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Crueldade e Piedade:

Práxis soberana no Antigo Regime

Felipe Pereira da Costa

Neste estudo busco explorar a dinâmica entre clemência, crueldade e equidade nas
expressões dramáticas de poderes soberanos em duas peças de Sheakespeare, segundo
traduções baseadas nas edições de 1599 e 1604. Pretendo utilizar de O príncipe (1513)
de Maquiavel como parâmetro de vocabulário político da cultura letrada europeia
ocidental dos séculos XV – XVII. E como obra preceptiva que, partindo de exemplos
antigos e modernos de chefes de estado, pretende instruir o poder soberano sobre a relação
casuística entre vício e virtude em suas ações públicas como mantenedor da paz civil.

Romeu e Julieta: Escalo

Na primeira cena, Escalo imputa pena de morte em caso de novas guerras de


vinganças particulares que firam a ordem civil, confrontos que já vinham acontecendo
entre duas famílias: Capuleto e os Montecchios. Um momento de ação do soberano
enquanto árbitro dessa sociedade é percebido no combate entre Teobaldo, Mercutio e
Romeu. Após Teobaldo assassinar Mercutio, parente próximo do príncipe, Romeu
assassina Teobaldo.1

Após a baderna estabelecida, o príncipe Escalo é informado da situação por


Benvólio, primo de Romeu, e então Escalo decide mitigar o efeito da lei devido aos
atenuantes da situação das testemunhas, que ele sabe serem parciais, ele exila Romeu de
Verona, condenando-o à morte social.

Outro momento em que o soberano se destaca é no trágico fim da peça, onde seu
também parente, Páris, é assassinado por Romeu em uma tumba dos Capuletos no
cemitério de Verona. Próximo ao fim da peça, Escalo admite que as mortes ocorridas
eram consequências de sua negligencia. As mortes ocorreram nas três partes, nos
membros de cada família e do Príncipe2.

1
SHAKESPEARE, William. Romeu e Julieta (1599). In: MENDES, Oscar; MEDEIROS,
F. Carlos de Almeida Cunha (trad.). William Shakespeare: Obras Completas, vol. 1.
Rio de Janeiro: José Aguilar, 1969. p. 321-323
2
SHAKESPEARE, William. Romeu e Julieta (1599). In: MENDES, Oscar; MEDEIROS,
Talvez se o príncipe tivesse exercido sua autoridade, suas atribuições soberanas
não teriam sido usurpadas pelas famílias. O soberano é o senhor da graça e da justiça, ele
tempera e arbitra o rigor da lei, seguindo os costumes do Antigo regime3. As mortes
encenadas na peça, demonstram o resultado da extrema clemência exercida pelo príncipe.
A não arbitragem casuística de cada evento levou a condenações não sentenciadas pelo
príncipe, demonstrando a usurpação do seu poder arbitral. Em seu espelho de príncipe,
Maquiavel argumenta se é melhor ser amado que temido, ou antes temido que amado. A
respeito dessa excessiva clemência ele argumenta que por:
excessiva piedade deixam acontecer as desordens das quais resultam assassínios ou
rapinagens: porque estes costumam prejudicar a comunidade inteira, enquanto aquelas
execuções que emanam do príncipe atingem apenas um indivíduo.4

Medida por Medida: Duque Vicêncio

Em Medida por Medida, o soberano do principado de Viena, o Duque Vicêncio,


é reconhecido por sua nobre indulgência. Por outro lado, Ângelo, o substituto do Duque,
é reconhecido como o homem de gelo, sem coração, puritano, que segue a lei literalmente.
Ângelo em certo momento da peça assume o principado na ausência do Duque. Ângelo
atuou como soberano temporário na ausência do Duque, exercendo toda sua autoridade.5

Após o Duque lhe entregar seus poderes, Ângelo começa seu novo governo como
regente. E com um novo governo começam novos problemas, assim lembra Maquiavel.6
Da mesma forma como a extrema clemência pode vir a ser um problema, o extremo rigor
da lei pode vir a trazer injustiças entre os entes do principado. E isto acontece na regência
de Ângelo. A questão que pode ser considerado como “motor” da peça é a prisão de
Claudio.

