Você está na página 1de 4

Fonte: https://jacobin.com.

br/2020/08/por-que-os-conservadores-nao-conseguem-
rebater-os-argumentos-de-marx/

Por que os conservadores não


conseguem rebater os argumentos de
Marx
31/08/2020
Por
Matt McManus
Tradução
Caroline Freire

Comentaristas conservadores tendem a fazer mais caricaturas das obras e


pensamentos de Karl Marx do que responde-las de maneira séria. Por
quê? Porque as sacadas incisivas de Marx expõem as profundas
inconsistências nas suas queridas doutrinas de direita.

Karl Marx insistia que devíamos compreender o quanto o capitalismo liberal


representava uma ruptura radical com o passado.

Se você quer enfurecer um intelectual conservador, experimente afirmar que as teorias de Karl
Marx têm algum valor. Ou pior, argumente que as ideias de um homem que escreveu vários
livros sobre os mais diversos assuntos, de filosofia alemã às premissas da economia política
clássica, teriam mais nuances que “os ricos são maus, os pobres são bons”. 
Mesmo décadas após o fim da Guerra Fria, muitos comentaristas de direita continuam não se
dando ao trabalho de oferecer refutações aos argumentos de Marx que tenham alguma
consistência. Jordan Peterson já descreveu o marxismo como uma “teoria do mal” e fez seu
nome criticando um certo “marxismo pós-moderno”, mesmo admitindo durante um debate que
não havia lido muito mais que o Manifesto Comunista.
Em sua última obra, Don’t Burn This Book (“Não queime este livro”), Dave Rubin compara o
socialismo ao nazismo e ao fascismo, alegando que Benito Mussolini fora “criado com O Capital,
de Marx” –  ignorando todos os esforços do líder fascista para aprisionar e silenciar marxistas e
outros “inimigos da nação”. Mais recentemente, o livro How To Destroy America in Three Easy
Steps (“Como destruir os EUA em três passos simples”), de Ben Shapiro, recicla antigos clichês
sobre o “absurdo” da teoria do valor-trabalho de Marx, sem perceber a ironia de elogiar John
Locke por ele “apontar corretamente como a propriedade é uma mera extensão do trabalho;
quando o homem altera o estado natural de um objeto, misturando com o seu trabalho, ele
agrega um pouco de si a este objeto e, consequentemente, faz dele sua propriedade”.
Essa tendência de criticar Marx sem, de fato, abordar suas ideias é bastante notável,
principalmente se pensarmos que Peterson, Rubin e Shapiro estão sempre repetindo feito
papagaios clichês sobre a importância do trabalho árduo e do debate acalorado. Uma maneira
fácil de impugná-los seria simplesmente insistir em que eles não façam jus ao próprio discurso,
entre uma apresentação e outra em canais conservadores.
Mas pretendo adotar uma abordagem um pouco diferente e sugerir que os conservadores evitam
lidar com a obra de Marx de forma séria não só porque ele criticava o capitalismo, lançava
polêmicas sobre religião ou por que ele suspeitava da hierarquia das classes, mas porque sua
obra expôs profundas contradições das amadas doutrinas conservadoras. 
Dois exemplos dos mais evidentes: a inclinação conservadora para elogiar o capitalismo e, ao
mesmo tempo, lamentar o declínio das tradições; e a tendência de invocar uma “natureza
humana” imutável para açoitar críticos do capitalismo e, ao mesmo tempo, afirmar que os
indivíduos devem ser compreendidos de acordo com as tradições e comunidades em seu
entorno.

