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Desenvolveste pesquisa de doutorado em Filosofia na USP, poderia nos falar sobre a sua pesquisa e

os resultados a que chegou em sua tese intitulada "Um estudo do argumento do milagre na defesa do
realismo científico"? Dra. Edna Souza - Foi um momento muito especial de minha formação
intelectual e profissional: momento de firmar a minha autonomia enquanto pesquisadora e de
consolidar as bases necessárias à docência universitária. Eu empreendia acompanhar os debates atuais
da filosofia da ciência em torno do realismo científico, visando a um posicionamento próprio e à
propositura de alguma contribuição original, enquanto, paralelamente, também me debruçava no
estudo dos grandes clássicos para obter uma visão mais ampla da área. O desenvolvimento de uma
pesquisa de doutorado vai muito além da elaboração da tese, da composição textual a ser apresentada
para a obtenção do título. Desenvolver uma tese em filosofia é, em alguma medida, enxergar melhor
a si própria e a filosofia, estabelecendo, mesmo que provisoriamente (já que a busca filosófica é
incessante), o seu lugar no universo filosófico. E eu me encontrei herdeira da defesa da tradição realista
na filosofia da ciência. Em dezembro de 2014 defendi a tese intitulada Um estudo do argumento do
milagre na defesa do realismo científico. Argumentei nessa tese a favor da intuição básica do realismo
científico, com o apoio de uma versão fortalecida e articulada do argumento do milagre. O realismo
científico é uma concepção filosófica da ciência que assume uma atitude epistêmica otimista frente
aos resultados da investigação científica que abrangem aspectos do mundo tanto observáveis como
inobserváveis. Segundo o realismo científico, as entidades inobserváveis postuladas pelas teorias
científicas bem-sucedidas têm existência real e essas teorias são verdadeiras ou aproximadamente
verdadeiras. Essa atitude positiva é contestada por diversas perspectivas filosóficas conhecidas
coletivamente como formas de antirrealismo científico (positivismo lógico, instrumentalismo,
empirismo construtivo, historicismo, construtivismo social etc.). É importante notar que o realismo
científico admite o falibilismo e, além disso, reconhece que a condução inicial de uma investigação
científica pode até ser explicada em termos de fatores psicológicos de seu pesquisador ou do ambiente
sociocultural no qual ele se encontra; no entanto, sua validação, ou seja, o seu valor epistemológico é
aferido por critérios lógico-racionais e empíricos, os quais não dependem do contexto psico-sócio-
cultural. Procurei também analisar e rebater três importantes modalidades de argumentação
antirrealista: a subdeterminação empírica das teorias, a indução pessimista e a circularidade viciosa da
inferência da melhor explicação. Não obstante as diferenças que se mantêm entre as concepções
realistas da ciência, o chamado “argumento do milagre” constitui uma peça central na defesa delas.
Esse argumento se expressa, inicialmente, na célebre formulação de Putnam (1975, p. 73), “[...] o
realismo [científico] é a única filosofia que não faz do sucesso da ciência um milagre”. Para o realista
científico, a ciência é bem-sucedida em explicar e prever fenômenos, inclusive novos, porque suas
melhores teorias (maduras, não ad hoc, bem-sucedidas empírica e instrumentalmente, provedora de
previsões novas, fecundas etc.) são (parcial ou aproximadamente) verdadeiras e as entidades
inobserváveis postuladas por essas teorias realmente existem. Outros esquemas de explicação para o
êxito científico baseados em visões antirrealistas ou não-realistas da ciência são insatisfatórios.