Claudio foi preso por ter engravidado sua própria esposa, mas, por não estar
casado com ela “oficialmente”, sua prisão foi efetuada por razão legal, esse é o exemplo
onde o rigor da lei pode ser considerado tirânico: neste exemplo, a não arbitragem do

F. Carlos de Almeida Cunha (trad.). William Shakespeare: Obras Completas, vol. 1.


Rio de Janeiro: José Aguilar, 1969. p. 352.
3
VIANNA, Alexander Martins, Antigo Regime no Brasil: Soberania, Justiça, Defesa, Graça e Fisco
(1643 – 1713.) Curitiba: Editora Prismas 2015. p.60-62
4
MAQUIAVEL, O Príncipe. São Paulo: Pé da Letra, 2019. p.82
5
SHAKESPEARE, William. Medida por Medida (1604). In: MENDES, Oscar; MEDEIROS, F. Carlos
de Almeida Cunha (trad.). William Shakespeare: Obras Completas, vol. 2. Rio de Janeiro: José Aguilar,
1969. p. 285-354
6
MAQUIAVEL, O Príncipe. São Paulo: Pé da Letra, 2019. p.19
soberano sobre a questão levou um homem à prisão sem nem considerar os costumes
culturais daquela sociedade. Ângelo pune firmemente de acordo com o rigor da lei,
mesmo após o Duque lhe dizer que teus lábios e teu coração serão em Viena os donos do
castigo e da clemência.7 O poder arbitral foi substituído pelos editos já instaurados, as
leis passaram a ser soberanas do principado, desconsiderando os costumes já existentes
ali. A peça faz diversas referências a Ângelo como semideus, o perfeito, o sem coração,
formas de criticar o puritano cênico enquanto estereótipo de rigorista hipócrita da lei. Essa
interpretação parece ser uma crítica ao puritanismo existente no período da Inglaterra
calvinista episcopal, em especial o período elisabetano.

Maquiavel recomenda que cada príncipe deve querer ter tido como piedoso e não
como cruel, o príncipe, contudo, deve ser lento no crer e no agir, não se alarmar por si
mesmo e proceder de forma equilibrada, com prudência e humanidade, buscando evitar
que a excessiva confiança o torne incauto e a demasiada desconfiança o faça intolerável.8

Dessa forma, Ângelo segue exatamente a letra da lei, parecendo ignorar os


conselhos de seu soberano e de Maquiavel, agindo com imprudência e crueldade em nome
da lei, esvaziando a soberania da temperança da graça ou mercê, ou seja a agência de
soberania (senhor da justiça) que tempera os efeitos de leis e costumes ponderando caso,
pessoas, posição, idade, gênero, gravidade e circunstância daquilo codificado como crime
ou delito no frio das leis, evitando os conselhos de Maquiavel no que lhe concerne sobre
querer ter tido como piedoso e os conselhos de seu soberano no que se refere sobre seu
coração ser donos do castigo e da clemência. Pensar o castigo e a clemência com coração
antes de suas deliberações.

Como o casamento não é oficial?

No primeiro ato da peça, Claudio explica para Lúcio o motivo de sua prisão. Ele
afirma que em virtude de contrato legal ele havia tomado posse do leito de Julieta
(consumação carnal). Claudio chama Julieta de “esposa”, mas falta uma declaração
oficial, exigida pelas leis daquele ducado9. Claudio afirma que o casal não o fez para não

7
SHAKESPEARE, William. Medida por Medida (1604). In: MENDES, Oscar; MEDEIROS, F. Carlos
de Almeida Cunha (trad.). William Shakespeare: Obras Completas, vol. 2. Rio de Janeiro: José Aguilar,
1969. p.142.
8
MAQUIAVEL, O Príncipe. São Paulo: Pé da Letra, 2019. p.82
9
SHAKESPEARE, William. Medida por Medida (1604). In: MENDES, Oscar;
MEDEIROS, F. Carlos de Almeida Cunha (trad.). William Shakespeare: Obras
Completas, vol. 2. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1969. p.146
travar o aumento de um dote que está guardado com os pais de sua esposa. Nesse diálogo,
ele também afirma que seria uma relação escondida dos pais da mulher, até que a família
dela o aceitasse como marido10.

