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Neste estudo busco explorar a dinâmica entre clemência, crueldade e equidade nas
expressões dramáticas de poderes soberanos em duas peças de Sheakespeare, segundo
traduções baseadas nas edições de 1599 e 1604. Pretendo utilizar de O príncipe (1513)
de Maquiavel como parâmetro de vocabulário político da cultura letrada europeia
ocidental dos séculos XV – XVII. E como obra preceptiva que, partindo de exemplos
antigos e modernos de chefes de estado, pretende instruir o poder soberano sobre a relação
casuística entre vício e virtude em suas ações públicas como mantenedor da paz civil.
Outro momento em que o soberano se destaca é no trágico fim da peça, onde seu
também parente, Páris, é assassinado por Romeu em uma tumba dos Capuletos no
cemitério de Verona. Próximo ao fim da peça, Escalo admite que as mortes ocorridas
eram consequências de sua negligencia. As mortes ocorreram nas três partes, nos
membros de cada família e do Príncipe2.
1
SHAKESPEARE, William. Romeu e Julieta (1599). In: MENDES, Oscar; MEDEIROS,
F. Carlos de Almeida Cunha (trad.). William Shakespeare: Obras Completas, vol. 1.
Rio de Janeiro: José Aguilar, 1969. p. 321-323
2
SHAKESPEARE, William. Romeu e Julieta (1599). In: MENDES, Oscar; MEDEIROS,
Talvez se o príncipe tivesse exercido sua autoridade, suas atribuições soberanas
não teriam sido usurpadas pelas famílias. O soberano é o senhor da graça e da justiça, ele
tempera e arbitra o rigor da lei, seguindo os costumes do Antigo regime3. As mortes
encenadas na peça, demonstram o resultado da extrema clemência exercida pelo príncipe.
A não arbitragem casuística de cada evento levou a condenações não sentenciadas pelo
príncipe, demonstrando a usurpação do seu poder arbitral. Em seu espelho de príncipe,
Maquiavel argumenta se é melhor ser amado que temido, ou antes temido que amado. A
respeito dessa excessiva clemência ele argumenta que por:
excessiva piedade deixam acontecer as desordens das quais resultam assassínios ou
rapinagens: porque estes costumam prejudicar a comunidade inteira, enquanto aquelas
execuções que emanam do príncipe atingem apenas um indivíduo.4
Após o Duque lhe entregar seus poderes, Ângelo começa seu novo governo como
regente. E com um novo governo começam novos problemas, assim lembra Maquiavel.6
Da mesma forma como a extrema clemência pode vir a ser um problema, o extremo rigor
da lei pode vir a trazer injustiças entre os entes do principado. E isto acontece na regência
de Ângelo. A questão que pode ser considerado como “motor” da peça é a prisão de
Claudio.
Claudio foi preso por ter engravidado sua própria esposa, mas, por não estar
casado com ela “oficialmente”, sua prisão foi efetuada por razão legal, esse é o exemplo
onde o rigor da lei pode ser considerado tirânico: neste exemplo, a não arbitragem do
Maquiavel recomenda que cada príncipe deve querer ter tido como piedoso e não
como cruel, o príncipe, contudo, deve ser lento no crer e no agir, não se alarmar por si
mesmo e proceder de forma equilibrada, com prudência e humanidade, buscando evitar
que a excessiva confiança o torne incauto e a demasiada desconfiança o faça intolerável.8
No primeiro ato da peça, Claudio explica para Lúcio o motivo de sua prisão. Ele
afirma que em virtude de contrato legal ele havia tomado posse do leito de Julieta
(consumação carnal). Claudio chama Julieta de “esposa”, mas falta uma declaração
oficial, exigida pelas leis daquele ducado9. Claudio afirma que o casal não o fez para não
7
SHAKESPEARE, William. Medida por Medida (1604). In: MENDES, Oscar; MEDEIROS, F. Carlos
de Almeida Cunha (trad.). William Shakespeare: Obras Completas, vol. 2. Rio de Janeiro: José Aguilar,
1969. p.142.
8
MAQUIAVEL, O Príncipe. São Paulo: Pé da Letra, 2019. p.82
9
SHAKESPEARE, William. Medida por Medida (1604). In: MENDES, Oscar;
MEDEIROS, F. Carlos de Almeida Cunha (trad.). William Shakespeare: Obras
Completas, vol. 2. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1969. p.146
travar o aumento de um dote que está guardado com os pais de sua esposa. Nesse diálogo,
ele também afirma que seria uma relação escondida dos pais da mulher, até que a família
dela o aceitasse como marido10.