A transformação do mundo segundo Marx 


A sociedade burguesa, com suas relações de produção e de troca, o regime burguês de propriedade, a sociedade
burguesa moderna, que conjurou gigantescos meios de produção e de troca, assemelha-se ao feiticeiro que já
não pode controlar os poderes infernais que ele mesmo invocou…
– Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto Comunista (tradução de Álvaro Pina – Ed. Boitempo)
Os primeiros defensores do capitalismo liberal, como John Locke, muitas vezes usavam
argumentos a-históricos. Eles afirmavam que os tipos de indivíduos e relações de mercado que
estavam emergindo com o advento da modernidade, estiveram sempre presentes e refletiam
verdades atemporais sobre o mundo e a natureza humana. Foi somente com Immanuel Kant e,
mais tarde, com Friedrich Hegel, que os teóricos começaram a pensar criticamente sobre as
novidades radicais que representavam as sociedades capitalistas liberais.
Para muitos desses pensadores, a novidade era motivo de comemoração. Em seu ensaio “O
que é o Iluminismo?“, publicado em 1784, Kant escreveu que a humanidade estava despertando
de sua “imaturidade auto-imposta” e que finalmente enfrentava o mundo como seres livres e
racionais. Hegel era mais crítico, argumentando que o individualismo revolucionário, emergente
no século XVIII, precisava ser mediado por fortes instituições e relações sociais significativas
(mais tarde, hegelianos de direita, como Roger Scruton, dariam um brilho conservador a essa
proposição).
Marx compartilhava tanto da euforia quanto da ansiedade trazidas pela modernidade capitalista
liberal. Desde seus dias como jovem hegeliano, ele elogiava a emergente ordem capitalista
liberal como uma enorme melhoria em relação aos antigos sistemas autoritários que a
precederam, mesmo acreditando que ela estivesse destinada a ser substituída por outra ainda
mais elevada. Mas Marx também insistia que devíamos compreender o quanto o capitalismo
liberal representava uma ruptura radical com o passado.
Escrevendo em plena era de imperialismo europeu e Revolução Industrial, Marx observou o
quanto as antigas comunidades rurais estavam sendo destruídas à medida que as pessoas
migravam para as cidades, e descreveu o capitalismo como um “mercado em constante
expansão”, que espalhava a burguesia “por toda a superfície do globo”. Criticou a nova cultura
de “fetichização da mercadoria” que começava a substituir a fidelidade religiosa de outrora,
subvertendo a linguagem da fé com o objetivo de sublinhar a nova reverência da sociedade ao
dinheiro.
Embora Marx tenha sempre considerado esses acontecimentos emancipatórios em muitos
aspectos, insistia que essas mudanças também eram extremamente danosas, dissolvendo
“relações fixas e cristalizadas” – violentamente, se necessário – para reconstruir o mundo à
imagem do capital. O capitalismo era um modo de produção revolucionário, que transformava
constantemente todos os aspectos da sociedade de maneiras inesperadas e, às vezes,
assustadoras. Era o inimigo da tradição.
Os primeiros pensadores conservadores eram muito mais sensíveis às convulsões do
capitalismo do que os muitos outros que vieram depois – eles reclamavam sobre como o sistema
estava colocando o mundo de ponta-cabeça e impondo uma cultura burguesa vulgar, focada no
consumo e na opulência, ao invés de procurar enaltecer virtudes transcendentais ou heroicas.
Mas os autores recentes, como Shapiro, tendem a ignorar os problemas: mesmo olhando
horrorizados para um mundo em que a urbanização, a secularização e o consumo desenfreado
estão na ordem do dia, eles alegam que todas as críticas ao capitalismo seriam utópicas ou
“marxistas”.
Se tivessem se dado ao trabalho de ler e realmente entender Marx, não ficariam tão surpresos.
Um ponto essencial para Marx era que não dá para lamentar o declínio da tradição e, ao mesmo
tempo, defender um sistema econômico que faz com que “tudo que é sólido se desmanchar no
ar”. Culpar as elites culturais e acadêmicas pelas mudanças sociais é o mesmo que culpar a
fumaça pelo incêndio. 