Os costumes ingleses encenados nessa Viena11 católica e estereotípica consideram


que a promessa de casamento e sua aceitação já configura o noivado, e se a consumação
faz um filho(a), este casamento é ratificado socialmente.

Algo parecido acontece na peça Romeu e Julieta12. Quando Romeu faz o pedido
de casamento e Julieta aceita, eles já estão casados pelos costumes da época. Ainda assim
Romeu e Julieta vão à igreja para oficializar o casamento diante de Deus, em seguida eles
já estão casados, mesmo que isso não seja requisitado como “documento oficial”, como
em Medida por Medida13. Prova desse casamento “social” é quando na cena seguinte após
o casamento, Teobaldo encontra Romeu e o provoca para um duelo ilegal, ainda assim,
Romeu já o considera seu parente, e o desarma com as palavras14. Mesmo que Teobaldo
não soubesse do casamento de Julieta com Romeu, Romeu já o considerava seu parente.15
No caso de Romeu e Julieta, vale lembrar que a peça se passa em Verona, mas que está
sendo encenada para um público inglês.

Claudio, em Medida por Medida já estava casado com Julieta, houve pedido e foi
aceito, houve consumação e houve gravidez, estes estão casados socialmente. Mas por
rigorismo legal, seu casamento não foi aceito e foi considerado crime, dessa forma, a letra
da lei anulou o poder decisório casuístico do soberano que tempera os efeitos das leis
diante de seus costumes locais, como é observado por Alexander Martins Vianna em sua
interpretação de Basilikon Doron, as leis oriundas de parlamentos/cortes no Antigo
Regime formavam um repertório casuístico para ação, cujo efeito seria temperado pelos
poderes arbitrais relativos e soberanos.16

10
Ibid., p.146
11
Ibid., 1604.
12
SHAKESPEARE, William. Romeu e Julieta (1599). In: MENDES, Oscar; MEDEIROS,
F. Carlos de Almeida Cunha (trad.). William Shakespeare: Obras Completas, vol. 1.
Rio de Janeiro: José Aguilar, 1969.
13
Ibid., 1604.
14
Id., 1599., p. 321
15
Id., 1599.
16
VIANNA, Alexander Martins. As figurações de Rei e a caracterização de ‘puritano’ e ‘papista’ em
Basilikon Doron. Topoi, Vol. 12, n.22, p.9, 2011.
Importante sublinhar que as leis, no contexto inglês de Basilikon Doron, o
parlamento deveria ser convocado somente quando havia assuntos de grande comoção
pública envolvendo costumes que se poderia convocar parlamento para debater reformas.
Em geral, assuntos menores, se resolviam com casuística régia, do próprio rei ou de seus
conselheiros.17 São as leis ou costumes locais fiscais que poderiam criar maior demanda
para convocação de parlamento, algo bem custoso para o convocados, e mesmo assim por
conta de demandas de guerra e defesa ou outras urgências, ou matérias que atingissem
diretamente a soberania, como foi o caso do divórcio de Henrique VIII e a ruptura com o
papado e sua soberania religiosa em território inglês em 1532.

Enfim, um príncipe deveria agir com equidade na prática das leis e dos costumes,
o que significa não ser “over precise” na sua execução, pois, caso contrário, poderia dar
um efeito tirânico para seu uso. Dessa forma, o poder soberano deve saber temperar os
efeitos das leis, considerando, em caso de punição, o tipo de delito, o tipo de dano
provocado, as circunstâncias, a idade, o sexo e a condição social do malfeitor.18

Maquiavel adverte à Lourenço II da escolha entre ser temido e ser amado, mas
que tendo que escolher, é melhor que escolha ser temido, segundo ele, os homens o
respeitam mais pelo temor do castigo do que pela clemência do príncipe. Entretanto, ele
afirma ser possível ser temido e não ser odiado. Um dos seus concelhos é destinar a outro
o motivo de ódio e mantendo pra si o de graça se assim necessitar, usando da bondade
conforme a necessidade.

