Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Sou psicólogo e linguista, com formação em Análise de Discurso. Por essa condição sou
constantemente perguntado sobre alguma explicação plausível para o comportamento
assustador desses grupos de pessoas que hoje acampam na frente de quartéis, sem aceitar o
resultado das eleições, com condutas que, de fora, parecem loucura. Penso que podemos
buscar explicações a partir de vários vieses. Mas vamos fazer o recorte a partir desses dois
lugares a partir dos quais me sinto confortável para falar: psicologia e linguagem.
Como muita gente já apontou, muitos dos comportamentos de grupo que vemos no pessoal
com a camisa do Brasil podem ser explicados a partir do que Freud apresenta em
“Psicologia das massas e análise do eu”, de 1921. Nele, Freud afirma que na massa, o
indivíduo tem sua afetividade intensificada, sua capacidade intelectual diminuída e suas
inibições instintivas próprias suprimidas. O indivíduo se acha ligado ao líder – e aqui a
eleição de Bolsonaro ajudou a organizar essa trupe – e aos outros indivíduos por uma
energia libidinal. Para se ligar a outros, diz Freud, é preciso se desligar de si.
Quando a pessoa acha num grupo a razão de ser, há um grande investimento psíquico para
se manter nele. Aí é preciso negociar crenças, valores, ideias. É preciso aceitar e repetir as
ideias hegemônicas do grupo sob o risco de ser expelido e ver ruir todo o investimento
psíquico inconsciente. Isso acontece com determinadas religiões mais fundamentalistas.
Freud também fala disso em “O futuro de uma ilusão”, de 1927, um dos livros sociais de pai
da Psicanálise. E o que acontece quando a pessoa entra no grupo e não pensa exatamente
como ele? Dá um tilt, mas é preciso se adaptar. Acontece o que Leon Festinger, professor da
New School for Social Research de Nova York, chamou de dissonância cognitiva.
A teoria da dissonância cognitiva sustenta que um indivíduo passa por um conflito no seu
processo de tomada de decisão quando pelo menos dois elementos cognitivos não são
coerentes. Em outras palavras, quando uma pessoa possui uma opinião ou um
comportamento que não condiz com o que pensa de si, das suas opiniões ou
comportamentos, ocorre uma dissonância. Aí ela tem de decidir e decide pelo grupo,
renunciando a si e às suas crenças, pagando esse preço para não ser expulsa do grupo e
desabar na perda de seu investimento. As pessoas saem de si, repetem roboticamente as
ideias do grupo porque, agora, é isso que ancora sua subjetividade. De novo, é um
comportamento de seita, robotizado.
Tudo isso gera um grupo ideológico por identificação, caracterizado por crenças sociais e
políticas específicas, ligadas às ideias de direita ou extrema-direita. Esses grupos partem de
verdades retóricas parafraseadas do pátria, família, religião. Mas não respeitam a
democracia e têm repulsa à diversidade, são ancoradas num moralismo retórico: cobram os
outros, mas sempre tem lá no meio o pedófilo, o comerciante sonegador, o homofóbico, o
empresário pilantra, a família que escraviza pessoas, o violento misógino, a senhora
perfumada racista e por aí vai. Quando esses elementos moralistas de enunciação são
descobertos em suas práticas ruins, as redes não perdoam e gritam: “Não falha um!”. E aí
vêm os inexoráveis vídeos de desculpa que, quase sempre, são ridículos porque não passam
de teatrinho para dar conta de evitar um cancelamento.
É importante notar também que outros discursos que sustentam as mesmas ideias
reforçam a noção de pertencimento. Isso se dá por exemplo, com o grupo de pessoas
evangélicas, principalmente neopentecostais. Porque as pessoas fazem parte de vários
grupos, que podem relativizar ou recrudescer o discurso do grupo dos amarelinhos.
Muitas razões para entrar, uma forte razão para ficar, pagando o alto preço da alienação de
si. O comportamento do grupo vai sendo direcionado para sua sobrevivência, praticando
atos, criando e disseminando ideias – e as redes digitais, que não existiam nos tempos de
Freud, têm um papel importante nessa disseminação – e criando comportamentos de
manada que incluem muita violência, física e simbólica. A gente está vendo isso. Há uma
irracionalidade que tem como lastro o bando. Horda primeva.
Esse é o esboço de uma explicação. Como qualquer explicação é bastante generalizante. Mas
penso que nos ajuda a tentar compreender o que está acontecendo com gente querida e
gente nem tão querida assim.
Qual é a saída? Não sei. Só sei que se Freud estiver certo – e costumo apostar nos palpites
dele -, quando esses grupos se dissolverem, a quebra vai ser grande, embora tenham
ajudado a adensar um discurso ideológico forte. Mas imagine você apostar todas as suas
fichas em algo e esse algo que te sustenta desaparecer? Vai haver uma perda de ancoragem
subjetiva imensa para muita gente.
Talvez nós, psicólogos, sejamos bastante demandados por essas pessoas. Ou pelos seus
queridos que se importam com elas. Porque acho que elas mesmas vão estar bem mal para
ter minimamente força para se erguer sozinhas. A ver.
Editar