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IMPRESSOES DERRIDIANAS PARA A INVESTIGAÇÃO DAS POLÍTICAS DE CURRÍCULO

Camila Costa Gigante1


Universidade do Estado do Rio de Janeiro / CAP
Hugo Heleno Camilo Costa2
Universidade do Estado do Rio de Janeiro / PROPED

RESUMO

Pautados em uma perspectiva pós-estrutural de políticas de currículo, buscamos


compreender como elementos da obra de Jacques Derrida nos possibilitam investigar
discursos que estão sendo produzidos no campo, através de investimentos
desconstrucionistas, compreendendo a política como contingente e produzida na
indecidibilidade. Por entender o pensamento de Derrida como convite a permanente
deslocamento, defendemos a política curricular como texto em produção contínua,
como produção discursiva marcada pela tradução desdobrada no diálogo com a
alteridade, permeada por uma responsabilidade assumida nas decisões tomadas na
política.

Palavras-chave: políticas de currículo; desconstrução; subjetividade; tradução.

DERRIDEAN IMPRESSIONS FOR INVESTIGATION ON CURRICULUM POLICIES

ABSTRACT

Based on a post-structural perspective of curriculum policies, we seek to understand


how elements of Jacques Derrida's work enable us to investigate discourses that are
being produced in the field, through deconstructionist investments, including the
policy as contingent and produced in undecidability. By understanding the thought of
Derrida as the permanent displacement invitation, we support the curriculum policy as
text in continuous production, as discursive production marked by translation unfolded

1
Professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, lotada no Colégio de Aplicação, Mestre pela
mesma Universidade e integrante do grupo de pesquisas Currículo, sujeitos, conhecimento e cultura. E-
mail: camilagiga@hotmail.com
2
Mestre em educação pelo PROPED/UERJ e doutorando em educação pelo mesmo programa. Professor
substituto da Faculdade de Educação da UERJ. Desenvolve pesquisas na área de currículo, voltando-se
para os temas: Políticas de Currículo, Ensino de Geografia, Subjetivação política, Pós-estruturalismo.

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in dialogue with alterity, permeated by an assumed responsibility for contingent
decisions taken in the policy.

Keywords: curriculum policies; deconstruction; subjectivity; translation.

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INTRODUÇÃO: UMA LEITURA DO PENSAMENTO PÓS-ESTRUTURAL
Começamos este texto focalizando nossa perspectiva de pós-estruturalismo e
como sua compreensão é relevante para a reflexão no campo da Educação ou das
Ciências Sociais e Humanas de maneira geral. Concordamos com Mendonça e
Rodrigues (2014) sobre a compreensão da Ciência como estudo mais comprometido,
mas isso de forma alguma é apresentado como um pensamento negativo em relação
aos estudos anteriores. Esse comprometimento de/e com a significação, pelo
contrário, oferece mais credibilidade ao campo, ao apontar que não existe uma busca
por fundamentos únicos ou últimos para uma prática ou para uma teoria científica.
Na Filosofia, a ideia de fundamentação última é remarcada desde tentativas
como a fundar a origem primeira da natureza (apresentada por Tales de Mileto,
Anaximandro, por exemplo) e de construir sistemas filosóficos que pudessem dar
conta de todo o saber humano na filosofia moderna (como nos trabalhos de Descartes
e Hegel). No século XX, com o “giro linguístico” e a fenomenologia de Husserl e
Heidegger, o debate referente à possibilidade de fundamentação se torna mais intenso
(MENDONÇA; RODRIGUES, 2014). Já entre 1950 e 1960, considerações sobre
fundamentação e cientificidade tornam-se mais frequentes na área das Ciências
Sociais e dão força para o que se denominou como Estruturalismo (DOSSE, 2007).
O Estruturalismo defende que os termos somente possuem sentido se
considerados na relação a si, e que todas as relações são interdependentes,
produzindo um efeito sistêmico, segundo Saussure (PETERS, 2000). O fundamental
seria compreender a estrutura enquanto algo totalizante, fundante à significação. A
partir de uma crescente tensão entre fundamentação às críticas e seus limites, ganha
vulto o pensamento pós-estrutural, oportunizando um projeto de crítica a perspectivas
fundamentais, estruturantes, também envolvido com o nome Pós-fundacionismo
(MENDONÇA; RODRIGUES, 2014, p. 28). A perspectiva pós-fundacional, associada a
uma agenda genérica pós-estrutural, pode ser entendida como uma reação à simples
dispersão das diferenças e também da negação da possibilidade de todo e qualquer
fundamento (DE ALBA; LOPES, 2014).