Algo parecido acontece na peça Romeu e Julieta12. Quando Romeu faz o pedido
de casamento e Julieta aceita, eles já estão casados pelos costumes da época. Ainda assim
Romeu e Julieta vão à igreja para oficializar o casamento diante de Deus, em seguida eles
já estão casados, mesmo que isso não seja requisitado como “documento oficial”, como
em Medida por Medida13. Prova desse casamento “social” é quando na cena seguinte após
o casamento, Teobaldo encontra Romeu e o provoca para um duelo ilegal, ainda assim,
Romeu já o considera seu parente, e o desarma com as palavras14. Mesmo que Teobaldo
não soubesse do casamento de Julieta com Romeu, Romeu já o considerava seu parente.15
No caso de Romeu e Julieta, vale lembrar que a peça se passa em Verona, mas que está
sendo encenada para um público inglês.
Claudio, em Medida por Medida já estava casado com Julieta, houve pedido e foi
aceito, houve consumação e houve gravidez, estes estão casados socialmente. Mas por
rigorismo legal, seu casamento não foi aceito e foi considerado crime, dessa forma, a letra
da lei anulou o poder decisório casuístico do soberano que tempera os efeitos das leis
diante de seus costumes locais, como é observado por Alexander Martins Vianna em sua
interpretação de Basilikon Doron, as leis oriundas de parlamentos/cortes no Antigo
Regime formavam um repertório casuístico para ação, cujo efeito seria temperado pelos
poderes arbitrais relativos e soberanos.16
10
Ibid., p.146
11
Ibid., 1604.
12
SHAKESPEARE, William. Romeu e Julieta (1599). In: MENDES, Oscar; MEDEIROS,
F. Carlos de Almeida Cunha (trad.). William Shakespeare: Obras Completas, vol. 1.
Rio de Janeiro: José Aguilar, 1969.
13
Ibid., 1604.
14
Id., 1599., p. 321
15
Id., 1599.
16
VIANNA, Alexander Martins. As figurações de Rei e a caracterização de ‘puritano’ e ‘papista’ em
Basilikon Doron. Topoi, Vol. 12, n.22, p.9, 2011.
Importante sublinhar que as leis, no contexto inglês de Basilikon Doron, o
parlamento deveria ser convocado somente quando havia assuntos de grande comoção
pública envolvendo costumes que se poderia convocar parlamento para debater reformas.
Em geral, assuntos menores, se resolviam com casuística régia, do próprio rei ou de seus
conselheiros.17 São as leis ou costumes locais fiscais que poderiam criar maior demanda
para convocação de parlamento, algo bem custoso para o convocados, e mesmo assim por
conta de demandas de guerra e defesa ou outras urgências, ou matérias que atingissem
diretamente a soberania, como foi o caso do divórcio de Henrique VIII e a ruptura com o
papado e sua soberania religiosa em território inglês em 1532.
Enfim, um príncipe deveria agir com equidade na prática das leis e dos costumes,
o que significa não ser “over precise” na sua execução, pois, caso contrário, poderia dar
um efeito tirânico para seu uso. Dessa forma, o poder soberano deve saber temperar os
efeitos das leis, considerando, em caso de punição, o tipo de delito, o tipo de dano
provocado, as circunstâncias, a idade, o sexo e a condição social do malfeitor.18
Maquiavel adverte à Lourenço II da escolha entre ser temido e ser amado, mas
que tendo que escolher, é melhor que escolha ser temido, segundo ele, os homens o
respeitam mais pelo temor do castigo do que pela clemência do príncipe. Entretanto, ele
afirma ser possível ser temido e não ser odiado. Um dos seus concelhos é destinar a outro
o motivo de ódio e mantendo pra si o de graça se assim necessitar, usando da bondade
conforme a necessidade.
Com efeito, Maquiavel reforça essa ideia a partir de outros exemplos que se
seguem. Ele afirma,
17
Ibid., p. 8-9.
18
Ibid., p.9.
