu aquele sorriso encantador, típico dela. – Ele pode falar
comigo agora? Se estiver ocupado, tudo bem. Eu volto depois.
- Sua alteza real está terminando uma reunião no mirante 3, mas vou verificar. – O
Capitão soprou em um chifre de sapo de 4 centímetros pendurado em seu pescoço,
enviando uma mensagem codificada para um de seus oficiais. Menos de 20 segundos
depois, o objeto emitiu um som baixo e uma vibração sutil. O Capitão encostou o dedo
indicador direito no objeto, sentindo a resposta que vibrou em sua mente como uma frase
perfeitamente pronunciada. – Pode ir, alteza. O Oficial aqui a acompanhará.
Um leonino mais jovem e muito alto, mais do que os padrões de seu povo, se
aproximou e aguardou.
- Oficial... – Aine disse em um cumprimento. – Qual é o seu nome?
O Oficial olhou meio confuso, pois não era costume nenhum nobre se dar ao trabalho
de saber o nome dos guardas. Apenas alguns príncipes leoninos, como Alart e seus filhos
faziam isso. O rapaz então se lembrou das histórias sobre Aine e relaxou.
- É Lester, alteza. – Ele respondeu.
- Bem, é um prazer, Lester. – Ela deu alguns passos e o Oficial a guiou até o mirante
por mero respeito, não por necessidade, já que Aine conhecia bem o local. Quando ela se
aproximou, viu alguns nobres e magos saindo com pilhas e mais pilhas de documentos nos
braços, alguns com seus servos do lado carregando documentos também, todos saindo por
outro caminho.
- Que surpresa magnífica. – Lucius sorriu educamente, embora seu olhar fosse muito
mais alegres.
- Obrigada, Oficial Lester. – Aine disse, arquivando o nome do rapaz na sua lista mental
interminável de nomes e rostos que nunca esquecia. – Oi, tri bravo.
- Oi, menina louca. – Lucius a abraçou e guiou para a cadeira. – Chá, suco ou algo mais
forte?
- Suco. – Aine esticou os braços sobre a cabeça e bocejou.
- Aqui. – Ele entregou o copo para ela, puxou uma das cadeiras para seu lado e se
sentou. – Sinto muito, princesinha. Eu e os caras ficamos presos aqui com toda aquela
confusão do desabamento.
- Não se preocupe, Luc. – Aine tomou um grande gole de suco e colocou o copo na
mesa. – Seus pais representaram bem vocês lá. Além do mais, as vítimas do desabamento
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eram prioridade. Afinal, elas estão vivas e ainda dá pra ajudar de alguma forma. Meu avô
não. Adoro vocês, mas, até onde eu sei, nenhum dos tri poderia trazer aquele velho bonitão
de volta dos braços consoladores de Kallisti.
Lucius sempre fora o mais sensato e mais impaciente dos irmãos e admirava muito a
praticidade e capacidade de sua amiga em colocar o bem-estar do Reino acima de qualquer
coisa. Mas Aine tinha um truque que os tri conheciam bem. Quando ela não queria
responder, ela não mentia, mas manipulava a verdade ou desviava a atenção dos outros
para evitar responder.
- Você não me respondeu. – Lucius puxou as mãos dela, a forçando a olhar para ele e
se arrependeu imediatamente. Naqueles olhos sempre luminosos, como se sorrissem o
tempo todo, tinha uma expressão sutil, quase imperceptível de dor. – Como. Você. Está?
Aine nunca abaixava a cabeça. Sua mãe dizia que ela era mais orgulhosa do que todos
os reis e rainhas Tigers da história juntos. Mas ela sentiu vontade de fazer isso agora.
Qualquer coisa para desviar o olhar. – Eu estou aqui, não é? – Ela sorriu seu sorriso
brilhante.
- O que não responde o que perguntei.
- LOUCAAAA! – Lesath gritou praticamente já no mirante, subindo os três degraus de
uma única vez. Ele puxou uma das cadeiras, colocou colada na de Aine e sentou, puxando a
amiga em um abraço. – Vamos sair e tomar todas para afogar a dor e lembrar do velhote
como velho-novo-experiente que ele era.
Lucius deu um olhar rígido para o irmão, mas logo se acalmou ao perceber que a ideia
era realmente boa. Aine aproveitou seu rosto quase sufocando na camisa do amigo para
deixar uma lágrima sorrateira secar nela.
- Eu até topo, mas Gaia está muito pra baixo e não sei se ela vai querer ir. – Aine se
afastou e deu um beijo no rosto de Lesath.
- Duvido que minha mãe deixe a garota sozinha, caso ela não queira ir. – Lesath
comentou.
- Ah, muito bonito. – Lucius cruzou os braços e fechou a cara. – Esse nojento suado
ganha um abraço E um beijo, mas eu, todo bonito, perfumado, penteado, lindo de morrer,
só ganho um abraço.
- O bravinho tá com ciúúúme. – Lesath mostrou a língua, algo que ele aprendeu com
Sven desde pequeno. – Não tenho culpa de ser o mais gostoso, tri velho.
- Você é só um mala sem alça. – Lucius começou brincando, mas daí para ficar
realmente bravo era um sopro.
Aine deu um beijo estalado no rosto de Lucius para evitar a discussão entre os irmãos
que, ela desconfiava, brigavam por esporte.
- Você sabe que vai ter que dar um beijo e um abraço no Lich também, não é? – Lucius
sorriu. – Direitos iguais.
- Eu fiz isso mais cedo, ontem, hoje, .... – Aine deu um sorriso arteiro.
- PILANTRA! – Les gargalhou.
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- MAS QUE FILHO DE UMA... – Lucius começou.


- Ei! A mãe dele é a nossa também, gênio! – Les deu um beliscão no braço do irmão,
ativando o Lucius-Bravo que deu um tapa na mão dele. Aine deu alguns passos para o sofá
mais distante, sentou com as pernas cruzadas e seu copo de suco em uma mão, já
prevendo o que viria.
Les revidou com um tapa no ombro dele, Lucius deu outro na barriga dele e logo virou
uma trocação de socos e chutes entre os dois. Com Lesath provocando o irmão com seu
deboche e Lucius revidando rosnando, irritado.
- Chega. – A voz de Lich soou calma e estável antes que ele se materializasse na
sombra de uma árvore no chão.
- AH! CACETE! – Les e Lucius gritaram ao mesmo tempo de susto e pararam lado a
lado. Só Aine não se abalou.
- Um dia meu coração vai parar com esses sustos. – Lucius ofegou.
- Sem brigas. – Lich disse sem piscar, algo que dava arrepios em muita gente.
- Mas o Luc me provocou! – Les disse.
- Eu? Você, seu cara de madeira, veio me provocar! – Lucius gritou, seus olhos
vermelhos de raiva.
- Eu não! Você que tudo fica bravinho. – Les disse.
- Mandei. Parar. – Lich disse e sua voz emanava uma autoridade tão forte que
raramente alguém o contestava.
Os irmãos ficaram quietos, trocando olhares irritados, mas logo esquecendo suas
desavenças, como sempre acontecia.
- A gente vai levar a Aine para beber todas. – Les disse.
- E Gaia? – Lich perguntou.
- Ela não vai mesmo... Melhor nem tentar. – Luc disse.
- Chamem ela. – Lich decretou com seu senso inabalável de justiça.
- Mas...
- Sem “mas”, Luc. Ela é uma visita em nosso reino, o reino que você vai governar em
breve. É assim que você quer governar? Escolhendo a qual convidade estender sua
hospitalidade?
Lucius fez cara feia, se sentindo um bobo. – Ta, ta. Eu chamo.
- Se quiserem, eu chamo. – Aine disse.
- Não, louquinha. – Les disse. – Luc é o futuro Rei, é meio que responsabilidade dele
fazer os nossos convidados se sentirem em casa.

~o ⭐ o~
Maia entrou no templo dos Anéis e das Luas que ficava no meio da estrada, um dos
cinco no longo caminho até o templo que ela deveria ir. Apenas uma Sentinela e uma
sacerdotisa novata acompanhavam a moça, afinal não havia guerra a gerações e Maia
precisaria apenas de ajuda para evitar qualquer animal selvagem e se virar na estrada. O
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templo era pequeno, austero, sem ornamentos coloridos, sem objetos caros, móveis
confortáveis e simples. Este tinha apenas quatro quartos: um para a sacerdotisa chefe, dois
para as quatro sacerdotisas e um para visitantes. Além disso existia um jardim com um
labirinto circular (algo comum em todos os templos de Likastía), duas fontes com imagens
de Kallisti e dos três personagens do mito dos Anéis e das Luas, um pequeno riacho, um
refeitório com uma cozinha adjacente, duas áreas de banhos termais internos, uma área
para lavar e estender roupas, um enorme oratório interno para dias de chuva e uma sala de
visitas com os melhores móveis do templo. Em suma, era o mesmo design em todos os
templos dos Aneis e das Luas, apenas o que Maia ficaria era maior por ser o centro desse
culto. O caminho era uma preparação psicológia para o viajante enfrentar seus demônios
interiores sem distrações, sem o luxo e conforto, dando uma espécie de choque inicial,
obrigando o viajante a focar em si mesmo e não dar tanta importância à coisas superficiais.
Sendo filha da Grã-Sacerdotisa de Kallisti, uma mulher focada, prática e acostumada a
sobreviver em diversos tipos de locais, Maia não dava tanta importância ao luxo. Ela
gostava dele, era vaidosa, mas não era extremamente importante. No início ela estranhou a
diferença na cama, na temperatura mais fria, a umidade, mas sabia que logo se
acostumaria. Scylla sempre ensinou ela e sua irmã que saber se adaptar a tudo era
essencial na vida. O que a incomodava mais era o silêncio do lado de fora de seu corpo
porque isso fazia sua mente gritar as coisas que ela não queria ouvir, que tentava se livrar,
ignorar até.
A princesinha deve estar em uma festa atraindo toda a atenção de todos... Eu preciso
parar com isso. Não é da minha conta o que Aine está fazendo. Ela tentou bloquear esses
pensamentos, mas, sem ruídos, sem conversas e risos no corredor, sem nada para distraí-la,
não demorou para sua inveja voltar a dominar seus pensamentos. Aposto que a perfeitinha
não tem que viajar para perder algum defeito bobo. Claro que não. A bonitinha, a que todo
mundo ama, a que estala os dedos e os caras se jogam nos pés, não tem defeitos. Eu sou
muito mais bonita. Mas ela é a futura rainha. Só por isso ela atrai mais a atenção do que eu.
Sem perceber, Maia dormiu um sono pesado, esgotada pelo longo dia de viagem.
Ela tem inveja de você. Foi ela quem disse pra sua mãe te mandar para longe porque
ela não suporta ser a segunda em tudo. Ela sabe que você é mais bonita, mais forte, mais
inteligente, mais adorada... Ela tem inveja.
Maia acordou sobressaltada, como corpo pesado, dormente, tamanha foi a
profundidade de seu sono. Seu ouvido zumbia um pouco, mas logo ela se recuperou,
sentou na cama de pedra com um colchão fino de folhas e palhas, pegou um copo com
água no chão e virou todo de uma vez na garganta. Pela manhã, ela e suas duas
companheiras de viagem comeram no refeitório deserto e saíram. A sacerdotisa que
acompanhava Maia comentou que as sacerdotisas do templo não se aproximariam dos
visitantes naquele dia porque estavam em preparação para um ritual naquela noite e não
podiam falar com ninguém.
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Maia se lembrou de alguns ritos desse culto que exigiam esse tipo de purificação de
contato externo e saiu, agradecendo mentalmente pela acolhida das mulheres do templo.
Elas viajaram o dia todo, parando rapidamente para comer e de noite montando um
acampamento. Maia se deitou abraçada com a sacerdotisa para manter o calor de seus
corpos, enquanto a Sentinela montava guarda por metade da noite, trocando de lugar mais
tarde com a sacerdotisa. Não acostumada com aquelas horas de viagem cansativa, Maia
dormiu quase imediatente.
Eu podia ser uma princesa também.
Sim, você deveria ser. É tão melhor do que ela.
Eu...não sei. Talvez, eu não seja melhor....
Bobagem. Você é melhor do que a princesinha e até do que aquela sua irmã que nunca
te dá nada.
Gaia...é minha amiga. Mas... Ela pensa que é mais bonita do que eu...
Sim, ela tem certeza. Você acha mesmo que ela e Aine não riem de você pelas costas?
Elas riem?
Claro que sim. Elas sabem que você é melhor em tudo, mas zombam de você por
inveja.
Elas nunca serão melhores do que eu.
Nunca.
Maia acordou no raiar do sol por trás dos Anéis Anuin, com o corpo pesado, toda
dolorida. Então parte das coisas que ela sonhou vieram como fragmentos desconexos em
sua mente. A Sentinela lhe entregou uma caneca de sopa de carne simples, perguntou
como ela estava, se queria alguma ajuda, deixando Maia confortada e irritada ao mesmo
tempo. Aquilo a alertou e ela procurou a sacerdotisa.
- Cassiopeia?
- Maia. Dormiu bem? – Cassiopeia sorriu.
- Não tenho certeza. Podemos...conversar?
- Claro, sente-se e me conte o que a incomoda.
- Bem...não sei se minha mãe contou...
- Sim. Eu sei porque você vai para a purificação. – Cassi disse. – Não me olhe assim,
Maia. Eu preciso saber para te apoiar na viagem. É para isso que uma sacerdotisa sempre
acompanha o viajante em seu caminho. Sou uma amiga com conhecimentos úteis e
gostaria que me visse assim.
Maia se sentiu humilhada por sua mãe ter contado, mesmo que fosse algo necessário,
mas a sacerdotisa realmente não agira esse tempo todo como uma babá ou uma chata
controladora que estava cuidando de uma invejosa nojenta. Não. Ela a tratara como uma
amiga e, diferente de Gaia e Aine que não conheciam seu problema, Cassi conhecia e
poderia ajudar, ela podia desabafar. E foi o que ela fez. Maia contou tudo que a
incomodava, contou sobre os anos lutando contra isso e se sentindo como se batesse o
tempo todo contra uma parede intransponível, nunca vencendo o problema. Contou sobre
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os incômodos no caminho e o sonho desconexo. Em momento nenhum Cassi interrompeu


ou avisou que elas precisavam se levantar e seguir viagem. Cassi deixou Maia desabafar por
mais de uma hora, pacientemente, mantendo a Sentinela à distância com um olhar que a
outra mulher entendeu e respeitou.
- Eu entendo sua preocupação e você está certa em se preocupar. – Cassi entregou um
pouco d’água para a moça. – Mas isso é normal. Você é uma viajante e os primeiros passos
do caminho são sempre intensos como se você lutasse com você mesma. E, de certa forma,
é isso mesmo.
- Então eu vou continuar tendo esses incômodos?
- É possível. Não dá para saber como sua mente vai reagir. Mas me procure sempre.
Desabafar é um ótimo remédio.
Maia então percebeu que ela realmente se sentia muito mais leve, leve como não se
sentia a anos... Ela nem lembrava da última vez que se sentira tão ela mesma. – Sim.
Prometo que te procuro. Obrigada, Cassiopeia.
- Cassi. Apenas Cassi. – Cassiopeia-Apenas-Cassi respondeu com um sorriso. Quando
Maia saiu para pegar sua mochila e seguir viagem, Cassi se levantou, pegou seus poucos
pertences e entregou a água e uma sacola de couro com frutas para a Sentinela. A Sentinela
foi até um riacho próximo, lavou a nuca e o rosto, cavou um buraco de dois palmos no
chão, colocou a água dentro, enterrou e encheu a garrafa de novo no riacho com água
fresca. O trio seguiu viagem em um ritmo mais rápido para conseguir alcançar o próximo
templo e evitar dormir na floresta de novo.

~o ⭐ o~
Existem dois tipos de fontes de vida. A fonte de fogo e a fonte ácida. A primeira é
estável, dura muito, não destrói o hospedeiro. A segunda pode não destruir, mas pode
destruir; é instável, não é confiável e exige muito da alma do hospedeiro que jamais está
satisfeito. Eu amo minhas criações, nunca arriscaria suas almas. E não arrisquei.
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Capítulo 03
Meu assistente tinha uma visão levemente diferente do que seria uma raça sapiente
ideal. Como quem manda aqui sou eu, a palavra final era minha. Nós conversamos e
expliquei as razões para minha decisão e concordamos.
Ou foi o que pensei. Não. Foi o que escolhi pensar. E esse foi meu erro: eu escolhi
acreditar.

~o ⭐ o~
Cassi abriu a garrafa de couro onde guardavam a água e entregou para Maia. – Não
beba muito, Sarin já está trazendo a comida.
- Umhum. – Maia engoliu a água e devolveu a garrafa para Cassi, seu estômago
rocando alto ao ver as tigelas fumegantes e o aroma de soma de carne e pão de peixe-arroz
na bandeja.
- Obrigada, Sarin. – Cassi disse, enquanto Maia ajudava a Sentinela a colocar tudo na
mesa.
- Sarin, o cheiro disso está formidável. Mas...você errou a quantidade. – Maia
observou. – Só tem duas tigelas e dois pães.
- Eu não vou comer. – Cassi disse. – Apenas chá esta noite. Aquele bife seco na estrada
não caiu muito bem.
- É melhor você se deitar e descansar então. – Maia disse. – Vou deixar um pão para
você.
- Prefiro ficar. O templo está deserto demais com o retiro das sacerdotisas. Não vou
deixar vocês sozinhas nesse silêncio. – Cassi sorriu.
Pelo menos alguém sabe te respeitar como uma princesa. Não é como sua mãe que
nunca ligou para você.
Maia parou a colher a meio caminho da boca, tentando desviar o pensamento intruso.
Seu olhar automaticamente caiu sobre Cassi que continuava sorrindo e falando sobre coisas
bobas, aparentemente não percebendo nada. Ótimo. Pelo menos ela não é telepata. Já
basta minha mãe. Maia e Sarin comeram e as três se dirigiram ao quarto de visitantes. Cassi
dissera que a Sacerdotisa chefe lhes forneceram mais alimentos para viagem e pediu
silêncio por causa do jejum e retiro das sacerdotisas. Maia não vira ninguém naquele
templo, o que dava uma sensação meio de abandono. Toda Likastía conhecia os rigores
daquela parte da crença likastiana, mas Maia nunca tinha visitado ou estudado a fundo
seus costumes, afinal ela não tinha nenhuma gota de magia. Tudo que ela podia fazer era
seguir as regras e respeitar o desejo daquelas que estavam lhes dando abrigo e se
acostumar, afinal ela viveria com esse mesmo clã no templo para se purificar.
No meio da noite, Maia acordou com frio. Muito frio. Seus olhos demoraram para
entender onde ela estava. Parecendo quase uma cópia do templo anterior, ela estava
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próxima do labirinto, de pé no jardim, confusa, descalça, vestindo apenas sua camisola


longa e marrom.

~o ⭐ o~
- Como foi a festa? – Ane perguntou.
- Legal. – Aine bocejou. – Les fez a cadeira do Luc cair quando ele sentou. Luc correu
atrás dele por dois quarteirões com uma perna da cadeira, gritando furioso e Les rindo feito
idiota enquanto fugia.
- Que perigo! – Ane respondou, sutilmente analisando cada centímetro do rosto da
filha pela tela mágica de contato.
- Eles se entendem, amor. – Calíope sorriu, fazendo a mesma coisa que a esposa fazia.
- Sim. Luc desafiou ele numa queda de braço. Sabe como eles são. – Aine riu.
- E quem venceu? – Calíope perguntou.
- Eles discutiram sobre isso também. Les meio que trapaceou. Aí já sabe ne.
- Sim. Lich colocou um fim nessa bagunça. – Ane respondeu.
- Exatamente. – Aine confirmou.
- Esse rapaz sim tem juízo. – Ane disse. – Quando você volta?
- Mãe, eu estou aqui a dois dias só. Calma.
- Eu sei... Mas... Ah, Epaine! Eu não posso sentir saudades da minha filha maluca,
não?!
- Oooown, mamãe linda do meu coração. Também te amo. Mas eu quero ficar mais
um pouco, se não tiver problemas. – Aine sentou mais ereta, com maior atenção. – Preciso
fazer algo no reino?
- Não, amor, fique calma. – Calíope deu uma cutucada no braço de Ane. – Sua mãe só
está sendo protetora como sempre. Vá se divertir um pouco porque, acredite em mim,
quando você for rainha isso vai ser bem raro.
- Se precisar, vó, eu volto.
- Relaxe, querida. – Ane disse.
- Vá comer algo. – Calíope disse e Aine sorriu de um jeito bastante sapeca. – Eu disse
“algo”, não “alguém”.
- Cali! – Ane não conseguiu evitar um sorriso.
- O que? Sua filha é pior que Scylla, amor. Aposto que já arrumou mais paqueras do
que os tri.
- Os tri não são meus paqueras, vó. São meus amigos.
- Sei bem que tipo de amigos são esses. – Ane disse.
- Amigos com carinhos amigáveis ue. – Aine sorriu e se despediu do casal real. - Você
pensou bem nisso?
- Sim. – Gaia respondeu do outro lado do quarto. – Só preciso de coragem pra falar
com a mamãe. Ela vai ficar meio triste, mas...
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- Ela supera. Além do mais, tia Scylla pode vir aqui quando bem entender e voltar em
minutos ne. – Aine abraçou e deu um beijo na testa da amiga.

~o ⭐ o~
Scylla se sentou na frente de Alart e apoiou a bengala do lado de sua perna. – Foi
realmente um acidente.
- Fico mais tranquilo. Depois daqueles dois escondidos por tantos anos entre nós,
armando sem que ninguém percebesse, e o desaparecimento de Ciara, confesso que esses
desabamentos me deixaram desconfiado. – Alart se acalmou.
- Eu entendo. Nós dois procuramos por anos algum sinal dela, mas não houve nenhum.
Acho difícil alguém que nem andava direito ter sobrevivido aquela queda.
- Eu também acho, mas todo cuidado é pouco.
- Sim.
- Gaia falou com você? – Alart perguntou.
- Sim. – Scylla se sentiu meio triste. – Por mim, não tem problema. Ela é adulta e
sempre foi bastante sensata. Se minha filha acredita que isso é o melhor para ela, eu apoio.
- E você? Como vai ficar lá, sozinha?
- Eu me viro. Não é fácil ficar sozinha depois de tantos anos sempre tendo alguém por
perto, mas não é exatamente uma novidade para mim. Além do mais, eu venho vê-la
sempre e vou focar mais na preparação da minha principal aprendiz. A garota é boa no que
faz e detecta Harpias com uma facilidade invejável.
Alart se arrepiou como todo mundo se arrepiava. – Me sinto aliviado. Quanto mais
sacerdotisas de Kallisti para dar fim nesses demônios, melhor.
- Não há muitas nos últimos 300 anos. Sinal de que as Grã-Sacerdotisas de Kallisti tem
feito muito bem o seu trabalho. A última vez que matei uma dessas foi a uns quatro anos.
- Boa tarde, Scylla. – Sunny entrou com uma travessa de petiscos de frutos do mar,
colocou na mesa de centro e abraçou a outra mulher. – Gaia e Aine saíram a algumas horas.
Que tal esperar com uma comidinha gostosa e muita fofoca?
- Haha! Totalmente de acordo. – Scylla riu e se sentiu menos triste com a solidão.
O trio conversou por algum tempo, rindo de momentos do passado, até ouvir duas
vozes grossas soando nas proximidades.
- Não, mas se você fizer magia de cura não vai adiantar na natação. Eu sou o melhor
nadador e você não tem como superar... – Lucius disse, orgulhoso e tempestuoso como
sempre.
- Mas você não pode curar uma cãimbra se acontecer enquanto nada porque você não
é mago de cura como eu. É só um pouco telepata. – Lesath se gabou, como era habitual.
E como era habitual também, Lich vinha no meio dos irmãos, calado, altivo, imponente
e atento a tudo.
- Mas isso não tem nada a ver, porque eu posso evitar cãimbra com exercícios. – Luc
disse.
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- Mas ainda sim você pode ter cãimbra. – Les respondeu.


- Posso não. – Luc disse, do lado direito de Lich.
- Pode sim. – Les respondeu do lado esquerdo de Lich.
- Posso não.
- Pode sim.
- POSSO NÃO!
- Pode sim!
- POSSO NÃO!
- Pode sim!
Os dois começaram a discutir, prontos para trocar socos, apenas ainda controlados
porque Lich estava no meio. Sunny, Alart e Scylla se entreolharam quase rindo, já
esperando o desfecho habitual.
- POSSO NÃO, IDIOTA!
- PODE SIM, LERDO!
- QUEM É LERDO AQUI?
- QUEM É IDIOTA AQUI?
- Chega. – Lich disse em tom baixo e firme com sua voz rouca. Imediatamente os
irmãos se calaram. Luc olhou para Les irritado, enquanto o irmão respondeu mostrando a
língua.
O coração de Scylla apertou ao ver o gesto birrento tão comum de Sven.
- Tia Scylla. – Lich cumprimentou, se aproximou e abaixou a cabeça para a sacerdotisa
o abençoar. Os dois irmãos seguiram o gesto. – Quer falar com Gaia?
- Ela já chegou? – Scylla perguntou, terminando o gesto de bênção na cabeça de Les.
- Acabou de chegar com a Aine. Acho que estão no quarto se trocando. – Luc disse.
- Não vai levar a Aine de volta ainda, não é? – Les perguntou, correu para a poltrona e
sentou no colo da mãe, com as pernas de lado.
- AI, MENINO! – Sunny gritou. – Você tem que parar com isso! Um monstro musculoso
desse tamanho!
- ÔÔÔ, mamãe! – Les deu muitos beijos em seu rosto e se balançou. – O principezinho
tá calenti!
- Hahaha....Pára, menino....hahahaha. Alart! Socorro!
- Les, falta beijar aquela parte do pescoço ali da sua mãe, ó. – Alart disse com toda
calma do mundo.
- Ih, é mesmo. – Les respondeu. – Luc!
Lucius correu e sentou no braço da poltrona, pronto para beijar a mãe quase caindo
em cima dela. – ATAQUE À MAMÃE!
Os dois atacaram a mãe com beijos e cócegas, fazendo Sunny rir muito enquanto
tentava se livrar dos dois filhos que pareciam armários. Alart sorriu com a paz que ver sua
família lhe dava. De repente, sem que ela percebesse, Scylla sentiu mãos firmes em seus
ombros massageando com carinho e firmeza, silenciosamente transmitindo todo amor que
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ela sabia que seus amigos e os filhos deles sentiam por ela. Ela deu um tapinha grato na
mão de Lich e ele abraçou seus ombros por trás, meio torto por causa do encosto da
poltrona dela.
- Vou chamar sua filha. – Lich sussurrou, deu um beijo em sua bochecha,
cumprimentou seu pai daquele jeito silencioso e respeitoso dele, se aproximou da mãe que
era impiedosamente atacada pelos irmãos. Ele sentou no braço do outro lado da poltrona,
beijou sua mãe uma única vez na testa, levantou e saiu.
Ele caminho a passos firmes e calmos até o quarto onde as meninas estavam e parou
na porta, ouvindo os risinhos bem familiares. Depois de respirar fundo duas vezes, ele
bateu na porta e esperou.
- Entre! – Aine gritou com a voz ainda soando bem humorada, com um riso contido.
Ele abriu a porta e entrou. Gaia estava enxugando as lágrimas de riso, ainda jogada no
chão e descabelada. Aine não estava muito diferente. Ambas pareciam mais bonitas,
mesmo bagunçadas, apenas pelo bom humor.
- Gaia, sua mãe a aguarda no salão de chá. – Lich disse.
A Tiger mais nova deu um pulo, arrumou com os dedos os cabelos na altura dos
ombros e, sem esforço nenhum, saiu linda à procura de sua mãe, se despedindo
rapidamente dos dois.
- Parece até magia! Essa garota consegue ser linda em qualquer situação. Só perde pra
irmã dela. – Aine comentou com um risinho.
- Uhm. – Lich respondeu.
Aine o abraçou pela cintura, seu corpo de frente colado na lateral dele. – Você não vai
me contar o que está te incomodando?
- Nada.
- Você está muito quieto, calado.
- Aine, eu sou quieto e calado.
- Você entendeu o que eu quis dizer. Lich, você sabe que pode contar comigo. Pode
desabafar...
- Do mesmo jeito que você? – Lich olhou nos olhos dela e Aine sentiu um nó na
garganta. – Você também pode desabafar com a gente, mas prefere fingir que nada está te
incomodando como se fosse desaparecer magicamente.
- Parece que nisso somos iguais então. – Aine se afastou, incapaz de olhar nos olhos
dele. Um Tiger nunca chora. Um Tiger nunca chora. Um Tiger nunca chora. Ela repetiu se
obrigando a não ceder às lágrimas.
- Aine... – Lich quase podia sentir a dor da amiga.
- Eu... – Aine não se virou para olhar para ele. Ela nunca conseguia mentir olhando em
seus olhos e desconfiava que ninguém conseguia.
- Aine. – Lich fechou a porta e a abraçou por trás. – Me conta. Fala comigo.
- Eu sei...sei que você é um mago dos mortos e não...não pode....quebrar a
natureza...mas....queria tanto falar de novo com o vovô....ou...ou...
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- Ou....?
- ....Meu pai.... – Aine soltou o que nunca tivera coragem de admitir. Sempre se sentia
mal por sentir tanta falta do pai que nunca conhecera, afinal sua mãe e sua avó sempre
foram muito presentes e ela não queria ser ingrata. Mas a verdade é que ela sempre sentira
uma falta dolorosa dele, sempre pensava em como seria se ela tivesse vivido com ele pelo
menos alguns anos, se tivesse qualquer memória com ele. A morte de Hieron e a de Sven
pouco depois só fizeram essa dor aumentar como um furacão em seu peito. Assim que as
palavras saíram de sua boca, sua garganta pareceu se fechar, seu corpo tremia, lágrimas
escorriam de seus olhos e ela as escondia na camisa de Lich, mesmo sabendo que não
adiantaria. Ele sabia que ela estava chorando, que ela não era a força que ele achava que
ela era. Isso só fez com que ela perdesse o pouco controle e chorasse mais ainda. Os dois
acabaram descendo lentamente até sentar no tapete, abraçados. Se Aine tivesse levantado
a cabeça veria a dor nos olhos molhados dele.
Lich a segurou, deixando a moça desabafar. Quando ela se acalmou, ele secou os olhos
com a manga da camisa e percebeu que ela dormia. Gentilmente, ele a pegou no colo,
colocou na cama e a cobriu. Para deixar Aine dormir sossegada, Lich fechou as cortinas,
colocou um aviso do lado de fora da porta para que ela não fosse incomodada, fechou a
porta devagar e deu alguns passos planejando ir até a cozinha.
Seu corpo tremia, sua mente rodopiava, louco para seguir seu antigo e perturbado
impulso. Mas ele se controlou como seu pai ensinara. Pelo menos por meio minuto. Lich se
transformou em uma névoa densa negra que flutuou até uma sombra, observando
silenciosamente ali, parada no escuro como fazia a tanto tempo.
É quase como uma voz ecoando na minha mente... Alart se lembrou com um mal-estar
quando, naquela noite, deitado ao lado de Sunny, percebeu que não via seu filho a horas.

~o ⭐ o~
- Bom dia, Maia. – Sarin cumprimentou alegremente, já terminando de comer.
- Bom dia. – Maia disse com uma expressão nada boa, pegando a garrafa de água na
mesa e tomando ela quase toda. – Quando saímos?
- Logo. Cassi está se despedindo da sacerdotisa-chefe e agradecendo a acolhida. Coma
um pouco e vamos. – Sarin sorriu.
De repente, Maia sentiu uma enorme vontade de socar Sarin e arrancar aquele sorriso
da cara dela.
Ela tão felizinha e você aí, cansada, estressada... Ela está zombando de você! Ela não
liga para você! Nem percebeu que você saiu! Ninguém liga!
Maia balançou a cabeça, afastando o pensamento.
- Bom dia, Maia. – Cassi entrou e fez um sinal para Sarin se afastar um pouco, dando
privacidade para as duas. – Tome.
- O que é isso? – Maia pegou o anel de madeira negra.
L i k a s t í a 0 4 | 24

- Um amuleto. Vai te ajudar a enfrentar seus sentimentos ruins no caminho. – Cassi


sorriu e Maia teria chorado de emoção se não fosse uma Tiger.
- Obrigada, Cassi. Eu preciso muito de ajuda...
- E você tem. Basta me chamar e vou te ajudar em tudo. Confie em mim e nunca te
deixarei sozinha.
- Eu confio. – E era verdade. Maia confiava em Cassi como nunca confiara em ninguém
antes, afinal, a sacerdotisa foi a única pessoa que nunca a julgou, nunca lhe deu um sermão
sobre ela ser errada, ser uma alma impura. – Minha mãe sempre me julgou... Sempre disse
com aquele olhar dela que eu seria uma ha...
- Shhh. – Cassi colocou um dedo nos lábios de Maia a silenciando. – Não diga isso.
Você nunca deve dizer isso. É melhor irmos. Você verá como as coisas vão melhorar a partir
daqui.
Sarin, ao longe, observou a cena e fez uma nota mental para pegar a garrafa das mãos
de Maia o mais rápido possível para encher de novo.

~o ⭐ o~
O sol ainda não havia se erguido no horizonte, seus raios brilhando fraco dando um
tom rosado ao céu. Uma névoa negra se materializou ao lado da cama de Lich revelando o
próprio Lich com uma expressão cansada, preocupada e ao mesmo tempo satisfeita.
- Onde você esteve? – A voz de Alart fez Lich dar um pulo de susto com uma adaga
sacada rapidamente.
- Pai. Que susto. – Ele guardou a arma, sua mente correndo em mil possibilidades.
Alart que estava encostado na porta trancada por dentro, o corpo ainda dando sinais
de que se materializara a pouco tempo, deu alguns passos até ficar a um palmo de distância
do filho. – Onde. Você. Esteve?
Lich olhou para o lado, incapaz de encarar o pai. Aquilo foi mais eloquente do que um
dicionário.
- Por Kallisti, Lich! – Alart andou de um lado para o outro.
- Eu....tentei... – Lich sentou na cama, envergonhado.
- Você “tentou”? Pensei que tivéssemos conversado sobre isso. Achei que...
- O que? Que eu podia apenas desligar essa...coisa? Pai, não é tão fácil! Eu...eu não
consigo evitar!
- Lich! Isso é errado em tantos níveis que nem consigo contar! É....um crime!
- Eu sei...
- Ah, você sabe! Claro que sabe. Se tem alguém que entende bem de justiça é você. O
que mais me preocupa é que nem assim você consegue parar!
- Pai, me desculpe...
- Lich, não é comigo que você tem que se desculpar. – Alart parou, tentou se controlar
e disse mais calmo: - Vá dormir. Eu também preciso dormir porque passei a noite toda
usando minha magia pra te procurar. E não me olhe assim. Eu não fui lá. Primeiro porque
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imaginei que você poderia estar fazendo....isso... e, honestamente, eu não queria ver.
Segundo porque é errado. Quando eu acordar e me acalmar, a gente conversa. – Alart se
virou e abriu a porta.
- Pai... – Lich chamou e seu pai parou de costas para ele. – Sinto muito.
- Eu também sinto muito, Lich. – Ele respondeu com um tom de decepção bastante
nítido em sua voz e saiu se perguntando onde ele tinha errado na educação de seu filho
caçula.

~o ⭐ o~
Eu sei onde eu errei no meu projeto. Ele foi infectado com pequenos fragmentos quase
imperceptíveis de fonte de vida Ácida. Eu descobri, mas já era tarde e não podia mais
desfazer, extinguir aquela raça e criar outra. Eu já amava meus felinos. Mas o pior foi
descobrir onde tinha ido parar toda a fonte Ácida que restava no universo...
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Capítulo 04
Meu assistente desapareceu por pouco tempo quando descobri sobre a infecção nos
meus felinos. Eu o cacei, confesso, a raiva e meu instinto de vingança me dominava, afinal,
ele havia infectado meus amados felinos, usado eles como cobaias. Isso eu nunca perdoaria.
Não demorei a encontra-lo, mas o encontrei dominado por sua arrogância... E
completamente preenchido por toda a enorme fonte Ácida do universo...

~o ⭐ o~
Lich jogou a pequena mochila de couro no ombro e caminhou silenciosamente como
sempre para pátio onde Scylla o esperava para dar uma carona no portal aberto por ela.
Porque eu tenho que abrir mão do que me dá prazer? Ele pensou.
- Pronto? – Scylla perguntou e seu semblante logo mudou. – Aconteceu alguma coisa?
Você parece tenso.
- Nada que não possa ser facilmente resolvido. – Lich disse misteriosamente. – Vamos?
- Sim. Vamos. – Scylla abriu um portal e deixou Lich passar primeiro. Ambos
aterrissaram no jardim reformado da mansão dele no litoral onde anos antes Sunny tinha
crescido.
O lugar estava quase irreconhecível agora. Desde que sua mãe lhe dera a propriedade
e o título de Duque que lhe trazia também a responsabilidade de governar a região, ele fez
inúmeras reformas. Começando por caçar, julgar e punir impiedosamente qualquer pessoa
envolvida em crimes, punindo com mais rigor ainda quando se tratava de nobres corruptos
ou aliados a crimes hediondos. Por isso, Lich era chamado pelo povo da região de “Duque-
Juiz”. Mas, futuramente, ele planejava criar sua família naquela mansão e queria ser
sempre visitado por sua mãe, por isso ele vinha fazendo reformas por toda a propriedade,
chegando a vender muitos objetos pessoais e magias necromantes, sua especialidade, para
pagar os gastos. A região onde agora era o jardim, antes era a sala principal onde sua avó
tinha sido morta por seu avô. A sala e a entrada principal agora ficavam do lado oposto da
propriedade, voltada para uma estrada menor, ramificada da principal. As cozinhas
enormes foram divididas em duas partes: uma para servir a mansão e outra maior para
servir o orfanato. Essa era outra mudança. Lich transformou o enorme jardim-bosque onde
Ismir soltava suas vítimas para serem caçadas por esporte pelos seus aliados e mortos, e
mandou construir um orfanato em forma de castelo, com quatro torres, dois prédios de
três andares cada, um jardim médio na frente, um playground nos fundos, área de
lavanderia e um templo de Kallisti construído por Calíope, a maior apoiadora desse projeto.
Ao redor do orfanato havia um muro de tijolos com plantas e flores o cercando por dentro
e por fora, cuidadas por todas as crianças.
Quando o orfanato completou um ano de existência, Aine organizou uma festa no
local e foi a única vez que Sunny voltou ali depois de passar a propriedade para seu filho,
embora ela nem tivesse entrado na casa, indo direto para o orfanato. Naquele ano, Maia
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desenhou roupas que serviriam como farda para as crianças e Gaia as costurou. Ane era
responsável por criar e fiscalizar o plano de estudos das diferentes faixas etárias. Sven, Alart
e Hieron tinham se ocupado em investigar e encontrar todas as vítimas de Ismir que
pudessem ter sobrevivido e seus possíveis descendentes para empregar no orfanato ou,
caso fossem crianças, os beneficiar com o local. Assim, quando foi aberto, o orfanato já
tinha 24 crianças e um quadro de funcionários completo. Scylla e Lesath tinham elaborado
táticas de treino e luta para as crianças se manterem em forma, enquanto Lucius criou o
logotipo da instituição: um sol dourado com os raios acima formando um coração e as
letras OS no meio, as iniciais de Orfanato Sun, em homenagem a mãe dos trigêmeos.
- As crianças parecem mais eufóricas hoje. – Scylla comentou, ouvindo os gritinhos das
crianças mesmo a essa distância.
- É uma festa de aniversário. – Lich comentou. – A reitora comentou sobre isso a duas
semanas.
- Você vai lá? – Scylla perguntou.
- Mais tarde. Aine mandou um presente para a aniversariante. – Ele apontou para a
mochila.
- Calíope já chegou. – Scylla olhou para a Sentinela parada na entrada em prontidão. –
Vou deixar você conversar com ela em paz.
Scylla fez um sinal de bênção e Lich abaixou a cabeça. Quando ela se foi, ele caminhou
até sua mansão com o mordomo vindo ao seu encontro e passando uma lista de novidades,
necessidades e atualizações sobre tudo. Lich ouviu atentamente, dando instruções de
tempos em tempos e dispensando o Tiger para seus serviços assim que entrou na casa.
- Lich, meu rapaz. – Calíope levantou com dificuldade e Lich não pôde deixar de ver o
que via a algum tempo.
- Majestade. – Lich a ajudou a se sentar de novo. – Não deveria ficar se esforçando
assim.
- Não seja bobo, garoto. – Calíope puxou a mão dele, fazendo-o se sentar na mesa de
centro de madeira na frente dela. – Você não parece bem.
- A senhora devia descansar.
- E você não devia mudar de assunto. Pensei que me considerasse sua amiga.
- E considero. – Lich disse rápido, olhando pra ela e lutando para não desviar o olhar
com o que via.
- Lich... Não conta para seus irmãos, mas você sempre foi meu favorito. – Ela disse
como se revelasse um segredo, embora todo mundo soubesse da ligação entre eles. – Às
vezes não acredito que esse leonino enorme é o mesmo garotinho morto que peguei no
colo depois de ajudar sua mãe em mais dois partos antes, franzino que só voltou a viver 3
minutos depois quando usei minha magia para te trazer de volta...
- E jamais agradecerei o suficiente.
- Mas você agradeceu. Você se tornou um felino bom, justo, um exemplo para todos,
bonitão, mas, acima de tudo, meu amigo.
L i k a s t í a 0 4 | 28

Lich se emocionou e se incomodou ao mesmo tempo porque ele sabia o que essas
palavras significavam. – Eu...
- Eu sei. – Calíope sorriu e acariciou o rosto do rapaz. – Eu sempre soube, meu menino.
Lich olhou para ela com tanta dor que Calíope quase podia sentir a perturbação dele.
- Lich, você é bom.
- Não sou... A senhora sabe que não sou... – Lich admitiu, seu peito doendo.
- Sim, você é. Você tem um defeito preocupante, sim. Mas também tem milhares de
virtudes. Não deixe essa coisa sombria te corroer por dentro, destruir o que você tem de
bom. E, acima de tudo, não se isole, filho. A solidão é o combustível para o mal.
Lich abriu a boca, mas Calíope logo mudou de assunto.
- Quero ver esse projeto novo. – Ela sorriu.
Lich entendeu e respeitou. Afinal, ele era muito bom nisso. Justamente por isso, ele
tomou uma decisão e contactou Scylla para ajuda-lo.

~o ⭐ o~
- Você acha que é uma boa ideia? – Aine quase gritou no comunicador, cuja imagem
estava estranhamente fora de foco e distorcida.
- Sim. É mais rápido. – Maia respondeu, sua voz soando distante.
Naquela área e com a tempestade magnética no local, era muito difícil conseguir
mandar qualquer tipo de mensagem pelo comunicador, mesmo assim ela tentou algumas
vezes até conseguir falar com alguém. Para seu desgosto, apenas o de Aine que estava em
um templo completou o contato.
- Só queria falar com alguém para avisar que vamos precisar mudar o caminho ou
ficaremos ilhadas nessa tempestade. – Maia informou só porque Sarin a convencera de
falar com alguém pra avisar.
- Não acho uma boa idéia... – Aine respondeu, torcendo para Scylla chegar logo.
- É só um atalho, Aine! – Maia foi bastante agressiva, o que fez Aine estranhar porque
ela podia ser meio maldosa às vezes, mas nunca fora agressiva assim.
- Eu sei, Maia, mas se atalho fosse bom ele seria o caminho principal. – Aine disse e
sentiu aquele arrepio típico de magia por perto antes de vez o portal se abrindo a alguns
metros.
- FALOU A PERFEITINHA! – Maia explodiu. – Avise aí e procure algo útil pra fazer!
- Maia! – Aine tentou manter o contato, mas sua amiga desligou o comunicador.
- O que houve? – Scylla perguntou, terminando de passar pelo portal.
- Maia. Ela e as acompanhantes vão precisar pegar um atalho por causa da tempestade
magnética. – Aine respondeu, tentando contactar a amiga de novo, mas sem sucesso.
- Entendo.
- Ela não devia fazer isso. – Aine disse.
L i k a s t í a 0 4 | 29

- Não mesmo. – Scylla disse calmamente. – Mas uma tempestade magnética é uma
emergência naquela região e, se Sarin e Cassi decidiram isso, é porque não havia opção
melhor.
Aine tentou se acalmar, embora não gostasse da ideia. Scylla abriu o portal de novo,
levando a princesa Tiger, rezando para que aquele incômodo com a notícia fosse apenas
seu lado maternal protetor preocupado com a filha longe de suas mãos.

~o ⭐ o~
Gaia esticou os braços sobre a cabeça, alongando e sentindo seu pescoço estalar.
Lucius olhou para ela boquiaberto.
- Uau! – Lucius disse. – Você precisa descansar um pouco?
- Não. Tudo bem. – Gaia respondeu e voltou seu olhar para os papeis com projetos de
construção e design interior.
Lucius admirou o foco da jovem Tiger que ele nunca fora próximo, apenas conhecia
por ser amiga de sua melhor amiga e por ser filha de Scylla. Ele se levantou, sentindo a
própria tensão, passou por ela que nem o notou tamanho era seu foco, chamou um guarda
na porta, deu instruções e aguardou. Logo o guarda voltou com uma bandeja com chá
calmante quente, duas canecas de barro cozido e pintato, dois pratos pequenos com fatias
generosas de bolo muito doce do jeito que ele adorava e alguns biscoitos salgados. Lucius
levou a bandeja até a mesa, puxando os papeis bruscamente e os jogando em outra mesa
de qualquer jeito.
- Ei! – Gaia disse chocada e meio brava.
Ele simplesmente colocou a bandeja na mesa e se sentou do outro lado. – Coma.
- Não quero. – Ela queria, mas não ia dar esse gostinho a ele.
- Eu sou seu superior aqui, afinal sou o Rei Interino, e você me deve obediência. – Luc
adorava mandar, não era novidade. – Então coma. Não quero que você desmaie. Tia Scylla
é assustadora demais quando quer, não vou enfrentar ela e dizer que a filha dela morreu de
fome na minha frente.
- Exagerado! Mandão! – Gaia nunca fora amiga dos tri e nem queria. Luc era mandão e
brigava por qualquer coisa. Lich lhe dava arrepios com aquele jeito sinistro dele. Les era um
idiota namorador que só ficou pior depois que a noiva dele o traiu e Aine descobriu. Ou
seja, todos eles era tudo que ela não era e não gostava nas pessoas. A única namoradora
em série que ela se dava bem era Aine, mas também todo mundo amava Aine.
- Sim. E sim. Agora coma. – Luc disse com firmeza e Gaia comeu porque ela detestava
brigar. – Boa menina. – Ele não perdia a chance de se sentir no comando.
BABABCA! Gaia pensou. Luc abriu um sorriso ao captar o pensamento dela e perceber
que ela não notara que pensou aquilo quase gritando e esquecendo que ele era um
telepata.

~o ⭐ o~
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- É melhor avisar. – Sarin disse. – Se temos que seguir outro caminho, é sempre bom
avisar a alguém.
- Mas nós temos liberdade para mudar o roteiro se necessário! – Maia gritou.
- Sim, temos. Mas é uma questão de segurança. – Sarin respondeu, tentando acalmar a
jovem.
Maia olhou para Cassi, mas, vendo que não teria apoio naquela discussão, deu um
rosnado irritado, pegou o comunicador e tentou contactar sua irmã. Nada. Os trovões
ecoaram ao longe enquanto ela tentou inúmeras vezes falar com qualquer um. Nada.
Aquela área onde ficavam os templos dos Aneis e das Luas era conhecida por ter pouco
acesso a comunicadores, apenas os portais nos templos funcionando bem. A história dizia
que, a muitos séculos, os magos criaram um tipo de bloqueio a contatos externos para
evitar distrações das sacerdotisas rigorosas dali e de viajantes em busca de purificação que
pudessem usar a tecnologia Tiger como forma de saciar seus vícios que tentavam curar ali.
No caminho ainda era possível usar os comunicadores às vezes, mas a tempestade
magnética estava tornando isso quase impossível. Sem mais opções, Maia tentou a pessoa
que ela menos queria falar. Para seu desgosto, Aine atendeu, fazendo seu ódio gratuito
praticamente ferver em suas veias, a corroer por uma vontade louca de arrebentar a amiga
na porrada, usar suas garras para desfigurar o rostinho perfeito dela...
Quando Maia desligou furiosa, a seus piores sentimentos ainda mais poderosos do que
estavam nos últimos dias, ela jogou o comunicador longe e andou na frente, literalmente
espumando de raiva, seguida pelas duas felinas silenciosas mais atrás.

~o ⭐ o~
Aine chegou em casa e deu um beijo no rosto da mãe e da avó. Ela olhou as duas
felinas, tentando entender a urgência de Lich, mas não vendo nada demais.
- Pensei que você só voltaria daqui a três semanas. – Calíope comentou.
- Eu só queria dar um beijo nas duas delícias da minha vida. – Aine sentou no chão e
colocou a cabeça no colo da avó, ronronando de prazer ao receber um cafuné.
As três conversaram sobre tudo a tarde toda, Calíope aproveitando para fazer
observações sobre a cerimônia de coroação da neta.
- Ai, vovó! – Aine reclamou. – Eu já cuido de muita coisa do governo, pra que falar em
coroação agora? A senhora vai governar por muito tempo ainda.
- Pelo menos 4 anos. – Ane lembrou. – Você prometeu.
- Sim, amor, eu sei. – Calíope respondeu. – Mas gosto de imaginar como vai ser a
coroação da minha menininha linda da vovó.
Aine aceitou mais cafuné, manhosa como sempre. – Tá bom, vozinha. Até lá, vou
ajudar no governo como sempre, para a senhora ter tempo de dar uns amasso na mãe.
- Epaine! – Ane ficou envergonhada.
- O que? – Aine riu com a cara mais inocente do mundo.
L i k a s t í a 0 4 | 31

- Hahahahaha! – Calíope adorava ver Aine deixar Ane envergonhada assim. Era fofo.
Aquela foi uma tarde deliciosa que fez Calíope se sentir grata pela família que tinha.