História e natureza humana 


Outro argumento padrão dos conservadores, ao criticar Marx, é simplesmente descartar a sua
“teoria da natureza humana”: ou Marx seria perigosamente ingênuo por não enxergar o lado
maldoso e egoísta do ser humano – o que demonstraria por que sua sociedade ideal e sem
classes teria fracassado na prática – ou então ele acreditava que não havia uma natureza
humana, mas que seríamos seres infinitamente plásticos, passíveis de sermos moldados e
remoldados por um Estado suficientemente forte, racional e que estivesse comprometido com
um planejamento utópico.
Ambas as afirmações são absurdas. Desde suas primeiras análises sobre como a natureza
determina nosso “ser-espécie” até seus estudos psicológicos tardios sobre como o desejo por
reconhecimento e status potencializa o “fetichismo da mercadoria”, Marx nunca foi utópico ou
ingênuo sobre a propensão humana para a hipocrisia, a crueldade e o hedonismo. Onde Marx
era mais inovador foi na demonstração de como as condições históricas e econômicas ao nosso
redor desempenham um papel fundamental na formação de nossos padrões de comportamento
e de nossas identidades. 
Isso não significa que somos determinados apenas pelo contexto histórico, mas que as
condições históricas e econômicas sob as quais nascemos fornecem o ponto de partida com que
todos temos que lidar. Como afirmou em O 18 Brumário de Luís Bonaparte, “os homens fazem a
sua própria história, mas não como querem, não sob circunstâncias de sua escolha, mas sob
circunstâncias pré-existentes, legadas e transmitidas pelo passado.”
Na verdade, parte desse argumento deveria ter apelo para muitos conservadores. De Edmund
Burke a Roger Scruton, uma reclamação comum da direita é que os radicais retratariam os
humanos como seres a-históricos, que precisariam ser compreendidos puramente como
indivíduos atomizados. Ao invés disso, eles enfatizam como todo ser humano está embutido em
camadas de comunidade, que possuem tradições consagradas e morais moldadas pela história
e por instituições como igrejas, templos, nações e até mesmo a sempre opaca “civilização
ocidental”. Essas “pequenas brigadas” afetam nossas crenças e a percepção que temos de nós
mesmos.
Os conservadores costumam dizer que ignorar a importância dessas comunidades históricas só
pode levar ao desastre. Marx certamente iria concordar. Mas acrescentaria que também
estamos inseridos em um sistema econômico específico e historicamente determinado, que tem
um papel profundo na formação de quem somos e no que acreditamos.
É nesse ponto que muitos dos mesmos conservadores que insistem em analisar as
comunidades e o comportamento humano através de uma ótica histórica e institucional, acabam
se tornando a-históricos. Eles insistem que o capitalismo simplesmente flui da natureza humana,
que ele sempre esteve por aí e que, portanto, sempre vai existir – e que qualquer esforço para
mudar isso só poderia levar ao desastre, tão certo quanto se exigíssemos que peixes
pedalassem em bicicletas. Essa trecho de Ben Shapiro é representativo:
Não, Marx não estava certo. Mas a esquerda jamais vai abandoná-lo porque ele ofereceu a única verdadeira
alternativa à visão religiosa de natureza humana – de que o homem não é uma página em branco, nem um anjo
esperando redenção, mas uma criatura imperfeita capaz de grandes feitos. Mas alcançar estes grande feitos
exige trabalho árduo; mudar a nós mesmos em um nível individual dá muito trabalho. Falar sobre os males da
sociedade em geral – isso certamente é bem mais fácil.
Mas o capitalismo não é mais ou menos natural do que qualquer outro sistema historicamente
contingente, incluindo os sistemas religiosos. O que nasce na História pode também ser alterado
ao longo da História. E agora que estamos afundando em outra recessão global, parece uma
boa hora para promover grandes mudanças.

Marx merece críticos melhores


Marx dizia que os filósofos sempre interpretaram o mundo, mas que o objetivo é mudá-lo.
Ironicamente, as interpretações de Marx – boas e ruins – ajudaram, de fato, a mudar o mundo,
influenciando tanto movimentos revolucionários quanto tiranos. Isso prova o poder de sua
personalidade intelectual e o alcance analítico da teoria marxista. Compreender corretamente os
fundamentos do marxismo é fundamental para qualquer debate sério sobre o futuro do
capitalismo e os antagonismos políticos que dão forma à nossa época.
Aos seus oponentes, isso também é um pré-requisito se pretendem fazer alguma crítica efetiva.
Muitos comentaristas da direita parecem decididos a varrer Marx do caminho o mais rápido
possível, ignorando ou minimizando suas nuances e especificidades. Também deixam
intencionalmente de lado as lições do marxismo que abalam as seus próprios e sagrados
clichês. 
Marx merece críticas melhores. E nós na esquerda que nos importamos com o seu complexo
legado deveríamos fazer de tudo para que ele as receba.  

SOBRE O AUTOR

Matt McManus é professor visitante de política no Whitman College. Ele é o autor de "The Rise of
Post-Modern Conservatism and Myth" e co-autor de "Mayhem: A Leftist Critique of Jordan
Peterson".

Você também pode gostar