19
MAQUIAVEL, O Príncipe. São Paulo: Pé da Letra, 2019. p.82-83.
temer de forma que, se não conquista o amor, fuja ao ódio, mesmo porque
podem muito bem coexistir o ser temido e o não ser odiado: isso conseguira
sempre que se abstenha de tomar os bens e as mulheres de seus súditos e,
em se lhe tornando necessário derramar o sangue de alguém, faça-o quando
existir conveniente justificativa e causa manifesta20
Tais preceitos parecem ter sido seguidos pelo Duque Vivencio que em certo ponto
da peça, ao estar junto Frei Tomás, confessa ser culpado das prisões desmedidas
professadas por Ângelo, a ideia de delegar seu poder seria uma forma de corrigir a
instabilidade que o próprio causou. Assim Ângelo poderia usar do poder soberano para
praticar as leis justamente como estão escritas sem que seu caráter tenha que se
comprometer. Ele afirma, culpado dando ao povo liberdade excessiva; seria tirania de
minha parte, se eu o atacasse e oprimisse por atos que eu lhe permiti, pois, dar livre
curso às más ações, enquanto castigo não tem o mesmo privilégio, é o mesmo que
encorajá-las.21
Assim como no caso de Cipião, não somente nos seus tempos, mas também na
memória de todos os fatos conhecidos, cujos exércitos se revoltaram na Espanha em
consequência de sua excessiva piedade, pois que havia concedido aos seus soldados mais
liberdades do que convinha à disciplina militar, assim sublinha Maquiavel, este caso
mencionado pelo letrado, é bem apropriado com o caso do Duque. Mesmo que em
circunstancias diferentes, a revolta se paira sobre os dois exemplos mencionados, a
possibilidade de revolta diante da clemência mal empregada dada aos dois grupos pode
gerar a possibilidade de dano ao senhor da graça. Percebendo a excessiva clemência dada
ao povo e querendo usar da crueldade sem que isso comprometa seu caráter, Vicêncio
atribuiu a Ângelo a tarefa de cumprir literalmente a lei escrita, assim como sugere
Maquiavel: atribuir aquilo que é odioso a outro, segundo ele, os príncipes devem atribuir
a outrem as coisas odiosas reservando para si aquelas de graça22.
Vicêncio revela também o motivo de ter deixado o trono: “quero visitar ao mesmo
tempo o príncipe e o povo, como um dos frades de vossa ordem. Eu vos peço pois que
me arranjeis um hábito da ordem e que me instruas a maneira de ser e como deve
conduzir-se um verdadeiro frade.”23 Assim, Vicêncio tenta exercer uma onisciência régia:
20
MAQUIAVEL, O Príncipe. São Paulo: Pé da Letra, 2019. p.83
21
SHAKESPEARE, William. Medida por Medida (1604). In: MENDES, Oscar;
MEDEIROS, F. Carlos de Almeida Cunha (trad.). William Shakespeare: Obras
Completas, vol. 2. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1969. p.148
22
Ibid., p.92
23
Ibid., p.148
uma vez que não é possível enquanto soberano, sua tática é parecer um frade para que
consiga observar de perto seus súditos e Ângelo.
Sobre o rigor de Ângelo, ele diz: “basta que saibais êste: Ângelo é preciso; está de
guarda contra a inveja; mal denota que o sangue corre por suas veias ou que seu apetite
prefira o pão e não a pedra 24 .” Essa frase específica denota o puritanismo cênico de
Ângelo, uma vez que seus princípios o façam seguir as leis com rigor. Quando o Duque
diz que Ângelo mal denota o sangue que corre por suas veias e que seu apetite prefere
pão e não pedra, ele está fazendo uma crítica à visão puritana de soberania da lei, por essa
frase ele o descreve como um humano, humano que como os outros está sujeito ao erro.
Próximo ao fim da peça encontramos o erro de Ângelo, e que por suas concepções
este se torna hipócrita ao tentar ser um ser perfeito. Ao determinar a sentença de Claudio
como já mencionada acima, Ângelo se torna um hipócrita devido ao passado com sua ex-
noiva que se passou pelo mesmo ocorrido. Ângelo não consumou carnalmente a sua
promessa com Mariana. Para coloca-lo na mesma posição de Cláudio, há a farsa da troca
da dama na cama, o que é plausível para uma peça que se propõe comédia. É o truque de
Vicêncio disfarçado de frei: colocar o “preciso” precisamente na mesma posição de
Cláudio, sem saber disso, o que cria um jogo de onisciência entre o duque cênico
disfarçado de frei e o público, dando o jogo cômico da cumplicidade. O público e
Vicêncio vão provando cenicamente a explicitação da inconsistência hipócrita do
rigorista Ângelo.