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Não concordamos com a existência de um Pós-estruturalismo enquanto
movimento homogêneo, mas focalizamos em seu âmbito a perspectiva da
desconstrução (DERRIDA, 1992; 1998; 2004; DERRIDA; ROUDINESCO, 2004) de leituras
restritivas, caras a motes estruturalistas. Consideramos também que o Pós-
estruturalismo não surge enquanto uma ruptura total e completa com o
Estruturalismo. Pelo contrário, pensamos que retém ideias para construir e operar
críticas. Focaliza a discussão epistemológica buscando a desconstrução de certas
noções positivistas que defendem o Realismo como fundamento e adota essa tal
postura anti ou pós-fundacionalista (MENDONÇA; RODRIGUES, 2014). Essa
compreensão ganha força, principalmente, com a obra de Jacques Derrida, que
privilegiamos aqui.

A IMPORTÂNCIA DA DESCONSTRUÇÃO DERRIDIANA


Para Derrida (2009), a impossibilidade de totalização de um sistema não ocorre
devido aos objetos empíricos de uma sociedade serem (in)finitos ou por uma
incapacidade do indivíduo limitar essa totalização. O que a ocasiona é uma falta
constitutiva à própria estrutura a que julgamos nos referir, algo fixo, tornando as
significações sempre contingentes, pois estão sempre expostas a um fechamento
porvir. Não é, portanto, possível localizar um centro estrutural capaz de deter as
substituições de significações, tornando a pluralidade de sentidos sempre aberta e
admissível, possível e potente a novos sentidos, devido a não existir um fechamento
final. Esta impossibilidade de significação final, esta provisoriedade substitutiva ao
fundamento ou estrutura torna-se, assim, dinâmica lacerante de expectativas de
estruturação sobre o significado do mundo.
Entendemos que a noção de impossibilidade do fechamento caracteriza ou
margeia o pensamento da desconstrução em Derrida (2009), que não é uma
propriedade a ser apreendida, não poder ser iniciada por uma consciência ou
expertise. A desconstrução, para o filósofo, é um movimento atado à reiteração, à
revisitação, à retomada, a busca por aprofundamento. O movimento

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desconstrucionista sempre já esteve em operação, e isto estaria para além de um
saber capaz de acioná-la como dispositivo ou técnica.
Ressalvamos a desconstrução, contundo, como não sendo sinônimo de
destruição, mas de envolvimento adúltero com a própria construção. Não há, nisso,
uma leitura de ruptura totalizante ou plena entre algo anteriormente dado e o atual,
bem como uma desconsideração plena de suas características e reflexos.
Entendemos a experiência desconstrucionista como “uma certa experiência do
impossível”, por ser um pensamento que tanto é proveniente dessa impossibilidade de
modelo de racionalidade quanto busca pensar sobre ela e na relação com ela (DUQUE-
ESTRADA, 2008, p.14). A desconstrução opera com a heterogeneidade, enfocando na
diferença e dissociação necessárias para que seja possível a relação com o outro
desconhecido. Para isso, o rompimento com a totalidade é necessário (DUQUE-
ESTRADA, 2008). A construção discursiva em que se constitui a ideia de sociedade, por
exemplo, não deve ser compreendida como um todo homogêneo, um bloco unitário
com características fixas e concretas, mas inúmeras possibilidades de significações,
repletas de singularidades construídas através de processos constantes de significação
dos indivíduos e do social.
Pensamos a desconstrução como sendo da ordem do impossível. Usamos este
significante pela impossibilidade implícita a toda (des)ordem de significação última.
São inúmeras essas impossibilidades ocasionadas pela operação desconstrutiva
(DUQUE-ESTRADA, 2008). A impossibilidade se inscreve para além de qualquer
reconciliação, totalidade ou centralidade do sujeito, ou da metafísica da subjetividade.
Desde Heidegger (1977), é abalroada a ideia de centralidade do sujeito, na busca por
criticar sua totalidade ou transcendentalidade consciente. Derrida propõe, através de
uma radicalização desconstrutiva, a leitura da subjetividade para uma lógica de
subjetivação.
Derrida (1992) destaca que para Heidegger3 o sujeito não pode ser reduzido a
uma subjetividade fixa, pois Heidegger o pondera como fio condutor exemplar na