Segundo ele, os homens geralmente, que são ingratos, volúveis simuladores,


tementes do perigo, ambiciosos de ganho; e, enquanto lhes fizeres bem, são todos seus
[...] como se disse acima, a necessidade esteja longe de ti; quando está se avizinha,
porém, revoltam-se19.

Com efeito, Maquiavel reforça essa ideia a partir de outros exemplos que se
seguem. Ele afirma,

Os homens têm menos escrúpulo em ofender a alguém que se faça amar do


que a quem se faça temer, posto que a amizade é mantida por um vínculo
de obrigação que, por serem os homens maus, é quebrado em cada
oportunidade que a eles convenha mas o temor é mantido pelo receio de
castigo que jamais se abandona [...] deve o príncipe, não obstante, fazer-se

17
Ibid., p. 8-9.
18
Ibid., p.9.
19
MAQUIAVEL, O Príncipe. São Paulo: Pé da Letra, 2019. p.82-83.
temer de forma que, se não conquista o amor, fuja ao ódio, mesmo porque
podem muito bem coexistir o ser temido e o não ser odiado: isso conseguira
sempre que se abstenha de tomar os bens e as mulheres de seus súditos e,
em se lhe tornando necessário derramar o sangue de alguém, faça-o quando
existir conveniente justificativa e causa manifesta20

Tais preceitos parecem ter sido seguidos pelo Duque Vivencio que em certo ponto
da peça, ao estar junto Frei Tomás, confessa ser culpado das prisões desmedidas
professadas por Ângelo, a ideia de delegar seu poder seria uma forma de corrigir a
instabilidade que o próprio causou. Assim Ângelo poderia usar do poder soberano para
praticar as leis justamente como estão escritas sem que seu caráter tenha que se
comprometer. Ele afirma, culpado dando ao povo liberdade excessiva; seria tirania de
minha parte, se eu o atacasse e oprimisse por atos que eu lhe permiti, pois, dar livre
curso às más ações, enquanto castigo não tem o mesmo privilégio, é o mesmo que
encorajá-las.21

Assim como no caso de Cipião, não somente nos seus tempos, mas também na
memória de todos os fatos conhecidos, cujos exércitos se revoltaram na Espanha em
consequência de sua excessiva piedade, pois que havia concedido aos seus soldados mais
liberdades do que convinha à disciplina militar, assim sublinha Maquiavel, este caso
mencionado pelo letrado, é bem apropriado com o caso do Duque. Mesmo que em
circunstancias diferentes, a revolta se paira sobre os dois exemplos mencionados, a
possibilidade de revolta diante da clemência mal empregada dada aos dois grupos pode
gerar a possibilidade de dano ao senhor da graça. Percebendo a excessiva clemência dada
ao povo e querendo usar da crueldade sem que isso comprometa seu caráter, Vicêncio
atribuiu a Ângelo a tarefa de cumprir literalmente a lei escrita, assim como sugere
Maquiavel: atribuir aquilo que é odioso a outro, segundo ele, os príncipes devem atribuir
a outrem as coisas odiosas reservando para si aquelas de graça22.

Vicêncio revela também o motivo de ter deixado o trono: “quero visitar ao mesmo
tempo o príncipe e o povo, como um dos frades de vossa ordem. Eu vos peço pois que
me arranjeis um hábito da ordem e que me instruas a maneira de ser e como deve
conduzir-se um verdadeiro frade.”23 Assim, Vicêncio tenta exercer uma onisciência régia:

20
MAQUIAVEL, O Príncipe. São Paulo: Pé da Letra, 2019. p.83
21
SHAKESPEARE, William. Medida por Medida (1604). In: MENDES, Oscar;
MEDEIROS, F. Carlos de Almeida Cunha (trad.). William Shakespeare: Obras
Completas, vol. 2. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1969. p.148
22
Ibid., p.92
23
Ibid., p.148
uma vez que não é possível enquanto soberano, sua tática é parecer um frade para que
consiga observar de perto seus súditos e Ângelo.