~o ⭐ o~
Gaia recostou na poltrona enquanto Lucius avaliava as mudanças que ela sugeriu nos
projetos. Esgotada, ela cochilou e ele notou, mas deixou a garota em paz, afinal ela vinha
trabalhando muito e merecia um cochilo. De repente ela deu um pulo do sofá, seus pelos
eriçados e ofegante.
- O que? – Lucius perguntou confuso e surpreso.
- Você ouviu algo? – Gaia perguntou, confusa e tentando entender o que a assustara.
- Não. Só você roncando como um monstro. – Ele não perdeu a chance de irritar ela,
mas ficou preocupado quando não deu certo. – O que foi? Está se sentindo mal?
- Não... Eu... Eu não lembro, mas sinto que devia.
- Você só teve um pesadelo ou algo parecido. Precisa descansar, está trabalhando
demais.
- Eu não tenho pesadelos... Mas tem razão. Preciso descansar. – Sem esperar por uma
resposta, Gaia saiu decidida a tomar um banho relaxante, comer algo e dormir.
Lucius largou os papeis sobre a mesa e foi procurar sua mãe.
Naquele mesmo momento, longe dali, Scylla ouviu um sussurro muito distante a
chamando e quase se cortou com a faca que usava para preparar alguns bifes e mandar
para Maia no templo principal dos Aneis e das Luas em que ela ficaria.

~o ⭐ o~
Maia e Cassi seguiam atrás de Sarin que verificava o terreno cautelosamente antes de
pisar, dando um caminho seguro para as outras. A chuva caia torrencialmente agora, o
vento frio era impiedoso e os raios atingiam o topo das árvores ao redor da estrada antiga.
Mas nada daquilo servia para acalmar o ódio que corroía Maia a horas, aumentando sem
trégua. Sem perceber, ela foi ficando para trás até que não podia mais ver as duas
mulheres. Isso a deixou tão raivosa e irracional que Maia parecia ter sido totalmente
dominada pelos sentimentos ruins, rosnando e babando como um animal selvagem e louco.
- UAAAARRRRR!
Naquele momento Maia tinha tanta inveja de tudo que chegou a invejar um caracol no
chão por ter uma casca que o protegia parcialmente da chuva. Sem piedade ela pisou no
pobre animal várias vezes até sobrar apenas uma massa destruída do corpo do anima com
lama e pedras.
As sombras das árvores se moveram sozinhas indo em direção a ela no meio, formas
negras se ergueram delas, assumindo a forma de felinos alados, com corpos feridos por
queimaduras ácidas, caudas afiadas como navalhas, dentes enormes e sujos com sangue
seco e corroídos pela acidez.
L i k a s t í a 0 4 | 32

Harpias! O fragmento de racionalidade de Maia reconheceu aqueles espíritos


malignos, seres que antes tinham sido pessoas, mas que, corroídos pela inveja
principalmente, o sentimento amaldiçoado por Kallisti, tinham sido dominados pelo líder
delas e, depois de devoradas por ele, eram vomitadas naquela forma para atormentar o
mundo e atrair mais vítimas que pudessem se tornar também alimento para ele. Porém, o
fragmento de racionalidade enfraqueceu ainda mais e Maia, dominada pelo sentimento
maldito, invejou até mesmo as Harpias que a atacavam. Assim, ela deu uma mordida em u
desses espíritos, sentindo a acidez venenosa combinando com o sentimento que parecia
corroer seu interior, os pelos sobre seus lábios queimando com o veneno.
As sombras já haviam cercado seu corpo em uma massa densa, dolorosa e pesada,
embora nada disso fizesse ela tentar se soltar. Na verdade ela estava tentando pegar tudo
aquilo para ela como se ela tivesse direito a ter tudo que outros tinham e ela não, mesmo
algo perturbador. Aquele fragmento de racionalidade voltou e ela tentou em vão se libertar
das Harpias que a arranhavam, mordiam, cuspiam ácido queimando todas as suas roupas e
unhas.
Porque está resistindo? Eu só estou te dando tudo o que você tem direito. Aquela voz
meio zombeteira e familiar ecoou em sua mente de novo.
Mãe... Maia pensou.
Ela te jogou fora. Abandonou você para morrer aqui. A voz disse. Eu não. Eu estou te
dando o poder que você quer e merece. Aceite. Ou quer que eu dê a outra pessoa?
- MEU! É TUDO MEU! – Maia gritou, tomada pela inveja enquanto sua mente gritava
seu último pensamento coerente: GAIAA!

~o ⭐ o~
Três semanas depois, Lich se levantou sabendo o que acontecera naquela noite antes
que qualquer mensagem do Reino Tiger chegasse. Ele pulou da cama, se vestiu o mais
rápido que pôde, se transformou um uma névoa negra e entrou no quarto de cada um de
seus irmãos.
- Puta merda! – Lucius se assustou, ainda abrindo os olhos e já encontrando a névoa
negra disforme que era seu irmão.
- RÁPIDO! Me encontre na porta do quarto dela. - Lich disse e sumiu nas sombras indo
para o próximo quarto e repetindo a mensagem para Lesath que acabava de terminar seu
banho.
Quando seus irmãos chegaram na porta do quarto, encontraram Lich parado de pé,
braços cruzados sobre o peito, encostado na parede do corredor em frente a porta com
uma expressão preocupada.
- Você tem que parar de fazer isso, mano. – Lesath disse. – Um dia a gente vai infartar
de susto.
L i k a s t í a 0 4 | 33

- Qual a emergência? Duvido que chegar de manhã assim do nada convença Aine a
repetir nossa festinha em grupo. – Luc disse, de péssimo humor.
Lich mantinha o olhar focado na porta do quarto, aguardando. De repente o som de
objetos quebrando e crepitar violento ecoou. – Calma, Aine! – A voz de Gaia soou e Lich
abriu a porta sem dificuldade já que não estava trancada.
- Chame minha mãe. – Lich disse apenas para Gaia sair, já que ela não deixaria a amiga
sozinha naquele momento apenas se fosse algo realmente necessário. Gaia correu em
busca de Sunny que já estava de pé terminando uma poção calmante depois de ter sido
avisada pelo filho que quase a pegou transando com o marido.
Aine estava lançando rajadas e mais rajadas violentas de fogo em tudo. Vidros de
perfume explodiram, espelhos tinham sido destruídos, as cortinas estavam chamuscadas e
molhadas porque Gaia obviamente tinha conseguido apagar o fogo com as jarras de suco
ou água que havia na mesa de cabeceira... Les e Luc correram para apagar o fogo do tapete,
nas camas e no banheiro que brilhava com o incêndio lá dentro.
- AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAH! AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAH! – Aine berrava
feito louca, com lágrimas nos olhos, dando ainda mais potência a magia de fogo.
- Como diabos ela ficou tão poderosa? – Lesath perguntou e seu olhar cruzou com o de
Luc a poucos passos, o entendimento os atingindo.
- Não... – Luc murmurou, sentindo a dor de sua amiga.
Lich tinha se aproximado cautelosamente de Aine e a imobilizou por trás, suas palmas
das mãos queimando no processo. Mas ele não ligava. Tudo que ele queria era acalmar
Aine. Ele quase podia jurar que sentia a dor dela naquele momento.
- ME LARGA!
- Shh... – Ele a segurou com força enquanto ela se debatia e chorava.
Gradualmente, a raiva foi substituída pela dor e eles escorregaram até o chão, com
Aine escondendo suas lágrimas e gritos de raiva na camisa dele, não vendo as lágrimas dos
trigêmeos pela dor dela. Lich a segurou assim por uma hora enquanto os irmãos apagavam
as chamas com Alart que apareceu rapidamente. Sunny chegou com Gaia pouco atrás e
levou a poção até a jovem.
- Beba, querida. Vai te ajudar. – Sunny disse com tanta gentileza, tanto carinho que
Aine obedeceu meio no automático.
Lich ergueu Aine no colo, nua pois sua fúria chegou a queimar suas próprias roupas.
Gaia pegara um robe emprestado de Sunny e cobriu Aine prevendo isso. Lich saiu do quarto
praticamente destruído pelas chamas, fumegando, a levou para outro quarto e colocou
sobre a cama, segurando sua mão e não saindo do lado dela em nenhum momento. Alguns
minutos depois, Luc e Les entraram com uma bandeja de comida, sentaram do lado de Aine
e ali permaneceram o resto do dia.
L i k a s t í a 0 4 | 34

Naquele dia os dois reinos estavam silenciosos, tristes, o próprio tempo nublado como
se refletisse a tristeza de todos. Em silêncio, vários felinos de todas as espécies chegaram
na frente do palácio Tiger para lamentar.
Naquela manhã, com um grito estridente e assustado, Ane acordara de mãos dadas
com Calíope, como sempre. Mas Calíope não estava mais ali a horas. Durante a madrugada,
em paz, seu coração parara de bater e Rainha Tiger morrera.

~o ⭐ o~
Meu coração morreu em partes também quando encontrei Erínio. Meu assistente,
quem por muito tempo eu considerara meu amigo, não apenas infectou meu projeto, meus
amados felinos, com fragmento de algo tão perigoso, mas também usou toda a fonte Ácida
para se tornar uma divindade, alguém mais poderoso do que eu. Porém, em sua arrogância,
ele não percebeu que nunca daria certo. E não deu. Ele se tornou um demônio, um espírito
maligno, dominador, que precisa se alimentar das almas que dão atenção ao sentimento
ruim e cedem ao seu domínio. Mas, acima de tudo, a fonte Ácida corroeu toda e qualquer
coisa boa que restava nele.
L i k a s t í a 0 4 | 35

Capítulo 05
Eu cacei aquele traidor, invejoso por todo o universo. Ele não era tão poderoso para me
enfrentar, mas sempre foi traiçoeiro. Depois de várias armações que terminaram em
sistemas estelares inteiros sendo destruídos com nossos conflitos, Erínio finalmente
entendeu que seu poder não era ilimitado e não era natural, exigindo seu preço...

~o ⭐ o~
Aine acordou com Luc e Les dormindo sentados em duas poltronas enquanto um par
de olhos amarelo-azulados a encaravam de um canto escuro.
- Um dia você vai matar alguém de susto. – Ela comentou, sentando na cama e
sentindo uma dor de cabeça irritante.
- Como se sente? – Lich perguntou, saindo da escuridão e a ajudando a sentar.
- Como um monte de esterco. – Aine respondeu, sem seu habitual sorriso, os olhos
inchados. Aine não sabia e Lich não pretendia contar, mas ela chorara durante o sono por
horas.
- Aine... Você pode voltar a dormir. Ainda é madrugada..
- SAI DA MINHA FRENTE, LICH! – Aine gritou, assustando os irmãos que dormiam e até
mesmo Lich que nunca a vira gritar com ninguém, muito menos assim, sem motivo.
- Aine, o que houve? – Les perguntou.
Lich olhou para ele em um pedido silencioso para o irmão ficar quieto. – Vamos. Aine
precisa se arrumar.
Ela olhou para ele meio culpada por perder a paciência com seu amigo, mas irritada
demais com tudo para se desculpar. Lich entendendo o momento, apenas guiou os irmãos
para fora. Já na porta ele se virou e disse: - Vou com você. – E saiu sem dar chance para ela
questionar qualquer coisa.
Assim, vinte minutos depois, Lich usou o portal do jardim e passou com Aine para o
palácio Tiger. Na manhã seguinte, seus irmãos contaram o ocorrido para seus pais e Gaia.
Como Sunny era uma grande amiga de Calíope, partiu para o reino vizinho com os gêmeos
primeiro enquanto Alart e Gaia organizavam toda a agenda real, permitindo que o reino
ficasse nas mãos dos conselheiros até o retorno da família real leonina.
Em Tiger, Ane estava calma por causa de poções dadas por Scylla, praticamente mais
dopada do que calma, enquanto Aine parecia um poço de raiva e grosseria com todo
mundo. Lich andava um pouco atrás dela, silencioso e se desculpando com todos em nome
dela. Mas todo mundo entendia que Aine estava no seu limite e explodindo com todos em
uma forma de extravasar a dor de tantas perdas em tão pouco tempo. No entanto, ainda
era perigoso. Afinal, graças ao feitiço de Calíope implantado na tatugem da moça anos
antes, assim que ela morreu, o poder Tiger passou para sua neta, aumentando seu já
L i k a s t í a 0 4 | 36

natural dom com o fogo. E o fogo é caprichoso e dominador. Ou você o controla, ou ele
assume o controle de você. Enquanto Scylla mantinha sua atenção no velório e na
cerimônia de morte de Calíope, Lich mantinha seu foco em Aine, tentando evitar um
descontrole que literalmente incendiaria o reino.
- Não seria melhor dar uma poção de calma pra ela? – Les perguntou ao irmão mais
novo, observando Aine discutindo com um pobre guarda por qualquer coisa sem sentido.
- Scylla tentou. – Lich respondeu.
- E....?
- E ela jogou a poção pela janela com tanta raiva que não sei com ela não entrou em
combustão espontânea. – Lich disse, começando a sentir os efeitos de dois dias sem
dormir.
- Eu vou falar com ela. – Les decidiu.
- Deixe-a.
- Como assim? Maninho, ela precisa se acalmar.
- Não. Ela precisa extravasar. – Lich respondeu e se virou a tempo de ver Luc chegando
com cara de poucos amigos.
- Ficou doido, irmão? – Luc perguntou.
- Vocês não entenderam, não é? Aine reagiu assim justamente porque ela nunca
extravasa, nunca desabafa, nunca deixa ninguém a apoiar de verdade.
- Mas é perigoso, mano. – Luc disse o óbvio.
- Sim, é. Mas uma emoção não some simplesmente. Ela acumula e se transforma,
muitas vezes em coisa pior.
- Mas e se ela sair do controle? – Les perguntou.
- Les, ela já saiu do controle. – Lich disse. – Vamos apenas ficar de olho e nos preparar
para conter caso ela piore.
O sepultamento de Calíope seguiria uma antiga tradição como ela desejara várias
vezes. Seu corpo seria levado em um cortejo pela capital em um cristal de contenção,
depois o cristal seria aberto, colocado em uma balsa no rio próximo e incendiado com o
poder Tiger que não deixaria nenhum vestígio físico dela. O cristal estava aberto na praça
central a alguns metros na frente do palácio. A família real, nobres e amigos próximos
estavam de pé com velas aromáticas nas mãos, exceto Ane que não tinha condições de
segurar nada e de Aine que seguraria apenas o cetro de sua avó como um símbolo do
futuro da família ainda de pé. Sunny colocou um braço ao redor da cintura de Ane a
impedindo de cair com a fraqueza que sentia. Lich permanecia ao lado de Aine o tempo
todo, Les estava a alguns passos atento a qualquer possível descontrole maior da amiga e
Luc, como próximo Rei Leonino, estava ao lado do pai um pouco mais afastado, porém com
atento aos pensamentos praticamente gritados de Aine.
L i k a s t í a 0 4 | 37

Scylla recitava os rituais, bloqueando os pensamentos conturbados de Aine, mantendo


sua atenção ao trabalho. Quando uma frase no ritual desencadeou o caos...
- ...Quando a morte traz a paz... – Scylla dizia.
- PAZ? Que paz? Paz pra quem?! – Aine gritou e os mais atentos já podiam sentir um
cheiro de calor no ar, como se o ar estivesse prestes a pegar fogo. E estava.
- Aine... – Sunny tentou acalmar a moça, mas ela nem mesmo ouvia.
- Minha mãe parece em paz pra você? – Aine esticou o braço apontando sua mãe. Lich
se preparou para a dor. – Eu pareço em paz pra você? Alguém que sequer gostasse do meu
avô um pouquinho sentiu alguma paz nesses meses sem ele?
Scylla evitou fazer qualquer movimento brusco, já vendo as chamas emanando dos
olhos de Aine e de seu corpo como uma onda de calor sobre o asfalto quente.
- Aine, você precisa relaxar. – Gaia disse.
- Você relaxou? Seu pai morreu e ai? Você está em paz? Porque eu não estou! – Aine
sentia apenas uma vontade insana de machucar todo mundo para fazer todos sentirem
aquela avalanche de dor, de perda que parecia explodir em seu peito ao mesmo tempo.
- Aine, filha... – Ane olhou para a menina, mas, ao ver a dor nos olhos da mãe, o efeito
foi o de um palito de fósforo caindo aceso em um oceano de combustível.
- ISSO É A PAZ QUE VOCÊS QUEREM? VOCÊS SÃO...SÃO... NÃO É JUSTO! – Aine não
percebeu, mas a raiva pelas suas perdas, a raiva por nunca ter tido a chance de conviver
com o pai que tanto a incomodava, os sentimentos que ela fingia não ter, a fizeram perder
o controle. Seu corpo assumiu uma forma de fogo tempestuoso e um tornado de fogo
surgiu de sua mão, pouco a frente.
Lich. Scylla disse mentalmente.
Lich se transformou em uma névoa negra densa e cercou o corpo de Aine, abafando o
fogo que vinha dela o suficiente para Scylla conseguir se aproximar.
- AINE! – Ane gritava em pânico. – FILHA! ACORDA!
Aine, se acalma! Luc tentou acalmá-la mentalmente, mas quase caiu no chão com o
impacto da violência dos pensamentos da amiga que o atingiram. Les o segurou antes que
ela atingisse o chão e rapidamente verificou se seu irmão tinha se ferido. As pessoas ao
redor correram para se proteger, guiadas pelos guardas para longe. Alart puxou Sunny em
um abraço, se jogando atrás de um banco de pedra da praça, com seu corpo em forma de
névoa negra protegendo a esposa.
Lich sentiu a dor das inúmeras queimaduras e sabia que estaria bastante ferido
quando se materializasse novamente, mas naquele momento ele não ligava. Ele só queria
acalmar a amiga. Felizmente, Scylla conseguiu chegar perto, o calor do tornado de fogo às
suas costas, o calor vindo de Aine à sua frente, porém mais contido por Lich.
L i k a s t í a 0 4 | 38

Abra. Scylla enviou a mensagem e Lich abriu um pequeno espaço para que os lábios de
AIne ficassem visíveis. Scylla queimou a mão enquanto jogava na garganta de Aine, que se
debatia feito louca, uma poção de sono feita por Sunny horas antes e muito mais potente
do que a que ela usara no quarto para acalmar Aine. Quase imediatamente Aine sentiu sua
mente ficar mais lenta como se ela nadasse em um rio enevoado. Seu corpo voltou ao
normal em segundos e o tornado de fogo sumiu como se fosse desligado. Lich se
materializou com inúmeras queimaduras de terceiro grau por toda a parte frontal de seu
corpo, mas, inacreditavelmente, de pé e firme. Aine caiu ofegando no chão e Scylla agachou
com dificuldade à sua frente.
- Respire. Devagar. – Scylla disse e estendeu a mão, recebendo uma jarra enorme de
água gelada de sua filha. Ela entregou para Aine que bebeu direto da jarra vorazmente,
derramando uma grande quantidade em seu corpo.
Les já estava ao lado de Lich usando sua magia de cura no irmão para aliviar as
queimaduras. Lich, por outro lado, apesar daquilo claramente doer horrores, nem mesmo
esboçou uma careta, apenas ficando lá, de pé, atento à Aine sem ao menos piscar. Alart
ajudou a esposa a levantar, verificou como ela estava e correu até Ane para ajuda-la a subir
onde Aine estava, embora seu olhar de tempos em tempos focasse em Lich.
- Meu bebê, amor, fala comigo. – Ane nem tentou segurar as lágrimas, segurando o
rosto da filha.
- Eu...desculpa, mãe... – Aine se sentia esgotada, mas leve.
- Tudo bem, amor. Acabou. Pronto. – Ane abraçou a filha cujo corpo ainda estava um
pouco quente.
- Lich. – Alart chamou em um tom baixo, mas firme.
Lich piscou como se saísse de um sonho. – Tudo bem.
Aine olhou para Lich e sentiu uma culpa terrível pelo estado dele.
- Tudo bem. – Lich repetiu para ela, com um olhar tentando tranquilizá-la.
- Eu cuido dele e depois de algum descanso esse chatão vai estar como novo, linda. –
Les piscou para ela, querendo aliviar um pouco as coisas.
Aine se levantou, apoiada em Alart e Luc e congelou no lugar. Seus olhos se encheram
de lágrimas e quase, por pouco mesmo, ela não as derramou. O medo nos rostos de seu
povo, ainda meio escondidos por todo lado era pior do que um punhal no peito. Ela nunca
tinha recebido nada além de olhares de carinho e adoração de seu povo. Aquilo doía tanto
que ela tomou a decisão que nortearia toda sua vida dali em diante. Mas o que mais doeu
mesmo foi ver o que seu tornad de fogo tinha atingido esse tempo todo. O cristal aberto
onde sua avó estava tinha se transformado em cinzas. Quase. Na verdade, nem tinha mais
sinal dele, no lugar apenas havia uma cratera de uns 4 metros de diâmetro no solo
queimado onde nada cresceria por anos.
L i k a s t í a 0 4 | 39

Isso foi demais. Aine desmaiou com o impacto da cena e foi levada ao palácio no colo
de Luc enquanto a multidão se afastava em silêncio do caminho e depois ia para suas casas.

~o ⭐ o~
Alguns dias depois, Aine estava tendo dificuldades para controlar seu dom. Mesmo
com os anos de teoria mágica e prática de autocontrole, agora ela sentia que podia explodir
a qualquer momento. Lich era um bom ouvinte, Les a acalmava com seu espírito brincalhão
e sua mãe... Bem, ela tentava parecer forte, mas era evidente o quanto ela tinha ficado
abalada com a morte de Calíope.
Luc, Gaia e Alart tinham voltado ao reino leonino para suas responsabilidades. Apenas
Sunny ficara para apoiar Ane e Aine se sentia grata por isso. Ela mesma não achava que
seria de grande ajuda para ninguém agora. A vergonha do que fizera com o corpo de sua
avó, a memória do medo em seus súditos, eram fortes demais ainda. Mesmo com todos
sendo compreensivos, ela ainda não tivera coragem de aparecer em público na rua. Ela
ainda tinha uma semana para evitar todos. Depois as reuniões com o conselho, os nobres,
comerciantes, enfim, todo o trabalho de governo seria retomado.
- Você não vem comer? – Lich perguntou.
Esse era outro problema. Lich estava se recuperando muito bem com a magia de Les,
mas ainda tinha muitos buracos em seu pêlo onde as queimaduras tinham sido mais
intensas, muitas ainda em carne viva. Aine não conseguia olhar nos olhos dele, mesmo
depois de Lich dizer que ela não precisava se sentir culpada.
- Não estou com fome. – Ela respondeu sem olhar para ele. – Vou nadar.
- Aine. Pare.
- Parar o que?
Lich apenas a abraçou por trás, ignorando a dor na pele sensível. – Pare de agir como
se tivesse feito de propósito, princesa.
- Mas você...
- Eu perdoo você. Porque você não se perdoa também?
Aine sentiu os batimentos cardíacos calmos dele e tentou respirar no mesmo ritmo,
acalmando aquela sensação de culpa, a raiva de si mesma, para evitar outro episódio de
descontrole. Contra suas expectativas, o truque realmente funcionou.
- Minha avó nunca terá a chance de perdoar. – Ela deu um selinho nos lábios dele e
correu para o lago natural nos fundos do palácio.
Lich pensou por um segundo e teve uma ideia. Andando para poupar energia mágica,
ele cumprimentou as Sentinelas no corredor e bateu na porta dos aposentos de Ane. Como
esperado, Sunny atendeu.
L i k a s t í a 0 4 | 40

- Bebê. Precisando de alguma coisa? – Sunny falou baixo para não acordar Ane,
embora o quarto ficasse a dois cômodos de distância dentro daquela área. Ela sinalizou
para ele entrar e ele passou, dando um beijo no rosto da mãe.
- Na verdade, sim. Mas a senhora não vai gostar.
Sunny se sentou. – Então fale de uma vez. Sabe que não gosto de rodeios, bebê.
Lich contou seu plano resumidamente.
- Concordo. – Sunny disse.
- E vai ser melhor porque é preciso para... Espera. A senhora aceita? – Lich perguntou,
confuso.
- Sim, caçulinha da mamãe. – Sunny apertou as bochechas de Lich, que sempre achara
muito fofas, rindo da confusão dele.
- Mãe.. Eu não sou mais um bebê, sabia? – Lich sempre ficava sem graça com esses
mimos da mãe. – Mas... Pensei...
- Pensou que eu iria seguir as regras cegamente. – Sunny completou. – Lich, meu
bebezinho, eu realmente gosto de seguir regras, mas exceções existem. Se seu plano
funcionar, podemos evitar uma catástrofe igual ou maior do que aquela no velório.
Os dois passaram a elaborar os detalhes do plano e aproveitaram que Scylla estava
longe, resolvendo algo sobre um ataque de Harpia em algum lugar. Eles tinham certeza que
ela apoiaria a ideia, mas era um tabu, quase um crime, e quanto menos ela soubesse,
menos a afetaria.
Aine passou para ver sua mãe naquela noite, mas Ane estava dormindo sob efeito de
poções, algo que tinha se tornado comum ultimamente a qualquer hora. Pelo menos ela
estava tranquila no sono. A moça beijou a testa da mãe, a cobriu e foi para seu quarto. Para
sua surpresa, Sunny e Lich a aguardavam na sala de espera de seus aposentos.
- Aconteceu alguma coisa? Luc e Les estão bem? – Ela perguntou, já temendo que mais
alguém que ela amava tivesse morrido.
- Aqueles dois? Ah querida, eles estão ótimos. Les deve estar pregando alguma
brincadeira idiota em alguém e Luc irritando Gaia enquanto trabalham. – Sunny brincou,
mal sabendo o quão certa ela estava.
- Viemos te ajudar. – Lich disse.
- Lich vai invocar Cali pra falar com você e vou facilitar pra acontecer em sonho.
Sunny, sempre direta. Aine sorriu internamente. – Eu agradeço... Mas não posso
aceitar. Invocar os mortos apenas para satisfazer um desejo, sem um processo, nenhum
tipo de aprovação, é um erro grave. Podem tirar todos os seus direitos de mago... Não
posso arriscar prejudicar vocês.
- Não estamos pedindo. – Sunny e Lich disseram ao mesmo tempo, trocaram um olhar
meio surpresos e sorriram.
L i k a s t í a 0 4 | 41

- Mas é que...
- Aine, você quer se desculpar ou não? – Sunny foi direta como....Bem, como Sunny,
ne.
- Sim.
- Caçulinha da mamãe, comece o ritual. – Sunny disse e Aine não pôde evitar um
risinho com a cara que Lich fez, totalmente sem graça. – Deita aqui, querida, coloque a
cabeça no meu colo.
Aine obedeceu e Lich entoou um cântico com um som sinistro, profundo, ao mesmo
tempo relaxante. Dizia a lenda que os feitiços dos magos necromantes carregava o som da
morte. Aine sentiu que isso chegava bem perto da verdade.
Seus olhos se abriram em uma paisagem repleta de flores multicoloridas, um céu azul
sem nuvens e uma brisa fresca e perfumada.
- Lindo, não é?
Aine se virou de lado e viu sua avó, parecendo muito mais jovem, quase da sua idade,
com um chapéu largo, um avental de jardineiro e um regador na mão, sorrindo, leve como
se não existisse nenhum problema em sua mente.
- Vovó... – Aine sussurrou, emocionada.
- Minha lindinha... Você não devia fazer isso. É perigoso mexer com os mortos.
- Eu precisava te ver. Pedir...
- Perdão. Eu sei, amor. – Calíope sorriu, serena. – Aine, você acha mesmo que os
mortos se importam com o que acontece com seus corpos?
- Mas...
- Querida... Velórios são para os vivos, para acalmar seus corações, não para os
mortos. Quanto ao que aconteceu, pare de se culpar, amor.
- Eu não fiz por maldade... – Aine chorou.
- Eu sei. Seu povo também sabe. – A voz de sua avó então mudou, como se mais
alguém falasse junto com ela, usando os lábios dela. Uma voz mais fina e doce, mas
também mais poderosa, dizendo: - Mas cuidado, Aine. O poder do fogo não é para fracos.
Ou você o controla ou será controlada.
Aine sentiu como se não apenas seus pelos se arrepiassem, mas também sua alma.
- Adeus, minha linda. Diga a sua mãe que eu a amo e sempre amarei. – A voz normal
de Calíope disse antes dela desaparecer.
- Cuide-se, pois o seu exigirá mais de seu poder do que você imagina, Epaine. – Aquela
voz mistériosa disse, parecendo soar de todo lugar ao mesmo tempo. – Vá. Saia do meu
reino e só volte quando eu a chamar!
L i k a s t í a 0 4 | 42

Como se uma mão invisível a empurrasse para longe, Aine sentiu seu corpo sendo
lançado a uma velocidade inominável, gritando, caindo, caindo, caindo, sem parar pelo que
pareceram décadas, séculos.

Confesso: peguei um pouco pesado sim. Mas você me entende, não é? Odeio quando
entram em meus reinos sem pedir licença.

De repente, Aine sentiu como se aterrissasse em seu corpo, ofegante, esgotada. Ao


mesmo tempo, Lich caía no chão como se tivesse sido jogado em um abismo quase infinito,
por séculos sem descanso. Os dois abriram os olhos e sorriram um para o outro, em paz,
enquanto Sunny dava-lhes poção e comida para relaxarem. Os dois comeram em silêncio,
sentados no divã, encostados um no outro, com uma colcha sobre seus ombros, como
quando eram crianças.

~o ⭐ o~
Duas semanas mais tarde, Scylla olhava pela milionésima vez os relatórios que tinha
recebido a cada dois dias a semanas. Quando sua aprendiz anunciou a aguardada visita, a
sacerdotisa guardou os relatórios.
- Me desculpe por não ter vindo antes.
- Tudo bem. As coisas foram caóticas, mas não havia nada que você pudesse fazer.
Você tem novidades?
- Sim. As coisas estão indo tão bem que eu trouxe um presente.
Scylla ergueu uma sobrancelha, curiosa e quase cedeu à tentação de ler a mente da
jovem Tiger. – Do que se trata?
A jovem sacerdotisa se levantou e abriu a porta com um sorriso doce.
Scylla levantou da cadeira quase saltando sobre a mesa de felicidade, se contendo
apenas por força de vontade, quando a jovem entrou.
- Oi, mamãe. – Maia disse com um sorriso adorável, leve, doce.
- Maia. – Scylla disse, quase sem voz e contornou a mesa para abraçar a filha. –
Querida que saudade!
- Você não vai acreditar no quanto fui bem nos treinamentos, mãe.
- Sim, eu vi os relatórios, minha linda. Você foi incrível e em tão pouco tempo. – Scylla
disse, mas, cautelosa como sempre, por puro instinto sondou a mente da filha. – Como se
sente?
- Feliz. E curada. – Maia respondeu. – Agora vou praticar tudo que aprendi para nunca
mais cair nessas armadilhas da inveja.
L i k a s t í a 0 4 | 43

Scylla não se sentia feliz assim a muito tempo. A mente de Maia estava tão tranquila,
tão leve como a de um bebê. Até o olhar de Maia parecia diferente.
– Foi árduo, mais difícil do que esperávamos, mas o resultado tão poderoso, fruto de
uma força de vontade tão forte... – Cassi comentou, o orgulho evidente em sua voz. - Bem,
vou deixar que veja por si mesma com o tempo.
- Obrigada pelo excelente trabalho, Cassi. Quando Sarin voltou contando da
tempestade e o susto que vocês levaram ao se perder uma da outra, fiquei preocupada,
mas a Sacerdotisa do Templo dos Aneis e das Luas enviou relatórios excelentes sobre seu
trabalho também. – Scylla disse. – Fiquei orgulhosa por comprovar que os templos de
Kallisti possuem jovens tão promissoras e atenciosas como você.
- Fiz apenas meu trabalho, senhora. Além do mais, confesso que sua filha se tornou
uma grande amiga para mim. – Cassi disse e seu olhar cruzou com o de Maia. Querida...
Scylla captou o pensamento de Cassi sem querer, mas nem precisava. Pelo olhar que
as duas trocaram, ficou bastante evidente que não era só amizade entre elas.
- É bom ter você de voltar, minha filha querida.
- É bom estar de volta, mamãe. – Maia abraçou Scylla e olhou para Cassi que sorriu
docemente de volta.

~o ⭐ o~
Nada no universo é de graça. Esta é uma máxima que funciona em todos os universos.
A vida cobra o preço da morte. O poder cobra o preço da responsabilidade. A tecnologia
cobra o preço da guerra. Erínio percebeu isso tarde demais quando entendeu que seu poder
exigia energia, exigia que ele comesse, a prática dos mortais. Então ele se alimenta da única
coisa capaz de sustenta-lo por algum tempo: almas altamente infectadas pela fonte Ácida.
Almas que cederam a sentimentos ruins, começando pela inveja.
L i k a s t í a 0 4 | 44

Capítulo 06
Não sei se você já percebeu ou se ainda está numa fase da vida onde temos mais
ilusões e tudo é mais simples... Mas na vida real dificilmente algo ou alguém é o que parece.
Seja por segredos, por autopreservação ou simplesmente caráter duvidoso, todos somos
diferentes do que a primeira vista mostramos.

~o ⭐ o~
Aine foi coroada em uma cerimônia simples que deixaria sua avó horrorizada. Mas ela
queria focar no trabalho e polpar sua mãe de grandes eventos. Ane raramente saía do
quarto, embora não estivesse mais constantemente dopada de remédios. Scylla passava
para ver a prima sempre que podia, mas quem mais a visitava, se tornando quase uma
sombra extra de Ane, era Maia. O altruísmo de Maia suspreendia positivamente sua mãe.
Não que a jovem fosse má antes, apenas era mais focada em sua vida e sua beleza do que
em qualquer outra pessoa. Ainda ocupada ajudando no reino leonino, Gaia só vira a irmã
pelos contatos do comunicador, mas se falavam todos os dias, cada vez mais unidas.
- E como estão as coisas com você, Ga? – Maia perguntou, enquanto fazia um
penteado na frente do espelho, o comunicador sobre a penteadeira, com a tela do visor
mostrando apenas parcialmente a jovem.
- Nada de novo. As construções para o pessoal desabrigado nos desabamentos estão
no início. Tem até um rapaz que foi aprendiz do tio Hieron e hoje é um gênio da construção
aqui.
- Acho que sei quem é. Papai sempre elogiava o trabalho dele. E os tri? Estão te
irritando muito?
- Eu não vejo muito Les e Lich. Ainda bem porque não tenho que encarar o metido a
gostoso e o assustador. Mas Lucius infelizmente vejo todo dia porque meu trabalho é
ajudando esse cara. Ele faz questão de ser desagradável o tempo todo.
- Seja compreensiva, Ga. Ele deve estar sobrecarregado agora que vai assumir o trono.
– Maia aconselhou.
- Eu sei, mas isso não dá a ele o direito de ser um imbecil. – Gaia sorriu porque
geralmente era ela quem pedia calma para Maia, não o contrário.
- Fale com tia Sunny. Ela vai colocar ele em seu devido lugar.
- Não é para tanto. Ele sempre foi imbecil, não é novidade. Eu aguento. Pelo menos é
eficiente. E Aine? Quase não tenho falado com ela.
- Ela está bem. Lidando com eficiência em seu trabalho, apesar de estar uma bagunça.
Essas transições são assim mesmo. – Maia terminou seu penteado e pegou o comunicador
para ficar de frente pra tela e ver o rosto de sua irmã.
- Uau! Ficou lindo, Ma. – Gaia sempre achou Maia linda.
L i k a s t í a 0 4 | 45

- Obrigada. Você está maravilhosa, irmã.


A resposta de Maia ainda surpreendia Gaia porque a irmã nunca foi do tipo que
devolve um elogio com outro. Geralmente ela se inflava cada vez mais. Gaia não sabia o
motivo da viagem de purificação da irmã, mas a mudança em Maia era notória. – Você não
me disse ainda com quem é seu encontro. – Para total choque de Gaia, sua irmã pareceu
tímida, algo que ela nunca tinha sido.
- Eu... só vou conversar com uma amiga.
- Amiga? Maia, você só usa esses brincos quando quer ter sorte em um encontro. Não
mente pra sua mana.
- É sério. Só vou conversar com a Cassi.
- A sacerdotisa que foi sua guia na viagem? OH GRANDE KALLISTI! Vocês estão...
- Shh... Fala baixo, Ga. – Maia ouviu uma batida suave na porta e se apressou em se
despedir da irmã. – Tenho que ir. Beijos, mana.
Ela desligou sem esperar uma resposta, levantou e abriu a porta.
- Pronta pra ir? – Cassi perguntou com um sorriso gentil.
- Sim. – Maia respondeu e, antes que percebesse, foi puxada pela cintura e Cassi a
beijou fazendo ela ficar sem fôlego.
Cada vez mais linda. Cassi enviou o pensamento para Maia enquanto a beijava,
deixando ela ainda mais orgulhosa de sua beleza.

~o ⭐ o~
- Você poderia fazer isso direito, pra variar. – Luc disse em tom de deboche.
Gaia sempre foi paciente, sensata, ela se considerava uma pessoa calma. Mas sua
paciência estava cada vez mais curta.
- Se você especificar direito, ajuda bastante. – Gaia respondeu no impulso e virou o
rosto incomodada.
Luc deu um sorriso satisfeito por finalmente fazer ela perder a paciência naquele dia.
Irritar a calma Gaia até ela ser agressiva, mesmo que um pouco, tinha se tornado um jogo
divertido para ele.
Nove horas. Legal. Meu novo recorde. Ele pensou. Sentindo-se empolgado, ele decidiu
tentar mais um pouco. Ela não perdia a paciência duas vezes em um dia a ponto de
responder em voz alta, mas não custava tentar. – Responder a seu rei assim não é elegante.
Pensei que seus pais a tivessem educado melhor.
- Meus pais me educaram para ser uma lady e é o que sou. Você não é meu rei, minha
rainha é Aine. Caso não tenha percebido, eu sou uma cidadã Tiger. Você que deveria
aprender a ter um pouco de educação, seu bocó brigão! – Gaia estava tão eriçada que
parecia ter o dobro de seu tamanho, seus olhos furiosos.
L i k a s t í a 0 4 | 46

Luc levou alguns segundos, boquiaberto, mal acreditando em sua boa sorte. Até que
ele fez o que nenhum ser vivo sensato faz na frente de uma mulher irritada. –
AHAHAHAHAHHAHAHAHHAHAHA! BOCÓ BRIGÃO! AHAHAHAHAHAHAHAHA!
- O que... – Gaia ficou tão surpresa que seus pelos abaixaram, sua confusão logo sendo
tomada pela vergonha que sempre a atingia quando ela presenciava uma briga, além de um
tremor que era visível à distância e chacoalhava seu corpo. – Não...não tem graça....Idiota.
- AHAHAHAHAHAH! Não...espera, espera... – Luc se contorcia em meio ao riso
incontrolável. – HAHAHAHAHAHAHAHA!
- Eu... – Gaia se virou desconfortável e com uma vontade louca de socar a cara do rei
interino. – Vou embora.
Luc não queria que ela saísse, mas não conseguia controlar a crise de riso. Assim, Gaia
foi para seu novo quarto, perto da ala onde ficavam os aposentos dos trigêmeos, fechou a
porta e, sem surpresa nenhuma, sentiu a onda de raiva sendo substituída pela intensa
vergonha. Ela sabia. Não conseguiria voltar a encarar Luc que com certeza agora estava
contando para todo mundo o quanto ela era infantil, boba e nada profissional. Depois de
algumas horas, ela se levantou e começou a arrumar suas coisas. Com tudo embalado,
como se fosse convocada pelos pensamentos de Gaia, Sunny bateu na porta chamando a
jovem para tomar chá como fazia com frequência.
- Que carinha é essa, Gaia? – Sunny perguntou. Apesar da moça estar perfeitamente
normal para qualquer um que a visse, ela sabia que tinha algo errado por pura intuição.
- Não é nada.
Sunny entrou sem ser convidada mesmo porque ela nunca foi boa com sutilezas de
qualquer forma, e parou ao ver a mala pequena de Gaia no canto ao lado do sofá. – Você
vai embora?
- É melhor.
- Mas, minha linda, você parecia gostar tanto do seu trabalho aqui.
- É, mas eu não sou muito eficiente nisso mesmo...
- Bobagem. Luc e Alart sempre falam como você é excelente com essas coisas de
organização e decorações. O que aconteceu, Gaia?
- Nada. Eu só quero ir mesmo. Minha mãe...
- É adulta e sabe se cuidar muito bem. – Sunny interrompeu, imaginando inúmeras
possibilidades do que poderia ter acontecido. Mas, não importava o quanto ela tentasse
fazer a menina falar, no fim, ela não teve outra opção a não ser dar seu apoio á decisão da
filha de Scylla que ela mais amava.
Com ajuda de Sunny, Gaia encontrou Alart, agradeceu pelo trabalho e a recepção ali, e
se despediu. Ela voltaria para casa naquela noite, triste por deixar o trabalho que ela
adorava fazer, mas sem coragem de enfrentar o que considerava um grave erro. Não vou
L i k a s t í a 0 4 | 47

dar a esse imbecil a chance de rir de mim por ter perdido a calma. Ele que vá lamber um
penico! A última frase foi pensada como um grito tão alto que Luc ouviu do outro lado do
palácio e sorriu largamente, o acalmando em meio a outra discussão com Les.
Seus irmãos olharam para ele sem entender nada, afinal Luc nunca abandonava uma
briga.
Mais tarde, Luc e Lich chegaram juntos para o jantar, seus pais e seu irmão já
esperando na mesa.
- E se você usar mais peças de... – Luc parou de falar, seu olhar passando rápido na
mesa.
- Algum problema? – Lich perguntou, apenas testando sua teoria.
- Não. – Luc sentou em seu lugar habitual, em uma das cabeceiras da mesa. Seu pai na
outra com Sunny do lado direito, Les e Lich do lado direito e esquero de Luc, duas cadeiras
vazias entre depois dos irmãos.
Cinco... Lich começou a contar mentalmente, tomando cuidado para Luc não ouvir
seus pensamentos.
Les abriu a boca para perguntar, mas Lich prevendo isso deu uma pisada sutiul por
baixo da mesa. Com um simples olhar, Les entendeu que era pra ele ficar calado, embora
não soubesse o motivo.
- Filho, precisa de ajuda na Corte amanhã? – Alart perguntou.
Quatro... Lich não era do tipo que sorria, mas ele sentiu que se soubesse como sorrir,
teria feito isso agora com sua suspeita criando ainda mais força.
- Luc. – Alart chamou de novo, mas o filho mais velho parecia em outro mundo, seu
olhar irritado.
Três... Dois... Um...
- Onde está a menininha? – Luc perguntou com seu péssimo humor característico.
- Se está se referindo à Gaia, que não é uma menininha faz tempo, - Sunny disse
calmamente enquanto seu olhar cruzava com o de Lich que, embora não estivesse sorrindo,
parecia que seu olhar estava, de alguma forma - ela foi embora.
- COMO É QUE É! – Luc levantou abruptamente, assustando a todo na mesa, menos
Lich que estava calmo como sempre. Sua cadeira caiu com um baque violento no chão. –
COMO? PARA ONDE? – Ele disse, dando socos na mesa sem perceber, os talheres e pratos
pulando na mesa.
- Garoto, se acalme. O que deu em você? – Alart perguntou, irritado, porém, acima de
tudo, confuso. Luc era irritadiço desde bebê, não era novidade. Mas ele respeitava demais
seus pais e nunca fizera nada parecido.
- Tiger. – Lich respondeu simplesmente.
L i k a s t í a 0 4 | 48

- QUE?! O QUE TEM ESSA PORRA A VER? – Luc bradou com aquela fúria que fazia as
pessoas abaixarem a cabeça e o obedecer sem da nenhum pio.
Tranquilo e sem esboçar nenhuma reação, Lich esclareceu: - Gaia. Você perguntou
para onde ela foi. Obviamente, para Tiger. Algo contra, irmão?
O tom de deboche sutil de Lich acendeu o alerta na mente impura de Les que abriu um
sorriso gigante. – Merda... Errr... Desculpa mãe e pai.
Luc olhou para ele e todos pensaram que ele começaria uma briga como sempre, mas
ele apenas se virou furioso e caminhou para a saída.
- Ei, rapaz! Onde pensa que vai? – Alart deu um passo para dar uma lição no filho, mas
Sunny segurou seu pulso.
- Tiger. – Luc disse sem olhar para trás e saiu pisando duro como se o chão tivesse
alguma culpa por sua raiva.
- O que deu nesse garoto? Eu vou...
- Calma, querido. Desconfio que sei o que deu nele. – Sunny disse e olhou para o
caçula. – Lich.
- Sim, minha mãe? – Lich começou a colocar comida em seu prato, sem esboçar
nenhuma emoção, o que às vezes era bem irritante.
- Fale.
Lich parou o que estava fezendo, arrumou perfeitamente os talheres a lado do prato,
sem a menor pressa, e olhou para ela com aqueles olhos tão profundos que até Sunny às
vezes se arrepiava. – Se refere ao surto do nosso próximo rei?
- Desembucha, menino! – Sunny se perguntou pela milésima vez de quem o filho tinha
herdado aquela calma quase sobrenatural.
Lich voltou seu olhar para o prato e pegou os talheres. – Ele está apaixonado por ela.
- Gaia? – Les sorriu.
- Não. Por Kallisti. – Lich disse sério com seu deboche usual, enchendo uma taça com
suco gelado. – É claro que é por Gaia, Les.
- Meu filho não veio me pedir conselhos, nada, mesmo sabendo como gosto dela... –
Sunny lamentou, sentindo-se a pior mãe do universo porque ela sempre desejou e fez de
tudo para que seus filhos a procurassem para conversar sobre tudo. Claro que uma paixão
estava no topo dessa lista.
Alart percebeu e agachou ao lado da cadeira dela, abraçando-a. – Amor..
- Não leve tão a sério, mãe. – Lich disse, agachando do outro lado da cadeira da mãe e
lhe dando a taça. – Ele não percebeu ainda.
- Viu, amor. Nosso filho só é lerdo nessas coisas. Não é nada contra você. – Alart
acariciou o rosto dela.
- Eu vou zoar muito o Luc! – Les disse.
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- Não vai não. – Sunny disse. – Deixa seu irmão em paz, Les.
- Eles se entendem, mãe. Não se estressa com eles. – Lich fez um carinho no rosto da
mãe, levantou e voltou ao seu lugar.
- Como você sabia disso? – Les perguntou.
- Porque eu observo mais e falo menos. – Lich olhou sobre a borda da taça para o
irmão que mostrou a língua pra ele, entendendo a indireta.
- Você acha que ele vai confiar em mim ou em você pra conversar? – Sunny sussurrou.
- Amor, nossos filhos nos adoram. – Alart respondeu.
- Mas... Eu quero que eles saibam que sou amiga deles, que eles podem confiar em
nós. Não quero ser igual...
- Você não é nada igual àquele monstro, Sun. Você é excelente e nossos filhos confiam
em você mais do que em qualquer outro. – Alart garantiu, temendo mais uma crise de
insegurança materna dela que resultou em uma doença a anos atrás.
Alart beijou a mão dela e depois seus lábios, desejando poder transmitir a verdade em
suas palavras.
- Eca! – Les brincou. – Adults beijando.
- Você é adulto, irmão. – Lich comentou.
- Mas eles são adultos-pais. Não deviam exibir essas coisas na nossa frente. Vai
despurificar nossas mentes. – Les adorava uma zoeira.
- Você com certeza sabe mais dessas coisas do que eu e sua mãe, garanhão. – Alart riu
da cara falsa de nojo de seu filho.

~o ⭐ o~
- Sarin, vamos. – Cassi chamou, fazendo Sarin quebrar o beijo.
Maia suspirou e deixou Sarin se afastar, voltando seu olhar para Cassi a poucos passos.
– Amanhã?
- Claro, querida. – Cassi esticou o braço e acariciou o rosto de Maia. – Não deixe de se
hidratar. – Com um último beijo nos lábios de Maia, Cassi e Sarin foram embora.
- Ma!
A voz de Gaia soou alguns minutos depois na entrada do quarto.
- Gaia? O que aconteceu?
- Voltei pra casa. Só isso.
- Mas...
- Gaia, meu amor! – Scylla surgiu de um portal na porta do quarto, incapaz de se
conter e esperar para ver a filha.
- Oi, mamãe. – Gaia a abraçou.
L i k a s t í a 0 4 | 50

Scylla e Maia sondaram, mas Gaia deu respostas evasivas, sem coragem de contar o
que acontecera. Depois de algumas horas, Gaia começou a se sentir idiota por ter partido
por tão pouco, mas não voltaria, com vergonha de qualquer forma.
Bom que não preciso mais falar com ele, afinal. Gaia pensou e Maia ouviu o
pensamento da irmã, se mantendo indiferente por fora, porém mais atenta.
Com toda a sutileza possível, Maia sondou a mente de Gaia e entendeu quem era
“ele”. Não a surpreendeu. Ela e Gaia nunca foram próximas dos tri e sua irmã estava tendo
problemas com Luc ultimamente. Mesmo assim, Maia guardou essa informação em seu
íntimo.
Mais tarde, Aine estava na mesa de jantar sozinha quando um de seus atendentes se
aproximou e sussurrou em seu ouvido uma informação.
- Traga-o até mim. – Ela disse e se voltou para outro servo que cuidava da mesa. –
Coloque mais um lugar, por favor.
Pouco depois Luc entrou e sua expressão furiosa a fez pensar que ele tinha brigado
com Les de novo. – Luc! – Aine o abraçou e sorriu. – Senta aqui e janta comigo?
Luc se sentou mesmo sem vontade porque não dava para negar nada para Aine
quando ela sorria docemente daquele jeito. Ele, no entanto, não aceitou nada, incapaz de
comer ou beber nada, irritado.
- Brigou com o Les de novo? – Aine perguntou.
- Sua amiga, aquela irresponsável.
- Não sei do que está falando, Luc.
- Gaia! Ela me deixou sem ninguém para ajudar no trabalho e veio embora sem dar
nenhuma satisfação!
- Espera um pouco aí. – Aine tomou um gole de sua bebida. – Gaia nunca foi
irresponsável na vida e você sabe disso. Posso apostar que ela avisou a alguém que estava
voltando. Se ela não falou com você, é porque você fez algo que a magoou.
- Aine, ela...
- Luc, eu te amo, mas você precisa dar um tempo. Não vou te deixar falar com ela
assim. Você tem a mania de falar coisas sem pensar quando está com raiva e não vou
contribuir com isso. Respire, beba algo e depois vamos conversar com Gaia.
Luc sentiu que ia explodir. No fundo ele sabia que Aine tinha razão, mas saber disso só
o deixou mais irritado. Ele aceitou o conselho da amiga com muita dificuldade e, com a
pausa, se acalmou mais até conseguindo comer algo.
- Amon, isso é meio ilógico. – Gaia riu alto com as bobagens que o rapaz falava.
Scylla observou eles de longe enquanto virava um espeto de carne assada na brasa
que Maia cuidava perto dela. Scylla abençoou mentalmente o rapaz por tirar aquele olhar
triste dos olhos de Gaia desde que a moça voltara.
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- Que bom que ela está mais feliz. – Maia comentou, de costas para a mãe,
acrescentando outras carnes na brasa. – Gaia parecia tão triste..
Scylla sentiu uma alegria quase eufórica por ver o quanto Maia tinha mudado. A Maia
de antes nunca iria se sujar com fumaça para preparar comida para ninguém. – Sim. Ele é
um bom rapaz.
- É sim. E beija muito bem.
Scylla arregalou os olhos. – Maia...
- O que? – Maia virou para a mãe com olhos divertidos. – A gente trocou uns beijinhos
em uma festa a muitos anos. Nada demais.
- Eu gostaria de ter um genro como ele.
- Quem sabe, mãe. Espero que sim. Ga merece um rapaz legal e louco por ela. – Maia
viu Aine chegando pelo outro extremo do quintal, mais perto de sua irmã. Scylla seguiu o
olhar de Maia e estranhou a presença de Luc.
- Você é...linda...e... – Amon ficou nervoso, mas decidiu que não ia mais esperar. Ele
aproximou seu rosto do dela lentamente, pronto para beijá-la.
Gaia fechou os olhos e se aproximou devagar dele.
BAM!
O casal quase pulou de susto com o baque. Luc pisou tão forte com um pé que sua
perna chegou a tremer por dentro, em um tipo de choque, mas nada perto da dor que ele
sentia no peito, como se tivesse sido traído. Aine olhou para ele sem entender nada.
- Lucius? – O choque de Gaia era visível.
- Como se atreve? – Luc praticamente rosnou.
- Hã? – Gaia não entendeu nada. Porque ele estaria tão nervoso só por ela ter ido
embora?
- Você não tem verg....
- Ei! Vê lá como fala com ela. – Amon tomou a frente de Gaia.
- Sai. Da. Minha. Frente. – Luc colocou a mão no cabo da espada, seus pelos eriçados.
- Parem com isso. – Scylla se aproximou.
- Luc. Pare. Se acalme ou vamos embora. – Aine disse, mas, pela primeira vez, a voz
dela não o ajudou em nada.
- Eu vou levar ela de volta. Ela tem responsabilidades! – Luc olhou para Gaia que
tentava sair de trás de Amon.
- Minha irmã vai se ela quiser. – Maia disse. – Você não manda nela.
- Vamos, Gaia. Agora. – Luc só queria tirar ela de perto de Amon, embora ele não
fizesse ideia do porque.
- Você é surdo? Ela não vai com você. – Amon disse.
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- Luc! – Aine estava pronta para dar um soco no amigo pra ver se ele deixava de lado o
modo idiota.
- Gaia. – Ele olhou diretamente pra ela e sua raiva pareceu se acalmar um pouco,
substituída apenas por uma dor que ele não sabia explicar. Não vou viver sem você por
perto, amor.
- Luc, vá para casa. Depois vocês conversam. – Scylla disse quando captou o
pensamento que ele mesmo nem tinha percebido.
- Vamos conversar. – Gaia disse com autoridade, surpreendendo a todos. – Mas se
bancar o idiota, vou enfiar esse espeto no seu olho.
Luc sorriu com a impaciência dela, apesar de ainda se sentir terrível e confuso.
Interessante. Maia pensou.

~o ⭐ o~
Aine foi deitar depois que Luc foi embora com a promessa de Gaia que voltaria para o
reino leonino no dia seguinte e dele sobre algo relacionado ao jeito que e ele a tratava.
Nenhum dos dois deu mais explicações e Aine começou a se perguntar se Luc gostava de
Gaia depois do óbvio ciúme dela com Amon.
No meio da madrugada ela acordou com a sensação de ser observada. Era uma
sensação comum a anos e nunca tinha ninguém, então ela apenas virava para o outro lado
e dormia se sentindo segura e protegida de qualquer coisa no universo. Mas naquela noite
ela sentiu saudade de conversar com seus amigos, então usou seu comunicador para
chamar o único deles que estaria acordado a essa hora. Mas Lich não atendeu. Ela se
levantou, foi até o banheiro e voltou para a cama onde seu comunicador brilhava com a cor
definida para Lich.
- Oi. Pensei que você estava dormindo. – Aine disse.
- Não. Estava exercitando minha magia. – Ele respondeu e não deixava de ser verdade.
– Aconteceu alguma coisa?
- Não. Só aqueles momentos da madrugada. Ah, bem, mais cedo Luc esteve aqui. Ele
surtou com Gaia. Acho que ele estava com ciúme.
- Ela vai voltar? – Lich desconversou, não querendo entregar os sentimentos do irmão
que ainda nem os tinha percebido.
- Sim. Amanhã. – Aine respondeu e passou a contar várias coisas sem importância,
relaxando em sua cama.
Lich tirou o manto que usava na rua, trocou de roupa e guardou uma peça íntima bem
dobrada em uma caixa feita com ossos Tiger, cheia de roupas íntimas, algumas de anos
atrás e a trancou de novo com sua magia, passando a mão com uma carícia sobre a tampa,
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sentindo-se finalmente tranquilo e satisfeito. Eles conversaram por mais alguns minutos,
até ela se despedir para ir dormir.

~o ⭐ o~
Jamais devemos esquecer da máxima: aqueles que mais conhecemos são os que mais
podem nos surpreender. Quando você lembrar disso, vai aprender a ver os sinais de que
alguém esconde algo que você precisa saber.
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Capítulo 07
Me diga. O que você deseja deixar como legado quando você se for? Pelo que você
quer ser lembrado? Nunca pensou nisso? Pois deveria. Grande parte dos vilões não
existiriam se tivessem se preocupado com isso desde o início de suas vidas ao invés de
pensar apenas nos ganhos que poderiam obter em sua curta existência.

~o ⭐ o~
Os magos responsáveis por abrir e fechar os portais costumam receber mensagens de
seus colegas sobre quem quer atravessar e se a viagem é permitida. Quando o mago
responsável pelo portal norte do palácio leonino recebeu a mensagem solicitando a viagem,
ele não estranhou a visitante. Embora não fosse comum ela ir até ali, ela tinha uma parente
próxima para isso. A única coisa estranha foi não ter usado um portal aberto por sua mãe, a
única com permissão para abrir e fechar portais sem tanta burocracia.
- Obrigada, senhor.
- Bem vinda, jovem lady.
Caminhando a passos firmes, ela seguiu até o local indicado e facilmente o encontrou
na piscina longa e funda, nadando como se tivesse nascido dentro da água. Ela cruzou os
braços e ficou de pé a alguns passos. Quando ele ergueu a cabeça no extremo oposto da
borda da piscina, ficou surpreso ao vê-la com um vestido longo, florido, leve e um decote
profundo.
- Maia? – Luc comentou surpreso.
- Precisamos conversar. – Maia disse simplesmente e ele, como se fosse em um
reflexo, nadou até ela e saiu da piscina.
A água escorreu por seu corpo enquanto ele se virou e pegou uma grande toalha para
se secar. – Sua irmã está...
- Sei onde ela está. – Maia cortou, atraindo sua atenção. – Vamos conversar primeiro.
- Certo. – A curiosidade de Luc foi atiçada e quase não conseguiu evitar olhar a parte à
mostra dos seios dela no decote. – O que você quer?
- Para começar, que pare de olhar meus peitos. – Maia disse e só então ele percebeu
que não tinha evitado tão bem assim. – Depois, pare de infernizar a vida da minha irmã.
- Gaia é bem grandinha, não acha?
- Não interessa. Se você bancar o idiota com ela, não darei a mínima pra quem você é.
Vou chutar suas bolas com tanta força que até seus ancestrais vão sentir a dor.
- Em minha defesa...
- Não dou a mínima pra sua defesa. – Maia lançou um olhar assassino. – O recado está
dado.
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Maia jogou os cabelos sobre os ombros, se virou e saiu, deixando Luc ali surpreso,
confuso, intrigado e olhando a bunda de Maia sem nem perceber.

~o ⭐ o~
- Mãe, tem certeza disso? – Aine perguntou.
- Sim, bebê. – Ane respondeu, fechando uma mala que tinha mais livros do que
roupas. – Eu não consigo olhar para as paredes, os tapetes, esta cama, os talheres.... Tudo
me lembra Cali e... Não consigo. Eu sei que devia ser forte, mas eu sou apenas uma leonina,
filha.
- E seu povo é tão forte quanto o meu, mãe. Mas te entendo. Cada canto do palácio,
da cidade, do reino todo me lembra a vovó. Mas eu fui treinada a vida toda para viver
depois que a vovó fosse para o outro lado da vida. E até pra mim é difícil. – Aine suspirou. –
Se é o que a senhora precisa pra viver em paz, eu apoio, mãe.
Ane abraçou a filha, sabendo o quanto seria difícil se afastar dela.
- Prometa que vai se comunicar comigo todos os dias... E que vai arrumar logo um
namorado.
- Mãe... – Aine revirou os olhos e sorriu.
- Não me julgue. Eu quero carregar meu neto no colo, Aine. Ou vai esperar eu morrer
para só depois ter um pequeno Tiger?
- Exagerada. – Aine riu e deu um beijo no rosto da mãe.
Mais tarde, Scylla abriu um portal e levou Ane para a casa que Hieron construíra no
terreno onde antes ele, Ane e Ciara tinham vivido. Agora, seu novo lar e onde planejava
viver o resto de sua vida.

~o ⭐ o~
- Ma?
- Oi, irmã. – Maia abraçou a irmã por trás, deu tirou uma caixinha do bolso, pegou a
mão de Gaia e colocou um lindo anel de pedra cinza claro, com pontinhos azuis brilhantes
que pareciam pequenas estrelas no interior, no dedo dela.
Gaia olhou para sua mão fascinada com o solitário simples, elegante e lindo,
exatamente como ela gostava. – É....lindo!
- Achei a sua cara e não resisti.
- Ma, você não precisava gastar comigo...
- Se eu não mimar minha irmã mais velha, quem vai? – Maia sorriu e Gaia virou de
frente para dar um abraço apertado nela.
- Devia ter me avisado que estava vindo. Eu teria planejado algo pra gente fazer hoje.
- Não precisa, já estou voltando.
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- Mas, já?
- Sim. Só vim te entregar isso. Não aguentei esperar. – Maia conversou por alguns
minutos com a irmã e foi embora, deixando sua irmã emocionada com o gesto incomum,
pois Maia só dava presentes em datas festivas, mesmo assim, coisas que tinham mais a ver
com ela do que com quem era presenteado.
- Lindo anel. – Luc disse, sem mesmo levantar a cabeça para olhá-la quando ela entrou
em seu escritório, focado em seus papeis.
- Como você viu? – Gaia perguntou, confusa já que estava com as mãos ocupadas e o
anel não estava a vista.
- Vi sua irmã te entregando. – Ele respondeu simplesmente.
- Mas...Não tinha ninguém nem perto.
- Eu estava na janela no segundo andar. – Luc disse e colocou seu selo, aprovando
outra parte do projeto enquanto Gaia pegava duas xícaras de chá quente.
- Estava me observando? – Ela perguntou meio brincando....meio curiosa.
Luc, percebendo que tinha falado demais, gaguejou: - Eu...Na erdad...de... É...Bem..
Você tomou uma decisão sobre as cores das paredes do abrigo comunitário?
Gaia ficou estática por um minuto, tentando entender o que estava acontecendo, mas
decidiu pensar nisso depois. Ela entregou uma xícara para ele, o surpreendendo pelo gesto
gentil já que ele tinha sido um idiota com ela. – Sim.
Luc pegou a xícara, olhou sem ver seu conteúdo e pousou o objeto na mesa sem
beber. – Me perdoe.
Gaia que bebia seu chá, já focada no trabalho, sentiu o líquido dar um nó na garganta
e começou a tossir engasgada. Luc se assustou, deu a volta na mesa correndo, agachou ao
lado de sua cadeira e tentou ajuda-la. Gaia se acalmou, sem ar e com lágrimas nos cantos
dos olhos.
- Você...você está bem? – Luc soou desesperado.
- Você...acabou de...pedir perdão?
- Isso é tão surpreendente assim? – Ele perguntou e, para sua surpresa, não estava
irritado como sempre estava com tudo.
- É. Você sempre foi orgulhoso demais pra pedir desculpa por qualquer coisa. Mas
perdão? Isso vindo de você parece tão....impossível.
- Eu... – Luc passou a mão na nuca, nervoso, as palmas de suas mãos suando. – Sei que
você não merecia minha atitude deplorável... Eu não queria magoar você... Eu nem estava
bravo com você.
- Então com o que você estava bravo? – Gaia perguntou.
- Eu... – A resposta o atingiu como um soco em sua mente.
L i k a s t í a 0 4 | 57

Gaia ficou preocupada pela expressão dele, parecendo meio perturbado. Ela colocou
uma mão em seu rosto, querendo tranquilizá-lo. – Está tudo bem, Luc. Desde que você
cumpra nosso acordo de ser profissional, por mim está tudo bem. Fique calmo.
A gentileza dela, a paciência com ele que não era o ser vivo mais fácil de lidar no
mundo, era tocante. Sem pensar muito no que fazia, seguindo um impulso, ele cobriu a
mão dela em seu rosto com a mão dele, se aproximou e a beijou. No início Gaia estava
surpresa demais para reagir, mas logo, sem pensar, ela retribuiu.
Parece tão....certo. Luc pensou antes de relutantemente se afastar ouvindo a voz nada
sutil.
- E eu comprei aquela arma de ataque marinh... Oh, Gaia, não sabia que você estava
aqui. – Les disse com seu olhar brincalhão, deixando bem claro que ele vira o que
aconteceu e atrapalhou de propósito só para encher o saco de seu irmão.
- Les. – Luc disse em tom de aviso.
- O que, irmão querido? – Les piscou como uma virgem apaixonada, fazendo Gaia
esconder um risinho com a mão.
- O que você quer? – Luc perguntou de mau humor.
- Gaia. – Les disse com um ar triunfante quando Luc ficou visivelmente irritado. – Gaia,
milady gentil. Você poderia me ajudar a organizar o design do quartel?
- Você que organize! – Luc disse sem pensar.
- HAHAHAHAHA! – Les saiu rindo, desviando habilmente de uma estatueta de bronze
que Luc jogou nele.
- Idiota. – Luc murmurou.
Mais tarde, Luc sentou no mirante que mais gostava no palácio. Ele não dissera ou
chamara ninguém, mas sabia que logo quem ele precisava apareceria.
- Posso? – Lich sinalizou com uma mão enevoada, se materializando ao lado do irmão,
pedindo para se sentar com ele.
- PUTA MERDA! – Luc gritou e deu um pulinho no sofá de dois lugares.
- Vou entender isso como um sim. – Lich, agora plenamente materializado, tirou o
manto com caveiras de felinos nos ombros e símbolos necromantes estampados no tecido.
Mesmo cansado, durante o jantar ele sentiu que Luc precisava conversar e, sem conseguir
adiar, foi praticar um ritual necromante e voltou o mais rápido que pôde para encontra-lo.
Luc ficou em silêncio por um tempo, organizando o caos em sua mente, mas a paz
estranha em seu coração. – Eu preciso de um conselho.
- Les estava aqui a noite toda. – Lich disse, mesmo que soubesse que seus irmãos
sempre o procuravam para pedir conselhos.
- Nem vou comentar. – Luc deu um empurrão de leve no ombro do outro e riu. Lich
não riu. Nunca ria. Mas, de alguma forma, ele, seu irmão, Aine, seus pais e Calíope sempre
L i k a s t í a 0 4 | 58

sabiam quando ele ria por dentro, na mente, ou fosse lá onde fosse que ele ria. – Não ria. –
Lich ergueu uma sobrancelha pra ele. – Ok, comentário idiota.
- Diga de uma vez.
- Acho que...eu...eu estou...meio que...talvez...acho...
- Lucius. Você vai terminar alguma frase?
- Acho que estou apaixonado.
- Gaia já sabe? – Lich esticou as pernas e colocou os pés sobre a mesa de centro.
- Eu não disse, mas nós... Espera. Como você sabe que é Gaia? Como sabe que estou...
– Luc se sentiu um idiota porque se tinha alguém que sabia o que os irmãos sentiam ou
precisavam esse alguém era o caçula. – Você já sabia.
- Sim.
- A quanto tempo?
- Desde o aniversário de Maia a mais de um ano.
- O que?! – Luc pensou sobre isso e realmente ele vinha se sentindo diferente sobre
Gaia, mas achava só que ela era mais irritante. – Eu só pensei que ela estava me irritando
mais...
- Você sempre briga com quem ama. – Lich disse simplesemente.
- Eu não!
- Irmão, você não sabe lidar com sentimentos calmos, por isso você reage brigando,
sendo possessivo, ciumento. Lembra quando você deu um soco naquele garoto da nobreza
Tiger que queria ser meu amigo?
- Mas você não dava a mínima pra ele.
- Eu não dou a mínima para praticamente ninguém. Esse não é o ponto. Você não briga
comigo porque sabe que não reajo brigando como Les. Nem com a Aine porque ela é
adorável demais. Com nossos pais você sempre foi meio rebelde. É seu jeito de amar. Você
ou cria conflitos bobos ou é ciumento.
- Ela vai rir de mim se eu contar que gosto dela.
Luc nunca foi inseguro e vê-lo assim deixou Lich incomodado. – Ela riu quando você a
beijou?
- Não, mas....Como você sabe que eu beijei ela?
- Você entrou praticamente saltitando na sala de jantar e com um sorriso besta na
cara. Deduzi e você acabou de confirmar. – Lich deu de ombros.
- Irmãozinho, eu te adoro, mas às vezes você é assustador. – Luc riu alto. – Não, ela
não riu. Mas eu não sei... Ela me deixa inseguro... Como vou saber se a amo mesmo ou se
só estou maluco?
- Fácil. Observe a si mesmo.
- Como assim?
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- Você treme por dentro quando a vê?


- Sim.
- Suas mãos suam sem motivo, você se sente eufórico e em paz ao mesmo tempo, seu
coração parece pular na garganta, você quer vê-la sorrir o tempo todo porque isso te deixa
em êxtase, tudo te lembra ela até mesmo as coisas mais improváveis, - Lich tinha um olhar
distante como se não lembrasse mais que Luc estava do lado - toda hora você pensa nela
como uma obsessão, seu coração bate mais rápido ao pensar nela, o ambiente parece ficar
mais iluminado quando ela entra...
- Sim.
- Então você a ama.
- Lich, eu sei que você é o conselheiro dos tri, mas... Pode procurar a gente quando
quiser se abrir, mano.
- Eu sei. – Lich olhou para ele sem entender porque o irmão estava dizendo aquilo.
- Então... Quem é ela? Ou ele? – Luc perguntou.
- Não entendi.
- Irmão, eu posso ser explosivo, mas não sou burro. – Luc se xingou mentalmente por
não ter percebido antes, mas a forma como Lich falou sobre os “sintomas” do amor não era
apenas teórico. Seu irmão estava apaixonado por alguém e não era algo novo.
- Um dia, Luc. Um dia. – Lich se levantou e saiu andando, cansado demais para sair
com sua magia enevoada.

~o ⭐ o~
- Todas mortas?! – Aine se remexeu no trono.
- Infelizmente, sim. – Scylla disse.
- Eu não entendo... Como ninguém percebeu? – O conselheiro, um homem jovem,
pouco mais velho do que Aine, perguntou.
- Harpias? – Aine perguntou.
- Possivelmente. – Scylla respondeu.
- Quando foi a última vez que tivemos notícias delas? – O conselheiro perguntou.
- Pouco antes da viagem de Maia. – Scylla disse.
- Então, Maia foi uma das últimas pessoas que viram as sacerdotisas dos templos dos
Aneis e das Luas vivas?
- Possivelmente, ela, Cassiopeia e Sarin foram as últimas. Não haviam viajantes depois,
exceto os que as encontraram hoje cedo. – Scylla esclareceu.
- Precisamos interroga-las, majestade. – O conselheiro disse.
- Sim. – Aine se voltou para Scylla. – Desculpe, mas é necessário...
- Eu sei. Vou convoca-las logo cedo.
L i k a s t í a 0 4 | 60

- Algo mais? – Aine perguntou, vendo o incômodo na face de Scylla.


- O tempo.
- O que? – Aine não entendeu.
- O tempo não bate. Não sei o que significa, mas, não bate. Assim como as marcas e
formas de ataque não batem com as características das harpias. – Scylla disse.
- Vamos manter isso entre nós por enquanto. – Aine dispensou os outros, ficando
sozinha com Scylla. – Maia vai nos ajudar com suas impressões sobre o que viu.
- Sim. – Scylla respondeu, sua mente já trabalhando nos inúmeros possíveis cenários
futuros.

~o ⭐ o~
Maia estava deitada com os olhos fechados. De repente, ela os abriu e um sorriso doce
se formou em seu rosto. Você está aí? Ela enviou a mensagem telepática.
Sempre. Cassi respondeu. Funcionando?
Sim. Com perfeição.
Assim como sua beleza, querida. Cassi disse, satisfeita.
Quando posso ir?
Em breve, linda. Enquanto isso, se prepare e cuide-se. Precisamos de você em plena
forma.
Maia levantou ao ouvir uma batida na porta. – Entre.
- Oi, querida. – Scylla abraçou a filha.
- Oi, mãe.
- Janta comigo hoje?
- Claro. – Maia se levantou, arrumou o vestido e seguiu a mãe.
Amanhã eu conto. Não quero estragar esse sorriso doce no rostinho dela. Scylla
pensou e deixou de lado o problema para não fazer Maia sofrer pela morte das sacerdotisas
que ela com certeza tinha se aproximado na viagem.

~o ⭐ o~
E a questão que deixo hoje é: pelo que você quer ser lembrado? Pense nisso e veja
como sua vida vai ganhar um sentido novo, uma função maior em sua forma de agir e
pensar.
L i k a s t í a 0 4 | 61

Capítulo 08
Lutar contra alguém que já foi tão querido é sempre doloroso. Especialmente quando
percebemos que nunca tivemos a mesma importância para essa pessoa que demos a ela.
Mas, quando existem coisas ameaçadas por nossos antigos “amigos”, a dor é rapidamente
substituída pela raiva...

~o ⭐ o~
No dia anterior, Luc fora até Scylla, tremendo como uma criança sem pelos no frio das
montanhas. Lich que estava em Tiger no momento, foi para a reunião dando apoio moral
ao irmão que, embora visivelmente aliviado, tinha garantido que não precisava, sempre
orgulhoso. Scylla se sentou em sua sala de visitas no templo, atrás de sua mesa, com Luc
sentado na cadeira à frente, Lich um pouco atrás dele. Luc sentou ereto, ombros para trás,
orgulhoso, mas o tremor era visível.
- Eu queria...eu quero... Eu quero...ér...
- Dizer. – Lich disse calmo atrás do irmão que parecia ter esquecido até como respirar.
Scylla se mantinha tranquila, mas com um olhar firme e duro, internamente se
divertindo com a situação.
- Dizer...isso...quero dizer.
Scylla colocou os cotovelos na mesa, cruzando as mãos e as apoiando sobre o queixo,
observando com cara de poucos amigos.
- Dizer que... – Luc coçou a nuca. – Eu gosto da sua...sua....é ela...sua...
- Filha. – Lich disse.
- Filha, isso... Sua filha. Pronto. Eu disse.
- Gosta? – Scylla perguntou com a mesma expressão irritada.
- Eu...acho...que...eu. Não. Eu sei que amo. Amo sua filha. – Luc disse.
- Você está me dizendo que ama Maia? – Scylla perguntou divertida, só para deixar ele
mais nervoso.
- Não! Nunca! – Luc disse e logo se corrigiu. – Não que Maia não seja linda. Não me
entenda mal. Eu só não...não é...
- Ela. – Lich disse no mesmo tom calmo e deu um olhar significativo para Scylla,
entendendo o que ela fazia.
- Ela. Isso. Não é ela. É Gaia. Eu amo sua filha Gaia. – Luc sentiu até seus pés suarem.
Scylla, de pura maldade, levou quase um minuto encarando Luc com uma expressão
digna de vilão assassino, mas Luc sustentou o olhar dela, decidido.
- Respire, garoto. – Scylla disse, relaxando a expressão enquanto encostava na cadeira
e Lich balançava a cabeça.
Luc soltou o ar que nem percebia que estava segurando. – Então... A senhora aprova?
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- Se eu disser que não você vai desistir? – Scylla perguntou.


Que maldade, tia. Lich pensou.
- Nunca. – Luc disse sem pensar duas vezes. – Não se ofenda, tia. Mas não posso
desistir dela, nem mesmo a seu pedido.
- Não me ofendi. Só tem uma coisa que não entendo.
- Pergunte, tia. – Luc disse, se preparando para um longo interrogatório maternal.
- Porque você demorou tanto para entender o óbvio? – Scylla sorriu.
- Ein? O que? A senhora sabia?
- Luc, meu garotinho explosivo, eu sou a maior telepata viva neste mundo, lembra?
Luc finalmente percebeu que seu irmão não parecia nada surpreso. – Você sabia.
- Claro. – Lich disse simplesmente.
- E porque não me contou? – Luc perguntou.
- Porque você não perguntou. – Lich disse calmo como sempre e se virou para Scylla. –
E sobre o que eu falei, tia?
- Claro, claro. – Scylla abriu a gaveta e tirou uma caixa pequena. – Gaia adora aquela
torta horrível de cabeças de peixe. Use este tempero. Eu que fiz a um tempo. Uma
receitinha secreta. Ela vai adorar.
- Obrigado... – Luc conseguiu dizer, então estendeu a mão para ela.
Scylla a apertou com uma força que ele nunca imaginara que aquela senhora tivesse. -
Luc, por enquanto você tem minha bênção, mas olhe errado, respire errado em direção à
minha filhinha e vou usar minha adaga pra cortar essa coisa que você tanto gosta no meio
das suas pernas. – Scylla disse e, apesar do sorriso, seu olhar deu tanto arrepio em Luc
quanto o olhar de seu irmão mais novo.
No dia seguinte, Luc pediu ajuda de seus irmãos para fazer “tudo do jeito certo”, de
acordo com ele mesmo. Lich sabia que Gaia morria de medo dele. Tudo bem. Muita gente
morria de medo dele. Então deixou um recado avisando que ela não devia passar perto dos
jardins naquele dia, pois estaria fazendo um ritual necromante arriscado. Gaia nem
perguntou nada, nem desconfiou, supondo que ele havia mandado o mesmo aviso para
todos. Les saiu com o irmão mais velho para escolher um presente, ajudar na decoração,
enquanto Lich cuidava no menu e fiscalizava as cozinheiras para que nada desse errado,
seguindo todas as coisas que ele investigara sobre os gostos dela. O que não precisou de
muito porque, surpreendentemente, Luc sabia muito sobre Gaia só de observar ela durante
anos.
Como ele não percebeu antes o que sentia? Lich se perguntava o tempo todo.
Assim, um dos mirantes preferidos de Luc foi todo decorado com vasos de flores
amarelas e azuis, uma mesa grande com alimentos leves, queijos-de-peixe, vinho, cubinhos
de carne semicrua temperada, doces e uma torta recheada com cabeças de peixe, usando
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aquele tempero de Scylla. No centro do mirante, havia uma mesa pequena, com duas
cadeiras estofadas, flores no centro, velas rosas, e todo o mirante com iluminação baixa,
com velas em enfeites pequenos e redondos flutuando com magia decorativa.
Quando Gaia chegou, havia um lindo vestido azul sobre a cama, com um bilhete
pedindo que ela o usasse e comparecesse no mirante no centro do jardim. Sem entender
nada, chateada porque, depois do beijo, Luc desaparecera por dois dias, nem mesmo indo
no escritório do palácio, deixando o trabalho todo para ela e Alart. Ela tomou banho,
colocou o vestido, o anel que Maia lhe dera e prendeu o cabelo num coque alto, meio
desleixado, simples, mas com um charme inegável. Pensando em pedir para alguém avisar
à Sunny, que ela achava ter enviado o vestido, que não poderiam se reunir ali por causa da
mensagem de Lich, ela abriu a porta e soltou um grito de susto.
- Lich. – Gaia colocou a mão no peito, quase tendo um troço.
- Vamos. – Ele disse simplesmente.
- Eu...eu não vou lá. Vou avisar, pode ficar tranquilo.
- Vamos. Agora. – Lich disse com aquela autoridade na voz que fazia todos lhe
obedecerem automaticamente.
- Ta..ta...bom... – Gaia aceitou, tremendo visivelmente.
Lich caminhou ao lado dela. – Relaxe, garota. Não mordo.
Gaia ficou sem graça, mais ne, e começou a roer as unhas, um hábito horrível e
persistente. Quando ela finalmente decidiu o que responder, ela ficou muda, com seus
olhos sendo atraídos para o lindo mirante decorado e Luc vindo em sua direção, lindo como
sempre.
- Entregue. – Lich comentou antes de se virar e sair.
Luc levou Gaia para o mirante, segurando delicadamente sua mão. O nervoso dele
diante de Scylla nem se comparava ao seu grau de nervosismo ali. Eles jantaram,
conversaram sobre coisas aleatórias, Gaia riu muito com as histórias de Luc, o que a
surpreendeu porque ele nunca pareceu ser do tipo engraçado. Ele não era. Mas com ela
parecia mais fácil, natural, ser bem humorado. Depois de horas de um jantar tranquilo, ele
pegou sua mão.
- Eu, sabe, a gente... – Luc respirou, contou até três e recomeçou. – Isso não está
certo.
Confusa, Gaia viu ele se levantar de sua cadeira, ajoelhar ao lado da dela, virá-la de
frente pra ele, segurar sua mão e dizer numa voz trêmula. – Gaia eu gos...Não. Eu amo. É
isso. Amo você. E...bem...eu não sou o mais doce, mais gentil, mais fofo, mais calmo dos
felinos, e eu tenho um gênio terrível... Eu não to facilitando ne? – Ele disse e ela escondeu
um risinho com a outra mão. – Mas, você poderia me dar uma chance? Sabe....a gente
poderia...
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Gaia engoliu a vergonha que sentia, tentando lembrar do que sua mãe faria, e, com
uma grande dose de coragem, segurou o rosto dele com uma mão e o beijou. – Sim.
Aquela única palavra tirou um peso dos ombros de Luc e ele a beijou como se o
mundo estivesse acabando. Quando finalmente quebrou o beijo, ele colocou um colar de
ágatas de um azul anil no pescoço dela. – É lindo... – Ela suspirou. – Mas você não precisa
me dar joias...
- Preciso. Gosto de ver você usar coisas que eu lhe dei. – Ele disse com orgulho e ela
revirou os olhos.
- A gente só....você sabe...pode deixar isso entre nós por enquanto. – Gaia perguntou,
precisando se acostumar com a atenção que aquilo iria trazer para cima dela.
- Bem, tirando meus pais, meus irmãos, Aine e sua mãe...
- ESSE POVO TODO SABE?
- Sim, amor, sabe. Minha mãe quase ficou sem falar comigo porque eu contei primeiro
pra sua mãe e meus irmãos. – Luc riu e repentinamente se sentiu inseguro. –
Mas...então...posso te chamar de minha namorada ne?
- CLARO, NE, IDIOTA! – Les gritou de trás da moita onde se escondera esse tempo
todo, arrastando Lich para mais uma armação dele.
- LESAT, SEU...SEU...SAI DAQUI, SUA BESTA! – Luc jogou um cubinho de carne no irmão
que saiu correndo e gargalhando. – SEU DOENTE!
Lich saiu tranquilamente, limpando os pedacinhos de folhas na roupa. Do nada ele se
virou para Gaia ainda sentada, sorrindo enquanto Luc, próximo da grade de mármore
jogando coisas em Les e gritando com ele. Gaia quase gritou quando Lich voltou aqueles
olhos assustadores dele pra ela. – Desculpe. Alguém tinha que controlar Les. Com licença. –
Lich se transformou em uma névoa negra e voltou para dentro do palácio.

~o ⭐ o~
- E ela contou tudo? – Sarin perguntou, massageando as costas de Maia.
- Uhum. Tudo. Gaia nunca foi do tipo que guarda segredo da gente.
- Lucius contou pra sua mãe sobre sua visita. – Cassi disse, observando as duas,
sentada um pouco mais distante.
- Fofoqueiro. – Maia comentou.
- Foi meio sem querer. Ela falou sobre arrancar a genitália dele se ele não se
comportasse direito com sua irmã e ele lembrou da sua visitinha. Claro, ela captou o
pensamento e tirou a história a limpo. – Cassi disse.
- Isso explica o comportamento carinhoso dela comigo esses dias. – Maia comentou,
sentou na cama e deu um beijo apaixonado em Sarin. – Obrigada. Podemos começar logo
com isso? – Maia perguntou para Cassi.
L i k a s t í a 0 4 | 65

- Só mais um pouco de paciência, querida. – Cassi se levantou e segurou o queixo dela,


antes de lhe dar um beijo.

~o ⭐ o~
- Obrigada por me deixar ver suas memórias. – Scylla comentou.
- Sabe que eu não te nego nada, tia. – Les disse, sempre feliz por fazer parte dos
planos de Scylla.
- Foi lindo. Fico feliz por ela.
- Ela já te contou o que aconteceu?
- Não. Eu estive ocupada nas investigações do caso das sacerdotisas. Quando
finalmente pude descansar hoje, era muito tarde e ela já estava dormindo. Mas acho que
contou pra Maia.
- Como Maia está?
- Triste com a morte das sacerdotisas. Ela já as considerava amigas, irmãs até. A
relação dentro dos templos se torna muito próxima em pouco tempo. Mas Cassiopeia e
Sarin têm feito um ótimo trabalho a consolando.
- Ela ainda não conversou com a senhora sobre elas?
- Não e não quero perguntar. Já é difícil para minhas filhas terem crescido com uma
telepata forte em casa, com suas privacidades sempre em risco...
- Você nunca invadiria a privacidade delas, tia.
- Eu sei, mas, mesmo assim... – Scylla suspirou. – Vá, garoto. Você já fez muito por
hoje. – Scylla abriu um portal, deu um beijo na testa de Les e o enviou pelo portal até o
lugar para onde ele costumava ir misteriosamente. Scylla desconfiava do motivo, mas não
queria ser intrometida. Se ele precisasse, ele sabia que podia contar com ela.

~o ⭐ o~
Por algumas semanas, nada mudou. Até que, em uma noite, Gaia finalmente cedeu
bateu na porta de Luc. Ele abriu e a olhou surpreso. Ela nunca aceitara mais do que uns
amassos e sempre longe dos outros por sua timidez. Mas, quando ele pensou em perguntar
algo, ela o beijou e então sua outra cabeça, aquela de baixo, assumiu o controle de seus
pensamentos.
Luc fechou a porta decidido a tornar aquela a noite mais maravilhosa de suas vidas.
Lich ouviu os sons bem característicos enquanto passava do lado de fora do porta do irmão.
Por um lado ele ficou feliz pelo casal, por outro ele quis dar um soco em Luc porque, ouvir
aquilo fez seu controle já fraco sobre sua compulsão quebrar de vez.
- Eu preciso ir... – Ele sussurrou ao mesmo tempo que tentava se controlar para não
decepcionar seu pai de novo. Só uma vez...só mais uma vez. Lich só voltou para casa depois
L i k a s t í a 0 4 | 66

que o sol tinha nascido, se sentindo culpado e revigorado, energizado, pronto para
qualquer coisa.

~o ⭐ o~
- Todas mortas do mesmo jeito. – Scylla disse. – Não tenho dúvidas de que foram
harpias. Mas, de acordo com os depoimentos das meninas e o que vimos, não entendo
como elas atacaram assim. Harpias não são fortes desse jeito. Não o suficiente para acabar
com todas as sacerdotisas de todos os templos dos Aneis sem chamar atenção de ninguém,
sem que nenhuma escapasse. Não faz sentido.
- As memórias de Maia, Cassiopeia e Sarin não mostraram nada incomum. – Aine deu
um laço na fita que fechava seu decote. – Quais as opções aqui?
- Difícil dizer. Os arquivos não mencionam nenhum caso parecido. Nada que posso nos
guiar. Vou ter que analisar os arquivos mais antigos, da época do pré-reino.
- Tão longe no tempo? Os arquivos são muito velhos... Eles vão resistir a mãos os
folheando?
- São arquivos mantidos por magia. Não é garantia de manter totalmente a salvo, mas
ajuda e é nossa melhor opção. Pensei em pedir a sua mãe para analisa-los. Ela sempre foi
boa com isso e confio nela.
- Boa ideia. A mamãe vai adorar ter algo para ocupar a mente.
Mais tarde a notícia de uma pessoa morta no litoral chegou aos ouvidos de Aine ao
mesmo tempo em que Scylla e sua assistente entrava com expressões tensas.
- O que houve? – Aine perguntou preocupada.
O mensageiro que havia levado a notícia para Aine, saiu discretamente para dar
privacidade às mulheres.
- Outro ataque de harpia. – Scylla disse, sem rodeios.
- Deixa eu advinha... – Aine disse. - No litoral?
- Sim... – Scylla olhou para o mensageiro que já estava na porta. – Entendo. Uma de
nossas sacerdotisas sentiu uma mudança na magia de detecção esta madrugada, mas foi
tão sutil que ela só percebeu analisadando duas vezes as informações antes de sair para
descansar.
- Tem mais alguma coisa, não é?
- Sim. A morta é uma candidata ao sacerdócio. Faria o teste na semana que vem para
avaliar sua magia. – Scylla esclareceu.
- Que Kallisti me perdoe, mas eu estava torcendo para ser apenas o ataque de algum
homem nojento. – Aine disse e esclareceu. – O mensageiro disse que a moça estava sem as
peças íntimas de suas roupas, com marcas de garras por todo corpo, principalmente no
rosto.
L i k a s t í a 0 4 | 67

- Sem as peças íntimas? – A aprendiz de Scylla soou confusa.


- É estranho mesmo. – Aine comentou.
Mas Scylla, percebendo a confusão da menina, percebeu que tinha algo a mais. – Fale.
- Vai parecer bobagem, mas, uma sacerdotisa leonina que estudou comigo a uns anos
uma vez falou de peças íntimas sumindo dos varais. Não sei...só lembrei disso.
- Peças de roupa sumindo é normal. – Aine disse e Scylla estranhou, mas decidiu
investigar isso depois. – Vamos nos ater aos fatos. Scylla, procure minha mãe ainda hoje e
siga com seu plano. Vou enviar investigadores até o litoral e avisar ao Lich sobre o ocorrido,
afinal, ele é o Duque de lá. Não quero que essa história se espalhe. Não vamos causar
pânico no povo, mas se mantenham alertas.
- Não se preocupe, Aine. As sacerdotisas já foram avisadas. Qualquer mínimo sinal de
anomalia, mesmo que distante, será avaliado e marcado como alerta máximo. – Scylla
garantiu.
O que Scylla não sabia é que não adiantaria muito esse alerta. Logo ela descobriria que
estava lidando com algo muito esperto, mas, principalmente, traiçoeiro.

~o ⭐ o~
Les pousou os pés na floresta e caminhou alguns metros, virando ruas desertas até
uma casa cercada por muros de cerca viva, com o coração acelerado. Ele passou a mão pelo
cabelo, se certificando que estava bem arrumado e chamou. O portão de madeira foi
aberto e ele entrou, seu estômago roncando com o aroma delicioso de comida. Depois de
jantar na varanda do quarto e conversar por algum tempo, ele guiou a mulher para a cama
com brincadeiras bobas, mascarando um pouco suas intenções.
Ele a colocou sentada entre suas pernas, no meio da cama, ficando atrás dela e a
abraçando.
- Você precisa relaxar. – Les beijou seus ombros e passou a massageá-los, enquanto
beijava sua nuca.
- Eu acho que melhor você ir embora. – Ela tentou resistir pela milionésima vez nos
últimos meses.
- Pare de fugir de mim.
- Não é certo, rapaz.
- Porque não? Eu gosto de você, você gosta de mim...
- Eu nunca disse isso.
- Ai! – Ele riu. – Magoou meu coração indefeso.
Ela deu um tapinha na mão dele, rindo.
- Dramático. Sério.... Eu nem devia deixar você vir aqui.
- Mas deixou. – Les continuou.
L i k a s t í a 0 4 | 68

- Nem sei porque.


- Eu sei. Você me quer, precisa de carinho, eu quero te dar carinho....e umas coisinhas
a mais... – Ele sorriu.
A mulher, temendo fazer besteira, levantou rápido, decidida a ir até a porta e mandar
ele sair, mas seu pulso foi segurado e, num impulso rápido, ele puxou para a cama e deitou
em cima dela, roçando seus lábios nos dela.
- Eu amo você. Você sabe disso a anos. Eu respeitei seu casamento, nunca tentei nada,
nunca nem dei um olhar por anos. Fingi que não te queria por anos. Você está sozinha, sei
que você me deseja, eu te desejo e te amo... Quanto tempo mais vou ter que esperar?
- Não...devemos...
- Você quer. Não quer? – Ele perguntou, sabendo a resposta.
- Mas... – Ela tentou enumerar todas as razões pelas quais não deveria ceder, mas a
proximidade dele e sua própria necessidade não estava ajudando em nada.
- Quer ou não?
Ela deixou ele beijá-la e percebeu que não conseguiria mais resistir aos meses de
insistência nem por um minuto.
- Só uma vez. – Ela disse, mesmo sabendo que não seria só aquela vez.
Ele sorriu com aquele jeito naturalmente sedutor, mas, diferente de todas as outras
vezes que ele sorrira assim pra uma mulher, desta vez seus olhos tinham um brilho que não
deixava a menor dúvida do quanto ele a amava.
- Uma de muitas vezes, Ane. – Les disse e beijou a mulher que ocupava seus sonhos a
um bom tempo.

~o ⭐ o~
Talvez você não entenda ainda o motivo do que estou dizendo, mas o que é importante
é que você não se esqueça disso: a raiva é um ótimo combustível de batalha e uma péssima
conselheira de guerra.
L i k a s t í a 0 4 | 69

Capítulo 09
Não existe em nenhuma espécie vivente um ser mais perigoso e poderoso do que uma
fêmea rancorosa. Essa é uma das leis da natureza mais constantes em qualquer universo. O
erro das espécies é ignorá-la até que seja tarde.

~o ⭐ o~
Meses depois, Gaia e Luc já estavam namorando publicamente e Aine enviara um
presente para o casal, já que a meses não tinha tempo para nada, focada em cuidar do
reino e nas investigações do massacre das sacerdotisas. Nenhum corpo apareceu
novamente nesse tempo, mas Scylla conseguira capturar uma harpia e tortura-la até a
morte, obtendo quase nada de informações. Apenas a data exata da morte das sacerdotisas
nos templos: 6 meses 5 dias e 21 horas. Era a décima quarta vez que Scylla analisava suas
anotações sobre a investigação, mas nada de novo lhe surgia.
Estou deixando passar algo... Eu sinto isso. Scylla massageou as têmporas, com uma
dor de cabeça irritante. – Lich. – Ela disse, sentindo antes de ver ele surgindo de uma
sombra perto da porta aberta.
- Comer. – Lich disse e colocou na frente dela um prato com carne crua temperada e
alguns queijos recheados com carne moída frita em óleo de árvore e legumes.
- Nova receita? – Scylla perguntou, forçando-se a comer algo.
- Sim. Menos o tempero da carne.
- É o que você fez para aquele almoço ano passado.
- Sim. Bom?
- Uma delícia. Mas não é surpresa. Você tem talento pra essas coisas. Enquanto eu mal
cozinho o básico e às vezes ninguém consegue comer.
- Novidades? Sobre o caso.
- Nada.
- Hum. – Lich murmurou e acrescentou. – Tenho que ir.
- Mas já? – Scylla perguntou.
- Preciso ir em casa. – Sem mais nenhuma palavra, Lich foi embora.
- Ue... Mas ele acabou de chegar... – Scylla disse para si mesma, a suspeita coçando em
sua mente, embora ela ainda não soubesse do que exatamente.

~o ⭐ o~
Alart esperou nada paciente seu filho voltar, mas Lich não voltou naquela noite. – Isso
está fora de controle. – Ele resmungou. Agora nem mesmo existiam mais sacerdotisas dos
Aneis pra ele poder enviar seu filho em uma purificação. Ele tinha que pensar em algo ou
alguém para ajudar. Mas quem?
L i k a s t í a 0 4 | 70

Na manhã seguinte, Sunny deu um beijo na testa de Alart que roncava, esgotado pela
noite em claro, se soltou do abraço apertado dele com dificuldade e se arrumou para
começar seu dia. Naquela manhã, apenas Gaia sentou na mesa com ela, já que Lich estava
fora do reino, Les e Luc estavam viajando e só chegariam de tarde. Era bom Gaia estar ali,
Sunny odiava comer sozinha, sempre se sentindo triste com as lembranças teimosas e ruins
de sua juventude que insistiam em a perseguir. Lich chegou em silêncio e tomou o
comando da cozinha, preparando um almoço surpresa para a mãe. Como todos os felinos
da casa, Lich adorava mimar Sunny e Gaia estava indo pelo mesmo caminho. Com todos à
mesa para almoçar, Alart tentava disfarçar o olhar irritado com Lich. Les foi o último a
entrar, ainda com os pelos úmidos do banho.
- Mamãe lindíssima! – Les deu um beijo estalado na bochecha da mãe e a abraçou
apertado. – Como o velho conquistou uma bonitona como a senhora? Ele nem é tão
bonitão...
- Les! – Sunny riu.
- Tenho meu charme. – Alart respondeu sério, mas com um olhar carinhoso pra cena.
- Tem mesmo. – Sunny sorriu de forma bem sugestiva.
- ECA! – Os trigêmeos disseram ao mesmo tempo, causando o riso de Gaia, Sunny e
Alart.
- Podemos conversar mais tarde? – Les aproveitou o barulho dos outros rindo e
perguntou no ouvido da mãe. Mal sabia ele que, mesmo sem olhar diretamente pra ela,
Alart nunca perdia nenhum movimento que tivesse relação à esposa.
- Claro, bebê. – Sunny murmurou.
- Essas carnes que você tem preparado têm um gosto diferente que não consigo
explicar. – Alart comentou com Lich que apenas deu uma explicação evasiva.
Les se sentou em seu lugar e focou em perturbar a paz de Luc, seu maior passatempo.
Alart ergueu uma sobrancelha para Sunny, mas ela apenas acenou com a cabeça e eles se
entenderam com apenas esses gestos. Les só teve tempo para descansar já tarde da noite e
entrou em casa ensopado, sua farda militar pingando, uma chuva torrencial caindo lá fora.
Sunny estava sentada na sala, enrolada no manto de Alart, tomando um chá quente, com
mais uma xícara e a chaleira na mesa ao seu lado.
- Tira isso, bebê. Vai ficar resfriado. – Sunny disse, já aguardando o filho chegar, apesar
do sono e da cara de felino abandonado que Alart fez por ir deitar sozinho enquanto ela
esperava o filho.
- Mamãe. A senhora não devia estar dormindo? – Les tirou o casaco longo molhado e
pendurou perto da lareira, pegando o roupão dele que sua mãe tinha deixado na poltrona
ao seu lado. Ele lhe deu um beijo na testa antes de vestir o roupão e se sentar ao lado dela.
– Está tarde, bonitona.
L i k a s t í a 0 4 | 71

Sunny encheu a xícara com chá e lhe entregou. – Beba e diga o que você queria falar
comigo.
- Mãe... Isso podia esperar.
- Meus filhos nunca podem esperar. Vocês são a coisa mais importante na minha vida.
Vocês e seu pai.
- Mãe, te amo, mas não sei por onde começar.
- Seja direto. Vai facilitar, acredite.
Les deu um sorriso de lado e Sunny se perguntou como seu filho do meio podia ser tão
parecido com Done às vezes.
- Eu...sabe...tem anos que amo uma pessoa.
- Quem mais sabe disso? – Sunny perguntou, não conseguindo evitar de sentir uma
pontinha de ciúmes por não ser a primeira a saber disso.
- Tirando a mulher em questão, ninguém. A senhora é a primeira pessoa pra quem eu
conto. – Les disse.
Sunny quase chorou de emoção ao ouvir isso. Saber que seu filho procurou ela antes
de todos significava muito para ela. – Ela gosta de você?
- Sim. Não sei se ela me ama. Meio que ela passou por um momento difícil
recentemente e ainda está se curando.
- No caso, você se jogou em cima dela como essa tal cura, não é?
- Mãe!
- Lesath, eu te conheço garoto. Te amo, mas você é do tipo aproveitador que não
deixa passar uma oportunidade de agir.
- E é por isso que todas me amam. – Les sorriu.
Sunny balançou a cabeça e sorriu. – Eu nunca perguntaria isso para seus irmãos
porque eles são um pouco mais...err...cautelosos nisso. Mas ela é uma boa pessoa?
- Mããããe! Está insinuando que eu pego qualquer uma?
- Você pega qualquer uma. A questão aqui é se você se ama qualquer uma.
- KKKKK! Relaxe, mãe, ela é ótima. Inteligente, engraçada, nobre, gentil, doce e não me
quer apenas pelo meu lindo corpo sexy. Ela sempre me ouviu, me entende, ri das minhas
bobagens...
Sunny via aquele brilho nos olhos todos os dias ao acordar com seu marido do lado.
Les estava mesmo apaixonado. – Você a ama. O que a torna a minha melhor amiga ou a
pessoa que mais vou odiar no mundo, dependendo de como ela se comporte com você.
- Bem... Meio que... Haha. A senhora vai achar engraçado. – Les tremeu por dentro e
não conseguiu mais olhar nos olhos dela, o que acendeu o alerta na mente de Sunny.
- Diz de uma vez. Sabe que detesto rodeios.
L i k a s t í a 0 4 | 72

- Bem. – Les começou, tomou um gole grande do chá. Porém, como estava muito
quente, ele engasgou e começou a tossir. Sunny levantou, agachou na frente dele e tentou
ajudar a parar a tosse.
- Use seu dom de cura. Foco. – Sunny instruiu.
Les fez isso e, assim que ela acalmou um pouco, ainda ofegante ele soltou: - Ane. É a
Ane.
Sunny rapidamente ficou de pé como se tivesse levado um choque. – Ane? Minha
prima? A Ane...Essa Ane? Mãe da Rainha Aine?
- Sim. Essa Ane.
- Ane? – Sunny perguntou, não conseguindo controlar o choque.
- Sim.
- A Ane que me ajudou a trocar suas fraldas?
- Sim, mãe. – Les revirou os olhos, incomodado. – Essa Ane.
Sunny sentou quase desabando. – Por Kallisti.... Ane?
- Mãe.
- Certo, certo. Desculpa, filho. É que você me pegou de surpresa.
- Eu...mãe eu realmente a amo.
- Não precisa dizer. Está estampado nos seus olhos. Só que vocês são parentes. Não
tão próximos, mas são. Eu não tenho nada contra, se for isso que ela também quer. Mas
entenda que Ane é mãe da sua melhor amiga. Tem muito em jogo, filho. Se vocês tiverem
problemas...
- Aine vai arrancar minha cabeça. Eu sei. Mas eu quero me casar com ela. Só precisa
ela querer também.
- Ane acabou de enterrar a esposa a poucos meses. Não acredito que ela vá pensar em
se casar em breve.
- Eu posso esperar. Esperei por ela desde muito jovem, mãe. Sou paciente.... E
gostoso. – Les sorriu.
- Ai, garoto. – Sunny riu. – Olha, filho, eu vou sempre apoiar o que você decidir. Mas
não quero que você sofra. Se, em algum momento, eu perceber que você não está
valorizando a si mesmo, que ela não quer nada sério, eu vou interferir. Estamos
entendidos?
- Claro, minha linda maravilhosa. – Les deu um beijo na mão dela. – Mas, será que, por
enquanto, podemos manter isso em segredo? Eu só quero contar pro velho e pro Lich
porque ne, aquele sinistro do meu maninho é ótimo pra dar conselhos.
- Certo. E Luc?
L i k a s t í a 0 4 | 73

- Não sei. Acho que não vou contar pra ele não. – Les disse, mas mãe e filho se
olharam por meio segundo e ambos sabiam que ele acabaria contando. Os trigêmeos
sempre contavam tudo um pro outro.
Menos Lich. Sunny pensou com uma pontada de preocupação. Ai, caçulinha, o que
vamos fazer com você.
- Vai me contar? – Alart perguntou, abraçando Sunny apertado na cama.
- Nosso filhote vai falar com você amanhã. Só peço que seja compreensivo.
- Sempre sou. Depois de Lich acho que sou até demais.
- Notou que Luc parece estressado nas últimas semanas?
- Sim. Ele tem disfarçado e Gaia parece estar ajudando, mas definitivamente tem algo
incomodando ele. Eu perguntei, mas ele deu a pressão de comandar o reino como
desculpa. – Alart beijou a nuca de Sunny.
- É mentira.
- Claro que é. Mas, - Alart a virou de barriga para cima e ficou sobre ela – que tal
falarmos sobre nossos filhos amanhã? Hoje quero exercitar a prática de fazer filhotes com
minha linda esposa.