3
Para maiores informações sobre a noção de Dasein apresentada por Heidegger, ver HEIDEGGER, 2009.

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questão do ser; a dignidade máxima do ser humano estaria nele. O autor não oferece
nenhuma definição para o significante, o aponta enquanto uma abertura para o ser. O
ser-aí, no mundo. Ele se interessa por aquilo que todos (entendidos como público em
geral) se interessam; é aquilo que todos são, mas ao mesmo tempo não consegue ser
alguém específico.
Para Derrida, importa explicitar que algo denominado sujeito não pode ser
definido fixamente, ainda que não defenda a “liquidação” desse termo, seu
extermínio, nem opere com a ideia de que salvará ou reabilitará o que se deveria ser
denominado ou determinado pelo significante. Pontua, por outra via, que o sujeito
pode ser reinterpretado, reinscrito e reinstaurado (DERRIDA, 1992), mas nunca
reencontrado em sua propriedade. Concordamos com o autor por acreditarmos que a
leitura de sujeito pode ser deslocada, por meio da desconstrução, a um enfoque
marcado por seu esvaziamento enquanto propriedade, reinterpretação, reinscrição e
descentralização.
Dessa forma, poderíamos pensar que a partir da pergunta de Jean-Luc Nancy
(Idem, ibidem), “Quem vem após o sujeito?”, Derrida proporia outra leitura de sujeito,
pensado a partir da lógica desconstrutiva que ele apresenta. Derrida, no entanto,
problematiza o “quem” da pergunta e se recusa a produzir um discurso explicativo
sobre a questão, pois para ele, é preciso ser cauteloso contra uma doxa inserida na
questão e que ao mesmo tempo a formula, constituindo o pressuposto de uma
presença, que é ausente, a ser substituída por outra lógica estruturante/fixa. Como se
pudéssemos identificar algo para denominar de “sujeito”, um sentido fixo. É preciso,
assim, evitar o pensamento de uma doxa – para o autor, uma opinião filosófica. O que
podemos entender como uma não presença a si do sujeito. (DUQUE-ESTRADA, 2010).
Partindo destas considerações, Derrida nos possibilita pensar o sujeito para
além de uma perspectiva essencialista, e mais do que isso, nos afirma que não é
apropriado pensar que, com uma visão pós-fundacionista de sujeito, estaremos
extinguindo-o ou que, de acordo com essa visão, ele deva ser modificado para que seja
salvo. Em outras palavras, não existe um sujeito que foi destruído e que poderá vir a

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ser recuperado. A concepção de sujeito deverá ser trabalhada através da
desconstrução, tendo em vista sua efemeridade e falta constitutiva.
Como seu pensamento se encontra em profundo deslocamento, pensamos que
para ele não exista o/um sujeito, mas diferentes aspirações a uma condição subjetiva.
Então, não interessaria uma reconfiguração normativa de uma metafísica do sujeito
(assim como uma filosofia do sujeito), porque nunca nos depararíamos com apenas
uma única concepção, ou algo a que possamos apreender em análise. O que pensamos
funcionar para Derrida seriam problemáticas, inquietações, irritações referentes à
subjetivação.
Dessa forma, ao invés de propor uma liquidação do sujeito, devemos pensar
através de seu deslocamento, vê-lo como uma subjetivação deslocada, uma instância
que ao mesmo tempo é fundadora e fundada, constituinte e constituída, “um ‘entre’
dois momentos, não se pode propriamente falar sobre O Sujeito” (DUQUE-ESTRADA,
2010, p. 8). Não que devamos deixar de usar o termo, mas devemos pensar que
estaremos sempre escrevendo sobre uma instância desse sujeito, sobre um momento,
um contexto, um “entre”. Serão, assim, problemáticas do sujeito.