Sobre o rigor de Ângelo, ele diz: “basta que saibais êste: Ângelo é preciso; está de
guarda contra a inveja; mal denota que o sangue corre por suas veias ou que seu apetite
prefira o pão e não a pedra 24 .” Essa frase específica denota o puritanismo cênico de
Ângelo, uma vez que seus princípios o façam seguir as leis com rigor. Quando o Duque
diz que Ângelo mal denota o sangue que corre por suas veias e que seu apetite prefere
pão e não pedra, ele está fazendo uma crítica à visão puritana de soberania da lei, por essa
frase ele o descreve como um humano, humano que como os outros está sujeito ao erro.

Próximo ao fim da peça encontramos o erro de Ângelo, e que por suas concepções
este se torna hipócrita ao tentar ser um ser perfeito. Ao determinar a sentença de Claudio
como já mencionada acima, Ângelo se torna um hipócrita devido ao passado com sua ex-
noiva que se passou pelo mesmo ocorrido. Ângelo não consumou carnalmente a sua
promessa com Mariana. Para coloca-lo na mesma posição de Cláudio, há a farsa da troca
da dama na cama, o que é plausível para uma peça que se propõe comédia. É o truque de
Vicêncio disfarçado de frei: colocar o “preciso” precisamente na mesma posição de
Cláudio, sem saber disso, o que cria um jogo de onisciência entre o duque cênico
disfarçado de frei e o público, dando o jogo cômico da cumplicidade. O público e
Vicêncio vão provando cenicamente a explicitação da inconsistência hipócrita do
rigorista Ângelo.

Em um diálogo entre o Duque e Isabel, irmã de Claudio, é explicado sobre a antiga


noiva de Ângelo, Mariana25. Mariana era noiva por juramento com casamento e festa
marcada, mas entre o intervalo do contrato e as festas nupciais, seu irmão Frederico
pereceu no mar e o dote da irmã desapareceu junto com o navio. Com isso, Mariana
perdeu seu irmão, o dote, e seu marido. Segundo o Duque, Ângelo então desfez seu
juramento alegando ter descoberto manchas na honra da noiva, mas na verdade essas
“manchas” seriam apenas um álibi para fugir da obrigação costumeira. Daí que na farsa
da cama Mariana deixa de ser virgem, pois iludido, Ângelo pensou ter Isabel e não
Mariana.

24
SHAKESPEARE, William. Medida por Medida (1604). In: MENDES, Oscar;
MEDEIROS, F. Carlos de Almeida Cunha (trad.). William Shakespeare: Obras
Completas, vol. 2. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1969. p.148
25
Ibid., p. 170.
Mariana revela ao Duque que não é mais virgem e que está casada com Ângelo
mesmo sem um casamento “oficial”, seguindo os costumes locais aos olhos ingleses:

Mariana - Perdoai-me, meu senhor, só mostrarei meu rosto quando receber


permissão do meu esposo [...] meu senhor, confesso que nunca me casei e
confesso, além disto, que já não sou mais virgem. Conheci meu marido,
mas meu marido ignora que haja jamais me conhecido [...] justamente, meu
senhor, e êsse marido é Ângelo que acredito estar certo de que jamais
conheceu meu corpo, pensando que possui o de Isabel26.

Neste momento, Mariana relata astucioso plano do Duque de realizar a


consumação do casamento dos antigos noivos que somente em juramento haviam se
casado. Tal plano se fez possível devido ao desumano Ângelo que tentou convencer a
casta Isabel de trocar seu corpo purificado pela liberdade de seu irmão.