Apresentei diversas formas de fortalecer o argumento do milagre mediante as qualificações de
novidade preditiva e fecundidade teórica, e concluí que essa versão fortalecida do argumento continua
sendo basilar e estratégica na defesa do realismo científico, devido a sua demonstração contundente
de que essa (o realismo científico) é a concepção filosófica mais razoável sobre o estatuto cognitivo
das teorias científicas. A filosofia tem ganho presença de filósofas, poderia nos falar sobre como é ser
filósofa no Brasil? Dra. Edna Souza - Ser filósofa no Brasil é um grande desafio. Há pelo menos duas
grandes barreiras a serem vencidas: (1) a profissionalização em uma área precarizada e pouco
valorizada; (2) a socialização de gênero que a torna, tacitamente, uma “profissão masculina”. A
afirmação preambular à sua pergunta, faz-me entender que a questão aqui não é tanto sobre a
(des)valorização da profissão como o é sobre o gênero, ou seja, sobre a vinculação costumeira de
certas profissões a determinados gêneros, de modo que, nesse arranjo social, a filosofia seja
protagonizada pelo homem. Por isso, para responder como é ser filósofa no Brasil, focarei em (2), ou
seja, no processo de determinação de papeis sociais, que procura atribuir outros papéis à mulher, que
não o de ser filósofa. Não é novidade o fato de a mulher precisar encarar no Brasil (e não somente
aqui) os entraves de uma sociedade majoritariamente preconceituosa, que a inferioriza. O machismo,
que aqui ainda impera, é a perspectiva de que o sexo masculino é superior ao feminino no que diz
respeito aos seus aspectos físicos e intelectuais e, consequentemente, que os direitos de ambos não
seriam os mesmos, sendo o homem privilegiado em relação à mulher. A machismo arraigado em nossa
cultura dificulta em muito a vida da mulher nos seus mais variados aspectos e âmbitos. No caso da
profissional em filosofia, soma-se um preconceito específico da área com o qual é preciso também
saber lidar. Na área acadêmico-científica, para condicionar a mulher a espaços restritos, não é preciso
verbalizar, como muitos homens o fazem descaradamente em sua vida cotidiana, que “lugar de mulher
é na cozinha e/ou cuidando de seus filhos”. O sexismo existente nessa área, sutilmente, já discrimina
a mulher ao definir o “padrão masculino” como o único adequado àquele meio. Além da dedicação,
naturalmente esperada, ao seu objeto de pesquisa e ao seu trabalho, a estudiosa de filosofia precisa de
algo a mais para atingir o menor dos objetivos profissionais: o reconhecimento por seus pares de seu
lugar dentro do universo acadêmico-profissional da filosofia. Esse algo a mais a que me refiro é a
capacidade de permanecer resiliente e se fazer ver e ouvir em uma estrutura fortemente marcada pelo
caro apreço a um tipo pobre de tradicionalismo, que exclui e invisibiliza as mulheres, por considerar,
tácita ou explicitamente, que mulher não “pensa”, não é capaz de produzir o tipo de pensamento
próprio da filosofia: abstrato, racional... Evidentemente, é preciso muita garra para resistir a esse
cenário hostil à mulher. Interessante notar que mesmo conseguindo penetrar nesse espaço restrito,
ainda assim, ali há tentativas de colocar a mulher em uma situação inferior, desconsiderando suas
proposituras e/ou atribuindo-lhe funções impróprias como “deixar o ambiente mais bonito, confortável
e acolhedor” (esse tipo de atribuição muitas vezes vem associado a uma espécie de galanteio
esquizofrênico, que só faz sentido a uma mentalidade inerentemente machista). Entenda: não é se
negar a contribuir para o bem-estar comum. O caso é que todas e todos são responsáveis por isso, não
só a mulher; nem é mais fácil para ela fazê-lo do que o é ao homem. No entanto, seja nos períodos (e
contextos) em que a mulher fora impedida formal e legalmente de participar do mundo intelectual,
seja nos momentos (e contextos) de sua expulsão velada pela hostilidade do ambiente que não a acolhe
da mesma forma que ao homem, elas sempre existiram e resistiram à opressão, à subjugação. A
contribuição da mulher pode ser identificada desde a origem ao desenvolvimento atual da chamada
filosofia ocidental. Infelizmente, àquelas que ousaram resistir, restou a censura, a marginalização, a
invisibilização e o esquecimento pela narrativa “oficial”. A história oficial nos foi e, ainda, é contada
em uma perspectiva masculina, sexista e, não menos importante, se limita à narrativa dos