DESCONSTRUÇÃO E AS POLÍTICAS CURRICULARES


Mesmo sendo um autor que tem preocupações entendidas como caras à
Filosofia, o pensamento de Derrida nos permite repensar e atribuir novas
considerações teóricas ao campo da Educação. Procuramos refletir sobre algumas das
principais noções de Derrida e relacioná-las a esse campo, tendo um olhar mais
específico ao campo de investigações em currículo.
Neste campo, particularmente com a abordagem ao ciclo de políticas de Ball
(BALL, 1994; BALL; BOWE, 1992; BALL; BOWE; GOLD, 1992), há diferentes
investimentos na tentativa de romper com a verticalidade de leitura sobre a produção
política. Dentre possibilidades, a proposição de Stephen Ball caracteriza um
ferramental interpretativo que visa projetar a produção política através de um ciclo
contínuo e incessante de escritas e reescritas, marcadas nos envolvimentos de

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diferentes atores sociais, em diferentes espaços-tempos de poder. O autor define,
desde seus trabalhos iniciais, três contextos primordiais (contexto de influência, da
prática e de produção de textos), marcados por distintas formas de atuação, tramadas
em uma dinâmica cíclica contínua4.
Tal abordagem ressalta processos micropolíticos, bem como a ação dos
profissionais que lidam com as políticas em uma perspectiva local, em detrimento de
uma perspectiva de poder hierarquizado na análise das políticas, de cima para baixo ou
o inverso. Destacamos em Ball, particularmente nos textos mencionados acima, a
busca pela articulação entre os processos macro e micro, de maneira que não exclua
os indivíduos e grupos sociais envolvidos nos processos de produção das políticas.
No cerne da abordagem do autor encontra-se a noção de recontextualização,
repensada a partir dos estudos de Bernstein (1998). Nesta perspectiva, a partir do
momento em que ocorre uma migração de textos e discursos de um contexto a outro,
é possibilitada uma maior apropriação e (re)interpretação de alguns sentidos por
processos de recontextualização que produzem híbridos culturais (LOPES; OLIVEIRA,
2011). “É a partir da ideia de uma mistura de lógicas globais, locais e distantes, sempre
recontextualizadas, que o hibridismo se configura” (LOPES, 2005, p. 56). As
reinterpretações textuais são possíveis graças à pluralidade de leitores e leituras.
Entretanto, a partir do momento em que textos se encontram permeados por
contextos, certos sentidos hegemônicos em circulação, podemos pensar que o
caminho de um contexto a outro poderá vir a gerar deformações e perdas de sentidos.
A noção de hibridismo assinala o papel do social que a cultura vem a
desempenhar, não possibilitando uma completa fixidez de sujeitos específicos com
tarefas já concebidas em determinados contextos. Dessa forma, acreditamos que a
impossibilidade de operar com uma única concepção de sujeito, já mencionada
anteriormente, é permeada, entre outras influências, pela cultura em que os
indivíduos estão inseridos.

4
Mesmo defendendo a existência de grupos distintos, também criticamos o ciclo de políticas quanto a
esse aspecto, por acreditar que existem sujeitos e grupos sociais que se encontram participando
ativamente em mais de um desses contextos de produções das políticas, concomitantemente.

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Compreendemos que nas políticas a produção de sentidos não tem origem em
um contexto ou arena específicos, nem são produzidos por apenas por um grupo de
atores sociais privilegiados e nem podem ser fixos ou finalizados. Os sentidos
encontram-se em constante transformação e deslocamento, deslizando e gerando
múltiplas interpretações. Compreendemos as políticas curriculares, bem como o
social5, como produções discursivas (LOPES; MACEDO, 2011), em que toda significação
se encontra permeada pelo discurso. Quando mencionamos que o pensamento de
Derrida encontra-se em “profundo deslocamento”, pensamos que toda atribuição de
sentidos desconstruídos é permeada pela linguagem.
Compreendendo que discurso faz referência a toda e qualquer produção de
sentidos, sendo a extensão de toda linguagem possível como produção simbólica
(LOPES; CUNHA; COSTA, 2013), pensamos as políticas curriculares enquanto produções
discursivas. Seguindo essa perspectiva, entendemos a noção de tradução6 – pensada
nos estudos derridianos – como possibilidade para entender as dinâmicas produtoras
da política curricular para além da ideia de recontextualização por hibridismo.
Enquanto a última concepção pondera uma representação que é própria da
linguagem, sem a preocupação em problematizar o caráter não-transparente e
impossível de ser compreendido da/na representação (LOPES; CUNHA; COSTA, 2013),
a alternativa derridiana enfatiza a produção sempre contingente de sentidos. Derrida
(2008) apresenta uma perspectiva para além do dualismo de estar e lidar no/com o
mundo, de conceber onde começa e termina um contexto e, ainda, quando são
iniciados processos de tradução. A linguagem seria um meio opaco no qual só se opera
via tradução (LOPES; CUNHA; COSTA, 2013).
O que não nos retira responsabilidade, pois o autor pontua que em toda
tradução deve haver uma preocupação ética com o outro, com a sua alteridade. Uma
certa hospitalidade, também mencionada por ele como responsabilidade – uma