Mariana – meu marido me ordena. Posso agora tirar a máscara. (levanta o


véu). Eis aqui este rosto, cruel Ângelo, que juravas outrora ser digno de teu
olhar; aqui está a mão que um contrato solene ligou estreitamente à tua;
este é o corpo que satisfez o compromisso de Isabel, tendo ocupado o lugar
de sua presença imaginária no pavilhão do jardim [...] nobre príncipe, tão
certo quanto a luz vem do céu e as palavras de novo alento, quanto a razão
esteja na verdade, a verdade na virtude, estou noiva deste homem por laços
tão fortes quanto as palavras possam dar aos juramentos e, meu bom
senhor, só na ultima têrça-feira, durante a noite, no pavilhão do jardim da
casa dele, conheceu-me como mulher27

Com efeito, as confissões de Mariana esclarecem a questão de estar casada pelo


juramento, mas que teve sua consumação retardada pelo tempo e que somente por
participar do Duque conseguiu consumar seu casamento. Após declarar estar noiva de
Ângelo, o Duque finge não acreditar na mesma e deixa a cargo de Ângelo castigar
Mariana pelas calúnias que ela havia proferido. O Duque então ordena que sejam reunidas
as mulheres que participaram das “injúrias” contra Ângelo e o frade Ludovico (o Duque
enquanto frade) então sai de cena até retornar como frade.

Ao retornar como frade, ele menciona as leis que existem para todas as faltas, mas
que todas essas leis são ignoradas e que ninguém se importa com elas. Aqui o próprio
Duque reconhece que suas leis estavam escritas, mas que pelo excesso da clemência elas
estavam sendo ignoradas. Ângelo ordena que levem o frade para a prisão, mas antes disso
acontecer, o frade se revela como Duque.

26
SHAKESPEARE, William. Medida por Medida (1604). In: MENDES, Oscar;
MEDEIROS, F. Carlos de Almeida Cunha (trad.). William Shakespeare: Obras
Completas, vol. 2. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1969. p.190
27
Ibid., 194.
Vicêncio então diz a Ângelo que se ele tiver algo a dizer para que o defenda, que
diga rápido, pois não poderá mais depois que ele contar o que sabe. Ângelo diz:

Ó meu temido senhor! Seria mais culpado do que meu próprio crime, se
acreditasse poder continuar impenetrável quando sei que Vossa Graça,
como o poder divino, viu tudo o que fiz. Assim, bom príncipe, não
prolongueis mais o processo de minha vergonha, servindo minha confissão
de processo. Uma sentença imediata e logo a morte sem demora, é toda a
graça que eu imploro.28

Duque pergunta a Ângelo se ele foi noivo de Mariana e Ângelo diz que sim.
Então o Duque ordena que o frade Pedro os casasse e depois os trouxesse de volta. Ao
retornarem, o Duque determina a sentença de Ângelo,

Quanto a esse recém-casado que daqui se aproxima, cuja imaginação


lúbrica ultrajou vossa honra, tão bem defendida, podeis perdoá-lo por amor
de Mariana; mas como condenou vosso irmão à morte [..] a própria
clemência da lei nos grita da maneira mais ruidosa pela própria boca
culpado: “Um Ângelo por um Cláudio; a morte pela morte” Rapidez em
troca de rapidez, lentidão por lentidão, justiça por justiça, e sempre Medida
por Medida. Sendo assim, Ângelo, em razão de vosso crime manifesto que
podeis negar e que de nada vos adiantará, nós vos condenamos a morrer no
mesmo lugar onde Cláudio se inclinou para ser degolado. Exigimos a
mesma pressa na execução, quanto tu exigiste na de Cláudio29

Nesse diálogo, o Duque tenta demonstrar o que há de acontecer se seguisse


friamente a lei, entretanto, no desenrolar da peça, Claudio não é morto por intervenção
do Duque, tendo-se ideia de que mesmo após Isabel aceitar a indecente proposta de
Ângelo, ele ainda assim não cancelou a execução de Claudio, descumprindo sua promessa
para com Isabel.

A peça vai criando atenuantes cômicos, por meio da farsa, a qual tira sua história
sombria do campo da tragédia. Até o final, Isabel não sabe que o irmão não morreu. Como
a "morte de Cláudio" é pública, mas a "consumação na cama" é extraoficial, aos olhos de
Ângelo, Isabel, uma pessoa particular, seria enganada e silenciada pela sua condição de
soberano que estaria apenas cumprindo a lei sobre o caso de Cláudio.