24
SHAKESPEARE, William. Medida por Medida (1604). In: MENDES, Oscar;
MEDEIROS, F. Carlos de Almeida Cunha (trad.). William Shakespeare: Obras
Completas, vol. 2. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1969. p.148
25
Ibid., p. 170.
Mariana revela ao Duque que não é mais virgem e que está casada com Ângelo
mesmo sem um casamento “oficial”, seguindo os costumes locais aos olhos ingleses:
Ao retornar como frade, ele menciona as leis que existem para todas as faltas, mas
que todas essas leis são ignoradas e que ninguém se importa com elas. Aqui o próprio
Duque reconhece que suas leis estavam escritas, mas que pelo excesso da clemência elas
estavam sendo ignoradas. Ângelo ordena que levem o frade para a prisão, mas antes disso
acontecer, o frade se revela como Duque.
26
SHAKESPEARE, William. Medida por Medida (1604). In: MENDES, Oscar;
MEDEIROS, F. Carlos de Almeida Cunha (trad.). William Shakespeare: Obras
Completas, vol. 2. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1969. p.190
27
Ibid., 194.
Vicêncio então diz a Ângelo que se ele tiver algo a dizer para que o defenda, que
diga rápido, pois não poderá mais depois que ele contar o que sabe. Ângelo diz:
Ó meu temido senhor! Seria mais culpado do que meu próprio crime, se
acreditasse poder continuar impenetrável quando sei que Vossa Graça,
como o poder divino, viu tudo o que fiz. Assim, bom príncipe, não
prolongueis mais o processo de minha vergonha, servindo minha confissão
de processo. Uma sentença imediata e logo a morte sem demora, é toda a
graça que eu imploro.28
Duque pergunta a Ângelo se ele foi noivo de Mariana e Ângelo diz que sim.
Então o Duque ordena que o frade Pedro os casasse e depois os trouxesse de volta. Ao
retornarem, o Duque determina a sentença de Ângelo,
A peça vai criando atenuantes cômicos, por meio da farsa, a qual tira sua história
sombria do campo da tragédia. Até o final, Isabel não sabe que o irmão não morreu. Como
a "morte de Cláudio" é pública, mas a "consumação na cama" é extraoficial, aos olhos de
Ângelo, Isabel, uma pessoa particular, seria enganada e silenciada pela sua condição de
soberano que estaria apenas cumprindo a lei sobre o caso de Cláudio.
Vicêncio, por sua vez, domina toda a situação: Isabel, Mariana e Ângelo não
sabem que Cláudio não morreu. Isso vai criando um suspense sobre a cena final, sobre
como tudo seria apaziguado.
28
SHAKESPEARE, William. Medida por Medida (1604). In: MENDES, Oscar;
MEDEIROS, F. Carlos de Almeida Cunha (trad.). William Shakespeare: Obras
Completas, vol. 2. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1969. p.197
29
Ibid., p. 198.
Como Cláudio não morreu, não houve crime de fato, mas crime intencionado, com
agravante: Ângelo achou que estaria fora das próprias leis por ter silenciado Isabel,
tirando vantagem particular do cargo público com uma promessa extraoficial não
cumprida: sangue de hímen pelo não derramamento de sangue de Cláudio. A aparência
legítima do poder soberano odioso seria preservada hipocritamente, se não fosse a farsa
arquitetada pelo "soberano oculto", Vicêncio.
Tudo isso vai criando plausibilidade para a cena em que Isabel e Mariana pedem
pela vida física de Ângelo, exposto e destruído em sua reputação, o que já era uma forma
de morte política e social.
Que vida política sobra para Ângelo depois de ser comido pela farsa do duque?
Ângelo é reduzido à pessoa particular, um biombo útil para um soberano arrependido de
ter errado, no passado, no uso da Clemência.
Conclusão
30
6 SHAKESPEARE, William. Medida por Medida (1604). In: MENDES, Oscar; MEDEIROS, F. Carlos
de Almeida Cunha (trad.). William Shakespeare: Obras Completas, vol. 2. Rio de Janeiro: José Aguilar,
1969. p.148
31
MAQUIAVEL, O Príncipe. São Paulo: Pé da Letra, 2019. p.92
saber dosar os efeitos das leis, para não ser tido como cruel e nem ser tido como
excessivamente indulgente, tentando encontrar equidade em suas deliberações.
BIBLIOGRAFIA: