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Como o conceito de masculinidade contemporânea se relaciona à honra etiquetiana no

período do Antigo Regime.

Em um estudo promovido pelo aluno de pós-graduação em Antropologia Social da


Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Enéleo Alcides da Silva, sobre violência
sexual em cadeias masculinas, o autor aponta que entre as "vítimas" preferenciais se
encontram os estupradores, parricidas, "cagoetas", "laranjas" e "afeminados", já que para os
presidiários, segundo eles próprios, estas categorias ferem a honra social, não só da
comunidade presidiária, como da sociedade externa. É dito que os estupradores, de mulheres
ou crianças, ferem a instituição sagrada familiar, os parricidas, ao agredirem pai e mãe,
considerados "sagrados", agridem toda a comunidade, os cagoetas traem o "acordo" de
lealdade entre os companheiros, enquanto os laranjas e afeminados ferem a regra de
virilidade esperada pelos demais membros da comunidade. Este tipo de panorama acerca da
honra masculina não se limita ao campo dos presídios, eles estão inseridos em diversos
aspectos da nossa sociedade contemporânea, principalmente na internet.
É designado, atualmente, diversos canais e mídias de propagação de ideais
masculinos, homens com honra, virtudes, virilidade e mais importante, másculos e "não
submissos", eles pregam e ensinam uma masculinidade "honrada" e "viril" condenando
homens que de alguma forma se tornam "submissos" a suas mulheres, desempenhando papéis
socialmente designados ao gênero feminino. Esta concepção de honra contemporânea não é
nova, em fato, ela é quase uma transferência dos valores, honras e até mesmo etiqueta de
tempos modernos, mais especificamente no Antigo Regime, onde os Reis e suas cortes
ditavam as regras da sociedade, situando a honra e a etiqueta como pilares altos para manter a
ordem no reino, e assegurar seus lugares como nobres cidadãos. Em seu livro "A Etiqueta no
Antigo Regime", o professor de filosofia Renato Janine Ribeiro, nos apresenta conceitos e
dimensões sobre a honra masculina na modernidade, um destes conceitos está na forma como
se atribui a honra. No livro, Ribeiro aponta três formas dessa atribuição: Sangue, um nobre já
nasce honrado, é hereditário, quanto mais velha sua linhagem, mais nobreza corre em suas
veias; por Virtude, onde o valor pessoal e os méritos enobrecem uma pessoa; e por Dádiva,
onde sua honra e valor são ditados pela sociedade, seja formalmente pelo rei, seja pelo senso
comum social. É esta terceira concepção de honra, a dádiva dada pela sociedade, que se faz
mais evidente nos dias de hoje, onde seu valor e seu estima de vida são características
impostas e ensinadas à você pelos nobres dos dias atuais, homens, em sua maioria ricos ou
milionários, que possuem uma ideia quase abstrata de mundo e vivência social, que vendem
livros, cursos, auditorias e promovem podcasts, para que cada vez mais sua visão de mundo,
valores, honra e principalmente masculinidade, seja espalhada e aceita pelos demais homens,
os livrando da falta de valor e material que o mundo atual enfrenta, em suas visões limitadas.
Eles recebem diversos codinomes, dados e impostos pelos mesmos, redpills¹ e incels² são os
mais usados, numa clara tentativa de separá-los dos demais homens, de mostrar sua
superioridade, num paralelo onde a nobreza se intitula honrada e os plebeus são seres
impuros, incapazes de valores e honrarias.
Ainda em seu livro intitulado acima, Ribeiro aborda a honra além dos princípios da
vida cotidiana, trazendo ela para o espectro do poder, ilustrando como os nobres usavam sua
"honra exclusiva" para assegurar seu status perante a aristocracia e marcar também sua
dominância sobre as outras classes sociais, eles procuravam a honra, se alimentavam dela,
promoviam e lutavam guerras em busca de uma vitória ou morte gloriosa, participavam da
cavalaria e de feitos extraordinários para acender seu nome, ser morto como mártires ou
consagrado como herói em vida, aumentar o legado da família, seu status perante o Rei e todo
o reino. A honra é uma arte política, incapaz de segurar os homens comuns, mas capaz de
regir os nobres, dizer como devem agir e se comportar, impedir seu confronto direto,
medindo seus valores apenas em feitos, preferências e distinções, ela mantinha a
desigualdade social, ferramenta essencial da Monarquia e Modernidade, já que possui o
empenho e a natureza de gritar diferenças entre os homens. Contemporaneamente, apesar do
poder da honraria ainda se marcar por questões separatistas de classe, já que o homem
honrado é aquele capaz de sustentar sua família, de possuir certos tipos de bens materiais e
até mesmo de ser capaz de certo nível de ostentação, o poder da honra recai principalmente
em questões de gêneros, reafirmando diversas vezes "papéis femininos", e as mulheres de
forma geral como seres inferiores a eles. Descritas quase sempre em uma dicotomia paralela,
sendo apontadas como objetos sexuais e de prazer ou como seres manipuladores e
interesseiros, os valores masculinos pregados por esses homens, assim como na modernidade,
subjulgam a honra feminina e as colocam como coadjuvantes do mundo, servindo apenas
como um troféu perante os outros homens, ou um ser submisso a serviço de seu cônjuge.
Além disto há também a demonização de tarefas estereotipadas femininas sendo realizadas
por mãos masculinas, desde profissões que envolvem ensino e cuidados até o
compartilhamento de tarefas domésticas, há sempre uma repulsa direcionadas a elas, uma
falta de caráter ligada ao feminino que marcam bem a inserção de valores masculinos
pregados pelos mesmos. Este tipo de descrição, de mentalidade, de construção de relações
reafirmam questões de gêneros, que vem sendo desconstruídas durante séculos, é quase como
um retrocesso de valores e ideais, a volta para uma "época melhor" onde mulheres tinham
voz, papel e lugar diminuídos e concentrados por homens em poder.
"o preço do machismo é a constante angústia", a frase, presente no texto já citado de
Ribeiro, ilustra perfeitamente a ordem de honra propagada na modernidade e pelos "homens
superiores" contemporâneos. Assim como a honra da corte, marcada pela aparência, onde em
uma Europa analfabeta, a visão era experiência universal e de maior importância, a honra dos
homens contemporâneos também é marcada pelo visto, um feito, mesmo que sem valor ético
ou isento de intenções, carregam um valor tão estimado, quando uma ação “nobre” de cunho
ético e moral compartilhado em sociedade. É a aparência o fator fundamental de sua honra e
valor, tanto a física - o jeito de se portar e vestir - quanto a social - com quem devem manter
contato, o que comer, as mulheres com quem devem se relacionar (sempre reservando a elas
uma espécie de manual de instruções que devem seguir, para ser digna de sua companhia), as
emoções que devem sentir e quando demonstrá-las ou não - são esses pequenos e delicados
fatores que eles atribuem responsáveis por toda a sua identidade como homem. Esta constante
angústia que os molda como seres, o sempre presente medo do deslize, a venda da ideia de
que uma ação infalsa, e a única identificação que possuem - o homem honrado e acima do
comum - é completamente fragmentada em suas mãos, os mantendo sempre como carrasco e
vítima de sua própria felicidade e acima de tudo, de seus próprios seres.
O homem contemporâneo, talvez como o homem moderno, é derramado em uma
honra cega, quase impura, é ela que dita sua vida e seus fazeres, todos os seus gostos e
desgostos, segurados a mão por uma regra social inventado por um alguém que se denomina
acima dela. É a honra masculina, o principal fator que carrega até hoje o machismo, a mancha
social que contamina e aprisiona a vida de milhares de homens e mulheres ao longo da
história humana social.

NOTAS
1 - Pertencente ao universo cinematográfico Matrix, o termo "redpill" significa literalmente
uma pílula vermelha, onde quem a toma consegue acordar para o mundo real se libertando da
matrix. Aqui, estes homens, usam desse termo para designar que são as pessoas que
acordaram para a verdade, fugindo das supostas amarras que a sociedade impõe.

2 - Do inglês, "involuntary celibates", ou celibatários involuntários, em Português. Se trata de


uma comunidade de homens que se dizem rejeitados, incapazes de concorrer com os
sexualmente ativos, e  que por isso se mantém virgens.

REFERÊNCIAS:

DA SILVA, Enéleo Alcides. Violência sexual na cadeia: Honra e masculinidade. Revista de


Ciências Humanas, v. 15, n. 21, p. 123-138, 1997.

RIBEIRO, Renato Janine. Etiqueta no antigo regime: do sangue à doce vida. 1990.

Análise escrita por Milena Jaciara S. Pereira


UERN

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