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CHAUÍ, Marilena.

Espinosa, uma filosofia da liberdade

No século XVII, “Imaginação” não significa fantasia criadora, mas sensação, percepção e memória. Em
outras palavras, imaginação é o conhecimento sensorial que produz imagens das coisas em nossos sentidos
e em nosso cérebro. Com essas imagens representamos as coisas externas e supomos conhecê-las, mas, na
realidade, estamos conhecendo apenas o efeito interno (as imagens) das coisas exteriores. A imagem é o
que se passa em nós, é algo subjetivo e não nos dá a natureza verdadeira da própria coisa externa. (p.34)

Imaginar é conhecer as imagens das coisas e, por meio delas, conhecer uma imagem de nós mesmos. A
imagem é um efeito da ação de causas externas sobre nós: coisas luminosas produzem em nós imagens
visuais; coisas sonoras, imagens auditivas; a textura das coisas nos oferece imagens táteis; sabor e cheiro
são imagens de coisas em nosso paladar e olfato. Assim, a imagem não nos oferece a própria coisa tal como
é em si mesma e sim o que julgamos que ela seja pelo efeito que produz em nós. A imagem é um
acontecimento subjetivo causado pelo objeto externo que afeta nossos órgãos dos sentidos e nosso
cérebro. Por isso indica o que se passa em nós e não a natureza verdadeira da coisa externa. (p.37)

A ideia, ao contrário, é um ato de nosso intelecto que apreende a natureza intima ou essência de um ser
porque conhece sua causa e os nexos que a ligam necessariamente a outras ideias. A imagem depende da
ação externa das coisas sobre nosso corpo. A ideia depende exclusivamente da ação interna de nosso
próprio intelecto. [...] Eis por que Espinosa dirá que a felicidade e a infelicidade dependem da qualidade do
ser ao qual nos unimos por amor, porque há entre o desejar e o desejado um vínculo intrínseco. (p.38)

Em outras palavras, a imagem é verdadeira enquanto imagem e é falsa enquanto ideia. (p.39)

Conhecer é conhecer pela causa...

Os modos finitos corporais (corpos) são indivíduos constituídos por relações de movimento e repouso.
(p.51)

A ética espinosiana busca o livre exercício do corpo, da alma e da razão. Sua viga mestra é a ideia de que o
homem é parte imanente da Natureza, não sendo um império num império – ou um poder rival ao da
Natureza – nem por suas paixões e ações, um agente perturbador da ordem natural, mas uma parte dela
que possui a peculiaridade de não ser apenas parte e sim de tomar parte na atividade de todo o universo.
(p.53)

O homem, portanto, contrariamente ao que imaginara toda a tradição, não é uma substancia composta de
duas outras, mas é um modo singular finito da Substancia, isto é, efeito imanente da atividade dos
atributos substanciais. [...] O que é o corpo humano? Um modo finito do atributo Extensão, isto é, um
indivíduo extremamente complexo constituído por uma diversidade e pluralidade de corpúsculos duros,
moles e fluidos relacionados entre si pela harmonia e equilíbrio de suas proporções de movimento e
repouso. É uma unidade estruturada: não é um agregado de partes, mas unidade de conjunto e equilíbrio
de ações internas interligadas de órgãos, portanto é um individuo.

O corpo é relacional: é constituído por relações internas entre seus órgãos, por relações externas com
outros corpos e por afecções, isto é, pela capacidade de afetar outros corpos e ser por eles afetado sem se
destruir, regenerando-se com eles e os regenerando. O corpo, sistema complexo de movimentos internos e
externos, pressupõe e põe a intercorporeidade como originária. (p.54)

“A alma humana é apta a perceber um grande número de coisas e é tanto mais apta quanto mais seu corpo
estiver disposto de um grande numero de maneiras”. (p.59)

Imaginar não é uma atividade da alma, mas do corpo. Afetando outros corpos e sendo por eles afetado de
inúmeras maneiras, o corpo cria imagens de si a partir do modo como é afetado pelos demais corpos”.
(p.61)

[...] o corpo, além de imaginante, é memorioso, fazendo com que nossa alma tome como presentes
imagens do que está ausente e com elas represente o tempo, isto é, sequencias associativas e
generalizadoras de imagens instantâneas gravadas em nossa carne. (...) a imagem, presente ou passada,
não é verdadeira nem falsa: é uma vivencia corporal. (p.62)

O interesse do corpo e da alma é a existência e tudo quanto contribua para mantê-la. (...) Os seres são
indivíduos quando possuem conatus, isto é, quando possuem uma força interna para permanecer na
existência conservando seu estado. (p.63)

Deixar-se habitar pela exterioridade é alienação.

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