~o ⭐ o~
- Tudo isso é loucura! – Luc disse irritado.
- Loucura é o que você fez. E se eu contar pra todo mundo, nem seu povo vai te apoiar.
Aposto que seu pai é capaz de tirar você do trono!
- Você me enganou!
- Eu? E como eu faria isso? Eu nem tenho magia. Você que abusou de mim, me obrigou
a ir pra cama com você e agora quer jogar a culpa de tudo em mim!
- Ninguém vai acreditar! Basta olhar suas memórias...
- Exatamente. Basta olhar minhas memórias e verão os abusos! Só não fiz isso ainda
porque não quero que minha mãe tenha que ver algo assim de novo! – Maia começou a
chorar.
- Para com isso, sua louca! Eu...eu vi sua irmã! Eu chamei o nome dela várias vezes!
- Você me chamou de Gaia, sim, mas eu gritei, me debati, chorei, e nada fez você
parar! E ainda me drogou pra me levar pro seu quarto todas as vezes! Agora você vai ter
que casar comigo!
- Eu NUNCA me casaria com você! – Luc ergueu a mão para dar um tapa nela, mas
parou a meio caminho.
- VAI, BATE! Não seria a primeira vez que você me agride!
- Não me teste, Maia! Eu adoraria matar você agora.
- Claro, afinal você mataria dois de uma vez só não é?!
L i k a s t í a 0 4 | 74

- Dois? – Luc sentiu as pernas gelarem. – Por Kallisti... Não. Não é possível. Não... Você
está grávida?
- Claro que estou! Meses me fazendo de escrava sexual...o que você achou que iria
acontecer, seu doente, maníaco!
Luc, assim como seus irmãos, cresceram valorizando demais a relação entre pais e
filhos. Sua mãe, desde que eles tinham idade suficiente pra entender, contou tudo o que
ela viveu e sempre deixou claro a importância deles serem unidos e de valorizarem seus
filhos acima de tudo. Naquele momento, ele sabia que ela estava certa. Seu pai seria capaz
de destrona-lo por abusar dela e abandonar seu filho. Ela tinha as memórias para provar...
- Gaia... – Luc murmurou, sabendo que sua relação com ela acabaria de qualquer
forma agora.
- Você vai falar a verdade pra ela ou eu falo. Minha irmã não merece viver com um
estuprador! Eu vou dizer pra ela cada detalhe, tudo o que você fez comigo!
- Cala a boca, Maia! – Luc deu um tapa na cara dela e se arrependeu no mesmo
segundo, ajudando ela a se levantar. Maia chorava tanto que ele quase sentiu pena e, meio
que num impulso, ele a beijou apaixonadamente enquanto ela tentava em vão se soltar.
- Luc? – Gaia parou na porta do quarto dele, de camisola, finalmente tendo coragem
para dormir com ele pela primeira vez. O que agora, obviamente, não aconteceria.
Maia finalmente se soltou e correu para os braços da irmã, chorando de um jeito que
Gaia nunca tinha visto ninguém chorar. Cconfuso e devastado, Luc sentiu o ódio no olhar de
Gaia.
Era o fim.

~o ⭐ o~
Scylla sentou à frene de Aine com todos os documentos e provas das investigações,
prontas para começar a analisar tudo juntas. Mas logo uma das Sentinelas impediu o
trabalho, chamando Scylla com urgência. Aine, preocupada, seguiu com a sacerdotisa para
entender o que estava acontecendo e encontraram Gaia segurando Maia em um abraço
apertado, esta última chorando compulsivamente.
- Shhh... Calma, mana. – Gaia tentava acalmar a irmã, mas parecia inútil.
Scylla sondou por alto a mente da caçula, mas parecia um turbilhão onde tudo que ela
conseguia captar era muita dor, violência e ressentimento. Respeitando a privacidade da
filha, ela parou a sondagem aguardando que a moça se acalmasse e falasse já que Gaia se
recusava a dizer o que tinha acontecido.
- Tia... Não é melhor chamar as duas? – Aine perguntou.
- Sim. Claro. – Scylla chamou uma sacerdotisa e deu ordens para trazerem Cassi e Sarin
até ali.
L i k a s t í a 0 4 | 75

- Vocês sabem o que aconteceu? – Aine perguntou assim que as duas entraram.
- Acho que faço uma ideia. – Cassi disse e se virou para Scylla. – Ela vai contar. Não
cabe a mim dizer quando ela nos pediu segredo.
- Podemos ficar a sós com ela? – Sarin perguntou.
- Não vou deixar minha irmã sozinha! – Gaia gritou.
- Filha, deixa elas. – Scylla chamou, sabendo que Maia precisava das duas naquele
momento e parecia ainda mais nervosa quando olhava pra Gaia.
Aine também tinha notado o olhar. – O que acha?
- Conheço esse olhar. Já vi muitas vezes em Alart quando olha pra Sunny. – Scylla disse
baixinho. – Culpa. Seja lá o que houve, tem a ver com Gaia.

~o ⭐ o~
A névoa negra passou sutilmente pelas sombras do palácio Tiger, como se procurasse
algo. A porta do escritório de Aine estava fechada e selada contra invasores, mas pertiria a
passagem de pessoas de confiança. Assim, a névoa passou sem problemas, sondou os
papéis da investigação e saiu.

~o ⭐ o~
Lich encontrou o irmão devastado e bêbado. Depois de ouvir toda a história, ele
colocou uma mão sobre seu ombro e disse: - Vamos. Les tem mil poções para curar essa
bebedeira.
- Mas eu não quero.
- Luc, bêbado não vamos resolver nada. Agora levanta.
Mesmo sem querer, Luc levantou. – Les vai me achar um idiota... Eu tinha que ser um
exemplo... Eu sou o mais velho..
- Você não vai ser menos nosso irmão, independente do que aconteça. Eu sei que a
admiração do Les é importante pra você.
- Nem ligo. – Luc disse orgulhosamente, quase tropeçando eu seu próprio pé.
- Sei. Vamos cuidar disso e falar com nossos pais.
- Eu preciso mesmo? – Luc soou desesperado.
- Você sabe que sim.
- Lich...eu não..
- Uma coisa por vez, irmão. Vamos cuidar de você, contar pros nossos pais e depois
vou sondar isso.
- Você vai comigo? Pra contar pro pai e pra mãe? Ela vai me odiar...
- Não vai. Sabe que eu e o Les nunca deixaríamos você sozinho.
- Eu te amo, maninho. – Luc abraçou e distribuiu beijos no rosto de seu irmão.
L i k a s t í a 0 4 | 76

Lich virou a cara pra evitar o odor forte de bebida. – Luc, já entendi...
- Você é o meu melhor mano caçula, mano.
- Eu sou seu único irmão caçula, cara. Sério. Você bêbado é tão dramático quanto
nosso pai quando bebe demais.

~o ⭐ o~
Vou dizer apenas uma coisa: cuidado com aqueles em quem você confia.
L i k a s t í a 0 4 | 77

Capítulo 10
Às vezes interferir é preciso, embora eu prefira deixar meus bebês felinos se virando
com seus problemas. Outras vezes, apesar de necessário, não preciso interferir. A
inteligência deles faz isso muito bem.

~o ⭐ o~
Aine ficou congelada por alguns segundos depois de ouvir o que tinha acontecido
entre Luc e Maia. No entanto, seu temperamento Tiger logo assumiu com aquela raiva
típica de seu povo.
- Ele...porque? Ele sempre foi tempestuoso, mas isso? – Scylla não sabia se sentia mais
raiva, decepcção ou tristeza, afinal ela viu os trigêmeos crescerem e nunca esperou isso
deles.
- Me diz que tem alguma chance disso ter sido um mal entendido... – A água no copo
de Aine fervia em suas mãos.
- Não. A sacerdotisa que mandei para ver suas memórias não deixou dúvidas. Os
abusos aconteceram. Ele usou uma droga para facilitar o controle sobre a mente dela, atraí-
la pelo portal até o palácio e...
- Chega. Eu não consigo nem ouvir isso. – Aine disse. – Tem noção do problema que
isso será? Eles são meus amigos, todos eles, mas além disso Luc é o Rei interino dos
leoninos. Abusar de alguém já é deplorável, mas ainda por cima da cunhada... Eu...
AAARHG! QUE RAIVA! – Aine incendiou a mesa ao seu lado, precisando descontar em
alguma coisa.
- Maia não quer nem me deixar chegar perto. – Scylla lamentou, sentando, derrotada
na cadeira. – Ela nem me deixou avaliar as memórias dela.
- Claro que não. Maia nunca deixaria a senhora ter outra memória de abusos na
cabeça. – Aine disse. – Marquei uma reunião com os reis leoninos e o filho deles amanhã.
Pela reação do tio Alart, ele já deve saber do que se trata. Quero que descanse e esteja
presente amanhã também.
- Tenha calma, Aine. – Scylla disse. – O caso é grave. Se deixar seu temperamento Tiger
tomar conta... Bem, isso facilmente pode se transformar numa guerra.
- Eu sei e acredite, a vontade de começar uma guerra agora é quase insuportável. Mas
vou tentar pelo menos por alguns minutos...

~o ⭐ o~
- Luc... – Sunny levantou num pulo, pronta para, pela primeira vez na vida, dar um soco
no filho. – VOCÊ FEZ O QUE?!
L i k a s t í a 0 4 | 78

- Amor... Calma. – Alart tentou conter o temperamento Tiger da esposa, embora ele
mesmo estivesse pronto para dar uma surra no primogênito. – Você... Lucius, explique-se. E
rápido.
Luc olhou para os irmãos atrás dele, respirou fundo e contou tudo de que se lembrava.
– Eu juro. Não sei como ou o que aconteceu. Só posso pensar que estou louco, porque,
mesmo com eu lembrando de ter Gaia comigo todas as vezes e ter sido super carinhoso
com ela, a memória de Maia é incontestável.
- LOUCO?! Você tem alguma noção do que isso faz com uma felina? Claro que tem. Eu
nunca escondi de vocês, não é? – Sunny se levantou e começou a caminhar de um lado pro
outro, incapaz de ficar parada com o turbilhão de emoções e memórias.
- Eu sempre fui claro com você sobre o que fui obrigado a fazer com sua mãe e o
quanto isso me assombra até hoje. Sempre achei que meu exemplo seria o suficiente para
te impedir de sequer pensar nisso. – Os olhos de Alart brilhavam com flashes brancos, seu
poder reagindo às emoções violentas. – Pelo visto me enganei.
- Pai, eu sei que Luc errou, mas isso pode ser algum tipo de engano. – Les disse,
embora quase não conseguisse esconder a decepção em sua voz.
- Que tipo de “engano” faz um felino honrado abusar de alguém? Porque sempre achei
que tinha criado três felinos honrados. Ou me enganei? – Alart bateu com um punho na
mesa, assustando Les e Luc.
- Pai, o que Les quer dizer, e eu concordo, é que essa confusão entre as memórias do
meu irmão e de Maia não é normal. Algo aqui está errado. – Lich disse, calmo.
- Lich, eu sempre admirei seu senso de justiça, filho, mas... – Sunny começou, mas
pareceu pensar por um segundo. – Lucius.
- Sim, mãe? – Luc disse cabisbaixo.
- OLHA PRA MIM, LUCIUS! – Sunny gritou, perdendo a paciência por um momento. –
Melhor. Lich tem razão. Essa confusão de lembranças não é comum. Você verificou a
memória dela?
- Sim... – Luc disse, incomodado pelo que viu.
- Alguma chance de ser apenas algo que ela entendeu errado? – Alart perguntou.
- Não. – Luc disse. – Mas, mãe, eu posso mostrar o que me lembro. Eu sei que não vai
mudar o fato, mas, eu...
- Pai. – Lich disse. – Eu tenho uma ideia.
- Diga, Lich.
- Com certeza Aine irá nos convocar. Bem, pelo menos Luc, o senhor e a mãe.
- Sim. – Les disse. – E vamos ter que pensar no que dizer ou isso vai se transformar em
uma guerra facilmente.
L i k a s t í a 0 4 | 79

- Minha ideia, pai, é que a gente faça tia Scylla olhar as memórias de Luc. Ela é a maior
telepata viva e tenho certeza que vai aceitar. – Lich disse.
- Sim. Embora isso não mude o fato da filha dela ter sido... Enfim. – Alart tentava se
controlar porque bastava a fúria de Sunny ali. – Vai mostrar que Luc não planejou ou fez em
algum tipo de loucura.
- Scylla é vingativa como qualquer Tiger que se preze, mas é justa também. Essa ideia é
boa, filho, mas ainda não resolve o problema. – Sunny comentou, sem conseguir nem olhar
para Luc, temendo fazer uma besteira.
- Luc, espero que saiba que você vai assumir esse filho. – Alart disse, pronto para dar
uma surra no filho se ele sequer pensasse em negar isso.
- Claro, pai. Isso nem se discute. – Luc disse, decidido.
- Ótimo. – Alart disse e se levantou. – Mais uma coisa. Luc, até segunda ordem, você
está fora dos assuntos do reino. Depois que falar com Scylla, decido o que fazer sobre você.
Agora saia da minha frente.
Luc sentiu uma pontada de tristeza. Ser rei era algo para o que ele foi preparado a vida
toda e ele adorava aquele trabalho. Saber que seu pai poderia tirá-lo do trono era doloroso
demais. Les saiu ao lado de Luc, gelado por dentro com a possibilidade de seu irmão ser
tirado do trono definitivamente porque isso o colocaria na linha de sucessão. Algo que ele
nunca quis. Ter tanta responsabilidade nas mãos o aterrorizava.
Será que posso abrir mão do comando? Assim Lich seria rei né? Ele é bom com essas
coisas de governo... Les pensou e Luc não pode deixar de captar, dando a Les um olhar de
apoio silencioso.
- Mãe, pai. – Lich chamou, agora sozinho com eles na sala.
- Fala, filho. – Alart sentou, visivelmente abalado.
- Tenham paciência. Vocês foram muito compreensivos comigo quando precisei. É
justo que sejam também com Luc.
- É diferente, Lich. – Sunny ainda estava furiosa. – Você veio nos procurar quando
precisou de ajuda. E não tinha abusado de nenhuma mulher.
Lich pensou em falar, mas se calou. Ele deu um passo em direção a mãe que ainda
andava de um lado para o outro. Ele segurou sua mão, deu um beijo na testa dela e saiu.

~o ⭐ o~
- Desculpe, senhorita. – Sarin disse, tampando a visão da porta. – Mas ela está
dormindo.
- Eu... Entendo. – Gaia disse e entregou a bandeja para Sarin. – Entrega pra ela por
favor?
- Claro.
L i k a s t í a 0 4 | 80

- Obrigada. – Gaia saiu, triste.


- Ela já foi? – Cassi perguntou.
- Sim.
- Cuide dela. Maia vai ficar sob seus cuidados até meu retorno. Se algo der errado,
sabe o que fazer? – Cassi ordenou.
- Cuidarei dela, não se preocupe, mestre.
- Amanhã você estará aqui? – Maia perguntou.
- Provavelmente não a tempo da hora da reunião. – Cassi disse. – Tenha cuidado,
linda.
- Eu terei. – Maia sorriu.

~o ⭐ o~
Aine sentou na cabeceira da mesa. – Decidi não convocar nenhum conselheiro em
consideração a história de nossas famílias. Mas quero que saibam que essa é toda a
consideração que terei. Sei que entendem.
Alart sustentou o olhar firme de Aine, embora estivesse envergonhado até a alma. –
Claro. Scylla, Maia, antes de qualquer coisa quero me desculpar pelo comportamento
deplorável do meu filho e deixar claro que não deixarei você desamparada, Maia.
- É o mínimo que espero de você. – Scylla disse, firme.
- Lamento. Eu...eu devia ter contado antes...mas...eu me sinto tão envergonhada... –
Maia fungou ao lado da mãe.
- Você não deve sentir vergonha, Maia. Nunca. – Sunny, ao lado do marido, disse.
- Aine eu gostaria de sugerir uma coisa. Na verdade, foi ideia de Lich. – Alart contou a
ideia do filho mais novo, enquanto Luc se manteve em silêncio do outro lado dele.
- Se Scylla não tiver nada contra, eu concordo. – Aine olhou para a sacerdotisa.
- Claro. A menos que Lucius não queira. – Scylla disse em uma provocação ao rapaz.
Luc ergueu a cabeça e desejou poder ter seus irmãos ali. Eles sempre foram sua força.
– Eu não só aceito como faço questão.
Scylla sinalizou para ele se aproximar e colocou uma mão na testa dele. Por um
segundo Sunny temeu que seu filho sentisse dor porque ver a memória de alguém era
tranquilo, mas também poderia machucar se o mago quisesse. Alart apertou a mão dela
sobre a mesa, em um apoio silencioso, lembrando que, apesar de tudo, Scylla não o
machucaria. Pelo menos, Alart esperava que não. Scylla viu que Luc não mentira. As
memórias dele eram de várias noites em que Gaia batia em sua porta, já tarde, de camisola
e tinham uma relação sexual consensual e doce. Em nenhuma delas Maia aparecia, gritava,
se debatia... Sua mente realmente via algo completamente diferente do que Maia viveu
com ele. No entanto, não era mentira. As memórias de Maia eram muito claras de acordo
L i k a s t í a 0 4 | 81

com a sacerdotisa de confiança que Scylla designou para esse trabalho. Além disso, Scylla
tinha visto as memórias de Gaia na noite anterior, com permissão da moça, e ela nunca
estivera nos braços do namorado dessa forma.
A reunião foi tensa e em muitos momentos só não terminou em briga e numa
declaração de guerra pela amizade antiga entre as famílias. Por fim, Alart decidiu que Luc
não seria mais seu herdeiro, a menos que se casasse com Maia, lhe dando o título de
rainha. Além disso, ele teria que passar por um tratamento psicológico e mágico para
entender o que tinha acontecido e resolver o problema. Maia aceitou ser esposa dele,
desde que pudesse se separar em cinco anos se não desse certo e que não fosse obrigada a
conviver com ele até que ele passasse pelo tratamento. Enquanto isso, Alart adiaria sua
aposentadoria e assumiria plenamente as funções reais, além de preparar Les para ser rei
caso Luc não cumprisse sua parte no acordo.
- Você não é obrigada a aceitar, Maia. – Aine disse na frente de todos.
- Eu sei. Mas, se é pra evitar uma guerra ou a vergonha pra tia Sunny que sempre foi
muito boa pra minha irmã, eu aceito tentar. – Maia disse.
- Certo. Scylla? – Aine perguntou.
- Eu apoio a decisão de Maia. Também não quero envergonhar Alart e Sunny que não
tem culpa da loucura do filho.
- Agradeço a compreensão generosa de vocês. – Sunny disse. – Maia eu garanto que
você será como uma filha para mim e muito bem recebida em casa.
- Obrigada, tia. – Maia disse, emocionada.
- Maia. – Luc falou pela primeira vez em horas. – Eu aqui, na frente de nossos parentes
e amigos, prometo que vou cuidar da minha cabeça pra que isso nunca mais aconteça. Você
e meu filho serão tratados com todo respeito que lhes é devido. Juro que nunca vou tocar
em você, a menos que esse seja seu desejo, e vou ser um marido digno da sua
generosidade demonstrada aqui hoje. Se você disser que prefere não me ter por perto,
respeitarei sua decisão e vou viver na casa que possuo na cidade, indo no palácio apenas
para minhas obrigações.
- Eu não acho certo você sair do palácio. Até porque isso causaria muitas fofocas e
poderiam descobrir o que aconteceu. Não quero isso. Eu me sentiria muito mal por sujar a
reputação da sua família. – Maia disse, sem olhar diretamente para ele. – Mas, não quero
ficar perto de você.
- Eu entendo. – Luc disse.
Depois de acertar mais alguns detalhes, Luc se aproximou de Scylla. – Quero que saiba,
tia, que eu realmente sinto muito e estou me sentindo péssimo. Eu sei que isso não alivia as
coisas, mas, quero que saiba disso. E... Eu...eu gostaria que a senhora entregasse isso para
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Gaia... Por favor. – Luc entregou uma carta para ela. Scylla até pensou em não aceitar,
mandar o garoto se ferrar, mas Gaia tinha o direito de decidir se leria ou não.
- Fique longe dela. – Scylla disse em tom de aviso.
- Eu...eu a amo. – Luc segurou as lágrimas. – Mas sei que nunca mais poderei ficar
perto dela e isso...dói. De qualquer forma, lamento. De verdade.
- Eu sei que sim. – Scylla disse e não precisava ser telepata pra ver a dor nos olhos
dele. Bom. Ele merece sofrer muito.
- Vamos, Luc. – Alart chamou da porta.
Luc deu uma última olhada em Maia conversando um pouco mais distante com Aine,
então disse para Scylla: - Não sei como ou porque Maia foi para a viagem de purificação,
mas é bom ver a mudança nela. Pena que os templos não têm mais nenhuma sacerdotisa,
porque a mudança da Maia de 6 meses e 10 dias atrás pra Maia de hoje é admirável.
Luc saiu sem notar o olhar tenso de Scylla sendo substituído por um de choque.

~o ⭐ o~
Era noite quando Les finalmente voltou para casa de Ane e quase se jogou nos braços
dela.
– Preciso de ajuda. – Ane disse.
- O que foi, amor?
- Acho que Scylla está com problemas, mas não posso chamar ela aqui agora.
- Não entendi. Qual o problema? – Les perguntou.
Ane sentou e sinalizou para ele sentar ao seu lado. – Vai parecer loucura...
- Conta pro seu bonitão aqui. – Les sorriu.
Ane pegou alguns antigos arquivos históricos e sinalizou para um ponto tão antigo que
a data nem mesmo era concreta. Les olhou, inicialmente não entendendo o que ela queria
que ele visse. Mas então o padrão se firmou e ele sentiu as pernas tremerem.
- Isso... Por Kallisti. Isso é possível? Quer dizer...claro que é possível. É claro aqui, mas...
Por Kallisti!
- Eu sei. Entende agora porque preciso falar com Scylla urgentemente?
- Sim... Eu vou dar um jeito de trazer ela.
- Seja discreto. É sério, Les. Eu sei que você e seus irmãos são próximos, mas não pode
contar isso pra ninguém. Nem mesmo Lich. Com as coisas tão adiantadas assim, não
sabemos em quem podemos confiar.
- Claro, claro... Céus! Isso explica tanta coisa...

~o ⭐ o~
L i k a s t í a 0 4 | 83

Aine levantou para correr, incapaz de dormir com a raiva que ainda sentia. Suada e
esgotada, ela voltou para o palácio e foi ao seu gabinete para trabalhar, tentando esgotar
também a mente. Ao abrir a porta, tudo parecia uma zona.
- Scylla?
- Aine, você viu os arquivos das investigações que estavam sobre a mesa? – Scylla
perguntou revirando um monte de papeis.
- Estava, como a senhora disse, sobre a mesa.
- Droga. – Scylla murmurou. – Alguém esteve aqui depois daquela hora que íamos
analisar tudo?
- Não, deixei a sala com a magia de proteção para pessoas de... Aconteceu alguma
coisa?
- Sumiu.
- O ARQUIVO SUMIU? – Aine entrou na sala preocupada.
- Não.
- Ai, tia Scylla! – Aine colocou a mão no peito, se acalmando. – Quer me matar de
susto?
- Você não entendeu, querida. – Scylla passou a mão pelos cabelos bagunçados. – O
arquivo está aqui, mas uma parte importante sumiu.
- Isso não é possível. Alguém de confiança teria que ter entrado aqui e... Tia, que parte,
exatamente?
- Uma que preciso ver pra confirmar uma coisa na minha cabeça. A parte que falava do
tempo da morte das sacerdotisas. Se a porcaria da minha memória fosse a mesma de
quando eu era mais jovem...
- 6 meses 5 dias e 21 horas. Atualizando pra hoje, 6 meses e 7 dias. – Aine esclareceu.
– Mas claro que precisamos saber como isso sumiu daqui.
Scylla sentou no chão com a cabeça entre as mãos.
- Tia. O que foi? – Aine correu para ela, preocupada. – Eu sei que é preocupante esse
sumiço...
- Sim. É. E muito. Alguém de confiança está agindo contra nós. Mas... Por Kallisti...
Aine, acho que temos um problema muito sério nas mãos. – Scylla disse com uma tristeza
que partiu o coração de Aine.

~o ⭐ o~
- Tem certeza? – Maia perguntou.
- Sim. - Cassi respondeu pelo comunicador.
- Posso cuidar disso? – Maia perguntou com Sarin atrás dela.
L i k a s t í a 0 4 | 84

- Melhor não. Você deve cuidar de si mesma. Sarin, use um pouco da poção pra ajudar
Maia.
- Pode deixar que não me descuido da nossa bonequinha não. – Sarin abraçou Maia
por trás.
- Eu queria fazer isso... – Maia fez beicinho.
- Você já está cuidando de algo mais importante, linda. Agora tenho que ir. Descanse,
minha boneca perfeita.
Cassi desligou e sorriu. O crepúsculo matinal estava começando quando ela sondou e
descobriu algo interessante e inesperado. Talvez eu devesse esperar ele sair. Cassi aguardou
oculta na varanda do quarto, mas o que ela ouviu a fez agilizar seus planos. Tanto faz. Ele
não tem importância mesmo.

~o ⭐ o~
Algumas horas depois, Aine e Scylla levaram duas sacerdotisas de confiança, dentre
elas a aprendiz de Scylla, e duas Sentinelas fortes até o quarto e bateram na porta.
- Boa noite.... Majestade... Senhora. – Sarin abriu a porta, meio sonolenta. – Algum
problema?
Aine e Scylla entraram, com seu pequeno séquito atrás, uma Sentinela guardando a
porta fechada. – Minha filha. Onde ela está?
- Dormindo. Eu gostaria de explicar que... – Sarin começou.
- Que você e Cassi estão dormindo com minha filha. – Scylla olhou para ela. – Eu sei.
Metade de Tiger já percebeu. Onde Cassiopeia está?
- Visitando algumas amigas. Ela pediu dispensa por alguns dias para isso. – Sarin
pensou em como dar o alerta a Maia sem que Scylla captasse.
- Maia! – Scylla chamou da sala, sem tirar os olhos atentos de Sarin.
- Mãe? – Maia apareceu na porta que levava ao quarto dentro dos aposentos dela. –
Algum problema?
Sarin piscou os dois olhos uma vez e os coçou com sono. Maia entendeu e se
preparou. Ou quase. Scylla foi mais rápida. – Me diga, filha, como as sacerdotisas dos Aneis
foram com você na viagem? – Scylla se virou para Maia enquanto Aine mantinha o olhar em
Sarin, suas mãos soltando fumaça com o calor pronto para a ignição.
- Eu já disse. Elas foram legais, meio quietas, mas legais. Porque? – Maia disse, com o
cuidado de lembrar daqueles momentos com elas.
- Porque, filha, eu fico me perguntando como cadáveres gélidos podem ser legais com
alguém. – Scylla disse, friamente.
- Não entendi. – Maia disse.
- Nem eu. Ela foram muito simpáticas com Maia... – Sarin começou.
L i k a s t í a 0 4 | 85

- Cale a boca antes que eu queime ela. – Aine avisou.


- Você entendeu sim. As sacerdotisas já estavam mortas a dias quando vocês passaram
pelos templos. – Scylla disse.
- Oh! – Maia colocou a mão na boca, aparentemente chocada. – Não pode ser. Mas,
nós estivemos com elas. Deuses... Será que foi algum grupo de assassinas que se fez passar
por elas?
- PARE DE MENTIR, CARALHO! – Scylla deu um tapa na cara de Maia, quase a
derrubando. – Você acha que sou idiota?
- Sai de perto dela! – Sarin gritou, mas Aine a derrubou de joelhos com um golpe na
coluna.
- Mandei calar a boca. – Aine acendeu uma chama em sua mão, pronta para deixar sua
raiva sair. – Não vou avisar de novo.
- Eu não entendo...
- Você tem memórias nítidas das mulheres que foram mortas, seus rostos, suas vozes,
tudo. Você não poderia lembrar disso porque elas já estavam em estado de putrefação
quando vocês chegaram lá. O que só pode significar uma coisa: suas memórias são forjadas.
Então eu pensei: como isso seria possível se minha filha não tem meia gota de magia? Ela
teria que ter contato com quem se infiltrou entre essas mulheres e as matou. Mesmo
assim, sem magia, não teria como fazer isso. – Scylla disse. – Até você cometer um erro
imbecil.
- Eu nunca erro! – Maia gritou.
- Olha ela aí. Finalmente você está voltando, ein. – Scylla debochou. – Sabe o que
Lucius acabou de me dizer quando falei com ele pra sondar sobre vocês? Você enviou
mensagens telepáticas pra ele.
- Engraçado, tia. – Aine disse em tom de deboche e raiva. – Maia nunca foi telepata.
Afinal ela não tem magia.
- Que curioso, não é, Aine? – Scylla disse sem nunca tirar o olhar furioso de cima de
Maia. – Então como, de repente, minha caçula volta de uma viagem misteriosa, com
amantes tão apegadas, convivendo com mortas, com memórias delas vivas, e com poderes
telepáticos.
- Eu não te devo explicações! – Maia enfrentou Scylla.
- Ah sim, pirralha. Você me deve sim. Sabe que ser pode dar poderes, apenas migalhas
porque ele é invejoso demais para dar qualquer coisa? Sabe que ser mataria todas aquelas
pobres mulheres? Erínio, aquele ser maligno que eu pessoalmente combato seus enviados!
– Scylla pegou o pescoço de Maia e a empurrou até que ela estivesse forçadamente de
joelhos.
L i k a s t í a 0 4 | 86

Sarin deu um passo em direção à Scylla, rosnando, mas Aine foi mais rápida e a
derrubou com uma queimadura de terceiro grau no joelho esquerdo. – Quietinha, animal
desgraçado!
Por causa da dor, a aura ácida de Sarin começou a se revelar, mostrando asas de
harpia brotando de suas costas.
- Como suspeitei. Sarin é uma harpia muito bem disfarçada. – Scylla disse, sem precisar
olhar para trás. – O que significa que Erínio tem planejado a décadas e se fortalecido
silenciosamente. Suspeito que desde a época do louco Tigrésius. O que me deixa curiosa é
que você, Maia, não se tornou uma harpia.
- Eu sou importante! Sou preciosa! Nunca seria transformada porque eu vou ser
esposa dele quando ele derrubar Kallisti e for a divindade mais poderosa do universo! Aí
você vai ter que se ajoelhar pra mim! – Maia gritou, tentando se levantar, mas a força de
Scylla sobre sua cabeça a manteve ajoelhada.
- Deprimente. Cassiopeia. Ela é uma de vocês? – Scylla perguntou apenas para
confirmar suas suspeitas.
- Você está morta, velha! – Sarin rosnou.
- Maia, Luc nunca abusou de você, não é? – Aine perguntou.
- Claro que não. Eu não sou fraca como aquela estrupício da Sunny que se deixava ser
usada! Mas eu tenho o filho dele aqui. Bastou uma poçãozinha ilusória leve e ele me comeu
feliz. – Maia riu.
- Sua.... – A raiva e a decepção de Scylla eram nítidas.
- Cassi matou aquelas piranhas inúteis e comemos partes delas na viagem. Estava uma
delícia. – Sarin disse, como uma a podre que era.
- Só lamento não ter ajudado. Eu ainda não tinha aberto meus olhos para o poder
real. – Maia disse e com isso Scylla entendeu. Não tinha mais jeito pra sua filha. Pouco a
pouco, mesmo sem ter sido devorada por Erínio, ela já tinha traços fortes de possessão que
a transformaria em Harpia logo. No entanto, Maia estava grávida, o que era preocupante
também.
- Eu te amei tanto... – Scylla deixou escapar. – Não entendo porque você cresceu a
ponto de se tornar isso...
- Vai me curar da maldade do mundo, mamãe? – Maia zombou.
- Não. Você não tem mais cura. Você tomou sua decisão. Por isso, como Grã-
sacerdotisa de Kallisti, decreto que você permaneça presa até dar a luz a essa criança que
rezo para que não seja infectado pela magia ácida. Depois, - Scylla engoliu com dificuldade,
mas se manteve firme no que era necessário – depois você deverá ser morta como a harpia
que você optou ser. Quanto a Sarin... Bem, melhor terminar com isso agora. Aine, melhor
encontrar Cassiopeia logo para darmos fim a ela também.
L i k a s t í a 0 4 | 87

- HAHAHAHAHAHAHA! – Sarin e Maia riram assustadoramente.


- Você acha que pode matar ela? – Sarin riu.
- Caso não tenha notado, ser impuro nojento, eu sou a líder das filhas de Kallisti. Esse é
o meu trabalho. – Scylla olhou para ela e disse.
- Mamãezinha tola. Você não entendeu, não é? E ainda se acha tão esperta. – Maia
disse, seu corpo emanando uma energia tensa. – Você não pode matar um deus, sua
estúpida!
Maia cuspiu em Scylla que soltou a mão que a mantinha no chão e pulou para trás.
Ainda bem, porque, quando a saliva de Maia atingiu o chão, ela corroeu o piso como ácido.
- Impossível. – Scylla murmurou. – Maia... O que você fez?
- O mestre lhe deu goles de sua própria magia. HAHAHAHAHA! Vocês vão
morreeeeeer! – Sarin se virou e chutou a perna de Aine que, em um reflexo, lançou uma
labareda que logo incendiou o corpo de Sarin, alimentando pela natureza de Kallisti no
poder Tiger que atacava intuitivamente qualquer resquício de magia ácida. –
HAHAHAHAHAHAHAHAHHAHAHAHAHAHA! – A gargalhada assustadora de Sarin só parou
quando ela morreu.
Scylla se virou ao sentir um vento gélido e tóxico, mas Maia tinha sumido junto com
uma névoa venenosa.
- Verifiquem Gaia. Agora. – Aine ordenou e as Sentinelas, de olhos arregalados, saíram.
O colar de Scylla com o emblema de Kallisti brilhou em uma luz vermelha. Logo o
corpo de Sarin brilhou na mesma luz. Quando ela se apagou, no lugar de Sarin, havia
apenas cinzas. – Menos uma.
- Me diz que eu entendi errado. – Aine disse.
- Não. Cassiopeia é o pior pesadelo de qualquer likastiano. De alguma forma, durante
todos esses anos, ele se fortaleceu a ponto de assumir uma forma física capaz de enganar a
todos. – Scylla disse e se virou para Aine. – Prepare-se, Rainha Tiger. Vamos caçar
Cassiopeia, o Erínio encarnado.
- Que Kallisti nos ajude. – Aine rezou.

~o ⭐ o~
- NÃO! – Sunny acordou suando nos primeiros raios da manhã depois de um sonho
assustador.
- Vem aqui, amor. – Alart tentou puxar ela, mas, desta vez, Sunny não deitou. –
Querida, foi só mais um pesadelo. Ele não pode mais te machucar.
Pesadelos com lembranças terríveis do passado não eram novidade pra ela. A
novidade era aquele pesadelo. Não. Não foi um pesadelo. Sunny entendeu e não conseguiu
controlar o choro, jogando as cobertas para o lado e levantando aos prantos para se vestir.
L i k a s t í a 0 4 | 88

Alart se levantou preocupado, tentando segurar ela, mas Sunny estava incontrolável.

~o ⭐ o~
- Vou logo cedo. Assim encontro ela na saída para os cânticos matinais do templo. –
Les amarrou a bota, sentado na cama.
Ane o abraçou por trás. – Tenha cuidado, Les. Não sabemos quantos aliados e qual o
tamanho do poder que Erínio já tem. Nem... – Ane engoliu em seco, tentando não pensar
nisso. – Nem em Aine podemos confiar ainda.
- Eu sei, amor. Mas Scylla vai saber o que fazer depois que eu falar com ela.
- Traz ela na hora do almoço. É a hora que ela tira para descansar normalmente e não
vai atrair suspeitas. – Ane disse.
- Certo. Tenha cuidado, minha futura esposa. – Les disse com um sorriso e a beijou.
- Les... Já falamos sobre isso. – Ane riu.
Les ia responder, mas o ar pareceu denso de repente, seu peito ardeu. Ele puxou Ane,
tentando sair com ela dali, mas ela já estava caindo de olhos arregalados, sem ar. Les
tentou com todas as forças lutar contra aquilo que parecia corroer seus pulmões. Sua mão
alcançou a pequena bolsa com uma poção de cura genérica que ele carregava o tempo
todo. Mas uma risada cruel ecoou em sua mente segundos antes dele apagar.
HAHAHAHAHAHAHA! MORRAM, PRINCIPEZINHO INÚTIL E RAINHA VAGABUNDA!
Aine... Foi o último pensamento de Ane.
Cassi entrou pela varanda, respirando fundo, com um sorriso no rosto, aquele ar
venenoso. Com um aceno distraído, a fumaça desapareceu. Os corpos de Ane e Les estava
abraçados na cama, com olhos e bocas arregalados. Cassi cutucou os dois com nojo e com
inveja da ligação deles.
- Adiantou alguma coisa serem tão apaixonadinhos? Aí! Morreram do mesmo jeito.
Mortais inúteis. – Cassi ia tacar foco no lugar, debochando do principal poder felino ligado a
Kallisti, para dar fim ao casal, mas um sinal de Maia a atraiu. Diga, bonitinha. Saudades de
mim?
Descobriram a gente e mataram a tosca da Sarin. Maia informou.
Já está no nosso lugar? Cassi perguntou.
Sim. Você sabe que sempre faço tudo perfeitamente, querido. Maia disse orgulhosa.
Estou chegando. Cassi disse. – Parece que vocês vão servir pelo menos pra deixar meu
recado pra esse bando de merdinha. É bom saberem que eu dei um jeito em vocês, dupla
de inúteis.

~o ⭐ o~
- Luc? – Lich chamou no comunicador.
L i k a s t í a 0 4 | 89

- Oi, maninho. Já ia te chamar. – Luc respondeu, totalmente alerta.


- Você está bem?
- Eu ia te perguntar isso. Merda. – Luc lembrou do irmão.
- Les. – Lich comentou o que Luc também pensara. Se eles dois tinham sentido aquela
falta de ar, aquela angústia repentina, e não era com nenhum deles, só podia ser com o
trigêmeo do meio. Eles não sabiam como, mas tinham certeza de que algo tinha acontecido
com seu irmão.
Quando os irmãos se encontraram no corredor, puderam ouvir as vozes de seus pais
nas proximidades. Eles se entreolharam e seguiram o som. Sunny estava saindo do palácio,
envolta apenas em um roupão sobre a camisola, visivelmente angustiada, e Alart
preocupado atrás tentando entender porque ela não falava coisa com coisa. Quando o
olhar de Sunny e os dos filhos se encontraram foi como um soco na cara. Ela, uma Tiger,
membro do povo que nunca chora, caiu no chão aos prantos. Naquele momento ela teve
certeza. Seu sonho não fora mesmo um sonho. Les estava morto.

~o ⭐ o~
A inteligência é um dos talentos mais admiráveis e valorosos em qualquer universo.
Mas, às vezes, ela vem acompanhada da dor. Afinal, abrir os olhos e ver o que não
queremos ver é sempre doloroso, porém necessário.
L i k a s t í a 0 4 | 90

Capítulo 11
Como é difícil educar. Criar é fácil. Qualquer um com inteligência e as diretrizes certas
consegue criar. Mas educar? Ah, isso e um desafio que mortais, imortais, mães,
divindades...todos temos em comum.

~o ⭐ o~
- Mãe, isso é impossível. – Gaia se levantou irritada, algo que era incomum na sempre
tranquila jovem. – Não sei o que aconteceu, mas a Ma nunca seria uma...uma...
- Uma harpia? Não, filha. É pior. Ela é uma seguidora de Erínio, alguém que, de livre e
espontânea vontade, aceitou o poder daquela coisa para ter suas ambições atendidas. –
Scylla disse firmemente.
- Não! É da Maia que a gente está falando, mãe! Minha irmãzinha caçula, doce, meio
temperamental às vezes, mas um doce! Ela me deu essa joia linda sem nada que a
obrigasse a gastar comigo! – Gaia mostrou o anel lindo em seu dedo. - Ela até me defendeu
com o Luc! Que abusou dela!
- É minha filha, Gaia, caso você não se lembre. Uma criança planejada com muito amor
e carinho tanto por mim quanto por Hieron.
Gaia cruzou os braços ainda irritada.
- Espera um minuto. Maia te deu... – Scylla pareceu finalmente entender. – Deixa eu
ver isso.
- É só um anel... – Gaia ainda estava de mau humor.
- Agora, Gaia! – Scylla disse mais firme e a filha entregou o anel. Bastou uma olhada
rápida no interior da pedra para confirmar suas suspeitas. – Por Kallisti... Como não percebi
isso?
- O que?
- Estava aqui tentando entender como Maia conseguiu replicar tão bem sua forma e
sua voz para iludir Luc.
- Ela não iludiu ninguém! Ele que me traiu e ainda abusou...
- Gaia, eu sei que você ama sua irmã, mas eu tenho um limite de quanta tolice posso
aturar. Esta pedra é artificial, feita para reter e moldar a magia de alguém de forma a
causar visões com o que a pessoa atingida mais deseja. Precisa de um poder considerável e,
pelo resquício venenoso na magia, posso apostar que é de Sarin.
- Mas...mas... – Gaia sabia que Scylla nunca mentiria sobre magias. Ela era muito ética
nesse assunto. Esconder ela até poderia, mas mentir não. – Mãe...Maia é minha
irmãzinha...Ela sempre foi...
- Invejosa, Gaia. Porque acha que a enviei para a purificação? – Scylla disse tentando
ser mais compreensiva.
L i k a s t í a 0 4 | 91

- Mas... – Gaia sentou no chão, incapaz de dar nem mesmo um passo. – Não pode
ser... Mãe ela...ela ama a gente. Não é?
- Agora, minha lindinha, acho que esse amor morreu faz mais tempo do que gosto de
admitir. – Scylla sentou no chão, ao lado dela, com dificuldade por causa da perna com
problemas musculares antigos. – Sinto muito, querida. Eu devia ter feito algo antes, ter sido
mais rigorosa, ter educado ela melhor.
- Pára, mãe. Eu tive a mesma educação e estou aqui, bem longe desse maldito. Não é
sua culpa. A senhora sempre deu o melhor de si pra gente, nos educou e nos amou
igualmente. – Gaia disse e a ficha finalmente caiu. – Então... Luc...?
- Ele é inocente filha. A única culpa dele foi te desejar demais. Aquele rapaz com
problemas de nervosinho te adora. Até estranhei o ataque dele à sua irmã por causa disso,
mas a ilusão na mente dele explicava tanto. Tenho que me desculpar com o rapaz.
- Mãe? A senhora? Se desculpar? – Gaia brincou.
- Gaia, quando a gente erra e entende isso, o mínimo que devemos fazer é nos
desculpar.
- E o bebê da Maia? É do Luc mesmo?
- Possivelmente, sim. Mas só posso ter certeza fazendo os testes quando a
encontrarmos. – Scylla deu um tapinha no joelho de Gaia e disse: - Agora chega de papo. Vá
atrás do seu namorado, filha.
- Mas... Ele não vai me querer...
- Gaia, ele teria que ser louco ou idiota para não querer você. Filha eu sei que você é
mais parecida com minha mãe nessa coisa de timidez. Mas há momentos na vida que a
gente precisa jogar a timidez para o lado e correr atrás do que a gente quer. – Scylla disse e
se calou para atender seu comunicador. – Sim? – Ela ouviu e desligou, se levantando em
seguida com ajuda de Gaia. – É querida, parece que vamos ver seu amado mais cedo do
que você pensa.
- O que foi, mãe? Luc está bem?
- Sim, mas... Eu preciso contar uma coisa ruim, amorzinho.

~o ⭐ o~
Quando Scylla chegou com Aine e Gaia na frente da casa de Ane haviam vários felinos
curiosos nas proximidades, soldados, magos, a guarda do Rei e, ao longe, mais na entrada
da casa, estavam os gêmeos e seus pais. Não havia murmúrios, sussurros, conversas, nem
mesmo os pássaros cantavam como se toda a natureza estivesse de luto. Porém, triste e
assustador, havia apenas gritos desesperados e raivosos de Sunny que percorria metros e
metros na região.
L i k a s t í a 0 4 | 92

- MEU FIIILHO! MEU MENINO! NÃÃÃÃÃÃ! PORQUE O MEU BEBÊ!? PORQUE??? ANE,
MINHA AMIGA..... – Sunny chorava a ponto de soluçar. – EU VOU MATAR QUEM FEZ ISSO!
QUEM FOI? ME SOLTA! EU QUERO IR ATRÁS DE QUEM FEZ ISSO! MEU FILHINHO!!
Alart apenas segurava a esposa em um abraço forte para que ela não corresse de
novo para o quarto onde estavam os corpos e visse as expressões assustadoras no rosto do
casal. Os gêmeos conversavam baixo com os magos que investigavam um pouco mais
distante. Scylla se aproximou e o mago leonino silenciosamente a levou até a cena do
crime. Aine abraçou os gêmeos de uma só vez e depois foi até Sunny tentando acalmá-la.
Gaia ficou perto dos gêmeos, sem saber o que fazer com as mãos e, sem perceber,
começou a roer as unhas até que uma mão masculina tirou delicadamente a mão dela da
boca.
- Você devia parar com isso. Vai acabar se machucando. – Luc disse com um olhar
triste. Para surpresa dele, ela o abraçou forte.
- Eu sinto muito. Por tudo.
Lich se afastou silenciosamente.
- Eu também. Eu...eu gostaria de não ter feito aquela atrocidade para poder ter você
do meu lado agora...
- Você não fez. – Gaia se afastou um pouco e o olhou nos olhos. – Você é inocente.
- Gaia, eu...
- Luc, eu lamento pelo seu irmão. E pela minha. Ela...ela...eu nem sei como contar.
Mas o que importa agora é que você é inocente e...e...
- E...?
- E...eu... – Gaia abaixou a cabeça, a voz quase sumindo.
Luc levantou seu queixo com um teto, forçando ela a olhar para ele. – Diga o que você
quer, Gaia.
- Você. Eu..Eu quero ficar com você. Mas...se você não quiser...
Luc encostou sua testa na dela, ainda não entendendo nada, mas aliviado. – Eu amo
você, menina boba. Só se eu fosse um idiota para não querer a mulher que amo.
Alart ao lado de Lich e Sunny, não entendeu nada, mas seu filho mais novo tocou em
seu ombro e, daquele jeito silencioso, o fez entender que as coisas com Gaia e Luc tinham
se resolvido.
Pelo menos uma coisa para aliviar a mente do meu amor. Alart pensou.
Quando Scylla entrou no quarto, seu coração se apertou. Ela desconfiava do interesse
de Les em Ane a algum tempo. Não era surpresa. Mas ver os dois com aquele semblante de
terror, obviamente intoxicados, com resquícios da magia ácida no ar e os documentos que
ela enviou para Ane analisar jogados no chão, não precisava ser nenhum gênio para
entender o que tinha acontecido. Pela hora da morte que o mago leonino lhe deu ficou
L i k a s t í a 0 4 | 93

claro que Cassi tinha sido contactada por Maia pouco depois dela sumir auxiliada pela
magia final de Sarin. Cassi, sabendo que tinha sido descoberta, não se deu ao trabalho de
esconder seu crime ou os documentos. Ela informou aos magos leoninos sobre o perigo e
partiu para o palácio leonino com a família do rapaz, enquanto os corpos eram levados para
os cuidados necessários dos magos.
Mais tarde, depois de dar uma das poções calmantes da própria Sunny para ela tomar,
Scylla reuniu todos no gabinete real.
Alart, visivelmente abatido, estava sentado atrás de sua mesa de trabalho com a
esposa protetoramente em seu colo, de lado; Aine estava de pé perto da porta com Lich
sentado visivelmente cansado na cadeira mais próxima dela; Luc e Gaia estavam sentados
lado a lado, de mãos dadas, no pequeno sofá com uma mesa de centro no meio e a cadeira
alta de Scylla do outro lado.
Sunny pensou em reclamar com o filho por estar de mãos dadas com a irmã de sua
futura esposa, mas não tinha forças para nada. Sua garganta queimava e parecia arranhada,
seu corpo parecia ter chumbo no lugar dos ossos, sua cabeça doía mais que o habitual e
seus olhos ardiam e ela não tinha vontade de nada, apenas de matar quem matou
cruelmente seu filho e sua amiga. Ela podia sentir a mão de Alart subindo e descendo por
sua coluna, tentando lhe dar algum conforto, mas tudo o mais parecia tão distante.
- Eu sei quem matou seu filho e Ane. – Scylla disse, quebrando o silêncio.
Sunny logo ficou alerta. – Quem foi? Fala. Eu vou...
- Ficar calma. – Scylla disse.
- Tia, escute primeiro. – Aine disse.
- Sunny quem matou Les não é uma pessoa normal.
- Claro que não! Todo mundo amava meu filho! E matar daquele jeito...
- Sem falar que Les era muito forte por causa da vida do exército. – Alart disse, se
perguntando se teria sido um militar ou alguém que fazia trabalhos braçais e também era
mago. Porque a magia envolvida era inconfundível. Poderia ser as harpias também, afinal
tinha magia ácida residual, mas Les nunca foi invejoso, Ane muito menos.
- Matar alguém daquele jeito só pode ser coisa de um louco. – Luc disse.
- É pior. – Scylla comentou. – Foi a Cassiopeia.
- Quem? – Sunny buscou na memória e finalmente se lembrou da jovem que ela mal
vira duas vezes. – A sacerdotisa?
- Não me lembro dela... – Alart disse.
- Não é a moça que serviu de guia pra Maia na viagem? – Luc perguntou.
- Sim. – Gaia disse, quase baixo demais para alguém ouvir.
- Isso não faz sentido. – Sunny disse. – Com alguém tão pequena e com uma magia tão
básica faria isso? E porque?
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Lich juntou as peças em sua mente, mas a conclusão parecia irreal demais. Isso até seu
olhar cruzar com o de Aine. – Céus.... Não uma harpia comum, não é?
- Não. – Aine respondeu tristemente.
Scylla então contou tudo o que tinham descoberto e o que aconteceu horas antes.
- Mas... Scylla, porque matar os dois que nem mesmo estavam em Tiger? – Alart
perguntou.
- Desconfio que Cassiopeia sabia que Ane estava prestes a descobrir algo importante
nos documentos que mandei, então veio aqui para roubar eles, destruir alguma parte ou só
dar um fim nela caso ela já tivesse entendido tudo.
- E Les estava junto. – Luc completou.
- Ele ia pedir ajuda de Scylla em algo para contar uma coisa que Ane tinha descoberto.
– Lich disse. – Mas não sei detalhes.
- Sério? – Gaia perguntou.
- Sim. Ele me mandou um comunicado ontem de noite falando sobre o quanto estava
preocupado com o que descobriram e pedindo para eu não contar nada pra ninguém por
enquanto. – Lich comentou. – Aparentemente, nem eu devia saber disso, mas... Bem vocês
sabem como somos.
- Sempre contam tudo um para o outro, mesmo que para um só por um tempo. –
Sunny disse.
- O que vamos fazer? As harpias já não são fáceis de lidar. Nem mesmo para as
sacerdotisas de Kallisti que possuem justamente esse trabalho. Erínio então... E tão
fortalecido. – Alart perguntou.
- As sacerdotisas de Kallisti do mundo todo estão em alerta máximo e agora os magos
leoninos também. – Scylla disse. – Aine convocou o conselho Tiger para uma reunião
emergencial, mudando alguns planos de governo para focar os recursos e magias em um
possível confronto. Mas temos uma arma secreta na qual Erínio não tinha pensado e que
vem tentando atrapalhar.
- Que arma? – Sunny perguntou.
- Você.
- Eu?
- Sim, Sunny. Você é a detentora atual da magia onírica mais poderosa do mundo.
Sempre pareceu esquisito magos oníricos morreram tão cedo nos últimos anos. Mesmo
vivendo até a meia-idade, ainda parecia uma coincidência estranha. Dreyfus morreu cedo,
sem nenhum descendente dessa magia. Você foi mantida em segredo durante anos, nem
podendo exercitá-la. É por isso que você só começou a sentir os efeitos recentemente.
- Efeitos de que? – Alart perguntou.
L i k a s t í a 0 4 | 95

- Sabotagem mágica. Notou a dor de cabeça cada vez mais constante em Sunny? –
Aine perguntou.
- Sim, mas, ela tem tido pesadelos e...
- Outro efeito. Traumas transformados em pesadelos, dores de cabeça leves e cada vez
mais constantes, aumento gradual na agressividade... Alguns chás ajudam a retardar os
efeitos, mas o fato é que, a longo prazo, a sabotagem leva à loucura ou à morte. – Scylla
disse.
- Chá de flores verdes. – Sunny murmurou.
- O mesmo que você, por uma bênção de Kallisti, se tornou fã nesses anos. – Scylla
sinalizou.

De nada.

- Mas, ainda não entendo... – Luc comentou. – Como a magia natural da mãe pode
ajudar a deter Erínio?
- Ainda não sei, mas não tenho dúvidas sobre a eficácia. Ele não se daria ao trabalho
de tentar exterminar os magos oníricos mais poderosos da história se não fosse um risco
para ele. – Scylla respondeu. - Como o maior fragmento do poder de Kallisti está na magia
de fogo dos reis e rainhas Tiger, suspeito que a magia onírica tenha algum funcionamento
combinado com ela que ainda não conhecemos.
- Pode ser isso que a mamãe descobriu e tentou nos avisar. – Aine disse e só naquele
momento a maioria ali se lembrou que ela tinha perdido a mãe.
Lich olhou de relance para seu pai que apenas deu de ombros.
- Lich, quero falar com você. – Scylla disse. – Depois, se não for incômodo.
Ele sabia que ela não dava a mínima para se fosse incômodo ou não.
Ela sabe. Alart pensou, angustiado.
- Claro. – Lich disse, não parecendo abalado em nada.
- Eu quero aqueles papeis. – Sunny levantou rápido, logo ficando tonta.
- MÃE! – Lich e Luc correram e seguraram cada braço dela.
- Amor.. – Alart se levantou.
- Não. Eu não vou descansar, Alart. Aquela coisa matou meu filho e minha amiga. Que
se dane o poder dele, eu vou caçar aquilo até no Abismo do Nada se for preciso! – Sunny
não enxergava nada, sua vista escurecida.
- Mãe, quando a senhora comeu? – Luc perguntou.
- Eu..não lembro. O que isso importa?
- Importa pra gente, mãe. – Lich respondeu.
L i k a s t í a 0 4 | 96

- É melhor você descansar. Precisamos de você bem para ... – Scylla começou, mas
Sunny estava irredutível.
- Eu vou olhar aquela porcaria toda e você não vai me impedir, Scylla!
- Tia, acalme-se. – Aine disse baixo, mas firme. – Não vai ajudar se estiver desmaiada.
Pelo menos coma algo e descanse.
- Eu pedi para a cozinheira fazer aquela sopa do jantar a umas semanas... – Gaia disse
baixinho, atraindo todos os olhares. – Desculpe...eu...não quis ser enxerida...
- Parece que alguém já sabe agir como a rainha deste palácio. – Sunny sorriu, ainda
meio triste.
- Alguém escolheu bem a namorada, ein. – Alart olhou para Luc, propositalmente
deixando o rapaz orgulhoso e meio sem graça.
- Muito bem. – Scylla disse, com o peito estufado de orgulho da filha, mal se contendo.
– Luc, antes de tudo, quero pedir perdão por não ter acreditado em você.
- Não, tia Scylla. – Luc ajudou o pai e o irmão a fazer Sunny sentar e se virou para a
sacerdotisa. – Eu entendo. Nem eu acreditei em mim depois daquela confusão de
memórias. A senhora fez o que era justo no momento. Eu não sei se teria sido tão sensato
se fosse com uma filha minha. Mas... – Ele coçou a nuca, nervoso. – Ajudaria bastante a
superar esse trauma se a senhora deixasse eu me casar com sua filha mais velha.
- Lucius! – Alart chamou atenção.
- O que? Eu estou traumatizado, sofrendo, preciso de um pouco de colo. – Luc
respondeu e Gaia não teve nenhuma reação além de ficar de boca aberta feito bocó.
- Pelo menos o nervosinho sabe aproveitar uma oportunidade. – Sunny disse, tirou
sutilmente o mais bonito dos anéis q usava e colocou na mão do filho mais velho. – Pede
direito, moleque! Parece que não te eduquei, caramba.
- A senhora...tipo....éééé...tipo...
- Permite. – Lich disse atrás dele, agachado ao lado da mãe e verificando a pulsação e
temperatura dela.
- Isso. Permite? – Luc perguntou.
- Se eu disser que não você vai pedir mesmo assim. – Scylla disse, lembrando a
conversa que eles tiveram quando Luc pediu para namorar Gaia. – Vai logo, garoto. Não
tenho a noite toda.
Luc deu alguns passos até Gaia, abaixou em um joelho, pegou o anel com asas de
borboleta nas laterais e uma pedra azul celeste no meio, pegou a mão dela, pigarreou
sentindo como se sua garganta tivesse cheia de areia e disse:
- Ga...Ga... Karrankarran. É...
- Gaia. – Lich disse, ainda focado em sua mãe.
- Isso. Gaia. Você é a mulher mais intel....intel...você sabe...
L i k a s t í a 0 4 | 97

- Inteligente. – Lich disse.


- Isso. Inteligente. E doce, gentil, paci....paci...
- Paciente. – Lich completou se levantando e enchendo calmamente um copo com
água para a mãe.
- Paciente. É. Então, eu só quero dizer que eu te amo e quero saber se você quer....-
Luc esqueceu a palavra de tão nervoso que estava. - Como é que se diz mesmo...
- Casar. – Lich entregou o copo para Sunny que não sabia se achava fofa a cena ou
cômica.
- Casar comigo. Isso. Você quer casar comigo? – Luc disse e prendeu a respiração. Na
fração de segundo que levou para ela responder ele imaginou os piores cenários de
possíveis negativas dela.
- Sim, seu bobo. – Gaia segurou as lágrimas bravamente como uma Tiger perfeita, mas
elas ainda estavam lá, estampadas em seus olhos.
Luc sentiu como se seu coração finalmente tivesse voltado a bater, colocou o anel no
dedo dela, beijou sua mão e lhe deu um beijo que deixou ela sem fôlego e envergonhada.
- Finalmente. – Aine disse e abraçou os dois. – Luc se fizer ela sofrer vou queimar sua
juba. Gaia se fizer ele sofrer nunca mais te empresto meus batons. Estão avisados.

~o ⭐ o~
Lich ignorou Scylla por enquanto, sua prioridade sendo Aine. Aine saiu sutilmente e foi
para uma das varandas do palácio, se isolando como sempre fazia quando estava triste.
- Vem aqui. – Lich apareceu do lado dela, com braços estendidos.
- Eu estou bem. – Aine sorriu, mas o amigo permaneceu do mesmo jeito. Seus olhos
teimosos se encheram de lágrimas e, não querendo que ele visse, ela se jogou nos braços
dele e finalmente, pela primeira vez, pôde lamentar a morte de sua mãe.
- Eu estou aqui. Sempre. – Lich disse, não se referindo apenas àquele momento.
Depois de quase uma hora, ambos estavam sentados no chão, abraçados, enquanto
Aine deixava sair toda a dor que não podia demonstrar em público. Afinal, os Tiger eram
conhecidos por tratarem demonstrações de emotividade como fraqueza.
- Eu...eu queria pedir uma coisa. – Aine disse, quase sem voz.
- Sim.
- Mas eu ainda nem disse o que é.
- Pra você, sempre será sim a resposta. – Lich disse.
- Bobo. – Aine deu um tapinha no braço dele, achando que era brincadeira. – Então...
Você pode dormir comigo hoje? Eu sei que é ridículo e que você precisa cuidar da tia,
mas...não quero ficar sozinha...
- Minha mãe tem meu pai pra ficar com ela, Aine. Claro que vou ficar com você.
L i k a s t í a 0 4 | 98

- Se bem que não me sinto sozinha sempre... – Aine disse, mas não quis explicar e Lich
sabia que não devia dar corda.
Depois de algum tempo, ela entrou e Lich ficou ali, aproveitando a brisa da noite no
lugar que era preferido de Les, como se estar ali pudesse fazer seu irmão estar mais perto
agora.
- Comovente. – Scylla disse, saindo do canto escuro, do lado de dentro da sala que
dava na varanda.
- Fiquei pensando quando a senhora ia interferir. – Lich disse, calmamente olhando
para as estrelas.
- Não ia. Aine precisava desabafar. – Scylla ficou ao lado dele, observando as estrelas.
– Quanto tempo você faz isso?
- Faço o que?
- Não se faça de desentendido comigo, garoto. Você é bom em descobrir e manter
segredos, mas na arte que você está começando eu sou mestra desde a infância.
- Desde muito novo. – Lich respondeu, sabendo que era inútil negar.
- Sabe que isso é errado e um crime?
- Sei. Não consigo parar.
- Hum. Aine sabe?
- Não.
- Sabia que quase indiciei você pela morte daquela candidata no litoral?
- Imagino. – A calma de Lich era surreal.
- Lich, não estou brincando.
- Eu sei.
- Seus pais sabem. – Não era uma pergunta.
- Estão tentando me ajudar a parar.
- Não vão conseguir. Isso é uma compulsão. Quantos alvos você tem além da Aine?
- Faz mais de 10 anos que só ela.
- Pessoas como você tendem a querer cada vez mais porque seus alvos não querem
conviver com isso. Até terminar matando, torturando suas vítimas. O que vai acontecer
quando Aine descobrir e não quiser ficar perto de você?
Lich sentiu-se tremer por dentro com a possibilidade.
- Exatamente. – Scylla se virou para ele. – Você precisa de ajuda, Lich. Os templos dos
anéis estão vazios agora, mas vamos treinar novas sacerdotisas e reconstruir essa parte do
culto. Até lá, procure outros templos que...
- Fiz isso a meses. Não adiantou. – Lich disse e completou telepaticamente, sabendo
que ela ouviria: Eu tenho essa compulsão sim, mas também a amo.
- Vamos? – Aine chamou da porta, parecendo um pouco estranha.
L i k a s t í a 0 4 | 99

- Sim. – Lich disse, se virou para Scylla e beijou sua mão. – Com licença, tia.
- Amanhã me procure. Vou ajudar no que puder. – Ela sussurrou para ele.
Não vou deixar mais alguém que ajudei a educar se perder em algo ruim. Scylla pensou
decidida a ajudar ou, em último caso, denunciar e prender Lich.

~o ⭐ o~
Por melhor que você eduque, por mais que você faça um bom trabalho, nada garante
que quem você educou ande corretamente. E isso é uma das coisas mais difíceis de aceitar
na vida...
Ou na morte.
L i k a s t í a 0 4 | 100

Capítulo 12
Acho que já comentei que precisei fazer um acordo com aquele traidor de quinta
categoria para evitar que nossas batalhas destruíssem mais coisas no universo. Em suma, o
acordo nos impede de jogar os seres sapientes contra qualquer um de nós e de obrigar um
desses seres a nos apoiar. Se não interferir nisso, nós dois podemos fazer qualquer coisa
sem que necessariamente termine em guerra.

~o ⭐ o~
- Você precisa aprender a ser paciente. – Cassi disse. Sentada com as pernas esticadas
na cama, as mãos apoiadas atrás da cabeça, ela observava Maia andando de um lado para o
outro no quarto, praticamente espumando de raiva.
- Eu não quero ser paciente. Eu quero o que é meu por direito! Você disse que o trono
seria meu e aquele poder dos Tiger também!
- E será.
- Mas quando?
- Em breve. – Cassi respondeu, começando a perder a calma.
- Eu quero agora! – Maia bateu o pé no chão, sua mente gritando a mesma frase.
- Paciência, Maia.
- Não! Eu espero a vida toda pra ser valorizada por essa família, esses felinos idiotas!
ESTOU CANSADA DE ESPERAR POR MUITO TEMPO ASSIM!
Cassi levantou tão rápido que Maia foi pega de surpresa quando o punho da outra
fechou sobre sua garganta, dando um aperto firme e gradual, apenas suficiente para
assustar e deixar claro quem dava as ordens ali.
- Você espera por muito tempo? – Cassi disse em tom baixo e ameaçador, sua voz
soando mais masculina e rouca, seus olhos ficando totalmente negros como dois abismos
escuros, sem íris, sem pupilas, apenas trevas. – Eu espero desde o início da miserável vida
neste maldito universo por um valor que nunca recebi. E mesmo assim sei agir com
paciência. Quem é você para dizer por quanto tempo você vai ou não esperar alguma
coisa?
Lentamente, mas com força, Cassi fez Maia se ajoelhar na sua frente. – Você vai
esperar até eu mandar você esperar. Quem é seu dono aqui?
- Vo...cê... – Maia disse, engolindo a humilhação, mas sabendo que era isso ou ser
devorada por ele.
- Nunca esqueça disso, mortalzinha. Ou posso escolher outra pessoa mais útil pra mim,
já que você cometeu a burrice de perder seu posto vantajoso ao lado daquela sacerdotisa
insuportável e ainda levou uma das minhas mais fortes harpias à morte no processo.
L i k a s t í a 0 4 | 101

- Eu... – A visão de Maia estava embaçando pela ausência de ar. – Não


foi...minha...culpa...
- Claro que não. – Cassi soltou bruscamente o pescoço de Maia que caiu de quatro no
chão ofegando. Quando voltou a sua posição na cama, os olhos e a voz de Cassi tinham
voltado ao normal. – Aqui. – Ela sinalizou para Maia deitar ao seu lado.
Ainda se sentindo humilhada, mas obediente, Maia se deitou e Cassi a puxou com um
braço.
– Por que temos que esperar? Você tem tanto poder... A gente poderia matar todo
mundo rapidinho. – Maia disse, meio rouca, seu poscoço com marcas escuras de mãos.
- Não que seja da sua conta, mas preciso derrubar algumas pedrinhas irritantes no
meu caminho. Pelo menos pude impedir aquele casalzinho sem sal de abrir a boca.
- Sempre soube que aquela Ane era sonsa. Aposto que ela traía a rainha com o Lesath.
– Maia destilou o veneno.
- Certa, não é. Pra que ficar só com aquela velha se podia pegar o rapaz fortinho
também. – Cassi gargalhou.
- Sunny é outra sonsa. Aposto que ela pega alguns guardas também.
- Aquela ali em breve vai cair. Sarin fez um bom trabalho, pelo menos.
- Quando ela cair...
- Só precisarei derrubar mais um. E, com o que você descobriu, vai ser bem fácil.
Cassi tentou puxar a blusa de Maia para baixo, mostrando seus seios, mas ela ainda
estava chateada e tentou impedir. Foi um grave erro. Cassi soprou uma magia ácida que
corroeu a peça de roupa e alguns de seus pelos, depois subiu sobre Maia e fez o que bem
quis por mais de uma hora.

~o ⭐ o~
- A fonte da magia de Erínio já foi mais forte. – Sunny comentou, lendo um manuscrito,
cercada por um monte de papeis, sentada no meio da cama. – Ele não pode obrigar
ninguém a ajudar, nem jogar alguém contra Kallisti. O mesmo vale para A Bela. Como o
poder dele é limitado, ele não anda entre mortais porque isso consome muito de sua
energia. Mas, com economia de fonte e alguns ajustes, pode conseguir. Em geral, Erínio
prefere assumir a forma feminina em um desrespeito com a Deusa, mas também pode ser
um homem. O mais prático porém, é apenas alimentar defeitos e pensamentos negativos
de outros seres, assim criando infectados pela magia e...
- Você devia estar dormindo. – Alart entrou e disse visivelmente irritado.
- Aham... – Sunny nem deu atenção, focada na leitura. – Se ele for descoberto a tempo
e...
- Sunny! – Alart falou mais firme e começou a recolher os papeis ao redor dela.
L i k a s t í a 0 4 | 102

- O que está fazendo? – Sunny perguntou irritada.


- Você precisa dormir!
- Mas eu sei que estou perto de desc...
- Sunny! – Alart realmente estava irritado e isso era incomum.
- O que você tem?
- Que droga. Sunny eu preciso que você descanse um pouco. Sabemos que você é um
alvo de Erínio. E... Que droga! Eu não posso perder você, caramba. Será que você não
entende? Preciso que você esteja bem! Os meninos também precisam! Isso pode esperar
pelo menos que você durma um pouco.
- Sinto muito. Eu não sabia que... – Sunny suspirou. – Certo, certo. Vou descansar um
pouco. Se você ficar aqui comigo, claro. Afinal eu preciso de braços fortes ao meu redor ne.
- Como se tivesse alguma chance neste mundo de que eu deixasse você sozinha. –
Alart a beijou e deitou, puxando ela junto.
- Aai! – Sunny não conseguiu evitar o gritinho surpreso.
- Eu não tive nenhum pressentimento... Será que sou um pai tão ruim? – Alart soltou o
que estava em sua mente desde a fatídica manhã.
- Alart... Você é idiota? – Sunny perguntou com sua pouca sutileza.
- Também te amo, minha linda. – Ele sorriu.
- Sério. Você sempre foi mais próximo dos meninos. Aqueles três sempre procuram
você pra tudo. Eu... Bem, confesso que sempre me senti menos confiável para eles por isso.
- Sunny...
- Quieto. – Ela deu um tapinha em seu peito. – Deixa eu terminar. Você não sentiu
nada provavelmente porque bastava um de nós surtando e você tem trabalhado o triplo
desde que decidiu se aposentar para deixar tudo organizado pro nosso noivinho. Você já
deita dormindo a meses, querido. Só acorda quando eu me solto do seu abraço porque
você é meio doido por mim.
- Meio é bondade, querida. Mas confesso que me sinto péssimo. Luc e Lich sentiram,
você sentiu... E eu não. Eu estava dormindo tranquilo.. Quem dorme tranquilo quando o
filho está morrendo?
- Um pai que não sabia e estava cansado beirando a estafa. Não se cobre tanto, amor.
Às vezes Kallisti não permite que a gente viva coisas para as quais não está preparado.
- Só pra contar, linda, só você não percebe o quanto os meninos sempre foram
apegados a você. Eles só evitam te levar problemas porque herdaram meu talento natural
para querer te proteger.
- Eu nunca pensei nisso... – Sunny disse e fez uma nota mental para falar com os dois
rapazes mais tarde.
L i k a s t í a 0 4 | 103

- Durma querida, amanhã temos a reunião com os magos leoninos, Tiger e Aine. –
Alart disse e com um sorriso, ao se virar para beijar a testa dela, percebeu que a esposa já
tinha dormido.

~o ⭐ o~
Em Tiger, Gaia esteva no quarto da irmã, triste, abalada, mas decidida. Ela tinha
revirado tudo no quarto, quebrado algumas coisas onde achava que poderia ter algo
escondido, mas nada de útil surgira. Nem ela saba o que procurava, mas sabia que
precisava fazer isso.
- É mais útil com alguém que tenha magia. – A Sentinela disse na porta, carregando um
copo de suco.
- Nira.
- Para sua sorte, eu tenho um pouco de magia. Porque você não esperou sua mãe ou
as sacerdotisas que vão dar uma segunda olhada aqui? – Nira perguntou.
- Não sei... Acho que pensei que poderia encontrar algo por... Eu achava que éramos
próximas..
- Vocês eram. Acredito que a força que Maia ainda conseguiu ter para pedir ajuda foi
muito por sua causa também. Mas, infelizmente, no fim ela escolheu seu caminho. Posso?
Nira apontou para o quarto, pedindo para ajudar.
- Claro.
Nira sondou magicamente vários objetos que Gaia escolhia para passar pelo teste,
tentando sentir qualquer energia diferente ou suspeita. Mas deu no mesmo. Nada foi
encontrado.
- Talvez eu esteja procurando no lugar errado... – Gaia disse.
- Como assim?
- E se...E se ela não escondia nada aqui por segurança?
- E onde mais ela poderia esconder?
- Não sei... Maia só tinha um lugar preferido, a piscina, e não tem como esconder nada
lá.
- Talvez... – Nira disse. – Vou reunir algumas pessoas de confiança e testar sua teoria.
Mas deveria ir ver sua mãe. Não diga pra ela que eu te contei, mas ela está muito triste.
Acho que um abraço da filha querida dela pode ser um bom remédio, não acha? – Nira
piscou para ela e saiu.

~o ⭐ o~
- Então esse é o plano. Dúvidas? – Aine perguntou.
- Como temos certeza sobre o alvo? – Alart perguntou.
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- Em uma palavra? Kallisti. – Scylla disse.


- Entendo. Uma dica boa, sem dúvida. – Um dos magos leoninos chefe comentou. –
Recemos durante o ritual entre nós. Foi tão bonito...
- Imagino. Bem, então vamos apenas ganhar tempo? – Sunny perguntou, sentindo-se
irritada sem motivo. De novo.
- Por enquanto, sim. Precisamos decifrar aqueles arquivos. – Scylla disse.
- Então está mesmo lá? Eu sabia!
- Sim, Sunny. Está. Vou enviar minha assistente para te ajudar...
- Não. Eu posso ver isso sozinha. – Sunny disse, irritada.
- Amor, você precisa...
- O que? Descansar? Me polpem! Não sou de cristal, droga! – Sunny gritou.
- Tia, você precisa estar descansada para evitar que essa coisa, seja lá o que for o
Olhos Negros fez com você, tome conta. Não sabemos como isso age. – Aine disse.
- Exatamente. Não sabemos muita coisa sobre esse plano antigo desse monstro. Nem
sabemos se descansar vai ajudar em algo. Prefiro ajudar no que sei que vai ter algum efeito.
– Sunny disse e ergueu a mão para evitar que Alart dissesse qualquer coisa. – Quanto à sua
oferta de ajuda, Scylla, sua assistente precisa estar com você agora, não é?
- Sim. Mas você também vai fazer mais progresso com ajuda.
- Concordo. E não podemos confiar em qualquer uma. Além de não ser muito legal
chamar atenção desnecessária. Assim, porque não deixa Gaia me ajudar?
- Minha filha?
- Você conhece outra Gaia?
Aine sorriu.
- Olha, ela é inteligente, organizada, já está ajudando no reino e confio nela. – Sunny
acrescentou propositalmente, já que o fato de Scylla ter uma filha tão próxima de Erínio
com certeza tinha abalado a confiança dela na educação que dera às meninas.
- Eu... – Scylla pensou um pouco. – Não tenho nada contra. Aine?
- Totalmente de acordo. Alart? – Aine respondeu.
- Não consigo pensar em ninguém melhor. – Ele respondeu.
Um por um dos membros à mesa aprovaram a escolha, mesmo que um ou outro
tivesse alguma ressalva por ela ser irmã de Maia.

~o ⭐ o~
Lich estava sentindo aquela aceleração no coração, as mãos suavam, sentia-se
nervoso, agitado, sua mente correndo em altas velocidades, sem direção nenhuma. A três
dias ele dormira no quarto dela, apenas a abraçando, mas aquilo lhe deu uma paz enorme,
uma sensação de plenitude. Aquela compulsão realmente precisava parar, mas ele estava
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perdendo as esperanças, achando que aquilo só acabaria quando ele estivesse morto. Lich
ainda não sabia, mas Aine também estava muito agitada durante esses dias.
Preciso vê-la. Preciso vê-la. Preciso vê-la. Preciso vê-la.
- Senhor? – A sacerdotisa reitora do orfanato chamou pela quinta vez.
- Sim. De acordo. – Lich disse, sem fazer ideia do que a mulher estava falando.
- Mesmo? Que ótimo! As crianças ficarão muito felizes com isso. – A mulher disse com
olhos brilhando de alegria.
Ela realmente amava e se importava com aquelas crianças. Isso foi o fator decisivo
para Lich escolher ela para esse cargo dentre dezoito candidatas.
- Mande a conta e tudo o que for preciso para mim. Vamos precisar reorganizar
algumas coisas.
- Sim, claro. Sinto muito pelo príncipe Lesath e pela Rainha Mãe. Eles eram muito
queridos por todos.
- Como as crianças estão? – Lich perguntou, preocupado já que elas adoravam os dois.
- Tristes, mas estamos contornando a situação.
- Muito bem. Em breve vamos fazer algo para alegrar um pouco eles. Não quero que
nenhum deles sofra mais, pelo menos não se eu puder impedir. – Lich disse, mais para si
mesmo do que para a mulher que visivelmente tinha uma queda por ele. Não que isso
tivesse qualquer importância para ele. – Preciso ir. – Lich levantou bruscamente, não
conseguindo mais evitar a compulsão.
Lich se despediu o mais rápido que a educação permitia, caminhou a passos largos
para a casa em frente ao orfanato. Como era tarde, todas as crianças já dormiam e ele
lamentou ter passado tanto tempo no escritório cuidando dos documentos e orçamentos,
sem ter tido tempo de vê-las. Porém, agora sua preocupação era quase totalmente em sua
compulsão.
Eu preciso vê-la. Agora.

~o ⭐ o~
Aine deitou mais cedo naquela noite. E com “cedo” quero dizer que já era bem tarde
para qualquer pessoa comum. Às vezes Aine desejava ter o problema de insônia que sua
avó tinha, capaz de tirar o sono por dias e mesmo assim funcionar perfeitamente bem. Mas
ela dormia facilmente, pela mesma média diária comum. No entanto, para um governante
parecia que as horas do dia nunca eram suficientes para resolver tudo. Naquela noite,
porém, apesar de cansada, ela não conseguia sumir. Aquela incômoda sensação de estar
sozinha no mundo, aquela angústia que isso trazia e que pouquíssimas pessoas conheciam,
a atacava de novo. Em algum momento da noite ela finalmente adormeceu.
L i k a s t í a 0 4 | 106

Era madrugada quando algo a acordou. Não foi um barulho ou um sonho. Isso ela
tinha certeza. Ao olhar para sua mão ela entendeu. Seu anel real, o que continha boa parte
da chave para a magia de fogo estava brilhando sozinho.
Que incomum... Aine pensou. Mas, como qualquer mago que se prestasse, qualquer
pessoa com meia gota de magia, ela não discutiu e se levantou para descobrir o que sua
magia sinalizava.
Cuidado.
Uma voz feminina, firme e doce disse em sua mente, parecendo ressoar em sua alma.
Sem saber porque (ou, no fundo, talvez soubesse) ela obedeceu a voz estranha e familiar ao
mesmo tempo, ficando mais atenta, a ponto de perceber um vulto escuro sumir por uma
janela entreaberta. Aine correu até ela, porém não viu mais nada. O que ela não entendeu
foi o motivo do alerta misterioso. Pelo menos não até que ela trancou a janela alta e se
virar para dar de cara uma mulher bem conhecida. Aine tentou gritar ou mesmo se mover
para ataca-la com uma rajada de fogo, mas o ar parecia de repente denso, tóxico. Sua
garganta estava seca, seus olhos queimavam e seu corpo parecia incrivelmente pesado.
- Epaine. Nome interessante. Seu pai tinha um senso de humor invejável. – Cassi
recostou na porta fechada do quarto de Aine.
- Como...voc... – A voz de Aine soava rouca e fraca.
- Como entrei? Querida, acha que me aproximei de Maia por nada? Aquela garota era
a mais fácil de pegar por motivos óbvios, mas não a devorei por algum motivo, não é?
- O q...
- O que eu quero. Ai, pequena Rainha, que previsível. Bom, mas a pergunta certa aqui
é o que você quer? – Cassi deu um passo lento até Aine, deixando ela mais pesada com o
poder da outra.
- Nada...que...venha...de...você.
Cassi colocou uma mão no peito fingindo estar magoada. – Essa doeu. Vamos, Aine.
Você é quase tão inteligente quanto seu pai, porque não usa essa linda cabecinha?
- Não...fala...do...pai...
- É uma pena você não ter conhecido ele. Acho que vocês seriam muito amigos. Sabia
que ele queria ser um pai super presente e perfeito? Fofo. Inútil, já que ele morreu ne, mas
fofo.
- Cala...a...boca... – Aine usou sua mente para fazer o ar aquecer perto de Cassi.
Porém ela tinha previsto isso. A mente de Aine nublou, ficou pesada de repente.
- Você não achou mesmo que isso ia funcionar, não é? Sabe quem tinha um poder
incrível para algo assim? Carya e Tigrésius. – Cassi se sentou na cama de Aine com as pernas
cruzadas e forçou Aine a cair de joelhos, o veneno pesando mais seu corpo a cada minuto
que passava. – Eles eram invejáveis. Tigrésius era...HAHAHAHA! Louco. Resumidamente.
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Carya era um saco, mas tinha talento. Isso não dá pra negar. Claro que teriam muito mais
poder se usassem minha magia.
- Nem...nem...Tigrésius....aceitaria...você....
- Provavelmente, não. O ego dele era inflado demais pra isso. Mas você acha mesmo
que Kallisti, aquela sonsa, não queria a energia ácida porque fazia mal pra vocês? Sério?
Vocês nunca pensaram que ela só não queria que vocês tivessem tanto poder quanto ela?
- Você...não tem....tanto poder...
- Não mesmo porque eu dividi a fonte com vocês. Mas ainda posso te dar o que você
mais quer. Basta aceitar vir para o meu lado.
- Nunca.
- Vamos, Aine. Você sabe que eu posso trazer seu pai de volta. Necromancia não é tão
difícil. Claro que precisaremos de um corpo novo, mas isso se resolve fácil.
- Menti...rosa...
- Você me ajuda, nem vou te dar a magia ácida como fiz com Maia por enquanto. Só
depois que você tiver o que quer. Viu? Aceite ficar do meu lado, vencemos essa maldita
guerra e você terá seu pai de volta e o poder sem regras, o verdadeiro poder! – Os olhos de
Cassi eram totalmente negros agora, uma onda de ár negro e ácido, tóxico parecendo
emanar de seu corpo.
- Você....mente...observa das tr...trevas...
- Eu? Sabia que eu pelo menos nunca fiquei pelos cantos observando você como um
perseguidor doente? Compulsivamente roubando suas roupas íntimas, fazendo um tipo de
altar no meu quarto com coisas suas? Beijando seus lábios durante seu sono... Ou pior, te
observando escondido enquanto você tomava banho...
- Do que...O que...
- Me aceite e este será meu primeiro presente pra você. Vou revelar quem vem te
observando enquanto você dorme e até quando você se toca sozinha... Seja minha aliada,
pequena Rainha, e se torne grande. – Cassi se aproximou mais do rosto de Aine, com olhos
negros e um sorriso no rosto.
- Meu pai...
- Sim, mocinha... Vou te dar seu papai de volta. Diga...
- Si...sim. – Aine disse.
Cassi abriu ainda mais o sorriso, puxou o rosto de Aine devagar e beijou seus lábios,
passando a língua na parte interna de seu lábio inferior. Aine sentiu o lábio arder como se
tivesse derramado fogo ali. Aquela energia densa, quente e ardida, caminhou por suas
veias, deixando uma sensação de pedras dolorosas seguindo o caminho até sua mão
esquerda, oposta a do anel que carregava a magia de fogo. Cassi se afastou um pouco,
ficando de pé e observando a cena com um sorriso cruel enquanto Aine se engolhia com a
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dor que desceu de seus lábios, passou por sua garganta, seu ombro, seu braço até alcançar
o dedo indicador, parando na ponta onde uma espiral negra com um olho no centro se
formou. A marca de Erínio. Então a dor simplesmente sumiu, tudo sumiu. Aine então viu a
mão de Cassi estendida para ela.
- Pronto. Por enquanto isso vai servir para que você não esqueça nosso acordo. – Cassi
disse e levantou Aine, alisando seu cabelo que, na mesma hora, ficou opaco onde tinha sido
tocado. De repente, Cassi sorriu largamente e olhou para a porta. – Olha quem voltou.
- O que?
- Sou um deus de palavra. – Cassi disse, inflando o peito. - Se quer saber quem é o
doente que te persegue, obcecado por você, espere a porta abrir.
Como se invocado, Lich abriu a porta, mal tendo totalmente se materializado, seus pés
ainda em forma de névoa negra.
- Sai de perto dela! – Lich gritou. – Guardas!
- Desculpe por isso, querida. – Cassi sussurrou e num movimento ágil, puxou Aine pela
cintura, colocou à sua frente e pôs uma adaga em seu pescoço.
Passos soaram e logo um monte de Sentinelas estavam armadas junto com Lich na
porta.
- O que te fez voltar tão rápido, Lich?
Lich deu um passo para dentro do quarto, mas parou.
- Não. Se chegar perto eu mato ela e aí quem você vai observar toda noite? – Cassi
sussurrou a última parte e piscou para ele.
Lich deu uma olhada rápida para Aine, o pânico em seus olhos, mas logo disfarçou.
- Do que ela está falando? – Aine perguntou, com um olhar chocado para ele.
- Eu...eu sinto muito...
- Que chato. Nem vai tentar negar? Fazer o que né. Também basta Aine dar uma busca
no seu quarto na casa do litoral e puf! Vai ter a mesma descoberta que seus pais tiveram
quando acharam o mesmo altar no seu quarto no palácio. Foi tão engraçado.
- Cala a boca, seu imundo espírito de olhos negros! – Lich nunca sentiu tanta raiva
antes.
- Você me entendia às vezes, perseguidor. Mas, vou facilitar aqui. Vocês vão sair,
fechar essa porta, mandar aqueles guardinhas lá fora saírem de perto da janela e me deixar
ir embora, ou vou matar a rainha que nem tem herdeiro ainda. O que não se pode dizer do
seu irmão mortinho, né. – Cassi riu com a cara confusa de Lich.
- Sentinelas, obedeçam. Se afastem e tirem os guardas lá da porta. – Aine ordenou.
- Não vou deixar você com ela!
- É uma ordem, Lich. Você está no meu reino e quem manda aqui sou eu. – Aine disse,
soando magoada, o que feriu Lich de um jeito que seus olhos não deixavam dúvidas.
L i k a s t í a 0 4 | 109

Todos obedeceram a ordem da Rainha e, quando a porta foi fechada, Cassi soltou Aine
e observou pela janela, sem tirar a atenção de Aine também.
- Muito bem, mocinha. Acho que vamos nos dar muito bem.
- Obrigada. Por me alertar sobre aquele....doente... É perturbador saber que alguém
invadiu meu espaço pessoal...me tocou enquanto eu dormia... – Aine chacoalhou o corpo
em um calafrio.
- E eu nunca influenciei ele. Para você ver como nem todas as pessoas loucas são por
culpa minha. – Cassi comentou.
- O que você quis dizer sobre aquilo do irmão de Lich? – Aine perguntou.
Cassi olhou diretamente para Aine e deu um sorriso arrepiante. – Tudo a seu tempo,
querida. Mas, para mostrar como seu generoso com quem me é leal, vou apenas te dizer
uma coisa: Lesath devia ter procurado aquela ex-noiva dele, ao invés de apenas ignorá-la.
Cassi piscou, saiu pela janela e sumiu na noite.
Aine abriu a porta, saiu e foi até o fim do corredor onde as Sentinelas e Lich
aguardavam.
- Descansem. Está tudo bem agora. Avisem para a chefe das arrumadeiras que preciso
do meu quarto limpo e desinfetado. Duas vezes. – Aine disse, ignorando Lich. – Esta noite
dormirei no quarto que foi de minha mãe. Lich você dormirá no quarto que era do meu avô.
Agora saiam.
As Sentinelas obedeceram, uma acompanhou Lich até o quarto que ele deveria ficar e
saiu. Lich seguiu triste, de cabeça baixa, uma expressão angustiada no rosto.
Aine entrou no quarto de sua mãe. – Péssima escolha. – Ela disse para si mesma ao ver
tudo de sua mãe ainda ali, sempre pronto para uma visita que agora nunca mais
aconteceria. Incapaz de continuar, ela passou por uma porta lateral, saiu em outro corredor
diferente, caminhou até alcançar a porta desejada e entrou sem bater.
Lich estava sentado em uma cadeira de frente para uma porta escondida atrás de um
vaso enorme. A porta se abriu com uma onda de poeira e resquícios de teias de aranha.
- Sabia que minha avó fugia de casa por essa passagem para namorar com um
jardineiro desconhecido? – Aine disse limpando a sujeira de sua roupa.
- Aine, eu sinto muito. – Lich se levantou com a garganta se fechando de emoção.
- Eu também. Minha avó era legal, mas meio doida. – Aine balançou a cabeça.
- Sabe que não estou falando disso. – Lich se levantou. – Aine, eu posso explicar.
- O que? O tal altar? Os roubos de roupas íntimas minhas? Ou seu hábito de me
observar como uma sombra dos cantos escuros? Ou quem sabe sua obcessão comigo? –
Aine cruzou os braços, séria.
- Tudo...tudo isso. Eu...
- Lich, acha mesmo que eu não sabia?
L i k a s t í a 0 4 | 110

- O que? Não... Sabia? – Lich ficou realmente confuso.


- Certo. Eu não sabia do altar. As roupas íntimas eu desconfiava. Mas o resto? Eu não
estava dormindo semana passada quando dei aquele showzinho sexy, brincando com
minha...
- Aine. – Lich disse, em tom de aviso.
- HAHAHAHA! Relaxe, Lich. Les também acabou confirmando minhas suspeitas. Joguei
um verde e ele já começou a te defender, pedir para eu ter paciência, compreensão...
- Ele sabia?
- Acho que descobriu a pouco tempo. Eu sabia a anos. Lich, talvez eu seja tão louca
quanto você, mas, sinceramente, eu só durmo quando você está por perto. Eu me sinto
menos....menos sozinha, sabe. – Aine confessou.
- Não sei o que dizer...
- Vamos conversar melhor depois. Agora melhor avisar pra Scylla e seus pais que o
plano deu certo. – Aine disse.
- Certo. Sabe que não aprovo essa ideia, não é? – Ele disse, ligando o comunicador.
- Sei, Lich. – Aine revirou os olhos e se sentou na cama ao lado dele. – Você repetiu
isso só umas oitenta e mil vezes.
- Oitenta e mil? – Lich perguntou, divertido, mas logo focou a atenção na chamada
atendida. – Deu certo.
- Ótimo. – Scylla respondeu. – Aine, te encontro amanhã na hora de sempre para não
levantar suspeitas.
- Certo. – Aine respondeu e Lich desligou, chamando agora seus pais.
- O plano funcionou. – Lich disse.
- Maravilha. – Alart respondeu.
- Ótimo. – Sunny disse, ainda incomodada com a ideia.
- Tia, tio, vocês têm notícias da Amália? – Aine perguntou.
- Não. Nunca mais quis contato com aquela piranha ingrata e traidora. – Sunny disse.
- Porque, Aine? – Alart perguntou.
- Cassiopeia disse algo interessante. – Aine disse. – Procurem ela. Há uma grande
possibilidade de que ela tenha tido um filho de Les e escondido isso.

~o ⭐ o~
Alguém finalmente me ouviu. Ok que ela entendeu errado, mas ouviu ne.
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Capítulo 13
Certa vez visitei o universo de onde você está lendo isso. Muita coisa me chamou a
atenção, mas a expressão “enganar o diabo”, que adorei, me fez lembrar desta época aqui
em Likastía.

~o ⭐ o~
- Você matou ela? – Maia perguntou, ansiosa, um cinto de ferro com uma corrente a
prendendo na cama, com quatro metros de corrente para dar alguma mobilidade.
Cassi sentou calmamente na poltrona ao lado da cama e estalou os dedos para Maia ir
até ela. Maia foi, de cara emburrada e sentou no chão na frente dela. Cassi colocou um pé
no peito de Maia e a outra massageou os dedos dela com o pé ainda na mesma posição. A
humilhação a irritava, mas a demora em Cassi para responder irritava muito mais. No
entanto, Maia já tinha aprendido que só tinha a perder batendo de frente com Cassi, então
engoliu sua raiva e aguardou, esperando que sua obediência resultasse em alguma carícia,
alguma atenção de Cassi.
Depois de quase uma hora, Cassi disse: - A amizade daqueles dois finalmente acabou.
- Que maravilha! Acha que isso vai causar a guerra ou pelo menos evitar esse casinho
ridículo da minha irmã com aquele leonino nojento?
- Casamento entre os reinos? Ah dificilmente vai acontecer.
- ISSO! – Maia gritou de felicidade. – Vê se pode, aquela falsa sendo rainha? E ainda
daquele reino cheio de trouxas ignorantes e bárbaros.
- Só mais algumas intrigas e a amizade entre eles vai acabar. Nem deveria ter
começado. Quando espalhei a séculos que eles eram canibais foi super eficiente.
- Então, falta pouco para a guerra também?
- Guerra ainda não posso dizer, mas estamos muito perto disso. Com Aine do meu
lado, não vai ser tão...
- AINE?! Aquela...aquela...estúpida! Aquela vadia, piranha, que dá pra todo mundo que
nem a vadia da minha mãe! Você está louco? – Maia se calou quando um soco atingiu sua
garganta.
- Esqueceu com quem está falando, sua inútil? – Os olhos de Cassi voltaram ao original
negro que pareciam abismos malignos. – Acho que tenho uma ideia de como cuidar desse
seu péssimo hábito de achar que tem algum comando aqui.
Maia sentia muita dor na garganta e sua voz não tinha como passar pelas cordas
vocais paralisadas. Cassi soltou a parte da corrente presa na cama e saiu puxando Maia
bruscamente pela corrente, esta saindo com suas garras marcando o chão ao tentar
inutilmente segurar ali. Do lado de fora estava chovendo, estava frio e havia sinais de que
nevaria, mesmo que só um pouco. Havia uma pequena casinha destinada a criação de
L i k a s t í a 0 4 | 112

frangos, agora vazia depois de décadas que seus donos tinham morrido. Cassi abriu a porta
e jogou Maia lá dentro, prendendo a corrente em uma estaca próxima da porta. A casinha
dava apenas para o corpo de Maia ficar lá dentro, deitada, sem ter como erguer-se mesmo
um pouquinho, sua cabeça saindo pela porta, impedindo ela de ser fechada.
Me perdoe...Desculpe. Por favor, não me deixa aqui. Eu ajudo você... Maia pensou
desesperadoramente, em pânico pelo frio e por se sentir um animal de estimação.
- Sim, você vai ajudar. Mas te falta muito para chegar aos pés da Sarin como minha
ajudante. – Cassi disse cruelmente, fazendo a inveja de Maia aflorar.
Eu vou me comportar. Eu juro. Eu mato quem você quiser. Por favor, me deixa ser sua...
- Você vai fazer as duas coisas, mas, por enquanto, fica aqui, como meu bichinho de
estimação, que é o que você realmente é. – Cassi disse e saiu, bloqueando
intencionalmente os pensamentos gritados por Maia.

~o ⭐ o~
- Só uma curiosidade... – Scylla perguntou, se levantando para sair. – O que o Olhos
Negros ofereceu para tentar fazer você se aliar a ele?
- Nada demais. – Aine desconversou, se levantou e deu a volta na mesa para sair
também.
- Nada demais... Sei. Sabe que, dentre as possibilidades de contato que listamos na
reunião, eu quase podia apostar que ele tentaria uma aliança com Lich? Ele tem alguns,
digamos, problemas. Mas você, apesar do posto elevado, não era nem a segunda na minha
lista de possibilidades.
- É, vai entender esse cara ne.
- Aine. – Scylla parou na porta e se virou de frente para ela. – Meu trabalho não se
limita apenas aos assuntos dos templos e da luta contra a magia ácida. Eu também posso te
ouvir, sabia?
- Eu sei. Não se preocupe. – Aine disse. – Nem comigo, nem com os “problemas” do
Lich.
Scylla entendeu a indireta. Aine sabia da compulsão dele e não parecia incomodada.
Bem, quem sou eu para julgar os desejos estranhos do coração, não é? Ela abençoou Aine e
foi embora.
Aine entrou no quarto e não se surpreendeu ao ter aquela sensação familiar de não
estar sozinha no mundo. Lich. Aine pensou com um sorriso no rosto.
Lich ficou em dúvida se deveria se materializar no canto onde a sombra escondia seu
corpo em forma de névoa negra ou se continuava ali, do mesmo jeito. Então ele se decidiu
por continuar. Aine sabia que ele estava ali, disso ele tinha certeza, então, se ela não
quisesse que ele permanecesse oculto, ela falaria. Ele permaneceu do mesmo jeito,
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observando como fazia a anos, enquanto ela tirava a roupa, tomava banho e se vestia
lentamente. Uma batida na porta anunciou a jovem que trazia o jantar dela. Aine abriu a
porta e uma bandeja com mais comida do que ela conseguiria comer foi colocada sobre a
mesa. Assim que a moça saiu, Aine trancou a porta por dentro e chamou.
- Vem comer comigo? Usar magia por tanto tempo dá muita fome. – Aine disse
naturalmente.
Lich teria sorrido se soubesse como fazer isso. Ele se materializou e a abraçou por trás,
dando um beijo no topo de sua cabeça. – Você é perfeita.
- Come logo. – Aine disse em um tom ansioso.
- Hum. Porque? Pretende me fazer gastar mais energia? – Lich perguntou sério, mas,
de alguma forma, Aine sabia que ele estava brincando.
- Bom, tem uma cama ali depois daquela porta. E eu costumo deitar nela. E você pode
deitar nela. E eu estou com frio. E um pouco sem roupa para usar....
- Coitada. Não tem uma roupa naquele closet enorme.
- E eu posso sofrer com o frio. Olha que coisa mais triste.
Lich puxou a cadeira para ela se sentar e, talvez pela influência da forma como seus
pais se tratavam, ele copiou o gesto de Alart, puxando a cadeira de sua amada para ficar
colada na dele.
- Então é melho eu comer algo para esquentar a jovem pobre de roupas. – Lich
respondeu.
Depois de, aahn...er...digamos, relaxarem, Aine dormiu com a cabeça sobre o peito de
Lich que também dormiu muito bem, obrigada. Até que, de manhã, bem cedo, Aine sentiu
algo estranho, uma incômodo que não soube explicar, e acordou.
- Aine. – A voz de Cassi soou e só então Aine percebeu que a marca de Erínio em seu
indicador funcionava como uma fonte de contato de áudio. Ela se sentou e focou sua
mente para atender, já que, aparentemente, Cassi precisava desse “atendimento” para
ouvir a jovem.
- Sim, senhor. – Aine lembrou das dicas de Scylla.
A voz de Cassi soou bastante satisfeita quando disse: - Preciso de um pequeno favor.
- Sabe que vou fazer o que o senhor mandar. Desde que me dê o que eu quero no
final.
- Claro que sim. Bem, vamos dizer apenas que você não vai aprovar o acordo militar
com o reino dos canibais. – Cassi disse.
- Entendido. Espera. Os leoninos são mesmo canibais?
- Claro que são. Eles só esconderam melhor nas últimas gerações. Cancele o acordo
ainda hoje. Não preciso te lembrar o que está em jogo.
- Considere feito. – Aine disse e Cassi desligou, para seu alívio.
L i k a s t í a 0 4 | 114

- Canibais? Sério? - Lich disse sem abrir os olhos, ainda deitado.


- AH! Puta merda, Lich! Você ainda vai matar alguém de susto. – Aine colocou a mão
sobre o coração disparado.
- Ouço muito isso.
- Nossa, por que será ne. – Aine tentou levantar, mas Lich a puxou de volta para deitar
em seu peito. – Eu posso cancelar, mas esse acordo é o que une nossos magos também.
Como vamos lutar contra aquela coisa se estivermos separados?
- E se você cancelar, mas os magos atuarem juntos mesmo assim?
- Isso é crime em Tiger. Seria pior porque a primeira providência, nesse caso, seria eu
afastar todos os magos que agissem ilegalmente assim, inclusive bloqueando boa parte de
seus dons com a magia de fogo. O que, como sou mediana nesse dom, faria meu próprio
poder enfraquecer um pouco.
- Ou seja, de qualquer forma enfraqueceria você e os magos. Se você cancelar o
acordo, vai dividir os povos, a opinião pública, corre o risco de voltar a antigos
preconceitos. Se não cancelar, aquela coisa vai entender que você não está do lado dele
realmente e nossa vantagem, o tempo que precisamos, será perdida.
- Eu vou cancelar. Isso é um fato. O problema é como vou justificar isso para o povo,
evitando problemas sociais futuros, ou que achem que fiquei louca ne, e como manter
nossa aliança sem que se torne ilegal. Droga. E eu que cresci achando que o maior desafio
do meu reinado seria com coisas tipo comércio, construção de monumentos...
- Esqueceu de um detalhe, querida.
- Qual?
- Você não está sozinha. – Lich disse e ligou o comunicador.
- Ahn? Lich? Garoto, você não dorme? – Scylla perguntou cansada, querendo
aproveitar os poucos minutos que tinha antes de levantar para os primeiros cânticos
matinais do templo de Kallisti.
- Abre um portal pra Aine ir lá pra casa por favor? É importante. – Lich disse.
- Quando?
- Daqui a uma hora.
- Estejam no local combinado. – Scylla disse e desligou.
- Durma um pouco. Te acordo a tempo de sairmo para a passagem. – Lich firmou o
abraço em Aine.
- Meu herói. – Aine disse e dormiu quase que instâneamente.
- Minha rainha. – Lich murmurou.

~o ⭐ o~
L i k a s t í a 0 4 | 115

Sunny recebeu Aine e Lich no quarto no teto do palácio, onde anos antes ela passou
seus primeiros meses de liberdade. Alart entregou uma xícara de chá para a esposa,
enquanto Lich e Luc, respectivamente, faziam o mesmo para Aine e Gaia.
- Encontramos Amália. – Sunny disse sem rodeios.
- E então? – Aine perguntou.
- Aquela vad... – Luc começou irritado, mas olhou para a mãe. – Desculpe, mãe.
Aquela...felina de quinta, disse que nunca teve filhos. Mas Gaia armou para ela, como se
estivesse do lado dela e pronto. A burra soltou a língua.
- Ela teve uma menina e pensou em usar a criança para ganhar algo de Les. – Gaia
disse, com notável nojo.
- Infelizmente, ou felizmente, não decidi ainda, Les nunca aceitou nenhum contato
com ela e ela não mencionou ter tido um filho. – Sunny disse.
- Então, com raiva por ele não deixar nem mesmo que as mensagens dela lhe fosse
entregue. – Alart esclareceu. – Por isso ela se desfez da criança.
- Por Kallisti! Ela matou a menina? – Aine arregalou os olhos.
- Não. – Gaia disse rapidamente. – Ela abandonou a menina da floresta Tiger, perto das
cavernas sagradas.
- Então não sabemos se a menina está viva, se alguém achou e cuidou ou...ou achou
e... – Aine evitou falar para não fazer Sunny pensar em seu passado.
- Ou se ela foi abusada esse tempo todo. – Sunny disse, com um aperto doloroso no
peito.
- Vou mobilizar espiões Tiger e caçadores para encontrar alguma pista. – Aine disse. –
Não se preocupem. Para todos os efeitos, Scylla que estará organizando isso.
Então Aine e Lich contaram o problema com Erínio.
- Temos magos Tiger criados e educados entre os leoninos. Alguns Tiger que, devido a
isso, são magos leoninos. – Alart contou mentalmente alguns nomes que se enquadravam
nessa descrição. – Mas são poucos. Nem perto da quantidade que pode ajudar a vencer
essa coisa.
- É simples. – Gaia disse e todos os olhares se voltaram para ela. Tímida como era,
aquilo a travou e ela não conseguiu falar. Luc segurou sua mão e deu um aperto de apoio,
fazendo ela tomar coragem. – Bom...Você pode cancelar o acordo, aí cria uma lei sigilosa,
apenas com o conhecimento do mago chefe leonino e de Scylla, aprovando uma
cooperação emergencial em um caso extremo, invalidando a quebra da aliança. Assim,
quando o momento chegar de enfrentar aquele monstro, se você não conseguir anular o
cancelamente, terá uma base legal para evitar as punições legais.
L i k a s t í a 0 4 | 116

- Assim, como já estamos em um momento extremo, nem mesmo as cooperações que


já estamos fazendo será punível. – Luc disse, dando um olhar orgulhoso para a noiva. –
Genial.
- Gaia, você é um gênio! Acho que vou te levar de volta para Tiger. – Aine provocou.
- Nem pense nisso! – Luc disse rápido e desesperado.
- HAHAHAHA! – Aine não aguentou.
- Eu aprovo. – Alart disse.
- O que?! Pai que ideia é essa?! Gaia é minha e ela não vai... – Luc se levantou
revoltado.
- HAHAHAHAHAHAHAHAHAHA! – Aine ficou sem fôlego de tanto rir.
- Querido, seu pai está falando da ideia de Gaia. – Sunny disse entre risos.
- Ah. – Luc se sentou aliviado e meio sem graça, ainda segurando firme na mão da
noiva. – Tudo bem. De acordo também. Com a ideia da lei. Não com você levando MINHA
noiva embora.
Aine elaborou a lei à mão e todos assinaram, inclusive o líder dos magos leoninos que
fora chamado e rapidamente explicado sobre a situação. Gaia e Luc saíram de mãos dadas,
falando com o mago. Quando Alart se levantou, Lich pediu para seus pais aguardarem mais
um pouco. Aine contou que sabia da compulsão dele e que se entendiam bem. Então ela
contou seu plano.
- Aine, tem certeza? Não me entenda mal, só que podemos decidir isso quando
resolvermos essa confusão. – Alart disse.
- Eu não sei como isso tudo vai terminar, nem mesmo se sairei viva disso. – Aine disse
e fez um sinal para Lich relaxar. Apesar de ser doloroso, era uma possibilidade forte,
principalmente agora que ela tinha a marca de Erínio. – Eu quero aproveitar para realizar
meu desejo e deixar tudo organizado legalmente.
- Muito bem. Como Rei Leonino não tenho jurisdição para fazer isso, mas ajudar sim.
Scylla já sabe?
- Sim. Expliquei quando ela abriu o portal hoje. Ela aprovou e já vai resolver uma parte
do meu plano quando eu voltar. Mas queria avisar antes.
- Eu vou. – Sunny disse.
- Sunny, é perigoso... – Alart disse.
- Viver é perigoso, amor. Não vou perder isso. Eu. Vou.
Alart sabia que discutir era perda de tempo. – Vou com você. E não faça essa cara.
Nem morto vou te deixar sozinha.
Assim, em segredo, naquela manhã Scylla assinou a lei e guardou o documento
protegido no templo de Kallisti. Minutos mais tarde, Aine cancelou a antiga aliança com os
leoninos e deu uma desculpa genérica para o público do tipo “divergências temporárias de
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ideias”. Provando que estava atenta a tudo, pouco depois Cassi entrou em contato com
Aine elogiando sua competência e obediência.
Naquela tarde Scylla estava de pé no meio de uma passagem secreta fedendo a mofo,
com teias de aranha por toda parte. Aine e Lich aguardavam enquanto Scylla abria o portal
para Alart e Sunny atravessarem. Assim que o portal foi fechado, Scylla ficou à frente e Aine
e Lich, enquanto os pais dele ficavam um pouco mais para o lado.
- Eu realmente nunca imaginei fazer isso nesse – Scylla fez um gesto sinalizando ao
redor – tipo de ambiente. Tem certeza disso?
- Sim. – Aine e Lich disseram.
- Bom, que seja então. – Scylla entoou um cântico de purificação e união que
terminava pedindo as bênçãos de Kallisti para a cerimônia.

Vocês têm minha bênção, agora anda logo com isso!

- Aine Tiger e Lich Leon, vocês estão cientes das responsabilidades dessa união?
- Sim. – Ambos responderam.
- Aceitam se casar?
- Sim. – Eles disseram ao mesmo tempo.
- Vocês trouxeram algum símbolo dessa união?
Aine tirou uma pulseira de prata da cintura do vestido laranja vibrante e Lich tirou uma
pulseira de ouro do bolso do casaco. As duas joias foi abençoada por Scylla e pela magia
dos pais do noivo combinadas. Lich colocou a pulseira dourada, que brilhava com uma luz
branca das magias de seus pais por alguns instantes, no pulso direito dela e deu um beijo
em sua mão. Aine colocou a pulseira prateada que brilhava como fogo no pulso de Lich e
colocou as pontas dos dedos dele sobre seu coração.
Scylla terminou o ritual simples e antigo que funcionava com a bênção de magias
diferentes, no caso a de Alart principalmente, e os uniu. Lich legalmente já era o Rei
consorte agora, embora o casal planejasse manter isso em segredo até acabarem com
Erínio e depois realizar uma cerimônia de casamento típica dos Tiger. Mas, caso não fosse
possível, a magia de Alart poderia ser rastreada na joia abençoada por Scylla para o
casamento o tornando válido pelas leis Tiger. Assim, além de realizar o desejo do casal de
se unir, caso Aine morresse sem que seu outro plano se concretizasse, o reino não ficaria
sem um líder temporário, destruindo um dos planos de Erínio de enfraquecer o reino mais
poderoso do mundo.

~o ⭐ o~
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Gaia sentou no colo de Luc e o beijou, além de surpreender o felino que não estava
acostumado com essa atitude dela em público.
- Vem comigo. – Ela sussurrou em seus lábios.
- Continuamos amanhã. – Luc dispensou seu auxiliar e saiu com Gaia de mãos dadas.
Ao chegar na porta da sala de descanso onde sua mãe estava, antes de abrir, ele encostou
Gaia contra a parede e beijou a mulher como se não pudesse viver longe dela nem mais um
segundo. Sem fôlego, ele se afastou um pouco, encostou sua testa na dela e disse: - Você
me enlouquece.
- Eu..tenho... – Gaia respirou com dificuldade. – Tenho que falar....com sua mãe.
- Sim. Claro. – Luc voltou a si, deu um último beijo nela e colocou a mão na maçaneta,
mas Gaia a cobriu com a sua.
- Depois...hoje....ééé...mais tarde. – Gaia não conseguia tomar coragem, mesmo
depois de conversar com sua mãe e tirar todas as suas dúvidas.
- Diga, minha linda. – Luc comandou. – Fale o que você quer de mim.
- Quero...dormir com você... – Gaia disse, sentindo seu rosto esquentar. Ela abaixou a
cabeça e disse: - Mas, se você não...
Luc colocou um dedo sob seu queixo e o forçou a olhar para ele. – Nada nessa porra
de mundo me fará mais feliz. – Sua voz soou rouca.
Gaia estava visivelmente empolgadinha e Sunny sorriu, tentando disfarçar pois a
conclusão era bem óbvia depois de ouvir os gemidos dela através da porta. Mesmo Alart
teve alguma dificuldade para não sorrir para o casal apaixonado.
- Gaia, querida, coma um pouco desse bolo maravilhoso. – Sunny disse e esperou a
menina e Luc começarem a mastigar para comentar: - É bom comer muito bem para
aguentar a noite...
Luc e Gaia engasgaram e tossiram, sem graça.
- Sunny... – Alart disse, escondendo o sorriso atrás da taça de cobre.
- O que? Eu fui sutil dessa vez, ue. – Sunny brincou.
Depois de conseguir se acalmar, Gaia disse: - Acho que encontrei o que Ane viu. Ou
quase. Ainda não entendi.
- Diga. – Sunny comandou, feliz por não ter sido a única que aparentemente descobriu
algo naquele dia.
- Parece que aconteceu algo semelhante ao que está acontecendo agora. Só que faz
tanto tempo que as anotações ainda são escritas manuais com tinta de sangue animal e a
maior parte está semi apagada.
- É visível se você derramar sangue de limão em cima. – Sunny disse. – Foi por isso que
mandei te chamar, mas você já estava se agarrando com seu noivo no mirante.
- Mãe. – Luc disse quase tão envergonhado quanto Gaia.
L i k a s t í a 0 4 | 119

- Amor. – Alart disse ao mesmo tempo.


- O que? Quando sou sutil você reclama, quando não sou você também reclama. Por
Kallisti, que povo indeciso. – Sunny brincou. – Os documentos só podem ser lidos sob a luz
crepuscular da manhã. Eu consegui ver um trecho hoje. Preciso do documento que está
com você para lermos tudo.
- Finalmente um progresso. – Luc disse.
- Traga os documentos agora, por gentileza, Gaia. – Alart disse. O plano original que
ele e sua esposa conversavam antes do casal chegar era Gaia estar junto com eles e Luc de
manhã no nascer do sol para ver isso. Porém, sem precisar conversar, o casal tinha decidido
deixar Luc e Gaia aproveitar sua primeira noite juntos em paz.
- Aine tem razão nisso. – Alart disse depois que seu filho e sua nora saíram abraçados e
risonhos. – É melhor aproveitarmos o tempo que temos.
- É a única coisa boa que esse monstro nos trouxe. A ameaça nos fez lembrar que não
sabemos quanto tempo temos de vida. É melhor aproveitar para fazer o que queremos
agora. – Sunny abraçou o pescoço do marido, sentada no colo dele.

~o ⭐ o~
Um caçador entrou no palácio com um fardo enorme de carne animal e pele seca para
entregar o que foi comprado. Ele passou pelos funcionários, foi checado pelos guardas e
Sentinelas em cada ala do palácio, até chegar na cozinha e passar para o depósito. Lá
dentro, ele deixou o fardo no local indicado e saiu pelo mesmo percurso que viera. Um
portal se abriu e apenas um braço passou, enfiou a mão no ânus do animal morto e tirou
um cristal vermelho. Logo o braço passou de volta pelo portal e ele se fechou.

~o ⭐ o~
O resto de conto mais tarde porque vieram me trazer um bolo delicioso agora para me
dar forças para esta noite.
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Capítulo 14
Shh! Não faça barulho. Logo isso acaba.

~o ⭐ o~
Lich não conseguia dormir. Era tarde e, cansado de tentar, ele se levantou e foi até seu
gabinete preparar algumas magias para os dias seguintes. Mas sua mente estava longe.
Parte em Aine sozinha no reino Tiger, parte em seu irmão. Ele olhou para o teto e respirou
fundo.
- Kallisti, Poderosa Rainha do Universo, Dama das luzes e das sombras. Eu sei que não
é correto trazer os mortos para nosso mundo dos vivos, mas... – Lich fechou os olhos e
focou toda sua concentração e dor na prece – Pode parecer egoísmo. Talvez seja mesmo.
Mas, com tudo isso que está acontecendo, a única coisa que quero pedir é que nos ajude a
encontrar minha sobrinha. Eu sei que temos problemas maiores, mas se não posso trazer
meu irmão de volta, pelo menos nos permita achar a filha dele, viva ou morta.
Sons “estranhos” e baques altos soaram nos aposentos de Luc, mas Lich não ligou,
apenas se perguntou se eles não cansavam depois de horas nessa...interação.
Se a gente tivesse só uma pista... Se tivesse como saber pelo menos se ela está viva...
Kallisti, por favor, nos ilumine nesse problema. Eu prometo que construo um templo novo no
lugar da minha casa no litoral. O mais lindo que... Lich parou sua prece mental quando um
arrepio e um forte calor atravessou seu corpo, uma vontade de sorrir.
Não derrube a casa. Construa meu templo menor no topo da casa. O fogo nas velas se
elevou ao mesmo tempo, sozinho, seguindo o ritmo da voz.
- Kallisti? – Lich perguntou, embora soubesse em seu coração e sua alma a resposta.
Não. Sua sogra falando do além. A voz respondeu tão séria que ele quase acreditou. É
claro que sou eu. Agora prometa.
Lich desejou conseguir sorrir naquele momento. Logo se recompôs e entendeu o que
ela queria. – Eu prometo. Deixarei alguém responsável por isso, caso algo me aconteça.
Perfeito. Ela está viva.
Tão rápido quanto veio, a voz sumiu.
Eu devia ter desejado melhor. Lich pensou, se arrependendo de não ter pedido mais
dicas de onde e como a criança estava.

~o ⭐ o~
Sunny estava suspirando durante o sono. O cansaço resultante da noite em claro e
uma manhã agitada. Aquela voz em seu sonho era tão...diferente. Não ruim. Longe disso.
Mas, diferente, de um jeito que ela não sabia explicar. Sunny tentou focar na missão em
suas mãos.
L i k a s t í a 0 4 | 121

Ela caminhou por uma caverna com uma cratera enorme no topo. Os raios solares
passavam por aquela abertura boa parte da manhã e da tarde, sem dúvida. Ao redor
haviam árvores frutíferas em abundância, cristais que brilhavam nas mais diversas cores.
Pequenos animais perambulavam ao redor de um lago de água de cor alaranjada.
Esse lugar é real? Sunny se perguntou.
Como você é boba. Claro que é real.
Sunny se virou e colocou a mão sobre a boca ao ver aquele sorriso.
Você mora aqui? Sunny perguntou.
Não. Mas eu morei. Eu gostava.
O ambiente mudou sozinho, a roupa da jovem mudou, assumindo uma forma familiar,
embora o ambiente fosse meio estranho, parecendo um sótão. Lágrimas caíram pelo rosto
de Sunny.
Traga elas. Logo. A voz sussurrou à suas costas e tocou sua nuca.
Sunny acordou, pegou o papel e o lápis que sempre mantinha sob o travesseiro,
anotando rapidamente tudo o que lembrava.
Horas depois Sunny se levantou e foi lanchar com sua família, os encontrando à mesa.
Uma das funcionárias olhou assustada e correu para colocar mais um lugar à mesa, ao lado
do Rei. Os homens se levantaram da cadeira em respeito à uma felina, Alart puxando a
cadeira para a esposa.
- Mãe, nós íamos enviar seu lanche no quarto. – Lich disse, preocupado, afinal ela
tinha feito magia durante o nascer do sol e no sono para cumprir a missão urgente dada por
Aine.
- Prefiro comer com meus filhos, meu marido e minha nova filha. – Sunny sorriu para
Gaia. – Até porque eu precisava ter certeza que Luc não esgotou totalmente as forças dela
ne.
- Amor... – Alart escondeu um sorriso por trás da taça.
Gaia ficou tão envergonhada que seu rosto aqueceu, Luc não ficou muito atrás. Lich
balançou a cabeça e deu um tapinha de apoio no ombro do irmão.
- O que? Do jeito que fez barulho esta... – Sunny começou, incapaz de conter a chance
de zoar o casal.
- Mãe. Eles vão infartar. – Lich disse.
- Vão nada. – Sunny pegou um ovo cozido do prato de Alart. – Você com suas
aparições já provou que nenhum de nós vai infartar mais na vida.
- Desculpe....por....pelo...barulho. – Gaia não tinha coragem de levantar a cabeça.
- Bobagem, querida. Eu e Alart quebramos algumas camas durante nossas diversões.
Garanto que o reino todo já está acostumado com essas coisas.
- Sunny! – Foi a vez de Alart ficar sem graça.
L i k a s t í a 0 4 | 122

- ECA! – Lich e Luc disseram ao mesmo tempo.


- Ah o doce sabor da zoeira. – Sunny deu uma garfada no prato do marido, mesmo o
seu já estando na sua frente. – Deixa a comida mais saborosa.
Aquele momento quase foi perfeito. Mas, de repente, todo mundo ficou em silêncio,
sentido a falta que fazia as provocações, as gargalhadas e o espírito divertido de Lesath.

~o ⭐ o~
Maia ainda tinha queimaduras pelo frio, seu pêlo estava ressecado e sem brilho, até
seus olhos pareciam ter perdido o briho. Mas o que mais a irritava era sua barriga, antes
lisa e perfeita, agora estava inchando com a gravidez adiantada. Seu corpo estava só pele e
osso, o que fazia sua barriga parecer ainda maior, seus pés estava inchados e seus seio
pesados e doloridos.
- Eu odeio essa porcaria. – Ela disse pela milésima vez, olhando com tanto ódio para
sua barriga que não havia dúvidas de que, se pudesse, ela enfiaria uma faca ali para destruir
aquela criança.
- Você está horrível mesmo. – Cassi disse com nojo na voz e um olhar de raiva e inveja,
afinal ela não podia gerar vida, nã importava quantos corpos femininos ela usasse.
- Não entendo por que você não mata essa coisa dentro de mim.
- Não seja burra. – Cassi colocou um mingau grosso na vasilha e pôs no chão na frente
dela. – Isso aí é o que vai te garantir o trono leonino. O Tiger a gente já tem com Aine
trabalhando pra mim. Logo eu pego dela esse também, junto com a magia dela. Mas o
leonino.. Você carrega o filho mais velho de Lucius. Vamos treinar essa criatura aí – Cassi
apontou para a barriga dela – e para ser meu seguidor.
Maia, acostumada com a rotina humilhante, ajoelhou e abaixou a cabeça para lamber
o mingau na vasilha, engolindo com algum incômodo por causa da coleira de ferro e que
mantinha ela presa por uma corrente.
- Bom. – Cassi tiro a vasilha vazia e colocou na mesa. – Varra o quarto, arrume a cama
e lave o banheiro. Quando eu voltar não quero anda fora do lugar.
Maia fazia todas as tarefas de casa e, muitas vezes quando voltava, Cassi jogava tudo
pelo chão, enchia de terra e fezes de animais o chão da casa só para ver o desespero de
Maia. No final, ainda batia e queimava a pele de Maia com seu sopro ácido, culpando ela
pela bagunça. Maia chorava, gritava, e acabava implorando para ser usada sexualmente
pela outra, necessitando de qualquer atenção dela.
- Eu... Você nunca mais me tocou... – Maia choramingou, seus olhos sendo atraídos
para suas garras corroídas, quebradas, seus dedos feridos de tanto esfregar e lavar as
coisas.
L i k a s t í a 0 4 | 123

- Maia. – Cassi chamou com uma voz doce, logo sendo substituída pelo tom de nojo. –
Olha pra você. Você está gorda, horrível, descabelada, fedendo... Quem vai querer tocar
nisso aí?
- Mas eu posso ficar bonita. – Maia sorriu, mostrando os dentes amarelos, dois da
frente ausentes depois de terem sido quebrados por uma surra de Cassi. – Por favor...
- Que horror! Limpe, faça seu trabalho e quem sabe. Quando eu voltar, se não estiver
muito cansado de trepar com aquela rainha Tiger gostosa, eu deixe você me lamber. – Cassi
saiu sorrindo ao ouvir os gritos de raiva e o choro de Maia. Minha magia está cada vez mais
forte só com o drama dessa estúpida.
Mesmo com Lich e Scylla não gostando da ideia, Aine foi até a casa onde Cassi
ordenara que ela aguardasse. Sozinha, sem nenhuma Sentinela. Ela não gostava da ideia.
Sabia que era um problema. Mas ela não podia arriscar que Cassi desconfiasse dessa
aliança.
- Estou bem. Relaxe. – Aine atendeu ao comunicador de Scylla, sabendo que era Lich
que estava usando para não atrair a desconfiança.
– Você sabe o que ela quer. – Lich disse, irritado, desconfortável, mas sabendo que
não tinha como Aine se negar para Cassi sem arriscar tudo. Eles ainda precisavam de
tempo.
- Lich... Eu posso ir embora. Não quero fazer isso com você. – Aine estava assustada,
mas, principalmente, se sentindo culpada.
- Eu não quero que ninguém mais toque em você. Muito menos aquele monstro. Mas
não consegui pensar em nada... Aine.. – Lich respirou fundo. – Já conversamos sobre isso.
Eu prefiro que você e ela...você sabe...do que arriscar sua vida com uma negativa para
aquela coisa.
- Lich... Eu... Não quero fazer isso. Tenho medo daquela coisa.
- Eu sei. Mas você vai fazer mesmo assim, não é?
- Sim. Não tenho opção.
- Você é muito corajosa como uma Tiger perfeita. Que Kallisti nos proteja e te dê
forças. – Lich disse e desligou. – Vou matar aquele demônio!
- Eu não queria estar no lugar de vocês. – Scylla disse. – Sinto muito, Lich. Mas pense
que logo vamos mandar aquela coisa de volta para o Vazio.
Lich caminhou de um lado para o outro uma, duas, três vezes. – Que se dane! – Ele se
transformou em uma névoa negra e saiu velozmente pela janela.
- LICH! Que merda! – Scylla gritou e pensou onde poderia abrir um portal sem que
Cassi sentisse a magia. O que era bem difícil porque ninguém sabia o quanto ela já tinha
fortalecido sua magia nesse tempo todo... Ou mesmo quanto tempo exatamente Erínio
estava se fortalecendo em segredo, à margem da história.
L i k a s t í a 0 4 | 124

Na casa, Aine pensou em virar todo o conteúdo da garrafa de bebida na garganta para
suportar o que estava por vir e ainda fingir que estava curtindo. Mas desistiu. Era mais
inteligente permanecer sóbria com aquela coisa por perto.
- Olá, minha linda e perfeita seguidora. – Cassi disse ao entrar com um sorriso doce,
mas um olhar que entregava os pensamentos cheios de luxúria.
- Cassi. – Aine disse e fingiu inocência por enquanto. – Vim com a roupa que você
mandou, mas não sei para que a preocupação com isso.
Cassi riu alto. – Querida, pensei que estivesse claro. Sabe, Aine, eu gosto muito de
você. – Cassi passou a mão pelo braço de Aine, com um olhar intenso nos lábios dela. –
Confesso que penso em você na minha cama a muito tempo.
Aine engoliu a vontade de mandar ela ir à merda e fingiu surpresa, até crença no que a
outra falava. – Eu? Mas... Pensei que você gostasse mais de moças mais delicadas como
Maia.
- HAHAHAHA! Maia é só uma vadia que implorou para eu dar uma chance. Ela não é
importante.
Desgraçado! Aine pensou com cuidado para que a outra não captasse isso. Não dava
para saber o nível dos poderes de Erínio naquele momento. – Eu...não sei...
- Não seja insegura, linda. Você é boa de cama que eu sei. Eu te amo e quero ver você
pelada. – Cassi sentou na cadeira e cruzou as pernas. – Você vai tirar a roupa devagar e me
servir uma bebida. Depois vou te mostrar como um deus pode te fazer se sentir bem.
Você não é um deus! Aine pensou, respirou fundo e sorriu. – Eu nunca pensei que
alguém tão poderoso podia gostar de mim.
- Porque não? Você é perfeita, linda. – Cassi disse e a olhada que ela deu em seu corpo
fez Aine se sentir pelada e violada antes mesmo de ter tirado a roupa.
Aine pensou no motivo de estar ali, em tudo que estava em jogo, engoliu em seco e
levou a mão ao pescoço para desamarrar o laço que prendia seu fino vestido no corpo.
Completamente nua, aturando o olhar faminto de Cassi, Aine se virou, serviu uma taça
com a bebida e conteve sua vontade de dar uma garrafada na cabeça de Cassi.
Provavelmente não a mataria e ainda destruiria seus planos.
Sorrindo, Aine se virou e levou a bebida para Cassi que a puxou para sentar em seu
colo, com uma perna de cada lado da cintura da outra. Cassi tomou um gole da bebida,
mantendo um olhar devasso em Aine, abaixou a taça e a beijou de um jeito agressivo.

~o ⭐ o~
Scylla conseguiu segurar Lich a alguns metros da casa.
- Mandei parar, garoto tolo! – Scylla o empurrou para o chão usando sua bengala.
- Eu não vou deixar...
L i k a s t í a 0 4 | 125

- Você vai matar a todos nós! Quer que ele descubra que Aine está fingindo? Ele vai
mata-la na mesma hora e depois perderemos a vantagem. Use a cabeça, Lich!
- Eu... Não consigo permitir isso.
- Shhh! Quieto. – Scylla se escondeu com ele atrás de algumas árvores e ouviram
passos se aproximando. Os dois congelaram, imaginando que Cassi tinha sentido a magia
nas proximidades, mesmo com os cuidados de Scylla. Talvez ela tenha sentido a magia
natural de Lich com névoa...
- Eu sei que tem alguém aí. Saia ou vou incendiar essas árvores e queimar você!
- Aine! – Lich correu até ela, a abraçou e olhou seu corpo em busca de qualquer sinal
de ferimento. O corpo parecia intacto, mas o olhar de Aine fez o coração dele se apertar.
- Você está bem? – Scylla perguntou.
- O que estão fazendo aqui? Ficaram loucos? Aquilo podia ter sentido vocês! – Aine
disse, muito irritada com a possibilidade de tudo ir por água abaixo.
- Seu...querido aí, surtou e veio atrás de você. – Scylla disse. – Tive que tentar parar
ele.
- Eu... Não podia deixar você... – Lich disse, um pouco envergonhado, mas nada
arrependido.
- Estou bem. Preciso só de um banho purificador para tirar a sensação daquela coisa
me tocando. – Aine se virou e voltou a caminhar. – Pelo menos foi rápido.
- Porque? – Scylla perguntou, recebendo uma olhada mal-humorada de Lich.
- Não sei. Cassi saiu depois de parecer sentir algo. Não sei se ela recebeu uma
mensagem de... Scylla. Preciso te contar uma coisa. – Aine disse.
- O que aconteceu com Maia? – Scylla perguntou.
- Ela está viva, mas...nada bem. – Aine disse. – Pelo pouco que aquilo lá disse, Maia
não é mais a favorita dele e ela come uma vez por dia.
- Com Maia grávida isso é ainda mais preocupante. – Lich disse.
- Você conseguiu descobrir uma pista sobre onde eles se escondem? – Scylla
perguntou, preocupada mais com seu neto do que com Maia que, afinal, escolheu seu
caminho.
- Uma. Vamos pra casa e eu conto tudo depois de um banho. – Aine se afastou de uma
tentativa de Lich em tocá-la. Ela sabia que era irracional, mas não se sentia digna do amor
dele naquele momento.
Lich entendia a situação, mas o afastamento dela foi como um soco na cara.
Demônio desgraçado. Scylla pensou ao ver a dor no olhar do casal andando afastados
e visivelmente magoados.

~o ⭐ o~
L i k a s t í a 0 4 | 126

Dois anos antes.....


Eu num quero ir. Góto daqui, Line.
Eu sei. Mas eu te disse que ia acontecer, não disse?
Disse.
Então.
Maiz...Você vem também, num veim?
Você não disse que era independente?
Eu sou indepindenti. Mas...você teim que vir tameim...
Não faça essa carinha. Eu vou com você. Nunca vou deixar você.
Memo?
Mesmo. Agora coma. A mulher idosa, encurvada, com um cajado como apoio sorriu e
levou a menina para o local planejado.

~o ⭐ o~
- Temos que ter certeza de que é o lugar certo. – Aine parou para beber um pouco
d’água no cantil.
A floresta nessa época conseguia ser ainda mais quente e abafada do que o habitual.
Scylla sentou em uma pedra, esfregando o joelho inchado.
- Falta pouco. É melhor continuarmos antes que a estrela brilhe no meio do céu. Aí
ficará insuportável. – Scylla disse.
- Tia, melhor descansar um pouco. Não queremos a grã-sacerdotisa de Kallisti doente
agora. – Aine lhe entregou uma poção para dor.
- É só esse maldito joelho. Mas estou acostumada. – Scylla se calou e ouviu a
mensagem telepática quase gritada.
ONDE CACETE VOCÊ ESTÁ?
- O que foi? – Aine perguntou.
- Sunny enlouqueceu. – Scylla resmungou. Aqui. Qual o motivo da gritaria?
Isso. Sunny mostrou o que vira e o mapa que fizera.
Não acredito... Scylla pensou. Vou contar pra Aine. Mas depois. Estamos procurando
uma coisa.
Me avisa quando e se conseguir. Vou comer com minha família.
- O que aconteceu? – Aine perguntou.
- Depois te conto. Mas, lembra da informação que o caçador nos deu?
- Sim.
- Acho que agora ela faz sentido. Line, filha de Seth, realmente está viva. – Scylla disse.
- Impossível. – Aine disse. – Ela teria o que? 150 anos?
- Ou mais. Mas não é impossível. Ela falou com Sunny.
L i k a s t í a 0 4 | 127

- AAAAAAAAAAAAAAAAAAH! – O grito ecoou pelas colinas, fazendo as duas agilizarem


o passo.
Quando alcançaram os arredores da casa, Scylla sentiu a força de Erínio e pensou
rápido. Ela abriu um portal e empurrou Aine para dentro, fechando logo em seguida.
Scylla abriu a porta da casa, cujas portas e janelas estavam fechadas, fazendo do lugar
um verdadeiro forno.
- AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAH!
- Olha, Maia. A piranha de Kallisti veio ver sua incompetência. – Cassi debochou,
sentada perto da cama de Maia, mas sem ajudar em nada, com seus olhos negros.
Maia estava tão magra que seus olhos pareciam afundados no crânio, ao redor o
sangue ensopava a cama, saindo de suas pernas abertas enquanto ela gritava de dor e Cassi
apenas parecia aproveitar aquele sofrimento como se fosse um néctar doce.
Scylla deu um passo para ajudar, mas Cassi apertou a névoa negra na garganta de
Maia.
- Não, mamãe. – Cassi debochou. – Se você chegar perto dela, eu mato essa piranha
inútil e arranco essa cria imunda do cadáver dela.
- Maia, filha, olha pra mim. – Scylla chamou, mas a dor parecia ter tirado Maia da
realidade. – Você não entende? Ela precisa de ajuda!
- Ajuda pra que? Fêmeas botam seus filhos para fora o tempo todo. É igual cagar.
- A quanto tempo ela está assim?
- Dois dias. Viu, Maia? Nem pra cagar um filho você presta. – Cassi disse.
- Eu vou te matar, seu demônio inútil! – Scylla, percebendo que Maia morreria se ela
não interferisse agora, lançou uma adaga na mão de Cassi que estava distraída olhando
para Maia.
Porém, no último segundo, ela desviou da adaga que foi parar atrás dela. – Vê, Maia?
Sua mãe quer mais que você morra.
Cassi lançou uma névoa contra Scylla, mas ela foi mais rápida e criou um escudo
mágico que a protegeu. Parcialmente, já que, em pouco tempo, ele se partiu em vários
pedacinhos. Erínio estava mais poderoso do que ela imaginou. Ele chegou perto dela, mas
parou como se sentisse algo.
- É uma inútil mesmo. Pelo menos serviu para alimentar meu poder. – Cassi disse com
uma voz bastante masculina. Focando em Scylla ele chutou a bengala dela para longe, indo
parar embaixo da cama, e pisou forte sobre seu joelho que sofria de problemas musculares.
Scylla, apesar da dor lancinante, não deu nenhum gemido. – Tão chata. Sabe, eu devia
matar você. Quer saber? Morre de uma vez. – Cassi levantou a mão com seu poder
formando uma esfera negra instável. Cassi ergueu uma sobrancelha, intrigada, quando
Scylla sorriu.
L i k a s t í a 0 4 | 128

Mas não teve tempo de reagir. Um flash de luz dourada veio de perto da cama e
entrou na palma da mão de Cassi que soltou um urro animalesco, rouco. A adaga de Scylla
ficou presa no meio da palma dele, brilhando do cabo à lâmina com a luz de Kallisti. As
veias de sua mão brilharam quando a luz percorria seu sangue, descendo pelo braço
rapidamente.
- UAAAAAAARRRRRR!!!!!!!!! – Cassi gritou. Tentando arrancar a adaga com a outra
mão, ela tirou a mão rapidamente com bolhas de queimadura de terceiro grau.
- Com os cumprimentos de Sunny, mãe do rapaz que você matou. – Scylla sorriu
cruelmente, agradecendo mentalmente pela ajuda da amiga com a poção que
transformava a adaga em uma espécie de boomerang.
- FÊMEAS MALDITAS! TODAS VÃO MORRER! – Gritando, Cassi sumiu.
Scylla se levantou com dificuldade, apoiada em uma bengala improvisada feita com
sua magia, e foi o mais rápido que pôde para Maia.
- Tira esse...essa maldita daqui... – Maia balbuciou.
- Não chame seu filho assim. Vamos, força. Só mais um pouco, filha. – Scylla se
posicionou entre as pernas de Maia, mas já dava pra ver a criança e ela entendeu o que
Cassi tinha sentido minutos antes. O filho de Maia, um menino, estava morto. A criança
esperou demais para nascer, sem ajuda, e se enforcou em seu próprio cordão umbilical
acidentalmente.
Scylla conseguiu tirar a criança, com Maia desmaiada. Suas lágrimas caíram sobre o
rostinho azulado e contorcido da criança em seus braços. – Meu querido.... Eu lamento...
Você foi um herói, sabia? Sim, você foi. Graças ao início das dores da sua mãe pra você
nascer, esse monstro não conseguiu consumar um abuso horrível contra Aine. – Scylla
abraçou o bebê morto e gritou de raiva, dor e luto, entre lágrimas.
Depois de limpar o bebê e o enrolar em seu próprio manto, ela cuidou de Maia, a
limpou e fez a moça engolir uma poção para dor e outra para hemorragia. Quando se virou
para procurar uma roupa limpa para Maia, sua filha acordou.
- Meu amor? Onde você está? – Os olhos de Maia estavam desfocados. – ERÍNIO!
VEM! ESTOU PERFEITA DE NOVO! O que você... SAI DO MEU PALÁCIO!
Scylla percebeu que Maia tinha sido consumida pela loucura. Ela ficara de quatro na
cama como um animal, mas parecia ser o normal para ela. Scylla notou as marcas no
pescoço como se ela tivesse ficado com um colar apertado por muito tempo. – O que aquilo
fez com você?
- SAI! AAAAAAAAAAAAAAARRRRR! GRRRRRRRRRRRRR! – Maia fazia sons de animal e
se portava como um. Faltavam vários dentes em sua boca e o cheiro de podre que vinha
dela com certeza não era só pelo sangue e o parto malfadado.
- Maia! Acorde! Você não é um bicho! Venha. Vou cuidar de você...
L i k a s t í a 0 4 | 129

- MEU DONO! VEM ME SALVAR DESSA VADIA! EU POSSO MATAR ELA! VOCÊ VEM SE
EU MATAR ELA? – Maia estava visivelmente desesperada e completamente louca. Ela pulou
em direção à Scylla, mas a mulher foi mais rápida, desviou e deu um tapa na cara dela,
tentando fazê-la despertar.
- Ele foi embora! Você vem comigo. – Scylla abriu um portal para levar Maia, porém
sua filha foi mais ágil.
Ao perceber que Erínio não estava na casa mofada, velha e caindo aos pedaços que ela
chamava de palácio, Maia se virou e pulou pela janela atrás dela. A casa só tinha um andar,
porém aquela janela dava para um precipício rochoso, terminando em uma queda de 300
metros de altura.
- NÃÃÃÃÃÃO! – Scylla abriu um portal que lhe faria alcançar a janela alguns segundos
mais rápido, mas não foi rápido o suficiente.
- ERÍÍÍNIO, SENHOOOOOOR! – O grito de Maia foi silenciado e substituído pelos baques
de seu corpo contra as rochas. Segundos depois de atingir o fundo do abismo, o corpo se
transformou em ácido e correu várias rochas antes de finalmente desaparecer totalmente.
Scylla voltou para o reino Tiger com o corpo do neto, sendo recebida por Aine que,
pela primeira vez, não se preocupou com as testemunhas, chorando como se o bebê morto
fosse seu próprio filho.

~o ⭐ o~
Scylla não quis ficar em casa, mesmo com os pedidos de seus amigos para ela
descansar. Ela, Aine, Lich, Luc, Gaia, Sunny e Alart estavam seguiam em silêncio pelos
corredores barulhentos. Lich à frente com a reitora que Aine tinha certeza que gostava
dele. Não poder ficar de braços dados com ele e esfregar na cara dela que eram um casal
estava a correndo de raiva.
- Ela foi deixada aqui pela bisavó, cuja filha tinha sido vítima do Ismir. Depois a idosa
sumiu. – A reitora disse. – É uma menina esperta, mas misteriosa e passa muito tempo no
sótão. As crianças gostam muito dela por ser brincalhona, sempre pregando peças em todo
mundo. Ela tem um talento natural para a liderança, mas percebo que ela tenta ficar longe
de todos o máximo que pode. Acho que ela não gosta de chamar a atenção. Já pensei em
adotá-la por que gosto muito dela.
Gosto muito dela, nhem nhem nhem. Ela não cala essa boca? Aine pensou, irritada
com a reitora apenas por ela existir.
Scylla que ouviu o pensamento de Aine deu um sorrisinho, aliviando um pouco da dor
da perda.
Sunny cutucou o braço de Alart, mostrando a cara de raiva que Aine estava fazendo e
os dois sorriram.
L i k a s t í a 0 4 | 130

De repente pequenas explosões foram ouvidas e todos ficaram em alerta, imaginando


se Erínio estava atacando o orfanato. Todos sacaram suar armas, alguns guardas correram
em direção à cozinha onde gritos já eram ouvidos.
- ISSO É COISA QUE SE FAÇA?! – A cozinheira gritou.
- O que aconteceu aqui? – A reitora perguntou, o incêndio dentro do armário onde
ficavam as verduras que as crianças odiavam ainda sendo apagado pelos guardas.
- Essas crianças, dona reitora, essas crianças vão me enlouquecer! Imagina! Colocar
bombas pra pegar fogo nas minhas verduras! Agora como vou fazer minha papa nutritiva!?
Um garoto de uns 9 anos ia saindo de fininho, mas Lich o segurou pela gola da camisa.
– Fale.
Apesar de adorado por elas, as crianças tinham um pouco de medo de Lich, como todo
mundo, principalmente quando ele falava curto e grosso assim.
- Era só um biscoito... – O garoto disse, tirando um biscoito doce do bolso.
- Um? – Lich perguntou e seu olhar deixou o menino apavorado.
- Dois.
- Tire todos do bolso. – Lich disse e o menino tirou 18 biscoitos dos bolsos.
- Entendi. – A reitora suspirou. – Você não vai me dizer onde aquela pequena
terrorista está aguardando os biscoitos para dividir com as crianças. Ou vai?
- Nunca! – O menino disse, mesmo visivelmente com medo.
- Quer me dizer que isso tudo foi tramado por uma criança? – Scylla perguntou.
- Destruir a papa que todo mundo odeia, – A reitora sussurrou para não magoar a
cozinheira – pegar biscoitos a mais para todas as crianças e planejar um incêndio? Ah, sem
dúvida é coisa daquela pequena pilantrinha. Vamos. Só tem um lugar onde ela pode estar.
A menina, que obviamente puxou a aparência física Tiger da mãe, estava sentada no
sótão, comportada, com um rostinho angelical que faria você apostar que ela era uma
santa.
- Fui eu. Deixa ele em paz. – A menina era linda, não devia ter mais de 6 anos. O olhar
dela foi atraído para Sunny. – Oi.
- Oi. – Sunny respondeu com a voz embargada.
A reitora se afastou com uma ordem de Lich e deixou o grupo a sós com a menina.
- Vocês demoraram. – Uma idosa que ninguém tinha visto até então, falou do canto da
parede. Ela caminhou para sentir a luz do sol poente passando pela janela alta, como se
aquilo fosse revigorante. A menina correu e segurou a mão de Line.
- Line? – Aine reconheceu as antigas pinturas e imagens mágicas da filha de Seth que,
segundo a lenda, morrera e se transformara em uma árvore. Aine nunca acreditou no mito,
apenas achava que a parente distante tinha morrido em algum lugar e a história real tinha
se perdido.
L i k a s t í a 0 4 | 131

- Como? – Scylla perguntou.


- Isso importa? – Line perguntou. – Cuidei da sua neta o quanto pude. Agora é a vez de
vocês protegerem ela. Erínio pensa que ela morreu na floresta e deve continuar
acreditando nisso. Ou ele vai fazer com ela o que pretendia fazer com o filho de Lucius.
- Nunca. – Scylla disse. Algo estava errado, mas ela não sabia dizer o que era, quase
como se sua mente se recusasse a revelar para ela o que era.
- Jamais vamos permitir que algo a machuque. – Aine disse.
- Ela é nosso tesouro mais precioso. – Alart disse e Sunny apenas conseguiu acenar
com a cabeça.
- Eu sei. – Line se virou para a menina. – Hora de ir, princesinha.
- Eu...não quero deixar você. – A menina disse com uma tristeza de dar pena.
- Lembra quando você veio para cá?
Scylla forçou a mente para tentar entender o que estava errado, mas sua mente
parecia cheia demais, como se estivesse confusa.
- Lembru. – Ela respondeu, fazendo beicinho para evitar de chorar.
- Lembra o que eu te disse?
- Que nunca ia me deixar.
- E o que nunca podemos perder?
- A paláva e a honra.
- Exatamente. Agora vá. Eles precisam do seu amor, princesinha. Cuide deles, está
bem?
A menina inflou o peito, decidida. – Vou cuidá. Dêxa com eu!
Line abraçou a menina uma vez mais e soltou ela. A garota caminhou até Sunny e fez
um sinal para ela se abaixar. Quando Sunny fez isso, foi surpreendida com um beijo da
menina na testa dela, suas pequenas mãos segurando as bochechas. A garota se afastou,
segurou a saia da farda e fez uma reverência.
- Eu sô Raylla e sô indepindenti. – Ela disse com orgulho.
- Muito prazer, Raylla Indepentende. Você sabe quem nós somos? – Alart perguntou,
mal controlando a emoção.
Ela olhou rápido para Line, como se tivesse ensaiado isso por anos. – Vocês dois são
meus vovôs. Esse moço com cara di bravo e o moço que dá medo são meus titios. Essa
moça é a tia que fala com Kallisi. Essa tia é filha dela e minha nova titia também. E ela... –
Raylla olhou para Aine, mas, antes de responder, franziu a testa visivelmente incomodada.
Então pegou a mão de Lich, a de Aine e uniu as duas. – Agoura tá céto.
Luc e Gaia olhar para os dois e perceberam que os braceletes novos dos dois não era
apenas um acessório.
L i k a s t í a 0 4 | 132

- Ela é a tia rainha e os dois são meus papaiz do córaçaum. – Raylla disse com plena
convicção.
O que intrigou a todos nesse momento foi: como Line que viver tanto tempo
escondida sabe-se-lá onde sabia de coisas que mais ninguém sabia? Porque o plano de
adotar a filha de Les como sua herdeira era algo que mais ninguém sabia, além de Scylla e
seus sogros que foram testemunhas legais da decisão dela. Quando todos voltaram seus
olhares para onde Line estava, ela tinha sumido. Em seu lugar havia apenas um arco-íris,
mesmo sem luz do sol lá fora agora, e um cristal vermelho em forma de coração envolto em
um cordão dourado.
Quando o arco-íris sumiu totalmente, o colar apareceu no pescoço de Raylla que não
esboçou nenhuma reação, como se fosse algo normal.
Cuidem bem dela ou vão conhecer meu lado vingativo. A voz de Kallisti soou como um
trovão no local, deixando bem claro quem era a tal “Line” que cuidara de Raylla esse tempo
todo.
- Eu sabia que tinha algo errado. – Scylla comentou enquanto Raylla estendia os
bracinhos para Lich a pegar no colo.
Meio desajeitado, ele pegou a menina que o conquistou completamente ao escostar a
cabeça na curva de seu pescoço, relaxada.
- Ela tem o mesmo sorriso de Les. – Sunny disse e ficou um pouco para trás com o
marido para deixar as lágrimas caírem em paz.
Eu adoro crianças, mas esta aqui é a mais adorável que já conheci. Lich pensou alto
para o irmão ouvir e completou para si mesmo. Eu vou cuidar dela como se fosse minha,
Les. Eu juro, irmão.

~o ⭐ o~
Se eu cuidei já dá pra imaginar que a criança é, no mínimo, uma piromaníaca que vai
crescer pra ter a mente mais impura dos universos, ne.
L i k a s t í a 0 4 | 133

Capítulo 15
Nunca entendi o motivo de procurarem respostas em lugares complexos quando tem
opções mais simples. Você entende? Me explica?