5
O social, para Derrida, é compreendido como retoricidade. (DERRIDA, 2008)
6
Apesar de Ball (BALL et al., 2011, 2012) compreender as transferências nas políticas com base em uma
sociologia da tradução, ainda apresentam limitações como interpretação e tradução, entre outros
aspectos. Para maiores informações, ler as obras.

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hospitalidade hostil para com o outro (SKLIAR, 2005), a qual e sobre a qual sempre
responderemos. Deve ser uma hospitalidade e hostil, ao mesmo tempo, por considerar
o outro enquanto estrangeiro, enquanto alteridade, estranhamento, mas buscado para
si, para responder. A contabilização de tal ideia às investigações nos convidam a ter em
conta que as políticas de currículo podem ser pensadas na relação com um outro que,
como a subjetivação derridiana, não pode ser apreendido por uma consciência como
objeto de saber. Pensar o outro, nesse caso, não só tendo em conta os efeitos que se
supõe ou busca atingir, mas, principalmente, tudo aquilo a que se expõe ao decidir e
que será necessário, desde sempre, responder.
Consideramos a tradução como via importante ao estudo sobre currículo e
política de currículo, particularmente por possibilitar o questionamento à noção de
representação fixa e plena, assinalando para que o caráter produtivo de toda prática
não consiste em projeções de sentidos ou verdades coerentes, mas são produções
contingentes, marcada pela emergência do pleito, da demanda, da busca pelo controle
da significação. As políticas podem ser pensadas, por estas vias, como mobilizadas por
discursos que sempre estarão sujeitos à traição do e pelo outro, em outro contexto,
que não se pode controlar. Nelas, “múltiplos contextos são produzidos, porque
múltiplos processos de significação se desenvolvem e neles a tradução opera sem
cessar” (LOPES; CUNHA; COSTA, 2013, p. 398), nesse caso, já extrapolando uma
perspectiva distintiva a que convida Ball quando define contextos específicos.
Com relação à alteridade, perspectiva de importância para a investigação nas
políticas curriculares, ela remete ao outro enquanto relação de possibilidade. É
importante que se respeite e afirme as diferenças que julgamos distinguir no outro,
para que se invista na compreensão do outro como outro, não como ‘eu’, como
propriedade. Toda relação é assim, com a alteridade. E essa alteridade dá bojo à ideia
de différance (DUQUE- ESTRADA, 2002).
Para Derrida (2011), a différance é dinâmica é disseminadora, é continuamente
outra. Pensamos que esta concepção nos auxilia a compreender o processo de
diferenciação para além de limites ou critérios lógicos pré-estabelecidos, ajuda a