“vencedores”. É bom e, ao mesmo tempo, espantoso que estejamos hoje passando por um processo de
reconsiderarmos a história da filosofia, intencionalmente, para identificarmos a presença ou não de
filósofas. E, ao fazê-lo o melhor caminho é resgatar a parte da filosofia marginalizada nessa história,
bem como os ecos do pensamento filosófico feminino em outras formas de registros e expressões,
como cartas, diários, relatos. Percebemos que muitas pensadoras, dos mais diversos períodos,
procuraram deixar sua marca, a despeito de lhes ser negado esse espaço, de suas vozes serem
silenciadas, negligenciadas, obscurecidas. Por exemplo, não é preciso ser estudiosa(o) de filosofia para
se ter a imagem amplamente difundida de Sócrates como um grande filósofo grego. No entanto,
mesmo dentre as comunidades filosóficas, pouco ou nada se conhece e se fala sobre a mestra de
Sócrates: Aspásia de Mileto. Justificar que isso se deva ao fato de não termos evidências e dados
suficientes de quem de fato foi a mulher que aparece como uma grande pensadora nos escritos dos
principais intelectuais de sua época, seja na filosofia, na dramaturgia, na poesia ou na história, é uma
falácia inaceitável. Tampouco temos esses mesmos tipos de dados sobre Sócrates, que nada escreveu,
e a quem atribuímos o título de pai da filosofia. Esse tipo de invisibilização e a exclusão da mulher na
filosofia, infelizmente, não é uma coisa do passado. Ainda hoje, antes mesmo de nascer, a mulher é
“predestinada” culturalmente a desempenhar o papel de cuidadora e não o de pensadora. Quando se
diz estar grávida de menina, é comum ouvir, como se fossem as benesses de se ter uma filha, que ela,
certamente, ajudará a mãe nas responsabilidades do lar, aos pais na velhice... Daí, mais tarde, as
profissões melhor aceitas socialmente para a mulher serem pedagogia, serviço social, enfermagem,
fisioterapia, nutrição, pediatria, medicina veterinária... Basta olharmos as estatísticas dos lugares
ocupados pela mulher no mundo profissional para constatarmos que “profissão tem gênero” e que no
caso da filosofia o gênero é masculino. Há, ainda, casos mais graves de misoginia, ou seja, de ódio,
aversão, desprezo à mulher, principalmente, nos casos em que essa não se encaixa em um modelo
criado de mãe e esposa do tipo Amélia.[1] Para alguns filósofos, ver uma mulher filosofando é uma
afronta, respondida, comumente, com uma tentativa de desqualificá-la, antes mesmo de rebater a sua
proposta. Mas também penso que, graças aos esforços louváveis de muitas mulheres (brasileiras e não-
brasileiras), paulatinamente, a filosofia (não sem resistências) tem se aberto ao pensamento filosófico
feminino. O sexismo, machismo e misoginia, em suas versões acadêmicas, parecem ser das mais
perigosas, por reverberar em vários níveis da sociedade. Talvez por isso, para mim, a passagem da
Epistemologia Tradicional para a Feminista se deu de forma tão natural: tive, e ainda tenho, que lidar
com a temática na prática, dia após dia. E, mais importante, o reconhecimento da querelle des femme,
ou seja, da questão da mulher e de sua polêmica degradação social, trata-se de uma “questão de fato”,
isto é, constitui um fato social e não apenas uma insatisfação subjetiva particular. A filosofia, enquanto
atividade crítica, encontra-se bem atrasada em promover com afinco esse debate. Essa contradição
salta aos olhos femininos. Embora, como eu disse acima, sempre houveram filósofas, concordo que a
nossa “filosofia tem ganho presença de filósofas” e essa presença tem se feito notar. Além da presença
de novas pensadoras, há um esforço conjunto de resgate das filósofas antecedentes. Desde 2015
percebo, com alegria, um movimento crescente do feminismo brasileiro. Em 2016, no XVII Encontro
Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF), realizado em Aracaju-
SE, foi instaurado o Grupo de Trabalho “Filosofia e Gênero”. Além disso, tivemos ineditamente um
espaço de acolhimento para crianças, de modo a permitir e/ou a facilitar a participação no evento de
pesquisadores na condição de mães/pais. Ações que, a meu ver, evidenciam o crescente interesse
brasileiro à pesquisa na área de Filosofia Feminista e dos Estudos de Gênero em geral, mesmo no
contexto da filosofia que, não obstante tratar-se de uma área de investigação crítica, se vê em muitos
casos presa ao tipo de tradicionalismo patriarcal hegemônico já mencionado. É importante também
observar a diferença entre a presença da mulher na filosofia e o feminismo. Uma coisa é ocupação de