~o ⭐ o~
- Certo. Então, a proteção de Raylla está decidida. – Aine encerrou o assunto e
abordou o próximo tópico. – Alguma novidade sobre o texto?
- Além do que descobrimos até agora, nada. – Alart disse, se coçando com o mofo
naquele corredor estreito, mofado e fedido. – Sunny não se surpreendeu com o fato de
Erínio já ter tentado algo parecido com o que está fazendo agora, no passado distante.
- Milênios, Eras de distância foram o suficiente para boa parte disso se perder na
história... É um belo golpe de sorte termos achado algum resquício disso. – Scylla
comentou, suando frio com as dores no joelho, ficando muito mais intensas e persistentes
desde o confronto com Cassi.
- Ele não te procurou mais? – Alart perguntou.
- Não. Apenas silêncio até agora. – Aine respondeu.
- Não gosto disso. Ele pode ter descoberto sua falsa aliança. – Scylla comentou.
- Acho que não. Mas não temos como saber até ele dar as caras. – Aine disse. –
Precisamos de tempo e, por enquanto, felizmente, é justamente o que temos recebido.
- O trecho da arma que ajudou a deter Erínio no passado está apagado demais. Tem
sido uma tarefa árdua. – Alart comentou. – Acredito que foi pelo estado praticamente
impossível de decifrar que ele não se deu ao trabalho de levar embora quando atacou meu
filho e Ane.
- Faz sentido. – Aine bocejou, incapaz de controlar o cansaço.
- É melhor irmos descansar. – Alart disse, dando um aperto leve no ombro de Scylla
que tentava disfarçar o incômodo no joelho. – Tenho uma esposa teimosa para obrigar a
dormir também.
- Diga a Lich que... – Aine começou, mas não sabia o que poderia dizer além do que ela
já falava o tempo todo.
- Ele também sente sua falta. – Alart estava morrendo de pena do casal que não podia
se ver com muito para não levantar suspeitas agora que, para todos os efeitos, as relações
entre os reinos tinha que parecer bastante tensa. Pior ainda, afinal Alart sabia da
compulsão de seu filho por Aine e o quanto isso o estava afetandoa agora que se mantinha
afastado o máximo possível. Eu não tenho essa compulsão e já teria enlouquecido se tivesse
que me afastar e fingir odiar minha menina dos sonhos.

~o ⭐ o~
L i k a s t í a 0 4 | 134

- NÍA! NIÁÁÁ!
- Oi, pequena. – Nira apareceu com a farda suja de farinha, com a maior paciência do
mundo.
Raylla sinalizou com a mão para Nira chegar perto. – Nía, eu truxe ôgumelo. É di colocá
na caininha. Fica bom. Viu? Eu to ajudâno.
Nira olhou os cogumelos que a menina trazia fazendo a blusa de bolsa improvisada.
Realmente, eram cogumelos comestíveis e tinham um sabor delicioso quando combinados
com carne vermelha. – Isso é ótimo, Raylla. Vai ficar maravilhoso na carne. Agora vá tomar
banho enquanto eu termino de preparar nosso jantar.
Raylla arregalou os olhinhos de íris tão cor de laranja que pareciam uma pintura. –
Más.... Nía...eu ajudei...
- Sim, querida, mas ajudar não te salva do banho. – Nira disse, sabendo onde aquilo ia
dar. Raylla odiava tomar banho e sempre tentava escapar, o que acontecia várias vezes no
dia já que a menina viva subindo em árvores, brincando na lama, fazendo esculturas de
barro que ninguém entendia, plantando... Enfim, vivia se sujando.
Com muita conversa e uma promessa de dar um pedaço maior de bolo, Nira
convenceu a menina a ir tomar banho. O que, na verdade, provavelmente seria um banho
de segundos e Nira acabaria tendo que ir dar banho nela de novo. Em geral, os dias se
passavam e era apenas as duas naquela casa, disfarçadas de simples tia e sobrinha, apenas
vivendo de sua pequena plantação. Em algumas vezes alguém da família aparecia, em raras
vezes, todos se encontravam lá.
Semanas depois foi uma dessas raras vezes. Era aniversário de Raylla e todos deram
um jeito de se encontrar na pequena casa. Embora estivessem felizes por se encontrarem e
ver também a menina, todo mundo estava tenso e cansado.
Enquanto Raylla, suja de bolo que parecia ter comido em meio a um terremoto,
brincava com um de seus presentes no chão da sala, os adultos conversavam sentados no
sofá ao redor da criança. Lich e Aine estavam sentados quase colados, de mãos dadas,
como se temessem que uma simples brisa os separassem para sempre. Luc e Gaia estavam
sentados de mãos dadas ao lado deles. Alart estava sentado no sofá, com as pernas
abertas, Sunny entre elas, mas sentada no chão mexendo nas peças do brinquedo e
entregando para Raylla que estava concentrada em montar um tipo de quebra-cabeça
criando uma construção semelhante a um castelo enorme. O presente de Lich até agora
parecia ser seu preferido.
- Não tem mesmo jeito? – Aine perguntou.
- Não. – Gaia confirmou. – Fizemos tudo que era possível para tentar recuperar as
informações de como pararam ele, mas a parte que fala disso e do fim da batalha está
completamente deteriorada pelo tempo.
L i k a s t í a 0 4 | 135

- Só deu pra identificar que houve alguma arma forjada para ajudar nisso, ou já
existente com esse propósito. Não dá pra saber mais do que isso. – Alart disse, cansado.
- E quanto ao resto do plano? – Aine perguntou.
- Tudo certo. Finalmente decidimos. – Luc comentou, dando um beijo na mão de Gaia.
– O problema é que não adianta nada sem essa porra de arma.
- Olha a boca, Luc. – Lich disse, olhando irritado para o irmão e depois para Raylla.
- Aqui está. – Nira entrou com algumas bebidas alcoólicas e sucos coloridos. Scylla
ajudava trazendo uma cesta com mais doces e salgados, cada uma colocando tudo na
mesinha de centro. Raylla foi logo pegando uma taça das bebidas alcoólicas, mas Lich foi
mais rápido e gentilmente pegou da mão dela.
- Más eu sôu grandi! – Raylla reclamou com Nira, fazendo birra.
- Quando você for adulta, vai pod....
- MÁS EU QUÉRU!
- Não. – Lich disse, calmo, mas firme.
Raylla olhou para ele como se a birra tivesse sido desligada num passe de mágica. –
Não posso?
- Não. – Lich disse apenas.
Sem dizer mais nada, Raylla apenas pegou um copo de suco e sentou de volta com seu
brinquedo. Considerando o quanto ela era teimosa quando queria algo e a força de vontade
gigante que ela parecia ter herdado de Les, a menina parou tão facilmente que não houve
um único felino presente que não olhasse para ele abismado com a pergunta estampada no
olhar.
- Como você fez isso? – Sunny perguntou. Ela e Alart sempre tiveram dificuldade para
conseguir fazer Les e acalmar quando ele assumia esse modo teimoso e birrento na
infância.
Lich apenas deu de ombros, afinal, ele mesmo não achava que tinha feito algo em
especial. – Então vamos ter que criar algo para destruir ele. Não podemos continuar assim.
– Lich mudou de assunto, focado em acabar com aquilo, ainda furioso por ver Aine tremer
sempre que parecia lembrar dos momentos com Cassi. Ela nunca contou exatamente o que
aconteceu lá e ele não queria fazê-la lembrar daquilo, mas sabia que tinha sido humilhante
e só não fora totalmente consumado porque Maia entrou em trabalho de parto e Cassi foi
atraída de volta.
- Não deve ser fácil. – Nira comentou. – Mas sabemos que era algo muito poderoso,
talvez ligando a magia onírica e a do fogo Tiger. Talvez forjado pelo culto de Kallisti, afinal
ela é a divindade que aquilo quer tomar o lugar.
- Não éra melhior perguntá pra ela então? – Raylla perguntou inocentemente, seus
olhinhos totalmente focados no brinquedo.
L i k a s t í a 0 4 | 136

Minha garota!

Os adultos olharam para a menina, boquiabertos, depois se entreolharam com a


sensação de serem os maiores idiotas do universo.
- Como caralho não pensamos nisso? – Luc perguntou e, caindo a ficha, olhou para o
irmão que já o encarava com cara de quem queria dar um soco na cara dele por ter xingado
de novo. – Foi mal. Esqueci.
- Cuidarei disso assim que voltarmos. – Scylla começou a planejar.
- Vou acelerar os preparativos para a festa. – Gaia disse, trocando um olhar com Luc
que acenou em concordância.
- Descansem o máximo que puder. Se tudo correr como espero, não vai demorar para
definir essa arma. – Scylla comentou.
- E vamos ter que pensar em uma recompensa para essa menina linda e inteligente. –
Alart olhou para Raylla que sorriu largamente.
Com todo mundo prometendo dar um presente pela inteligência dela, Raylla se inflou
de orgulho e pulou para o colo de Lich que se levantou com ela para levar a garota
sonolenta para o quarto.
- Más não tô com sono, Íti... – Raylla disse, bocejando e coçando os olhos.
- Dormir. Agora. – Lich disse, passando de um em um para ela abraçar cada felino, sem
sair do colo dele. – Vamos.
- Bóa nóti. – Raylla acenou um tchauzinho pelas costas de Lich que já caminhava para
sair da sala. – Íti.
- Sim, Ylla? – Lich perguntou chegando na porta.
- Ú ke é “caralhio”? – Raylla perguntou, seus olhinhos já quase fechados.
Lich parou a centímetros da porta e se virou completamente de frente para os
convidados, dando um olhar assassino para Luc que apenas levantou as mãos se
desculpando.
Luc se conteve pra não dar nenhum um sorrisinho ou, ele tinha certeza, Lich ia ter um
ataque e socar sua cara. Assim que Lich se virou e saiu com Raylla, todo mundo deixou a
gargalhada presa na garganta fluir livremente.

~o ⭐ o~
Scylla preparou um ritual conjunto com suas mais fortes sacerdotisas para invocar
Kallisti no templo principal da divindade, anexo ao palácio Tiger. Meio-dia e meia-noite
eram sempre os melhores horários para invocar Kallisti por serem o ápice dos dois maiores
símbolos de seu poder: a luz quente e as trevas frias. Por isso, aquela sala específica no
L i k a s t í a 0 4 | 137

topo da torre mais alta do templo tinha uma abertura circular na abóbada do teto, aberta
por um mecanismo ativado por magia. Meio-dia em ponto, a estrela solar do planeta se
alinhava àquela abertura com sua luz atingindo a estátua de dois metros da divindadade,
iluminando seu corpo com aquela forma diferente de qualquer felino, e o altar aos seus
pés.
Entrar naquela cúpula era quase como entrar em um mundo paralelo. A altura impedia
que quaisquer sons da cidade abaixo fossem ouvidos. O silêncio apenas era cortado pelo
som do ar passando pelas janelas e a abertura acima, o som de cânticos e preces
sussurradas pois Kallisti abomina o barulho. A beleza dos cristais azuis e laranjas com luz
própria espalhados pelas paredes em decorações, a energia pura da magia no local de culto
antigo, as flores damas-da-noite cor de laranja do altar e os aromas de incensos e perfumes
sacros tornavam o ambiente repleto de força e beleza, de magia pura e de tranquilidade.
Depois de uma noite de preces, banhos purificadores e todo o preparo necessário para
esse trabalho, faltava pouco para o meio-dia quando Scylla se posicionou à frente da
estátua dourada de cabelo vermelho vivo. Ao redor do altar e da estátua, oito sacerdotisas
experientes formavam um círculo de mãos dadas, enquanto suas respectivas duplas de
aprendizes formavam um círculo externo, com braços erguidos e entoando cânticos. Scylla
usou sua magia para atrair uma pequena chama do coração flamejante da estátua e o fez
flutuar até a vela vermelha no centro do altar, acendendo-a. Scylla começou a recitar a
invocação, nove vezes como mandava a tradição, com as sacerdorisas experientes
repetindo frase por frase, em tons mais baixos.
Scylla começou a entrar em transe, ouvindo um som muito distante, forte, como
uma...queda? Ela não sabia dizer e, naquele estado de contemplação, não importava.
Quando a dor em sua perna sumiu ela sabia que estava no mundo onde os vivos eram
apenas visitantes raros. Scylla abriu os olhos e nunca se cansava de ver aquele lugar. Era
uma praia de águas azuis como o céu, embora os anéis Anuin aqui fossem dourados e não
azuis, as luas eram maiores, rodopiando rapidamente ao redor dos anéis como crianças se
divertindo juntas. As areias tinham um tom de ouro com pequenos pontos que brilhavam
em branco, como diamantes pequeninos. Scylla virou de costas para a água e admirou
aquele enorme campo de flores altas, alcançando sua cintura, com aromas conhecidos e
outros que ela nunca conseguiu comparar com nada no mundo dos vivos. A lenda contava
que cada flor era uma alma cultivada pelas mãos de Kallisti, criadas ali para depois ser
enviada ao mundo dos vivos. Às vezes, dizia-se, Kallisti nomeava seus felinos preferidos
como jardineiros de almas para ajuda-la nesse trabalho. Mas Scylla nunca vira outras almas
trabalhando ali. Nem mesmo sabia se era naquele mundo espiritual que as almas dos vivos
iam depois da morte ou em outro parecido, já que se sabia que Kallisti amava criar mundos
e mais mundos por todo universo e outras dimensões. Um riso familiar soou baixo e
L i k a s t í a 0 4 | 138

inconfundível, fazendo a nuca de Scylla se arrepiar e uma sensação de reconhecimento


surgir em sua alma. Ela caminhou com os pés descalços, leve como quando era jovem, uma
mão tocando suavemente as flores enquanto passava.
Rodopiando alegremente, parando de vez em quando para beijar uma flor, estava uma
mulher de cabelos vermelhos quase como se emitissem uma luz própria, vestido leve de
tecido semitransparente em tons de fogo, um arco-íris em forma de cinto, um pingente
cristalino vermelho em forma de coração no pescoço, lábios vermelhos e aquele corpo
diferente de qualquer espécie felina.
De olhos fechado, sorrindo, ela disse: - Scylla. – Nesse momento ela abriu os olhos
exibindo a íris dourada que oscilava, às vezes brilhando como brasas incandescentes.
Scylla se ajoelhou. – Amada Kallisti. É uma honra... Vim em busca de seu conselho.
As sacerdotisas ao redor de Scylla mantiveram firmemente sua concentração para a
grã-sacerdotisa não perder o fio que a guiaria de volta. Mas todas sabiam o que tinham
ouvido e só podiam esperar que os guardas fizessem bem seu trabalho.

~o ⭐ o~
Lich dera a ideia, mas Aine tinha achado que era apenas cautela excessiva. Mesmo
assim, a intuição mandou que ela seguisse. Então ela fez. Segurando sua espada agora, com
uma chama circulando por sua mão, ela sentia-se grata por ter seguido a ideia do marido. O
palácio Tiger estava em alerta máximo depois que dois guardas foram encontrados mortos,
sufocados, olhos e bocas arregalados em nítido terror. Não precisava ser um gênio para
saber quem tinha feito aquilo. Todos procuravam Cassiopeia pelos corredores enquanto
Sentinelas aguardavam em posição nas escadarias que levavam à torre de Kallisti.
Como Cassi sabia por onde e como entrar no palácio? Aine só conseguia pensar em
uma resposta para essa pergunta: Maia. Sem dúvida esse era um dos trabalhos dela depois
de ter sido recrutada por aquele demônio que se achava um deus. O problema era que o
palácio era tão antigo que ninguém sabia exatamente quando fora construído, embora
houvessem muitas lendas sobre isso. Muito menos quais passagens existiam, quantas, onde
e quais podiam ser usadas. Aine conhecia muitas delas, assim como sua avó, seu pai, etc.
Mas ninguém conhecia todas e não havia como saber quais Maia descobriu e mapeou para
Cassi.
Aine encontrou mais três corpos no caminho para a torre e os gritos rapidamente
silenciados eram um claro sinal de onde Cassi estava. Aine e cerca de 120 guardas e
Sentinelas correram para a torre, encontrando dezenove corpos na porta.
Ele está muito mais forte... E furioso. Aine pensou.
Dando um sinal para alguns cercarem a torre assumindo os postos dos que tinham
morrido, Aine entrou na torre com os outros. Depois de subir apenas três degraus da
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gigantesca escadaria, a construção estremeceu com uma forte explosão e mais dois corpos
de Sentinelas foram jogados da escada espiral, caindo diretamente no chão circular abaixo.
Um rosnado arrepiante ecoou alguns andares acima, fazendo alguns congelarem,
paralisados no lugar. Aine soprou um encanto na chama, fazendo a magia de terror de Cassi
perder força. O grupo subiu as escadas, alguns caindo de tempos em tempos, ajoelhados,
enfrentando seus piores medos em suas mentes, culpas, segredos... A influência natural de
Erínio estava poderosa demais e Aine fez o que pôde para despertar alguns de suas
batalhas interiores. Mas a prioridade era impedir Cassi de atrapalhar o rito no topo da
torre.
Enquanto isso, com um péssimo pressentimento, Lich chegava no palácio pelo portal,
não dando a mínima para mais nada além de verificar se sua esposa estava bem. Para seu
total desespero, ela não atendia suas chamadas e, quanto mais ele corria até a torre de
Kallisti, mais corpos ele encontrava.
Ele se transformou em uma névoa densa negra e subiu as escadas até ser atingido por
uma onda de ar muito quente que o derrubou alguns degraus abaixou, fazendo sua magia
se desfazer por alguns minutos pela falta de concentração. Ele se levantou e correu escada
acima.

~o ⭐ o~
O vento ácido violento atingiu a porta e invadiu a sala, apagando a chama da vela do
altar e do coração ardente na estátua de Kallisti.
Um tremor e gritos foi o que Scylla viu ao retornar ao seu corpo de forma violenta,
quase como se tivesse sido jogada de volta. Um lado da porta dupla, a entrada principal da
sala, estava caída no chão, outra estava meio pendurada por uma dobradiça. As aprendizes
estavam caídas no chão, algumas visivelmente mortas. Apenas as sacerdotisas experientes
ainda estavam de pé todas formando uma parede felina, usando suas magias para atacar
uma felina de pele corroída, olhos completamente negros com uma energia negra e densa
emanando de seu corpo e um líquido negro viscoso escorrendo dos cantos de sua boca,
caindo algumas gotas no chão e o corroendo como ácido. Um pouco abaixo, Scylla sentiu
Aine planejando um ataque por trás.
Não. Esconda-se. Não podemos perder você como vantagem. Scylla enviou a
mensagem para Aine e tentou controlar o tremor e a confusão pelo retorno brusco ao seu
corpo. Scylla focou sua magia para atacar Cassi, mas uma onda de magia ácida e negra
explodiu do corpo dela e jogou as sacerdotisas no chão, feridas, mas não mortas. Scylla
assumiu a frente delas e Cassi sorriu, mostrando dentes pontiagudos e furados.
- Sogrinha. Como vai seu neto? – Cassi perguntou cruelmente.
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Sem perder o foco, Scylla usou sua magia para atacar o inimigo, criando portais
menores para diminuir a distância e aumentar a velocidade com as quais seu poder o
atingiriam. Os primeiros golpes pegaram Cassi de surpresa e o atingiram, fazendo ele rosnar
ferozmente. Mas os seguintes não tiveram o mesmo efeito. Cassi parecia prever os ataques
de Scylla, o que só provava que Cassi estava muito mais poderoso.
Scylla estava cansada e sentiu Aine subindo os últimos degraus, a magia Tiger
brilhando em sua mão.
Aine....Não... Scylla tentou, mas Aine não parou.
- O que foi, Scylla? Está fraquinha? Sua mãe ficaria decepcionada. – Cassi gargalhou. –
Ou não... Afinal ela era uma fraca inútil mesmo.
- Cala a boca, verme! – Scylla tentou distrair a criatura para facilitar o ataque de Aine.
- Aine, minha querida. – Cassi disse assim que ela pisou no último degrau, sem mesmo
se virar. – É melhor você estar pensando em usar esse foguinho aí para destruir essa vadia
manca ali. Ou vou ter que matar você, meu atual brinquedinho preferido.
Aine apontou a mão direita com o fogo para frente, mas seu outro braço apertou seu
próprio pescoço. De relance, ela viu a marca de Erínio em seu dedo brilhando em uma
espécie de energia escura e sua mão esquerda parecia ter vontade própria agora,
apertando cada vez mais seu pescoço, fazendo sua magia oscilar sem a concentração dela.
- O que foi, brinquedinho? Achou mesmo que eu não teria uma garantia contra sua
traição? – Cassi disse para Aine, sem olhar para ela, ainda atacando Scylla. – Querida, eu
sou o mestre quando o assunto é traição, esqueceu? Confesso que estou um pouquinho
decepcionado. Achei que a gente ia trepar muito antes. Mas... Bem, eu ainda posso levar
você comigo.
- Deixa ela em paz, seu monstro! – Scylla gritou, percebendo o que Aine estava
planejando.
- O que? Está com ciúmes, sogrinha? Quer dar pra mim também? Não se preocupe. Eu
te levo e dou umas enfiadas em você também. Mesmo que faça isso com seu cadáver.
HAHAHAHAHAHA!
Aine aproveitou a distração e, quase sem fôlego, com sua visão escurecendo, ela
enviou uma chama fraca que passou por Cassi, sem o atingir e por Scylla.
Cassi olhou de lado para Aine e riu quando ela caiu sem ar no chão. – Nem para
acertar um alvo você presta mais. Errou, rainhazinha.
- Tem...certeza...? – Aine perguntou, com seu típico sorriso adorável no rosto.
Cassi olhou para Scylla e viu quando a chama do coração ardente da estátua e a vela
do altar no caminho. O ar quente, muito quente, dominou a sala.
- Desgraçada... – Cassi murmurou.
L i k a s t í a 0 4 | 141

- Erínio. – Kallisti disse como se a palavra fosse a coisa mais nojenta que ela já tinha
dito.
Scylla saiu do caminho e Aine desmaiou.
- Você não pode... – Cassi começou.
- SAI DO MEU TEMPLO! – Com a ordem de Kallisti todas as enormes janelas
explodiram e Cassi foi jogada escada abaixo.
Mas, em fúria, Cassi se transformou em uma onda de ar ácido antes de atingir o solo e
voou para longe, fugindo da fúria da deusa que ele ainda não podia enfrentar.
Ainda. Cassi pensou, furiosamente, ao atravessar a passagem.

~o ⭐ o~
Lich correu ao ver Aine caída na entrada da sala, se ajoelhou ao lado dela, em pânico.
Mas, de repente, seus olhos foram atraídos, extasiados, para a criatura etérea de longos
cabelos vermelhos e olhos como brasas incandescentes.
- Grande Kallisti... – Lich murmurou, sem fôlego.
A mulher de corpo estranho, diferente, sem pelos e linda, sorriu, doce. –
Precisamente, meu pequeno. Se importa? – Ela sinalizou com o olhar para Aine, quase não
respirando, nos braços dele.
- Por favor... – Lich implorou, seus olhos ficando embaçados com lágrimas.
- É uma pena... Não posso quebrar a aliança que ela fez de livre e espontânea vontade.
– Kallisti olhou para a mão esquerda de Aine. – Mas ela pode.
- Como? – Scylla perguntou um pouco atrás.
- Ela saberá como cortar a aliança quando o momento chegar. Por enquanto...
A divindade se aproximou flutuando a um palmo do chão e encostou um único dedo
na testa de Aine. A ponta do dedo dela brilhou como uma fogueira quando encostou na
jovem por um segundo e então ela sumiu no ar, deixando um rastro luminosos, como
pequeninas, milhares, de estrelas rodopiando até sumir totalmente nos corpos de todas as
sacerdotisas na sala, inclusive as que tinham morrido.
Aine abriu os olhos e automaticamente colocou as mãos na garganta para ter certeza
de que estava tudo certo.
As sacerdotisas mais experientes começaram a despertar. Mas o que deixou Scylla à
beira das lágrimas de emoção foi ver as sacerdotisas antes mortas sentarem vivas,
confusas, passando as mãos por seus corpos para ter certeza de que realmente estavam
vivas.
- Lich? – Aine olhou confusa e logo foi puxada em um abraço apertado, quase
sufocante. Lich chorou desesperado, aliviado, incapaz de controlar as emoções.
L i k a s t í a 0 4 | 142

Algum tempo depois, todos mais calmos, Aine disse para Scylla: - Me diz que você
conseguiu.
Scylla olhou muito séria, fazendo Aine temer que tudo tinha sido em vão e que teriam
que descobrir outra forma de encontrar a arma.
- Consegui. – Scylla respondeu.
- Isso! – Aine gritou e logo tossiu, sua garganta ainda sensível. – Sorria, tia Scylla!
Finalmente temos como acabar com esse monstro! Vencemos!
- Aine, Aine... – Scylla balançou a cabeça. – Não comemore vitórias antes da hora para
que a hora de chorar não venha no lugar delas.

~o ⭐ o~
O que? Não me olha com essa cara não! Até parece que iam invadir meu lugar,
machucar minhas meninas, NO MEU LUGAR, e eu ia deixar por isso mesmo.
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Capítulo 16
É como vocês na Terra aí costumam dizer: é importante não contar com o ovo na
árvore de ovos antes dela dar frutos. Ou algo assim... Ah! Você entendeu.

~o ⭐ o~
Quando Scylla contou, o silêncio reinou no ambiente até ser quebrado por um sonoro
“nem ferrando!”.
- A decisão não é sua, Alart. – Scylla disse.
- Eu já disse que não. – Alart repetiu de pé, seus pelos todos eriçados, sua magia
emanando ondas de luz e uma espécie de névoa negra de seu corpo.
- Calma, Alart. – Sunny disse.
- Não. Eu posso ir... – Alart começou.
- Não adiantaria. – Aine disse. – Seu poder não é esse.
- Esqueçam. – Alart não ia aceitar.
- Querido... – Sunny tentou acalmá-lo.
- Não, Sunny. Vamos embora.
- Não podemos ir e deixar as coisas assim. – Sunny disse. - Precisamos decidir e se isso
for necessário... Acredite. Também não estou feliz com isso. Mas precisamos aprisionar
Erínio ou...
- EU QUERO QUE O PLANETA SE EXPLODA! – Uma onda de luz branca seguida por uma
onda negra explodiu do corpo de Alart, atingindo uma estante atrás dele com diversos
livros que viraram pó.
Aine formou um escudo com sua magia, protegendo a todos dos resquícios da poeira.
Scylla e Lich permaneceram calmamente sentados, cada um de um lado de Aine, enquanto
Sunny estava ao lado do filho caçula com uma expressão nada amigável no rosto.
- Acabou? – Sunny perguntou, usando seu autocontrole para não perder a paciência. –
Vamos nos reunir com os meninos e Gaia, afinal ela também é da família, e vamos decidir.
Juntos.
- Não tem discussão, Sunny! – Alart saiu, batendo a porta atrás dele, fazendo um
quadro na parede ao lado cair no chão.
- Até que ele reagiu calmamente. – Scylla disse e todas as cabeças se viraram para ela
incrédulos. – O que? Achei que ele ia explodir todos nós.
Sunny se levantou e alisou a longa saia. – Vou falar com ele.
- Vamos continuar procurando opções, mas... – Aine disse.
- Eu sei. – Sunny deu um sorriso triste para Aine e seu filho.
L i k a s t í a 0 4 | 144

- Não gosto disso... Mas a verdade é que eu quero que Raylla tenha um mundo
pacífico para viver. Estou disposto a muita coisa pra isso, mãe. – Lich disse, triste, mas
aparentemente já decidido.
- Filho, eu não queria que fosse assim. Mas concordo que o sacrifício é válido. – Sunny
estendeu a mão e Lich a pegou.
Depois que mãe e filho saíram, Aine colocou a cabeça entre as mãos, apavorada. –
Tem que ter outro jeito.
- Eu queria que tivesse. Realmente queria. – Scylla murmurou. – Vamos levar Raylla
para passar alguns dias no palácio leonino? Pelo menos a garota vai ter mais tempo de
convivência.
- Sim... Vou enviar Nira com ela. Também não acho que seja possível separar aquelas
duas. Raylla já se apegou muito à ela. – Aine disse, meio aérea ainda.
Scylla colocou uma mão no ombro de Aine. – Eu sei que não é fácil, mas, aproveite o
tempo que vocês têm ao máximo. Não sabemos com isso vai terminar.

~o ⭐ o~
- Vou matar todos... – Cassi tirou uma pétala da linda flor dama-da-noite laranja,
símbolo de Kallisti, e amassou na palma da mão fechada. – Vou matar quase todos... – Ela
tirou mais uma pétala e repetiu o gesto. – Vou matar todos... Vou matar quase todos...
Uma criatura cheia de feridas pelo corpo, com uma cauda pontuda, asas, dentes
afiados, com olhos negros, se ajoelhou na frente dela e disse numa voz esganiçada: -
Fome....fome...
- Eles saíram? – Cassi perguntou, ainda ocupada em destroçar a flor.
- Sim, meu senhor. – A harpia respondeu. – O velho leonino saiu na frente e um tempo
depois a velha com a cria mais nova deles. Fome...
- E a Rainha Tiger?
- Sozinha... Ela quer vê-lo, meu mestre... Ela emana desejo carnal... Hahaha. Fome....
- Tem certeza?
- Sim, mestre... Ela sentou na varanda, olhando para a sua marca, com desejo...desejo,
mestre... Posso comer ela? Fome...
Cassi deu um chute forte no rosto da criatura que caiu de costas no chão. – Você,
criatura imunda, não deve comer a comida de seu mestre! Será que você é burra demais
para entender isso?
- Não, mestre. Perdoa eu, mestre. – A harpia se ajoelhou, beijando o pé que havia sido
usado para chutá-la. – É que...fome...e como ela aprontou...pensei...
Cassi empurrou a harpia com o pé que ela beijava, até fazer ela ficar com o rosto na
lama. - Você não pensa, criatura inferior! Eu penso aqui. Você apenas obedece. Fui claro?
L i k a s t í a 0 4 | 145

- Sim, mestre. Perdoa, mestre... Fome...


- Você vai comer quando eu mandar e quem eu mandar. Agora some da minha frente.
– A harpia saiu com um olhar de pura fome, desejo, inveja de Aine e da flor que Cassi estava
destruindo. – Então, a tola já está viciada em mim. Talvez ela possa ter alguma utilidade,
afinal.

~o ⭐ o~
Uma taça se quebrou na parede ao ser jogada por um Luc furioso.
- NEM FODENDO!
- Olha a boca, rapazinho. – Sunny olhou irritada. – Já conversamos sobre isso.
- Luc tem razão. Vocês estão loucos se acham que vou permitir isso. – Alart andou
nervosamente de um lado para o outro, espelhando a raiva que emanava de Luc do outro
lado da sala.
- Isso realmente vai resolver? – Gaia perguntou, tentando usar a sensatez.
- E QUEM SE IMPORTA? NÃO VAI ROLAR! JÁ PERDEMOS O LES, PORRA! – Luc parecia
ter o dobro de seu tamanho com os pelos eriçados daquele jeito.
- Não grita que ninguém aqui é surdo, Lucius. – O tom de aviso na voz de Sunny foi o
suficiente pra fazer Luc respirar algumas vezes, tentando se acalmar.
- Luc, você acha que gosto disso? – Lich perguntou calmamente.
- Não apoio essa merda e pronto. – Luc parou ao lado do pai, ambos de braços
cruzados sobre o peito e a mesma expressão furiosa e desesperada no rosto.
- Vocês já sabem o que eu penso. – Alart disse.
- Eu não sei... – Gaia disse, olhando como se pedisse desculpas para o noivo. – Não
quero isso também, mas não quero ver Erínio ganhando cada vez mais poder, quem sabe
até destruindo nosso mundo.
- Ele não vai destruir! – Luc disse, mais desesperado para convencer a todos ali do que
sendo racional.
- Mesmo? Acha que Kallisti vai permitir que isso continue sem acabar interferindo
pessoalmente e causando uma guerra com ele? – Sunny perguntou.
- Sabemos que ele só quer destruir tudo com sua magia ácida e dominar toda vida
possível. – Lich ponderou. – Kallisti não se envolveu para evitar uma guerra que sabemos
bem como termina. Mas ela não vai se manter distante por muito tempo. Então ou ele vai
afetar nosso mundo o destruindo ou vamos ser afetados pelo conflito destrutivo entre os
dois seres mais poderosos do universo. O risco da arma é muito menor em comparação.
- Eu não ligo! – Alart disse teimosamente.
- Não mesmo? – Sunny o encarou. – Gaia e Luc nunca terão um reinado, uma família,
em paz. A morte de Les e Ane terá sido em vão. Raylla nunca terá o mundo lindo em que
L i k a s t í a 0 4 | 146

vivemos para crescer. E, no fim, Erínio terá nos vencido porque fomos covardes demais
para pagar o preço e salvar nosso mundo.
Alart sabia que ela tinha razão. Luc também. Mas aceitar isso era muito difícil. Sunny
se virou e saiu, seguida por Gaia e Lich, deixando os dois ali com suas próprias consciências.
Na manhã seguinte uma mulher que vendia legumes mostrou um passe na entrada do
palácio e entrou com uma menina que usava um lenço esfarrapado amarrado como um
turbante e roupas muito desbotadas. As duas entraram pela cozinha e a mulher colocou a
cesta com legumes na mesa longa, desviaram das funcionárias atarefadas e mostraram
outro passe, com uma seta azul no topo, para o guarda na porta. Ele ergueu uma
sobrancelha, abriu a porta e entrou sozinho. Ao mostrar o passe e descrever a mulher e a
menina para a rainha, ela abriu um sorriso e permitiu a entrada das duas na sala onde a
família comiam em um silêncio tenso.
A mulher entrou com a menina quieta ao seu lado, visivelmente quieta com
dificuldade. O guarda fechou a porta e voltou ao seu posto lá fora. Assim que a porta se
fechou, a menina arrancou o turbante, liberando os cachos saltitantes, correndo e gritando
feliz até pular no colo de Sunny, praticamente escalando a mulher.
- VOVÓÓÓÓÓÓ!!! – Raylla abraçou o pescoço de Sunny com uma força inacreditável
naqueles braços finos.
- Raylla, calma. – Nira tirou o lenço da cabeça.
- Sente-se conosco, Nira. – Alart sinalizou para uma cadeira e Luc colocou mais um
prato na mesa, sabendo que era inútil tentar colocar um lugar para Raylla.
- O que vocês fazem aqui? Aconteceu algo? – Lich perguntou, preocupado.
- Não, nada. A rainha Aine ordenou que eu trouxesse Raylla para vê-los e a pequena
fornalha adorou a ideia. – Nira respondeu, calmamente.
- Fornalhinha da vovó, você está com fome? – Sunny deu um beliscão leve na barriga
da menina fazendo ela rir.
- Muuuuuuinta fome, vovó! – Raylla disse, pulando no colo de Sunny. De repente,
tempestuosa como sempre, ela se debateu até Sunny coloca-la no chão, passou por Gaia,
Luc e Alart dando um beijo no rosto de cada um e pulando no colo de Lich. Ela sentou no
colo dele tão naturalmente como se fosse uma cadeira, abraçou o pescoço dele. Lich
esfregou de leve seu focinho escuro no da menina, ambos de olhos fechados.
Automaticamente ele pegou o bife em seu prato, arrancando pequenos pedacinhos e
dando na boca de Raylla que comia naturalmente.
Todos viam isso sempre que Lich e Raylla estavam no mesmo lugar, sempre tão unidos
e fofos, mas nunca se cansavam disso.
- Que fofinho. – Gaia não resistiu e deixou escapar.
L i k a s t í a 0 4 | 147

Lich levantou a cabeça para olhar a cunhada, intrigado, enquanto limpava a boca de
Raylla com um guardanapo de tecido. – O que é fofinho?
- O caralho dos anéis Anuin. – Luc debochou. – O que você acha?
Lich tampou os ouvidos de Raylla com as mãos e olhou furioso para o irmão. – Para de
xingar perto da pequena, idiota.
- Olha só. Consegui tirar o intocável Lich do sério. Será que ganho um prêmio por esse
momento histórico? – Luc comentou.
- Estou falando sério, Luc. Ela vai aprender essas coisas. – Lich parecia realmente
irritado.
- Não seja chato, Lich. – Luc sabia que era verdade, mas não ia perder a chance de
provocar o irmão. Les não perderia essa chance de sacanear o intocável. Essa é por você,
mano. Luc pensou. – Acho que vou escrever um dicionário de xingamentos para ela.
Lich jogou uma uva na testa do irmão, com um olhar venenoso, fazendo Raylla rir
enquanto tentava tirar a outra mão dele de sua orelha.
- Meninos... – Alart tentou parar a discussão, sem fazer muito esforço porque ele
estava adorando o momento mais leve.
- EEEEE! A genti pódi jogá coisas do tíu Lúkiiii!!! – Raylla esticou o bracinho para pegar
uma tortinha do prato de Lich pronta para jogar no tio.
- Não, Ray... – Luc tentou impedir.
- Isso mesmo, Raylla. – Lich disse com um olhar perverso e divertido ao mesmo tempo.
– Hoje é dia de jogar coisas no tio Luc.
- Seu... – Luc começou, mas foi cortado por uma tortinha acertando sua testa. – Ah,
sua pilantrinha.... – Ele levantou, deu a volta na mesa rapidamente, agarrou a menina, tirou
do colo de Lich e segurou ela na horizontal em seus braços.
- NÃUM, TÍU LÚKI..HIHIHIHI... – Raylla gargalhou prevendo o ataque.
- É GUEEERRAAAA!!! – Luc disse, ergueu os braços com a menina, colocou a boca na
barriga dela e provocou cosquinhas.
- HAHAHAHAHA! PÁRA, TÍU!
- Renda-se, sua fornalhinha lançadora de tortas! – Luc disse, intercalando as cócegas.
- Não se renda, Raylla. Ele vai cansar. – Lich disse.
- EU NUM HAHAHAHAHA SI RENDHAHAHAHAHA!
- Isso mesmo, Ray! – Gaia apoiou.
Luc olhou para ela com um olhar que claramente dizia “eu vou cobrar essa mais tarde
no quarto”, deixando Gaia vermelha e adorando a ideia.
- Pelo visto mais uma cama vai ser quebrada esta noite. – Sunny disse e Gaia
facilmente podia ter explodido de vergonha.
L i k a s t í a 0 4 | 148

- Amor... Sutileza, lembra? – Alart segurou a mão de Sunny por cima da mesa,
sorrindo.

~o ⭐ o~
Enquanto isso, em Tiger, as coisas iam bem...ou mal, dependendo do seu ponto de
vista. Pela quinta vez nas últimas horas, Aine tinha ido para a varanda e aguardado
ansiosamente. Ela sentia que era observada. Não por suas Sentinelas ou qualquer outra
pessoa cujo trabalho era no palácio. De alguma forma ela sabia que Erínio estava atento à
ela. Ela podia sentir a ligação entre eles mais forte a cada segundo desde o dia em que ela
aceitou sua marca. Sem esperanças, ela voltou para dentro do quarto, deixando a porta da
varanda encostada. Cansada, lidando com o governo, segredos e uma guerra mágica
iminente, ela dormiu quase imediatamente. Em algum momento na madrugada ela
acordou com a sensação de estar sendo observada. Inicialmente Aine pensou que era Lich.
Mas então, com aquela sensação inexplicável de união, ela entendeu quem a observava.
- Você voltou... Achei que nunca mais quisesse me ver. – Aine sentou na cama e
acendeu uma chama pequena em sua mão para usar na vela ao lado da cabeceira.
Com um passo em direção à cama, sentando na lateral, Cassi olhou para ela com
aqueles olhos totalmente negros. – Tire.
Cassi ordenou, testando seu nível de poder sobre ela. Aine obedeceu sem pestanejar,
tirando a camisola curta sobre a cabeça, seu corpo coberto com uma colcha grossa da
cintura para baixo.
- Muito bem.
- Eu nunca iria desobedecer você. Sabe que eu gosto de você. – Aine disse em um
sussurro enquanto uma lágrima escorria por um olho.
- Sim. Você provou isso naquele templo ridículo. – Cassi puxou lentamente a colcha,
exibindo o corpo de Aine. – Por um segundo pensei que você ia usar esse foguinho em mim.
- Nunca. Fiz o possível para não chegar lá em cima rápido.
- Eu sei. – Cassi abaixou até seu rosto quase tocar o de Aine.
- Mantive eles achando que estou do lado deles, como você mandou. Fiz direito?
- Fez muito bem, bonitinha. Tão bem que se eu não soubesse antes até teria
acreditado. Você é sem dúvida uma aliada preciosa.
- Então você vai me dar o que prometeu naquele dia quando me deixou pela idiota da
Maia? – Aine perguntou, fazendo beicinho.
- Sou um deus de palavra, menina perfeita. – Cassi fechou a distância entre elas,
beijando Aine e terminando o que tinham começado na cabana.

~o ⭐ o~
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Semanas se passaram com cada um se preparando para o inevitável. Aine encontrava


Lich sempre que podiam em segredo. Scylla ajudava quando podia, abrindo portais para
eles, mas estava muito ocupada fortalecendo a si mesma e outras sacerdotisas. Sunny e
Alart ficavam juntos o tempo quase todo, agora que Luc estava praticamente pronto para
assumir o trono, aguardando apenas a cerimônia oficial de coroação que aconteceria em
breve. Luc e Gaia....como vou dizer....quebraram algumas camas. Onze, para ser mais exata.
O palácio leonino estava empolvoroso com os preparativos da coroação de Luc, mas,
principalmente com a pequena garotinha, filha da de uma vendedora de frutas que vivia no
palácio agora, amiga da rainha. Muitos cochichavam pelos corredores que a pequena
Raylla, a menina que havia cativado o coração de todos, era uma Tiger com o mesmo jeito
de olhar do falecido rei leonino Arman, pai de Alart. Alguns até achavam que ela podia ser
uma prima distante de Alart, descendente de algum filho perdido de Arman.
Fosse como fosse, a menina que já era a líder das crianças filhas dos funcionários,
criadora de planos mirabolantes e causadora de pequenos incêncios aleatórios, era
adorada pelos funcionários que não tinham coragem de reclamar com a menina pelas
travessuras por causa daqueles olhinhos adoráveis e aquele rostinho de boneca. Não
passava desapercebido o carinho e união da menina com Lich, o mais assustador dos
irmãos, o que começou a gerar fofocas sobre ele ser pai da menina. Claro que ninguém ia
dizer isso na frente da família real. Mas a fofoca corria solta.
Uma tarde, Aine apareceu no palácio, criando expectativas nos servos de que
finalmente a aliança entre os reinos fosse retomada, apesar do jeito diferente, mas distante
da rainha Tiger que parecia tensa, até mesmo triste. No entanto, muitos atribuíram isso a
recente perda da mãe dela. Aine entregou os documentos para Gaia, encontrou Raylla e
aproveitou um tempo com ela. Depois foi embora sem falar com mais ninguém.
A verdade é que, apesar da aparente naturalidade, todos estavam nervosos com o
silêncio de Erínio, sem saber o que ele estava planejando ou como encontra-lo. Scylla
estranhava o monossilabismo de Aine que estava mais quieta e menos sorridente do que o
habitual, mas atribuía isso a morte da mãe dela, ainda recente.
- Claro que ele não vai te procurar depois que ele viu como você não é aliada dele. –
Scylla disse. – Mas se ele tentasse te contatar pelo menos teríamos uma chance de
enfrentar aquela coisa ou seguir ele...
- Ele não me procurou mais. Nem tentou contato. Mesmo se tentasse, seguir ele seria
bem difícil. Ele sabe se esconder. Tem feito isso a séculos. – Aine comentou, meio distante.
- Sim. De qualquer forma, quando tivermos tudo pronto, espero que dê certo ou não
vai adiantar nada termos a arma se ele não aparecer.
- É.
- Pelo menos Raylla está feliz e segura.
L i k a s t í a 0 4 | 150

- Sim.
- Gaia me disse hoje que Raylla tentou fazer bolinhos para Lich, ajudando a cozinheira,
mas acidentalmente queimou tudo.
- Sei.
E pelo jeito a Aine monossilábica está de volta. Scylla pensou, revirando os olhos.
Então perguntou pela milésima vez naquela semana. – Você está bem?
- Sim.
- Aine, sabe que pode conversar comigo, não é? Você não vai ser menos digna se pedir
ajuda e eu...
Aine se levantou. – Preciso trabalhar. Feche a porta quando sair. – Então ela saiu do
próprio quarto, indo para o gabinete de trabalho sem dar um único sorriso de cumprimento
para as pessoas por quem passava, diferente de seu habitual jeito, mas muito comum nas
últimas semanas.
Scylla ficou no quarto de Aine, sentada na mesma poltrona. Então se levantou e saiu,
fechando a porta. Tudo bem é uma porra! Eu vou descobrir o que há de errado ou mudo
meu nome para Jubiscrecivânia! Scylla pensou, decidida enquanto caminhava para seu
quarto no templo.

~o ⭐ o~
Pelo menos Jubiscrecivânia...er...quer dizer, Scylla, percebeu ne. Amo meus felinos, mas
ô povo lerdo às vezes viu!
L i k a s t í a 0 4 | 151

Capítulo 17

Eu amo festas. Mas sabe o que amo mais?


Vingança.