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pensar o outro como não podendo ser coagido ou constrangido a pertencer a
determinada classe, categoria, lacuna ou segmento fixo. A différance seria a vida no
traço, a alteração na suplementação da escrita (DERRIDA, 1991), uma relação entre
presença/ausência, um movimento de diferir incessante na relação com o texto em
que se constitui o mundo (DERRIDA, 2001).
Como a différance não é dialética, não é interessante concebê-la em termos
fixos ou polissêmicos, uma distinção ou em uma relação de dualidades. Nada, segundo
Derrida (2001) escapa ao seu jogo, nem ela mesma (SKLIAR, 2005). Dessa forma, não
somos/encontramos/lidamos com isto ou aquilo, mas toda menção, ao que quer que
se volte, já incide em adulteração, suplementação, traição a um suposto original (um
dado do que se pode chamar por cultura, uma condição social, um conteúdo de
conhecimento, uma identificação, um texto). Podemos ser isto e aquilo, antes isto do
que aquilo, podemos não ser isto nem aquilo, mas uma terceira opção, de acordo com
as situações e urgências (DERRIDA; ROUDINESCO, 2004). Nas políticas curriculares,
consideramos potente a perspectiva diferencial como indício a um envolvimento com
uma crítica radical, tendo em vista um horizonte de oposição defesas pautadas em
binarismos, ao estancamento de verdades, à substituição prevista de afirmações por
outras. Isto nos possibilita pensar que não basta assumir ou definir posições “contra”
ou “a favor” em dada investigação sobre a política, ou mesmo defender interpretações
e/ou desdobramentos dados por qualquer que seja a identificação em foco. Importa,
por outro lado, a leitura de que o movimento diferencial inscreve a ideia de que não há
possibilidade de controle ou contenção àquilo que julgamos tratar, mas que tudo o
que se faz, na relação com nossos objetos de investigação, está limitado a um
investimento na política, é caracterizado por formas de intervenção, por
responsabilização, e também pela impossibilidade de definição ou limitação
interpretativa. O investimento oportuniza intervenção ao tempo em que também nos
limita em qualquer expectativa de poder controlar algo.
Com isto, não supomos possibilidades de abandono da política e/ou que
devemos deixar de considerar também que decisões políticas estão constantemente

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sendo permeadas e alteradas nos jogos de poder (LOPES; MACEDO, 2011), mas
colocamos em questão que independente de supormos plenitude à intenção da ação
política, a lemos como incapaz de funcionar plenamente e, ainda, que
simultaneamente todo investimento está exposto à crítica em seus possíveis
desdobramentos.
Com esta possibilidade teórica, entendemos que todo processo político,
incluindo os processos das políticas curriculares educacionais, se dá no terreno do
indecidível. A política curricular pode ser entendida dessa forma por considerarmos
que nunca será possível um fechamento pleno e conclusivo, por mais que haja forças
muito incisivas para que isto ocorra. A esse respeito, Derrida (DERRIDA; ROUDINESCO,
2004) nos propõe a ideia de uma agência interrogativa, responsável por revisar certas
práticas discursivas com uma responsabilidade ética que não prevê fechamentos
discursivos absolutos. Não deve haver uma “incorporação cega”, mas sim uma
possibilidade de fragilidade temporária, a instabilização possível em um processo
desconstrutivo.
O processo político deve ser entendido como o momento do não saber, do
imprevisível, de decidir de forma indecidível. É necessário compreender a produção
das políticas curriculares como possibilidade não-essencial, não fundamentada ainda
que se julgue apoiar algo na decisão pelo envolvimento nela. Importa pensar a
responsabilidade na/da/sobre a interpretação, interrogação, sempre operando no
terreno do indecidível. Dessa forma, não cabe escolher entre unidade e multiplicidade,
entre certo e o errado, mas devemos operar sempre com a heterogeneidade, com a
diferença, dissociação, différance, relação com o outro (DUQUE-ESTRADA, 2008), com
a negociação que sempre envolve a alteridade. O que rompe com a totalidade e se
torna condição para que a relação com o outro seja possível, embora nunca
transparente.
Derrida não fala de uma reapropriação de formas e conceitos, mas traz a noção
de ex-apropriação. Diz que é sempre uma questão do traço (uma passagem, um “estar
entre”, uma condição de transição. O traço não é ausência, mas também não é