Vicêncio, por sua vez, domina toda a situação: Isabel, Mariana e Ângelo não
sabem que Cláudio não morreu. Isso vai criando um suspense sobre a cena final, sobre
como tudo seria apaziguado.

28
SHAKESPEARE, William. Medida por Medida (1604). In: MENDES, Oscar;
MEDEIROS, F. Carlos de Almeida Cunha (trad.). William Shakespeare: Obras
Completas, vol. 2. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1969. p.197
29
Ibid., p. 198.
Como Cláudio não morreu, não houve crime de fato, mas crime intencionado, com
agravante: Ângelo achou que estaria fora das próprias leis por ter silenciado Isabel,
tirando vantagem particular do cargo público com uma promessa extraoficial não
cumprida: sangue de hímen pelo não derramamento de sangue de Cláudio. A aparência
legítima do poder soberano odioso seria preservada hipocritamente, se não fosse a farsa
arquitetada pelo "soberano oculto", Vicêncio.

Tudo isso vai criando plausibilidade para a cena em que Isabel e Mariana pedem
pela vida física de Ângelo, exposto e destruído em sua reputação, o que já era uma forma
de morte política e social.

Que vida política sobra para Ângelo depois de ser comido pela farsa do duque?
Ângelo é reduzido à pessoa particular, um biombo útil para um soberano arrependido de
ter errado, no passado, no uso da Clemência.

Conclusão

As expressões dramáticas dos poderes soberanos nas obras de William


Shakespeare condizem com as ideias políticas e percepção de soberania que cotejamos a
partir de "O Príncipe" de Maquiavel e do que percebemos do pensamento teológico-
político de James I que cotejamos do artigo supracitado.

No caso de Escalo, em Romeu e Julieta a diluição do poder régio sobre seus


súditos levou a desordens como previu Maquiavel, quando da excessiva clemência e do
pouco castigo, o príncipe tem seu poder diminuído perante as casas nobres de seu Estado.

Em Medida por Medida, o próprio soberano confessa já ter perdido o controle de


seus súditos devido a excessiva clemência e que por isso atribuiu a Ângelo seus poderes,
afim de usá-lo como objeto da ira de seus súditos30, como também recomenda Maquiavel,
destinando a outro o motivo de ódio e preservando para si o motivo de graça.31

Dessa forma, é possível enxergar a dinâmica da excessiva clemência e da


excessiva crueldade nas expressões dramáticas de Shakespeare. Os dois extremos quando
empregados podem trazer danos ao soberano e ao principado. Portanto, o soberano deve

30
6 SHAKESPEARE, William. Medida por Medida (1604). In: MENDES, Oscar; MEDEIROS, F. Carlos
de Almeida Cunha (trad.). William Shakespeare: Obras Completas, vol. 2. Rio de Janeiro: José Aguilar,
1969. p.148
31
MAQUIAVEL, O Príncipe. São Paulo: Pé da Letra, 2019. p.92
saber dosar os efeitos das leis, para não ser tido como cruel e nem ser tido como
excessivamente indulgente, tentando encontrar equidade em suas deliberações.

BIBLIOGRAFIA:

MAQUIAVEL, O Príncipe. São Paulo: Pé da Letra, 2019. p.83

SHAKESPEARE, William. Medida por Medida (1604). In: MENDES, Oscar;


MEDEIROS, F. Carlos de Almeida Cunha (trad.). William Shakespeare: Obras
Completas, vol. 2. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1969.

SHAKESPEARE, William. Romeu e Julieta (1599). In: MENDES, Oscar; MEDEIROS,

F. Carlos de Almeida Cunha (trad.). William Shakespeare: Obras Completas, vol. 1.

Rio de Janeiro: José Aguilar, 1969. p.285-354

VIANNA, Alexander Martins. As figurações de Rei e a caracterização de ‘puritano’ e


‘papista’ em Basilikon Doron. Topoi, Vol. 12, n.22, p.9, 2011.
VIANNA, Alexander Martins. Antigo Regime no Brasil: Soberania, Justiça, Defesa,
Graça e Fisco, 1643-1713. Curitiba: Prismas, 2015

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