~o ⭐ o~
O dia da coroação de Lucius amanheceu quente e abafado. O evento aconteceria a
alguns metros do palácio, em uma área especialmente contruída como um campo aberto,
um tipo de praça enorme, afastada das residências e comércios. O local tinha sido decorado
com as cores do reino leonino, azul e preto, flores plantadas ao redor, árvores tinham sido
decoradas com fitas de tecido colorido em seus galhos. Em uma extremidade, de frente
para o sol nascente, estava um enorme palco alto, com assentos para a família real, nobres
próximos, a rainha Tiger que não havia confirmado presença até o momento, magos de alto
escalão e os principais conselheiros e generais de guerra. A guarda pessoal do rei estava a
postos nas laterais de acesso ao palco, enquanto guardas de outros setores da segurança
da cidade faziam a segurança do local.
Aine deveria aparecer antes do início do evento, suas sentinelas assumindo o posto
nos mesmos lugares que a guarda do rei. No entanto, nas últimas semanas ela estivera
distante e reticente com a família real leonina. Depois de uma discussão com Lich sobre a
arma para enfrentar Erínio, ela o evitava também. O isolamento dela não passou
despercebido para o povo, tão nítido era aquilo. Dias antes Nira cumpriu a ordem de Aine
para levar Raylla para longe como era o combinado. Se tudo desse certo, Raylla devia estar
o mais longe possível.
A cerimônia seria simples, como geralmente era naquele reino. Luc passaria por uma
cerimônia no templo de Kallisti, voltado ao culto das luas e sua relação com a divindade. O
templo era mais uma capela no subsolo do palácio, simples, decorada em tons de laranja e
azul cristalino. A cerimônia era muito antiga e tradicional, sendo presenciada pelo mago
chefe e seu assistente, o próximo rei e pelo rei anterior em caso de transferência de coroa
pacífica, além da próxima rainha caso já tivesse sido escolhida. Nenhum dos presentes
poderia mencionar no que consistia a cerimônia, sendo um dos segredos leoninos mais
bem guardados da história. Saindo da cerimônia, Luc, religiosamente, já seria considerado
um rei. A próxima reunião era com os nobres e possíveis novos conselheiros. Esta era
apenas uma formalidade onde os nobres que já haviam feito acordos políticos, econômicos
e militares se ajoelhariam perante o rei, reconhecendo seu poder e jurando fidelidade ao
casal real. A terceira cerimônia era a mais celebrada. O rei, agora religiosa e politicamente,
devia se apresentar perante seu povo em uma reunião pública onde ele juraria fidelidade
ao seu povo, priorizando seu bem-estar e a prosperidade do reino. O juramento era
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normalmente seguido de uma dança onde o rei levaria sua rainha, ou uma mulher
previamente escolhida para tal honra, até o centro palco e teria a primeira dança do
reinado, simbolizando o movimento rítimico e preciso da natureza. Sentado em seu trono,
o rei observaria seu povo aproveitar o banquete, a música, enfim, a festa até que metade
tivesse decidido ir embora sem ninguém ordenar sua saída. O rei precisava ser aprovado na
tríade, mas, a principal era a cerimônia religiosa.
Até aquele momento, Luc havia passado pelas duas primeiras cerimônias. A religiosa
de madrugada com seus pais e Gaia de madrugada, a segunda estava quase terminando
com Luc anunciando seu casamento oficial com Gaia realizado na mesma capela, minutos
depois de sua coroação religiosa. Não era comum, mas também não era proibido. A
verdade é que ele não queria mais adiar seu casamento e deixar ela sem o amparo legal
como rainha leonina. Lich dera a ideia, não querendo perder a chance de ver seu irmão
casado. Aine então chegou discretamente e sentou em seu lugar. Luc e Gaia saíram de
braços dados, ambos já coroados, e assumiram seus postos no palco. Alart e Sunny
passaram um cetro simbólico para as mãos de Luc e Gaia, respectivamente, na frente do
público. Depois do juramento, o casal abriu a dança. Lich estava incomodado enquanto
Aine não olhava para ele de jeito nenhum. Seu foco estava à frente, olhando para nada em
específico, a mandíbula travada. Lich olhou para seu irmão e sua cunhada sorridentes
enquanto dançavam e uma pontada de inveja o atingiu. Ele adoraria estar assim com Aine
ou só saber que ela ainda o amava. Mas sua frieza quase agressiva nos últimos dias era
dolorosa e o confundia.
Luc e Gaia não diziam uma palavra, apenas se olhando apaixonados, felizes. Naquele
momento, ambos tinham esquecido todo o resto, toda a preocupação, a angústia, a
incerteza do futuro.
Foi quando explosões foram ouvidas, seguidas de gritos. Pessoas começaram a correr
desesperadas enquanto harpias surgiam de árvores próximas, pulando e rasgando corpos
como se fossem feitos de papel. Uma nuvem escura e azulada surgiu se transformando em
Cassi com corpo mais masculino, poucos traços ainda femininos.
O ar se tornou tóxico, ardendo nos pulmões, olhos e gargantas. O céu antes claro e
sem nuvens estava gradualmente escurecendo conforme a nuvem tóxica de Erínio se
elevava no ar, deixando a luz do sol cada vez mais bloqueada. Luc empurrou Gaia para seu
chefe da guarda que tinha recebido ordens prévias de leva-la para longe assim que o plano
de atrair o monstro desse certo. Seguindo as ordens de seu rei, o Capitão Justino tirou uma
poção em forma de pó branco do bolso e soprou no rosto de Gaia. Imediatamente, ela
parou de se debater, seu corpo foi ficando mole, sem forças, até que ele a pegou no colo e
correu para longe.
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- Uma coroação... Perfeito para me coroar o deus deste mundinho patético. – Erínio
disse, algumas gotas de sua saliva pingando no chão e corroendo o solo onde caía.
Alart e Luc já tinham sacado suas armas, um escudo de magia branca brilhante
cercando eles. Lich tentou assumir a frente, mas Luc o impediu.
- Seu monstro! Vá embora! – Luc gritou.
- Ou o que? Vão me matar? Me aprisionar? Como? – Erínio debochou. – Vocês não
têm força contra mim.
- Esqueceu do poder Tiger? – Lich gritou ao lado de Sunny, ambos ainda atrás de Luc e
Alart. Lich olhou de relance para Aine enquanto observava também os guardas leoninos e
as sentinelas Tiger tirando as pessoas dali e tentando evitar o ataque das harpias. Muitos
dos militares não conseguiram, mas boa parte do povo já tinha sido evacuado.
Aine caminhou até a frente, ficando entre Alart e o escudo, encarando Erínio decidida.
- Mate-o. – Erínio disse.
Sem vacilar um milissegundo, Aine se virou e atingiu Alart no peito com uma bola de
fogo, o jogando metros para trás, com ele caindo pela parte de trás do palco.
- ALAAAAAAAAAAAAAAAART! – Sunny gritou e correu para onde ele tinha caído, mas
Aine a atingiu pelas costas, fazendo com que Sunny caísse no mesmo lugar que o marido.
Lich olhou para Aine, confuso, ferido. Luc estava confuso, mas logo a raiva assumiu o
controle. – Sua....VERME TRAIDORA!
Aine desviou facilmente do golpe da espada de Luc e deu um chute em sua perna,
fazendo ele perder o equilíbrio e cair. Com um pé sobre o pescoço do agora rei leonino, ela
olhou para Lich que deu um passo em direção a ela. – Um passo a mais e quebro o pescoço
dele. – Aine disse calmamente.
- Aine... Você não precisa...
- O que, Lich? Não preciso matar vocês? – Aine disse. – Isso não é você que decide.
Querido, o que devo fazer com eles?
Erínio que observava satisfeito por ela não só ter matado Alart como combinaram,
mas também Sunny e estar disposta a exterminar os dois irmãos, flutuou um pouco mais
baixo, ficando bem perto do chão do palco. Ele se aproximou, olhou para Lich com um
sorriso cruel, ergueu o queixo de Aine com um dedo e a beijou de uma forma voraz, de
olhos abertos focados na reação de Lich. Ver ela retribuir apaixonadamente quebrou o
coração de Lich em mil pedaços.
- Eu mato esses. – Erínio disse para ela.
Aine tirou o pé de cima do pescoço de Luc e deu um passo para o lado de Erínio.
- Aine... – Lich quase não tinha voz naquele momento. Focando eu seu poder, ele se
transformou em uma névoa negra e avançou para salvar o irmão, mas a névoa tóxica de
Erínio em contato com a sua fez com que o veneno se espalhasse mais rápido pelo corpo de
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Lich. Ele caiu no chão, a metade superior de seu corpo materializado enquanto a de baixo
ainda era uma névoa. Seus pulmões queimavam e seu coração doía pela traição de Aine.
Luc se levantou, mas logo recebeu um chute na barriga, jogado quase em cima de Lich.
- Porque você fez isso, Aine?! – Luc perguntou e só ficou mais confuso com a resposta.
- Ela me ama. – Erínio disse, passando a língua pelos dentes com olhar divertido e
cruel.
- Quer que eu mate logo ele? – Aine disse, impaciente. – Assim podemos trazer logo
meu pai nesse corpo e ele vai ajudar.
- Claro. – Erínio disse, caminhando devagar para os irmãos que já se levantavam com
dificuldade pois pensar sem conseguir respirar direito estava muito mais difícil agora.
- Aine ele não tem poder para... – Lich começou, mas uma onda ácida emanou de
Erínio e o atingiu no rosto, arrancando boa parte dos pelos ali, deixando uma pele branca
exposta abaixo. Aine não esboçou nenhuma reação a isso, apenas olhou para suas unhas da
mão esquerda onde Lich pôde ver a marca de Erínio muito maior, tomando toda a palma da
mão dela, muito mais negra e intensa do que antes.
Com os olhos ardendo pelo veneno que parecia se fortalecer a cada segundo, harpias
atacavam várias pessoas que ainda estavam no local, algumas caídas aparentemente
mortas apesar de não haver sangue em suas roupas, provavelmente mortas pela falta de ar,
outras correndo de um lado para outro, outras ainda corajosamente jogando pedras e
usando armas improvisadas para ajudar em uma luta claramente perdida.
Não. Luc enviou a mensagem telepática para o irmão que erguia-se pronto para se
transformar de novo.
Lich olhou para ele irritado. Não era hora de tentar protege-lo de outro ataque. Porém
a mensagem tinha um claro tom de ordem e agora Luc era não apenas seu irmão mais
velho, mas também seu rei. Obedecer uma ordem direta era sua obrigação e ele não sabia
agora se obedecia ou lutava.
- Você não tem como vencer! – Luc disse.
Erínio parou e gargalhou. – Você acha mesmo? Olha ao seu redor, molecote. Eu já
venci.
- Nunca se deve cantar vitória antes da hora. – Aine disse e Luc se abaixou, puxando o
irmão para baixo, protegendo sua cabeça e a de Lich com um braço em cada. Não respire.
Luc ordenou e Lich obedeceu automaticamente.
O calor lancinante passou sobre suas cabeças, ao mesmo tempo que uma onda de ar
venenoso mais intensa passa por eles. Lich não entendeu nada, mas ouviu Erínio rosnar. Ele
tinha sido jogado longe por uma gigantesca rajada de fogo, rodopiando sem controle no ar,
até parar a alguns metros de onde ficava o palco. Parado no ar, ele levou alguns segundos
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para entender o que aconteceu. Aine correu para o fim do palco onde Sunny e Alart tinham
caído. Luc puxou o irmão de pé e correu pouco atrás dela.
- Não fiquem aí parados! Me ajuda aqui! – Aine gritou enquanto tentava puxar algo.
Alcançando a borda alta do palco, Lich e Luc quase desmaiaram de alívio ao ver Sunny
e Alart de pé sobre um colchão inflável, confusos, mas vivos. Rapidamente, os três puxaram
o casal para cima do palco. Havia uma queimadura enorme na parte superior de suas
roupas, um claro cheiro de carne queimada e pele realmente queimada abaixo.
- Como? – Luc perguntou.
- Agradeça à sua esposa. – Aine disse enquanto Alart tirava o forro macio do tórax de
seu casaco, arrancando um pedaço de carne escondido ali, enquanto Sunny tirava o mesmo
da parte de trás de seu manto real tradicional pesado.
- As roupas pareciam mais pesadas do que o habital, mas achei que era só minha
velhice. – Alart murmurou.
- Gaia é um gênio, mas não temos tempo pra isso. – Aine disse, acendendo a chama
em sua mão direita de novo.
Em um reflexo, Lich e Luc se assustaram, temendo outro ataque quando ela esticou a
mão na direção deles. O fogo brilhou e passou entre os irmãos, na altura de suas cabeças,
acertando Erínio ao longe que voava feito louco até eles.
- PEGUEM ELA! – Erínio gritou ao longe e as harpias se moveram como um só ser, se
voltando para Aine e se preparando para voar até ela.
- AGORA! – Aine gritou e as pessoas mortas por sufocamento na enorme praça se
levantaram bem menos mortas do que parecia. Mais estranho foi todos os meio-mortos
arrancarem seus mantos, tirarem o rosto que na verdade era uma máscara e sacarem
espadas, arcos, machados, foices e magias brilharem em mais de 1000 mãos nenhum pouco
mortas.
Um desses não-mortos veio para frente, tirando o resto de seu disfarce para liderar o
exército que se erguera ali. Com um estalar de dedos, um portal se abriu ao lado do líder e
sacerdotisas mais velhas surgiram em suas vestes tradicionais. – Matem essas harpias e
protejam o povo! – Scylla ordenou e o caos se seguiu.
Gritos de harpias se misturaram a gritos de guerra dos militares, do povo, das
sacerdotisas de todas as idades que tinham lutado para não abandonar o disfarce antes da
hora e dar um fim naquelas coisas. As harpias, pegas de surpresa e com seu líder focado no
palco, lutaram e outras tentaram fugir. Algumas fugiram sem nem tentar ajudar suas
aliadas. Outras lutaram e mataram vários de seus atacantes.
Scylla abria portais ininterruptos e os fechava em seguida para ajudar cada felino ali a
se movimentar. Suas adagas cortavam o ar, lançadas com precisão nas asas das harpias, as
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forçando a lutar no solo. Mas seu foco ainda precisava ser dividido, aguardando o
momento.
Enquanto isso, no palco, Erínio chegava perto, sua raiva deixando o ar ainda mais
tóxico, o céu tão escuro quando a noite, porém sem nenhuma estrela visível. Nem parecia
que era perto do meio-dia ou que algum dia o sol brilharia naquela escuridão tóxica.
- VOCÊ PODIA TER TUDO! – Erínio gritou.
- Mas eu TENHO tudo. – Aine sorriu e esticou a mão direita para Sunny que a pegou.
- Sunny! Nem pense nisso! – Alart tentou correr para ela, mas Sunny desviou.
No momento de distração Erínio lançou outra rajada de ar tóxico, acertando o grupo
que rolou para longe, quase caindo do palco.
- DESÇAM! – Luc gritou e todos seguiram sua ordem, descendo pela lateral até o solo
onde o caos estava acontecendo. Bem, quase todos.
Sunny e Aine ficaram para trás, a mão esquerda de Aine segurando o pescoço de
Sunny contra sua vontade e apertado a ponto dos olhos de Sunny já estarem esbugalhados.
Aine nem pensou em correr, tendo uma ideia mais eficiente e difícil. Sacando a espada
afiada e sua cintura, ela gritou de pura adrenalina enquanto erguia a lâmina e descia sem
pena sobre o meio de seu antebraço esquerdo.
- AAAAAAAAAAAAAAINE! – Lich se virou ao ouvir o grito dela e viu quando o braço de
sua esposa jorrou sangue no rosto de sua mãe, se separando do corpo da moça.
- Merda... – Luc e Alart murmuraram também vendo a cena.
A mão esquerda de Aine ainda segurava o pescoço de Sunny, mas foi facilmente solto
agora pelas duas mulheres.
- Sua estúpida! Eu ainda sou seu dono! – Erínio berrou e se voltou para Alart. – Você
quer mesmo que sua mulherzinha morra? Vamos, podemos evitar isso.
- Vá se danar! – Alart gritou. – Sunny... Eu te amo.
Erínio fez um gesto com a mão e Sunny caiu de joelhos, com as mãos na cabeça,
gritando de dor. – Achou mesmo que eu não ia dar um jeito nessa fraca? – Erínio disse.
Scylla viu aquilo e o sinal de Aine, então abriu um portal e saiu em cima do palco
justamente quando Sunny tirava o colar relicário e tirava uma poção em forma de
comprimido roxo. Engolindo, ela sentiu o relaxamento parcial, suficiente para evitar que
seu cérebro explodisse literalmente.
- Essa coisinha não vai evitar sua morte, sua idiota. – Erínio rosnou. – O veneno que
uso em gentinha como você foi potencializado pelo chazinho daquela Maia burrinha.
Maia... Scylla sentiu mais uma facada de decepção.
- Eu sei que vou morrer a meses, seu escroto narcisista! – Sunny riu.
Erínio, percebendo onde aquilo ia dar, voou até Sunny com suas garras à mostra,
pingando um veneno negro gosmento.
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- SAI DE PERTO DA MINHA MULHER! – Alart correu, ficando de frente para Sunny,
entre ela e o ataque fatal.
- PAAAAAAAAAAAAAAAI! – Os irmãos gritaram e correram para cima.
Com olhos arregalados, em choque, encarando os olhos dele, Sunny viu o corpo do
marido ser atravessado por garras e metade da mão de Erínio. O sangue escorreu pelo
ferimento e pelos lábios dele. Alart sorriu levemente e murmurou: - Me perdoe pelo que
aconteceu na mansão.
Sunny sempre soube que o abuso, mesmo ela não o considerando assim, perturbava a
mente de Alart a vida toda. – Eu te amo, seu bobo. Eu... Alart... – Sunny chorou quando
Erínio puxou a mão para trás, tirando do corpo de Alart que caiu no colo dela.
Lich e Luc atacaram Erínio em perfeita sincronia, intercalando seus ataques para dar
tempo às três mulheres. Sunny olhou para o caos na praça onde a luta parecia não ter fim,
olhou para o braço de Aine cortado no chão a meio metro, olhou para seus filhos lutando
com aquela coisa... Scylla entregou uma joia em forma de coração vermelho na mão de
Aine.
Sunny beijou os lábios sangrentos de Alart e sussurrou: - Descanse, meu protetor.
Ela se levantou e Aine estendeu a mão decididamente para ela, com o cristal em forma
de coração na palma. Sunny sorriu, se aproximou, sussurrou no ouvido dela e pegou a mão
de Aine, fechando o cristal nas mãos delas. Sem soltar suas mãos, Aine se posicionou atrás
de Sunny, a mão com o cristal à frente de Sunny sobre o coração dela. Sunny sentiu o poder
que emanava daquela joia, forte, quente, intenso, tão poderoso que nublava o raciocínio.
Atrás das duas, Scylla sussurrou um encantamento que não era pronunciado a séculos, cujo
único trecho conhecido era tratado apenas como uma cantiga de ninar, seu verdadeiro
significado perdido no tempo. Até agora.
Erínio ouviu aquilo e foi em direção às mulheres, mas os irmãos o atacaram para
distraí-lo. Poucos segundo foram o suficiente. Sunny não lutou contra aquele poder,
sentindo o fogo varrendo seu raciocínio, sua personalidade, forte demais para ser retido
por um simples mortal. A joia pulsou em suas mãos, esquentou a ponto de queimar a mão
de cada uma, deixando uma marca de queimadura no perfeito formato dela. Aine sentiu o
poder como uma versão muito maior e incontrolável do poder Tiger, mas também como
algo obscuro, furioso, vingativo. Aine e Sunny gritaram quando o poder foi demais, suas
gargantas chegando a ferir com o grito. Ao seu redor uma energia densa, negra,
rodopiante, violenta se formou, mais escura do que a coisa mais escura que qualquer
mortal já viu. Até que, a joia mudou de forma, se esticando, crescendo, se transformando
em uma energia que rodopiava e pulsava, emitindo feixes de luz branca, dourada e
vermelha, a única coisa que escapava daquela energia negra poderosa. Naquele momento,
tudo ficou assustadoramente silencioso, como se nem o som pudesse escapar do poder
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daquela energia negra. Erínio tentou voar para longe. Aine agora não sabia o que era
“aine”, não sabia separar o que era vida e morte, era como se sua mente estivesse em tudo
e em nada ao mesmo tempo. Sunny caiu no chão enquanto Aine andou dois passos para
frente em direção a Erínio. Luc e Lich já tinha se jogado no chão a muito tempo, como Scylla
tinha explicado antes. Scylla até tentou abrir um portal e tirar os irmãos e Sunny dali, mas
seu poder parecia fraco diante daquela força divina.
De trás de Aine uma forma luminosa, transparente e etérea se elevou. Kallisti ficou de
pé enquanto Aine emanava a energia pulsante. No solo felinos e até as harpias se jogaram
no chão de joelhos.
- Sai daqui! Eu venci! – Erínio gritou para Kallisti em desespero.
- Você não é ninguém para vencer nada. Meu mundo não será destruído por você. Este
não. – Kallisti disse e Aine copiava todos os movimentos labiais, todos os gestos dela, como
se tivessem ligadas.... E estavam mesmo.
Kallisti ergueu a mão direita, com Aine fazendo o mesmo. A energia pulsante e
luminosa atingiu Erínio que começava a voar para longe aos berros.
- NÃO! DE NOVO NÃO! EU NÃO VOU! VOCÊ NÃO PODE! VOU MATAR TODOS! TUDO!
EU JURO!
A energia se fechou ao redor dele como espirais que logo assumiram a forma de uma
corrente grossa gigante, se fechando de tal forma ao seu redor que nenhum centímetro de
seu corpo podia ser visto. Kallisti fez um gesto estranho, Aine fazendo o mesmo, e a energia
negra sugou a forma acorrentada de Erínio para dentro dela. Aine caiu no chão e as harpias
fugiram gritando, muitas sendo mortas antes de se afastar, mas muitas também fugindo.
Kallisti olhou ao redor com uma expressão triste ao ver tantas mortes, as plantas e árvores
mortas pelo veneno de Erínio, prevendo doenças e má formações que viriam no futuro,
sentindo o efeito desse veneno no mundo todo agora. Seu olhar caiu sobre Alart e Sunny
que tinha caído perto dele.
- Scylla. – Kallisti chamou.
- Sim, minha Mãe Suprema. – Scylla quase chorou com uma emoção eufórica.
- Não deixe o conhecimento se perder de novo nem chegar em mãos erradas. – Kallisti
disse e tocou a testa de Aine. Kallisti se elevou, seu corpo se desintegrou em forma de luz e
pontinhos brilhantes. A névoa de Erínio desapareceu quando essa luz a tocou, o céu azul e
limpo brilhou apareceu, os anéis Anui cortando o céu perto do horizonte, o ar parecendo
mais puro e leve.
Scylla se aproximou de Sunny e tocou seu pescoço, em uma vã esperança.
Infelizmente, Sunny estava mesmo morta, porém com um semblante calmo e relaxado com
Scylla nunca tinha visto. Os gêmeos se aproximaram dos pais, cada um segurando a cabeça
de um deles no colo. Lich deixou a mãe com seu irmão e andou devagar, temendo o que
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veria. Aine estava ferida, partes de sua roupa tinham sido rasgadas e exibiam antigas
queimaduras ácidas cicatrizadas. Erínio com certeza vinha perturbando ela a semanas... A
mão dela estava fechada, segurando firme o cristal, o coração da estátua de Kallisti no
templo. O braço cortado tinha sido cauterizado pelo fogo, parando a hemorragia. Mas ela
parecia tão fraca, tão sem vida... Lich ajoelhou ao lado dela e rezou por um milagre
enquanto tocava em seu pescoço.

~o ⭐ o~
Quatro meses depois, Aine acordou. Por dias ela não conseguiu falar, sua garganta
ainda cicatrizando. Sua única mão tinha uma marca de coração e às vezes ela podia jurar
que ainda sentia aquele poder inenarrável passar rapidamente por suas veias. Ela olhou
com um misto de carinho e tristeza porque, como Scylla avisara antes, o uso daquele poder,
mesmo que por pouco tempo era letal ou, na melhor das hipóteses, mataria as joias da vida
como eram conhecidos os órgãos reprodutivos. Ou seja, Aine nunca poderia ter filhos.
Raylla corria pelo palácio sem roupa, fugindo de outro banho, deixando as servas loucas
correndo atrás da menina com tolhas e sabão nas mãos. Nira entrou e agarrou Raylla pela
cintura, a levantando do chão.
- Ray, o que conversamos? – Nira falou.
- EU VOU MORRÊ! KÉREM ME MATÁ!
- Raylla. – Aine chamou, rouca, e Nira levou a menina até ela. – Você quer matar seu
pai?
- NÃUM! – Raylla arregalou os olhos.
- Então já pro banho que você está com cheiro de porquinha no lixo. – Aine fez uma
careta exagerada.
- Mamããããim! – Raylla revirou os olhos, rindo do exagero de Aine.
- Banho. – Lich surgiu de uma sombra.
- AAAAH! – Todas, exceto Aine, gritaram de susto.
- CÓÓÓRRI, NÍA! – Raylla gritou, ainda no colo de Nira. – PAPAI TROUXE BOLO!
Nira saiu com Raylla e servas visivelmente alividas. – Como você sabe disso? – Nira
perguntou.
- Vi na cabéssa, né Nía. – Raylla disse como se fosse a coisa mais óbvia do mundo, já
sinalizando sem querer um possível dom mágico.
- Meu amor. – Lich beijou Aine.
Ela correspondeu, mas ainda vivia se sentindo culpada, apesar de já terem conversado
sobre o assunto várias vezes. Erínio precisava acreditar na lealdade dela ou não apareceria
na festa e mataria Sunny antes que o poder dela e de Aine ativassem a joia. Infelizmente,
ele sabia do ritual para contatar Kallisti e encontrar a magia e sabia que havia outro possível
L i k a s t í a 0 4 | 160

herdeiro de um leonino da família real. Com Erínio chegando perto da verdade e de Raylla,
Aine teve que pensar rápido e fazer a escolha mais difícil de sua vida.
Lich a amava demais e tinham perdido demais para não entender ela.
- Pare. – Lich disse, puxando ela para sentar em seu colo.
- Com o que?
- Está se culpando de novo. – Ele disse o que o rosto dela estampava. – Aine, você é
uma Tiger e um Tiger é forjado para a guerra, faz de tudo para vencer uma. Você fez o que
precisou, sozinha, e vencemos por isso. Não lamente pelo sucesso.
- Eu já disse que te amo?
- Não nos últimos minutos.

~o ⭐ o~
Horas depois, Raylla brincava no tapete em frente à lareira, enquanto Luc, Gaia, Lich,
Aine e Scylla estavam sentados nos sofás ao redor do tapete, uma mesinha baixa na frente
deles cheia de bebidas. Nira entrou trazendo mais brinquedos, sempre mimando Raylla que
pulou no colo dela, só não derrubando a mulher musculosa e guerreira por sua vida de
treinamentos e o hábito que isso já tinha se tornado.
- E tinha uma casa bonita. Meu pai falava tanta bobagem como nunca vi. – Aine contou
mais detalhes de sua experiência no coma. – Foi divertido.
- Fico feliz que tenha escolhido voltar. – Lich disse, com Aine no colo dele.
- Que irmão mais egoísta eu tenho. – Luc brincou, alisando o cabelo de Gaia que só
não estava em seu colo, mas sim recostada ao lado dele, por causa da enorme barriga,
perto de dar a luz.
- Eu não sei se Kallisti me daria esse presente de ir encontrar minha mulher nesse
mundo também. Então sim, quero ela aqui do meu lado. – Lich disse.
- Nesse caso, em cima, ne amor. – Aine brincou.
- Embaixo também é bom. – Lich não resistiu.
- Meu irmão cuzão tem bom humor, quem diria. – Luc riu e recebeu um beliscão na
coxa dado por sua esposa.
- Você tem que parar com isso. – Lich encarou o irmão com raiva.
- Cuzão não é xingamento. É só uma descrição do tamanho de um...
- LUC! – Lich olhou pra Raylla, rezando para ela nã ter ouvido. A menina parecia surda
às conversas dos adultos. Até sair um palavrão. Aí parecia que o radar auditivo dela era
atraído automaticamente.
- Não posso falar nada nessa porra também. – Luc disse, emburrado, sem perceber
que tinha xingado de novo.
Lich jogou uma uva na cara do irmão.
L i k a s t í a 0 4 | 161

- Ai! – Luc disse. – Isso é uma declaração de guerra! O Rei Tiger atacou o Rei leonino.
- Só porque o Rei leonino é um idiota de boca suja. – Lich disse de cara amarrada.
- Se seus filhos puxarem ao pai e ao tio... Já imaginou? – Scylla brincou.
- Mãe, nem brinque com uma coisa dessas. – Gaia fingiu espanto.
- Que Kallisti nos livre de ter outro Luc e Lich aqui. O mundo não vai aguentar esse
caos não. – Aine entrou na brincadeira.
- Eu sou quieto. – Lich se defendeu.
- Só é doido e assustador. – Aine disse com um olhar bem safadinho. – Uma delícia,
por sinal.
- Eu também sou quieto, ne amor? – Luc perguntou.
- Quieto como uma bomba de fúria e de inúmeros xingamentos gratuitos por segundo.
– Gaia disse.
- Puta merda... – A voz de Nira atraiu os olhares de todos. Nira nunca xingava, muito
menos perto de Raylla. Todos os adultos se levantaram em choque.
- Merda.... – Gaia tampou a boca.
- Caralho! – Luc quase gritou.
Pela primeira vez, Lich não reclamou com o irmão, focado na cena à frente.
- Hihihihhi... – Raylla se divertia enquanto chamas se moviam ao seu redor em formas
bípedes flutando, parecendo dançar em volta dela como seres vivos obedecendo,
agradando ela. Algumas até a tocavam sem gerar nenhuma queimadura, nada. – Olia,
papái. Amigus.
- Eu...eu....to....eu...euto... – Lich estava chocado demais para falar. Um poder desse
sobre o fogo, em tão pouca idade, era impossível. – eu....estou...eustou...
- Vendo. – Luc completou, hipnotizado com a imagem à frente.
- Vendo. Estou vendo. – Lich disse.
- É lindo... – Aine murmurou, encantada.
- Lindinha, como você faz isso? – Scylla perguntou, encantada, mas seu lado grã-
sacerdotisa falando mais alto.
- Eu pedí, claru. – Raylla respondeu como se fosse simples e óbvio. – Eu vou chamá
você de... – Raylla conversou com uma chama que parou sobre seu focinho e parecia estar
acenando para ela.
Lich sentiu o peito inflar de orgulho e carinho por aquela garotinha que ele adorava. E,
surpreendemente para todo mundo ali, algo que ninguém acreditaria aconteceu. Lich sorriu
sem nem perceber. Os outros na sala não sabiam para o que olhar, a cena insana da menina
encantadora de chamas ou a cena inacreditável de Lich sorrindo como um pai bobo e
orgulhoso. Até que Raylla escolheu o nome para aquela chama em seu nariz.
L i k a s t í a 0 4 | 162

- ....Vou chamá você de....Calálio. – Raylla disse e o sorriso de Lich foi substituído por
uma carranca irritada. – Em menagem ao tío Lúki, você vai si chama Calálio. Você gostou,
Calálio? – Raylla perguntou para a chama.
Lich se virou para o irmão com um olhar assassino. Luc já deu um passo para trás e
planejou mentalmente sua rota de fuga. – Corre. – Lich disse simplesmente e se
transformou em uma névoa.
Luc correu gargalhando, por um instante sentindo-se como quando ele e Les
brincavam e se atazanavam nessas corridas. – UUUI, CORRE QUE O SINISTRO TA PUTO!!!
AHAHAHAHAHAHA!
- Idiota! Vou te ensinar a não xingar! – A voz de Lich soou mais divertida do que brava,
mas ele morreria negando isso.
- Críanças. – Raylla disse, com as mãozinhas na cintura, balançando a cabeça
negativamente, enquanto via os irmãos indo para fora em sua perseguição.
As mulheres na sala riram. Tanto as mortais visíveis e a imortal invisível na sala riram.

~o ⭐ o~
Divirtam-se, sorriam e aproveitem seus momentos de paz. Assim os de guerra valerão
a pena serem lutados.
L i k a s t í a 0 4 | 163

Premiando a Lealdade e a generosidade

Às vezes, só às vezes, é bom quebrar algumas regras naturais para recompensar a


lealdade de alguém que abriu mão do que mais desejava pelo que é certo.

~o ⭐ o~
Em algum lugar, à margem do tempo, em um jardim gigantesco indo até onde os olhos
alcançavam e além, havia uma cabana feita no tronco de uma árvore larga e muito alta. As
paredes pintadas de branco, uma varanda cercada por uma cerca baixa repleta de
trepadeiras onde flores amarelas se abriam e fechavam como o pulsar de um coração. A
porta vermelha com guirlanda de ervas se abriu e um som de risinhos emanou das ervas na
guirlanda, tão vivas quanto tudo o mais ali.
Aine não sabia como tinha ido parar ali, nem como suas roupas tinham sido
substituídas por aquele verdito leve de tons amarelos e esverdeados, as cores parecendo
mudar o tempo todo como batidas cardíacas. Aine só se lembrava da batalha, seu corpo
perdendo forças e caindo até perder a consciência. Então ela acordou em um jardim
gigante de flores altas, coloridas, as luas se movendo entre os anéis Anuin de formas
impossíveis. Ao longe, a fumaça branca emanava de uma árvore gigante e, sem saber o
porquê, ela caminhou até lá, só então percebendo que estava descalça.
Agora, com uma mão no corrimão, prestes a subir o primeiro degrau, ela parou
quando a porta da cabana abriu. Um Tiger jovem e sorridente, muito bonito, saiu limpando
as mãos em um pano que imediatamente sumiu. Aine não precisava que ninguém lhe
dissesse quem ele era. Ela tinha visto imagens desse felino em quadros, imagens mágicas,
nas mensagens que Scylla mostrava em sua mente, em seus sonhos...
- Pai... – Aine disse sem fôlego.
- Uau! Eu sabia que você era linda, mas de perto é estonteante. – Done sorriu. – Não
vai entrar e dar um abraço no seu pai?
Ele esticou os braços e Aine correu escada acima, se jogando contra ele o abraçando
apertado enquanto lágrimas de um choro convulsivo escapavam de seus olhos sem que ela
tivesse controle. Done a abraçou forte, lágrimas silenciosas escorrendo de seus olhos.

~o ⭐ o~
- Porque ninguém me dá notícias? – Lich estava tão nervoso andando de um lado para
o outro que, no meio dos passos, ele se transformava em uma névoa negra e se
materializava alguns passos à frente, mal percebendo isso.
- Scylla não pode parar o trabalho para vir te dar notícias. – Luc comentou,
preocupado com a demora que já se estendia por horas. As chances de Aine eram míninas e
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ele já se preparava para consolar o irmão pela morte dela. Gaia também tinha passado por
um procedimento urgente ao passar mal e logo as sacerdotisas descobriram que ela estava
grávida e havia sofrido um aborto por causa da batalha com Erínio e todo aquele veneno no
ar. Gaia depois que acordou revelou que desconfiava disso a alguns dias, mas estava com
medo de confirmar. A dor dela ao descobrir que tinha perdido o filho que nem tinha
desenvolvido seu gênero sexual ainda, foi ainda pior do que a perda do filho em si para Luc.
Tantas mortes em um dia.... E logo teremos mais uma... Raylla... Como vamos contar
para aquela pequena fornalha? Luc se sentia de repente quarenta anos mais velho e
emocionalmente cansado.
Depois de mais algumas horas, Scylla, visivelmente esgotada pois não parara para
descansar depois da batalha que acontecera a 28 horas. Primeiro enviando os mortos e
feridos para os locais pré-organizados por ela e Aine para atende-los, depois enviando Gaia
por um portal com urgência para ser atendida, depois indo liderar a equipe de cura de Aine
que estava praticamente morta, tendo ficado sem sinais vivais 18 vezes e sendo reanimada
por Scylla com massagens cardíacas todas as vzes. Luc admirou ainda mais a força da felina
que, mesmo esgotada, se mantinha em pé, altiva, com as mãos trêmulas apoiadas na
bengala à sua frente.
- Fala! – Lich foi até ela quase correndo. – Ela vai ficar bem, não é? Eu quero vê-la.
- Calma, irmão. – Luc tentou controlar Lich que parecia prestes a explodir de
ansiedade, os olhos vermelhos de chorar escondido.
- Lich, eu lamento. – Scylla começou e controlou um bocejo, sentindo o esgotamento
de sua magia a derrubando. – Ela não reagiu bem e seus órgãos internos estão muito
enfraquecidos. Sua magia também está praticamente toda drenada. Coloquei ela em coma
em um cristal de suspensão. Mas não podemos fazer mais nada. Apenas esperar que o
corpo dela se recupere.
- ESPERAR?! – Lich só não avançou na garganta dela pelos anos de respeito, mas a
vontade era enorme. – VOCÊ TEM QUE FAZER ALGO!
- Lich... – Luc disse e pegou uma bebida para Scylla que parecia a beira de um desmaio.
- Lich, nós fizemos tudo que era felinamente possível. Já é um milagre Aine estar viva e
você sabe disso. – Scylla disse, mais dura do que pretendia. Então, vendo o desespero dele,
ela acrescentou mais suavemente. – Olha eu sei que é difícil aceitar, mas não temos
controle sobre a vida e a morte. Use sua magia para tentar manter a alma dela neste
mundo e converse com ela. Mas...preciso ser sincera. Não tenha esperanças. As chances
são quase nulas.
- EU NÃO VOU PERDER MINHA MULHER! – Lich chutou uma mesa de madeira pesada
com tanta raiva que a mesa voou longe, bateu contra a parede e se espatifou. No fundo ele
sabia que tudo que ela e seu irmão disseram era verdade, mas ele não estava pronto para
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se despedir dela. Lich saiu do palácio Tiger e correu pela floresta, gritando, urrando por
horas.
- Ele vai voltar. – Scylla se jogou na poltrona e aceitou a bebida oferecida por Luc.
- Nunca vi meu irmão tão desnorteado. Mas entendo. Perdemos tantas pessoas... –
Luc comentou.
- É compreensível. Todos estamos esgotados em todos os sentidos.
- A destruição da natureza é...triste.. – Luc olhou pela janela onde via-se árvores secas,
mortas pelo veneno de Erínio. – E aquela coisa só ficou no ar por alguns minutos.
- Sim. – Scylla olhou para fora, triste com a visão. Até as pedras estavam esfarelando
sozinhas, sem ninguém nem tocar, tamanho era o envenenamento nas células de...bem,
tudo. – Os magos das Duas Coroas que estão encarregados de analisar a destruição já estão
trabalhando. A magia dos necromagos será essencial para dar forças de renascimento às
células. Mas vamos precisar de alguém muito poderoso com a magia de fogo Tiger para
restaurar a vida e a beleza da natureza.
- Alguém mais forte do que Aine. – Luc comentou. Não era segredo que Aine era
poderosa, mas não era a mais forte das detentoras do poder Tiger.
- Mais forte do que Carya. – Scylla esclareceu.
Luc arregalou os olhos, chocado e temeroso. Carya era uma das mais poderosas
detentoras da magia Tiger da história, Tigrésius era outro. Se precisava ser mais forte do
que ela... – É tão grave assim?
- Sim. Por enquanto só podemos remediar a situação o melhor possível, parando o
avanço da destruição. Mas curar e trazer tudo de volta como era? Só podemos rezar para
Kallisti e torcer para que algum futuro rei ou rainha Tiger seja tão poderoso assim.
Luc se arrepiou todo. – Que Kallisti nos proteja.

~o ⭐ o~
Na cabana os dias passavam. Bem, pelo menos Aine achava que eram dias. Não dava
para saber porque o sol nem sempre se punha no horizonte, às vezes dançando
horizontalmente onde devia se por até chegar ao leste e voltar a se erguer, outras vezes
anoitecia, mas era rápido ou muito longo.... O tempo parecia insano, sem rotina, e ela nem
tentava contar. Não importava.
Ela e Done sentavam por horas dentro da cabana conversando, passeavam de braços
dados pelo jardim, sussurravam palavras aleatórias para as flores na cerca ou piadinhas
bobas para as ervas da guirlanda que riam de tudo. Agora ela e o pai estavam deitados no
chão, entre as flores altas, olhando distraidamente pa o céu, lado a lado.
- Pena você não gostar de caçar. – Aine comentou. – Mas eu gosto mais de nadar.
- Eu sei. Vi você nadar inúmeras vezes. – Done comentou, sorrindo com a lembrança.
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- Você viu? – Aine perguntou.


Aine, amor...se esforça....por favor... O desespero naquela voz inconfundível ecoou
parecendo vir de todos os lados, embora não tivesse mais ninguém.
- Lich? – Aine sentou, de repente se lembrando de seu marido. Não que ela não tivesse
lembrado antes, mas era uma memória tão distante...
Done suspirou. Ele vinha se perguntando quanto tempo mais demoraria para isso
acontecer. O egoísmo de querer manter sua princesinha ao seu lado, finalmente tendo
aquilo que sempre desejou nesse tempo ali, batalhava dentro dele com o desejo de ver sua
filha viver com a família por anos e anos.
- Vamos ver os pássaros de fogo descendo das luas? – Done se levantou e estendeu a
mão para ela.
Aine sorriu e ele adorava ver como o sorriso dela era idêntico ao dele. – Vamos. Eles
nascem nas luas?
- Não. Na estrela solar. Depois descem para viver nas luas. – Done comentou e, de
braços dados, eles flutuaram no ar, parando a metros do chão. Seus corpos voaram para
longe, como se soprados pelo vento, tudo ao redor se distorcendo pela velocidade
inominável. Quando pararam estavam flutuando a cerca de 20 metros acima de um lago de
água alaranjada, cristalina, com cristais vivos nadando...ou caminhando...dentro da água. O
perfume e as cores desses cristais e da água imediatamente fizeram Aine se lembrar das
Fontes Termais Sagradas em Likastía.
- São interligados. – Done esclareceu, entendendo o pensamento dela.
- Uau! – Ela exclamou.
- Olhe. – Done apontou para o céu onde uma nuvem laranja, amarela e vermalha saía
de cada lua, descendo em direção ao mundo. Quanto mais se aproximava, mais a nuvem se
mostrava ser um monte de pássaros de tamanhos diversos, feitos de fogo. Quando parecia
que eles iam se chocar com as nuvens douradas no céu, eles voaram horizontalmente, em
um bando enorme, passando sobre suas cabeças e seguindo seu caminho até sumir no
horizonte onde o sol se aproximava.
- Foi....incrível. – Aine murmurou. – Saber do mito é uma coisa, mas ver é... – Ela
parou, sem palavras.
- Eu sei. Já vi incontáveis vezes e sempre é uma experiência mágica. Como tudo aqui é.
– Done disse, querendo manter ela ao seu lado.
- A paz aqui é fora do comum. Ter você aqui é ainda mais perfeito. Eu sempre...senti
sua falta... – Aine disse, meio sem graça por admitir em voz alta.
Done se virou para ela, segurou seu rosto entre as mãos e disse emocionado. – Eu sei,
princesinha. Eu também senti a sua falta. Não sabe como lamentei cada momento que você
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passou sem mim. Eu queria te dar tantos conselhos, aprender com você, ser seu amigo, rir
com você, te colocar de castigo quando você fizesse algo errado, brincar com você...
- Pai...
- E ela óuve a genti? – A vozinha de Raylla veio de todos os lados como um sussurro no
vento.
- Aine... Eu te amo, filha. Muito. Me perdoe por não ter morrido antes de termos
qualquer momento juntos. – Done tentou manter o foco dela ali, com ele. Ele não queria
perder ela de novo.
- Não foi sua culpa, pai. Mas foi tão difícil...
- Ninguém sabe, mas não custa tentar, não é? E Scylla recomendou. – A voz de Lich
soou como a de Raylla tinha feito antes.
Aine fechou os olhos e deixou que o vento levasse ela e seu pai de volta para a cabana.
Os dois colocaram os pés no chão e correram em uma brincadeira de pega-pega, rindo,
aproveitando a companhia um do outro como sempre faziam.
- O que é “récomenou”? – A vozinha de Raylla soou de novo, mas Aine ignorou.
Done parou, fez uma reverência e estendeu a mão. Aine pegou a mão dele e ambos
começaram a dançar como eles queriam ter feito em todos os bailes que ela foi na vida e,
principalmente, no casamento de Aine.
- Eu pensei em cada detalhe da festa. Acho que puxei minha mãe nisso. – Done sorriu.
- E como seria? Nunca fui muito adepta de festas chiques. – Aine riu.
- Um baile externo, como os dos leoninos, em uma praça gigantesca, toda decorada
em dourado e branco, você linda como sua mãe no casamento dela com a minha, aquele
rapaz usando as vestes negras tradicionais da magia dele... Aliás, eu sempre preferi você
com Lesath. Felinos risonhos são os melhores. – Done sorriu, inflando o peito. – A festa
duraria dias. Quando o baile externo acabasse, teríamos mais um banquete dentro do
palácio onde todos os nobres deviam mostrar o quanto te adoram, depois outro baile
interno...
- Por Kallisti! – Aine riu. – Desse jeito quando eu ia aproveitar meu marido?
Done riu e a rodopiou na dança. – Não dá para negar de quem você é filha, minha
pequena de mente suja.
Os dois riram. – Pai, você não gosta do Lich?
- Claro que gosto. Ele te ama, te adora. Qualquer um que tenha bom gosto desse jeito
é uma boa pessoa.
- Pai... – Aine riu.
- Sério. Gosto dele. – Done sentiu uma pontada de culpa.
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- Mamãe Aine... O papai nãum dormiu de novo. – A voz de Raylla soou. Aine não sabia,
mas a menina estava sozinha com ela, alisando o cristal na altura de seu cabelo como se
pudesse acaricia-lo. – Ele tá feio.
Aine ignorou a voz como vinha fazendo, mas com o final ela não resistiu a um sorriso.
- Aine... – A voz de Done chamou, mas estava em segundo plano na atenção dela e
nem mesmo percebeu que ele tinha parado a dança, ainda a segurando nos braços.
- Se papai nãum dormí, ele vai ficar mais feio e dodói. – A vozinha de Raylla soou triste
e preocupada. – Tío Luki disse “calálio” pro papai que não quer dormir. Aí eu coloquei a
poçãum de nanina da tia Scylla na bebida dele agora a pouco.
- Raylla! – Aine exclamou, de olhos fechados, com um sorriso nos lábios.
- Eu núm rôbei, mamãe. Eu pedi emprestado, mas a tia Scylla num tava lá e num disse
que nãum....Então podia pegar ne... Ela num disse que nãum.... Tomára que ele dúrma. Mas
a sinhóra tem que acordá também né mamãe! Eu estou mantendo o papái bunitinho pra
senhora, mas não pode demorá!
Uma lágrima escorreu pelo olho fechado de Aine. Ela não queria voltar.
- Sinto sua falta, mamãe...
Aine não sabia, para ela se passaram segundos, mas em Likastía passaram horas.
Raylla ficou ao lado do cristal onde Aine estava e acabou dormindo.
Done secou a lágrima do rosto dela com um dedo e Aine abriu os olhos.
- Você tem que ir, filha. – Done disse as palavras mais difíceis que já pronunciou, uma
lágrima escorrendo por seu olho esquerdo.
- Pai...eu não quero ir. Mas....eu quero ir... Isso nem faz sentido... – Aine chorou.
- Eu sei, amor. Mas Kallisti deu o que ambos mais desejávamos, quebrando uma das
leis mais fortes da natureza... Também te deu uma escolha. Você sabe que não pode ficar
aqui sem que seu corpo acabe morrendo em breve...
- Eu não quero ir, pai.
- Aine, minha garotinha impressionante, você ainda pode viver por décadas com sua
família.. – Done queria segurar ela com todas as forças para ela não ir, mas também sabia
que Kallisti lhe dera quase 100 anos de vida se ela quisesse voltar. Ele não queria tirar ela
de sua família, de sua filha.
- Raylla, o que está fazendo aqui? – A voz de Lich soou extremamente preocupada.
Não era para menos. Ele dormira sem perceber enquanto brincava de chazinho com Raylla
e quando acordou no quarto dela, a menina tinha sumido. O pânico de perder mais alguém
foi tão grande que ele nem pensou em perguntar nada a ninguém, apenas correu pelos
corredores, desesperado até pensar em olhar no quarto de cura onde Aine estava. Quase
gritando ele acordara Raylla que dormia apoiada no cristal, com a mãozinha sobre o cristal
na direção da única mão de Aine.
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- Papái...? – Raylla esfregou os olhinhos sonolenta.


Lich se aproximou do cristal e olhou para o rosto de Aine, uma dor atingindo sem peito
como sempre acontecia ao vê-la. – Aine... – Cansado e já sem esperanças, Lich não
conseguiu evitar o desespero que se abateu sobre ele. Chorando profusamente enquanto
se irritava por não conseguir se controlar, ele caiu de joelhos do lado do cristal.
- Papai...num chora nãum... – Raylla pulou da cadeira que a mantinha um metro acima
do chão para alcançar o topo do cristal. Ela correu até Lich e o abraçou de lado, sem saber
como ajudar ele.
- Aine...eu não...não aguento... – Lich nem conseguia falar, chorando alto.
Algumas sacerdotisas que estavam sempre avaliando o cristal de Aine viram a cena e
chamaram Scylla para dar algum calmante para ele que estava beirando um colapso
nervoso. Quando Scylla chegou na porta e captou o pensamento dele, ela entendeu o
desespero. Ele tinha tomado a decisão mais difícil que um familiar de alguém à beira da
morte pode tomar. Então ela decidiu deixar ele extravasar e só depois medicá-lo, ficando
parada na porta, seu coração apertado pela cena e pelo estado de Aine que só piorava.
- Calma, papái. Ráilla tá aqui pra ajuda seu coraçãum, papai. – Raylla chorava em
pânico por que não conseguia acalmar Lich.
- Eu não quero... – Aine chorou e colocou as mãos nos ouvidos tentando não ouvir as
vozes que ecoavam no ar... Não. Não no ar. Em sua alma. Ela não podia evitar ouvir...
- Querida... Você pode ficar comigo. Eu adoraria isso. Mas eu acho que no fundo você
quer estar com eles. Criar Raylla com pai e mãe... – Done acertou o ponto que mais doía. -
Não quer que ela sofra como você sofreu sem um dos pais não é?
- Aine...Meu amor...Minha vida... – Lich se forçou a se acalmar um pouco e falar o que
doía, mas ele sentia que era o certo. – Não quero mais te ver presa a um corpo... Você
sempre foi tão cheia de vida e agora... Se você tiver que ir... Vá em paz, amor.
- Lich... – Aine sabia o quanto custava para Lich deixar ela partir. Ela desejou voltar,
mas perder a chance de conviver mais tempo com o pai era doloroso. – Pai.. Não quero...
Logo agora que finalmente posso ter você comigo...
- Você não entendeu, minha menina impressionante? – Done sorriu aquele sorriso
sedutor que Aine herdara. – Eu sempre estive com você. Sempre acompanhei sua vida
daqui. Cada conquista, cada aprendizado, cada queda... Vi você sofrer à noite sozinha pela
minha ausência e sofri junto. A única coisa que te acalmava eram as visitas secretas de Lich
que nem você sabia. E eu agradeci à esse rapaz todas as vezes por isso. Eu tomei ele como
meu protegido em seus feitiços necromantes, até guiei ele em muitos, embora ele não
soubesse quem eu era. E tudo porque eu sou grato a ele por te fazer bem. Eu estive em seu
casamento, eu vi você ser forte em momentos que eu não teria sido, vi sua dor, vi seus
sorrisos, eu sempre estive com você aqui. – Done colocou um dedo sobre o coração dela.
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Aine abraçou o pai uma última vez. – Eu te amo, pai.


- Eu te amo mais, menina impressionante. – Ele beijou a testa dela e olhou para trás de
seu corpo onde Kallisti tinha um sorriso doce e gentil no rosto, parada a meio metro de
Aine.
Kallisti se aproximou e sussurrou no ouvido de Aine: - Hora de ir, menina de lindo
sorriso.
Aine sentiu um calor reconfortante e uma luz cegante que a derrubou em uma espiral
dourada.

~o ⭐ o~
Raylla estava no colo do pai que estava calado, mais do que o habitual, desde que
acordara a cerca de uma hora, depois de dormir quase 12 horas com o calmante que Scylla
lhe deu. Níra estava por perto, como sempre estava de Raylla, mas havia tentado em vão
tirar a menina do colo de Lich para ela almoçar e ele descansar. Raylla estava sentada de
lado no colo, com os braços firmes ao redor do pescoço dele, a cabeça apoiada em seu
ombro.
Luc enviara uma mensagem para Lich, mas ele estava tão apático que Scylla foi quem
atendeu o comunicador e estava explicando a situação e perguntando sobre Gaia, cuja
gravidez já estava avançada. Lich ouvia a conversa sem prestar atenção, sentindo-se
anestesiado, sem vontade de reagir a nada, sentindo seu coração batendo tão sem vontade
que parecia estar parado, embora ele soubesse que isso era apenas emocional e não físico.
Sem motivo aparente, seu coração deu uma batida forte repentina quase dolorosa, fazendo
ele arregalar os olhos. Outras batidas fortes vieram e ele se sentiu vivo, como não se sentia
a quatro meses. Até sua visão pareceu clarear, as cores ficaram mais vivas... Lich deu um
pulo do sofá, colocando Raylla no assento ao lado sem dar muita atenção.
- Papai? – Raylla perguntou confusa e Nira, sempre protetora, correu para a menina.
- O que foi? – Luc perguntou do comunicador, vendo apenas um vulto do irmão
correndo e saindo da sala como se tivesse possuído.
- Lich? – Scylla se virou e perguntou enquanto o leonino saía.
- AINE! – Lich gritou apenas, não se importando em explicar nada.
Sua prioridade era chegar na ala onde ficava o quarto de cura. Ele ouviu passos
correndo atrás dele, a voz de seu irmã falando qualquer coisa no comunicador. Chegando
perto da sala ele trombou em uma sacerdotisa que caiu no chão e, diferente do seu jeito
normal, ele nem ajudou ela a se levantar, Nira fazendo isso no lugar. A sacerdotisa contou
rapidamente o motivo de sua pressa e Scylla, Nira e Raylla correram para a sala que Lich
tinha entrado.
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Lich parou por dois segundos na porta, sem voz, quando viu Aine sentada na poltrona
ao lado do cristal. A mesma que ele, Gaia, Luc, Scylla, Nira e Raylla tinham ficado por horas
falando com ela, pedindo à Kallisti para que Aine se salvasse. Aine estava envolta em um
xale pois, apesar de ser meio-dia, seu corpo precisava de mais calor depois de sair da
suspensão. Ela ergueu a cabeça e Lich correu para ela, caindo de joelhos à sua frente,
abraçando a cintura dela e chorando de alívio. Aine acariciou os cabelos escuros dele e o
levantou um pouco para depositar um beijo em seus lábios.
- ECA! – A voz de Raylla soou na porta, no colo de Nira, com Scylla ao lado e o visor do
comunicador exibindo Luc e Gaia de olhos arregalados. – Que noxentu!
Aine não conseguia falar ainda, então apenas sorriu e sinalizou para Raylla ir até ela. A
menina desceu do colo de Nira e correu para abraçar Aine e Lich ao mesmo tempo.
- Am...u...vo...eis... – Aine disse quase sem voz, muito rouca. – Uinto...
Assim, Aine percebeu que, apesar de precisar se despedir dos mortos, aqueles que nos
amam em vida nunca deixarão de nos amar e sempre estarão vivos em nossas memórias e
corações.
Sentir saudades é bom, significa que amamos e somos amados na vida. Mas viver
preso à saudade não é viver.

~o ⭐ o~
Viva e aproveite os vivos ou sempre vai viver preso ao passado e lamentando o que não
viveu quando e com quem podia.
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Bônus da Autora

Arte de capa (1400 x 788)


https://i.imgur.com/3Wc12Gm.png

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