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presença), mas também de iterabilidade, significando que a ex-apropriação não pode
ser estabilizada na forma de um sujeito; é algo externo a ele, uma questão de
alteridade. É impossível a apropriação ou ex-apropriação de algo que nunca existiu. A
ex-apropriação não se encerra ou se totaliza. Não é um limite ou apenas o oposto ao
infinito, mas supõe uma certa irredutibilidade da relação com o outro (DERRIDA,
1992).
Com essa discussão, retomamos à questão do sujeito, mas assumindo as
possibilidades de remeter a este nome como subjetivação, como uma tentativa de
fechamento das discussões apresentadas até aqui. Entendemos que as políticas
curriculares devem possibilitar pensar a cultura através da noção de diferença, pois é
reiterando as diferenças do outro que nos constituímos enquanto tal. Entretanto, essa
constituição é sempre marcada pela provisoriedade, pela incerteza e precariedade das
afirmações. Apesar da identidade ter que se auto-diferenciar, é através da
possibilidade dessa diferença que se percebe o outro, dando abertura para a
constituição – provisória – de uma outra identidade. Isso é o que previne o
totalitarismo, o egocentrismo. Apesar de afetar uma estrutura de identidade, essa
impossibilidade é que permite o diálogo com o outro, e isso que possibilita assumir
responsabilidade e tomar decisões no terreno indecidível (DUQUE-ESTRADA, 2008) da
linguagem, da textualização, da política curricular.
Com essa ideia de identidade, precária e contingencialmente constituída,
optamos por pensar com Lopes e Macedo (2011) em processos de subjetivação.
Cremos que a possibilidade de operar com uma ideia diferencial, que marca uma
dinâmica de subjetivação, seja interessante à investigação no campo das políticas de
currículo. Nesse caso, importa que a concepção dos atores sociais, pensados em
associação com os contextos do ciclo de políticas de Ball, seja pensada como
constituindo momentos de subjetivações políticas que os extrapolam. A atenção a esta
ressalva consiste na diferenciação entre as ideias de atores sociais, como pessoas
envolvidas em dado envolvimento social, e subjetivação, que aspira destacar processos
de significação que estariam para além de pessoas ou identificações fixas. A

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subjetivação seria constituída discursivamente, com toda marcação contingencial e
provisória, nas articulações mobilizadas pelos sentidos colocados em circulação nos
pleitos de atores sociais, como, por exemplo, podemos ler a atuação organizada de
profissionais através de associações, partidos políticos, sindicatos, mas também em
agremiações outras que, frente a determinado desafio, oportunize a que diferentes
atores se vejam solidarizados.

CONSIDERAÇÕES PROVISÓRIAS
Com a discussão desenvolvida até aqui defendemos, a partir do pensamento
derridiano, que a abordagem à subjetivação incide na compreensão de seu
descentramento, de sua impropriedade, da impossibilidade de uma identidade estável.
Neste estudo, optamos por apresentar aspectos da obra de Jacques Derrida, pinçando
elementos de sua produção filosófica, com intuito de destacar possibilidades
interpretativas à desconstrução com vistas a argumentos centrais da investigação em
políticas de currículo, tal como o sujeito. Cremos ser importante investir nessa
perspectiva, principalmente para compreender a política curricular como mobilizada
na indecidibilidade.
Entendemos que a questão da ampliação da subjetividade para uma lógica de
processos de subjetivação nos ajuda a pensar na ideia de identidade como sendo
precária e contingencialmente constituída, o que possibilita atentarmos para o caráter
fluido de toda afirmação, identificação, na política. O sujeito, para Derrida (1992) é
porvir, um rastro, um traço, uma irrupção contingente, que não se pode encontrar “de
fato” ou controlar. O conceito ocidental de sujeito, segundo o filósofo, é calculador, já
é instaurado por um horizonte prévio que o limita, embasa.
Consideramos, neste texto, que a obra desconstrutiva de Jacques Derrida nos
possibilita pensar para além de uma lógica estrutural de significados. Entretanto, aqui
deixamos claro que a desconstrução não é voluntária ou imposta. Não existe um
momento de operação desconstrutiva. Estamos expostos e envolvidos com a/na
desconstrução desde sempre, independente de uma vontade ou orientação. A

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desconstrução não é uma volta ao “zero”, a uma origem, mas uma abertura a novas
possibilidades de significação, particularmente assinala à impossibilidade de seu
controle. Tampouco podemos pensá-la a partir de uma lógica de oposição, em que de
um lado estaria a construção sendo vista como uma certa preservação/salvação e, de
outro, seria uma espécie de perdição, extermínio, aniquilamento.
Compreendemos que essa é uma perspectiva interessante para compreender
as políticas curriculares, não enquanto textos fixos, devendo ser aplicados a partir de
uma visão verticalizada de poder. Mas enquanto produções discursivas que são
traduções desdobradas no diálogo com a alteridade, criando um terreno indecidível,
marcado pela différance e por respostas/responsabilizações às decisões tomadas.

REFERÊNCIAS

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