espaços como o da filosofia, outra é a argumentação a favor da ocupação desses espaços. Não
necessariamente as duas coisas andam juntas. Fato é que a filosofia não deveria ter gênero. O gênero
é uma construção social que serve apenas a interesses tiranos. Ao passo que a filosofia, desde sua
origem, combateu a tirania, advogando a favor da razão. Tendo feito esses esclarecimentos, posso
dizer que ser filósofa no Brasil, um país ainda muito marcado pelo preconceito, é desafiador e muito
bom, afinal, a filosofia resulta de alguma forma de inquietação. Aqui, temos muito a que nos inquietar
ainda! Vivemos no Brasil um clima de negacionismo em algumas esferas. Como você enquanto
filósofa entende este fenômeno? Dra. Edna Souza - Vamos refletir sobre o negacionismo em duas
esferas: senso comum e filosofia da ciência. Recentemente a ciência foi alvo de muita discussão, desde
aquela relacionada a uma espécie de movimento popular de desconfiança e menoscabo crescente do
empreendimento científico ao debate científico-filosófico sobre uma possível crise ou quebra de
paradigma científico que sugere uma nova imagem de ciência cada vez mais distante daquela do
projeto original. No primeiro caso, por exemplo, acompanhamos, sobretudo nas redes sociais, a ciência
e seus procedimentos serem colocados em dúvida, de modo simplista, pelas pessoas. As pesquisas
realizadas nas universidades foram consideradas inconfiáveis por muitos. As vacinas foram
contestadas. O aquecimento global foi negado. O terraplanismo foi reapresentado como uma teoria
alternativa à vigente. Tudo isso em meio a uma enxurrada de fake news, cujo propósito, comumente,
é o da promoção de confusão individual e manipulação da opinião pública. Entendemos que por detrás
da defesa de ideias absurdas pode estar a intenção de se conduzir à aceitação não necessariamente
dessas ideias propriamente ditas, mas de outras ideias radicais, que teriam sua aceitação facilitada, por
sua radicalidade ter sido “minimizada” em consequência da prévia consideração de absurdidades e
devaneios desarrazoados. Uma pessoa que se vê obrigada, por exemplo, a discutir repetidamente a
respeito da hipótese terraplanista, provavelmente, não se sentirá tão provocada em sua razoabilidade
quando for exposta à discussão de outra tese pseudocientífica, como se sentiu no primeiro caso. Esse
é o perigo do hábito: permitir que se familiarize mesmo com disparates, cegando para suas
contradições e consequências sociais graves. É assim que absurdos, como o terraplanismo, podem
conduzir às visões caricatas da ciência, ao descrédito do empreendimento científico, à rejeição do
realismo científico e ao fechamento do indivíduo em posturas acríticas, dogmáticas. No segundo caso
– no que concerne ao debate científico-filosófico sobre uma possível crise ou quebra de paradigma
científico –, destacamos a discussão em torno da proposta de um novo construtivismo, um
construtivismo dataísta[2]. Tal perspectiva assume que a ciência não está apenas associada à
tecnologia, mas que, fundamental e inevitavelmente, se tornou dependente desta. As tecnologias
teriam chegado a tal ponto de artificializar ou desnaturalizar aquilo que, tradicionalmente, era
entendido como a realidade natural, objeto de conhecimento. Neste processo em curso irreversível de
tecnologização da ciência, abandonado o ideal de busca pela explicação do natural, a ciência estaria
não só promovendo o desenvolvimento do artificial – entendido como uma instanciação do não-natural
–, mas fundando nele as suas bases. Enquanto o naturalismo é uma filosofia que endossa a primazia
da ontologia sobre a epistemologia, bem como uma interpretação correspondencial da verdade, o
construtivismo endossa uma primazia da epistemologia sobre a ontologia e uma interpretação do
conhecimento baseada na construção e na correlação entre dados. Neste sentido, para Floridi (2017),
ou natural é apenas uma maneira minimalista e incontroversa de referir-se aos dados como são em si
mesmos, ou o natural, percebido e concebido de maneira rica e multiforme, é uma construção, uma
artificialização, um modelo da realidade. Nesta esteira, a própria interpretação naturalista dos
fenômenos, fruto da revolução científica moderna, é em si um fenômeno cultural e, portanto, não-
naturalista. O não-natural é o que permitiria se criar categorias como a de ‘natural’. Em última análise,
o natural seria em si mesmo artefactual: uma construção semântica. Reconheço, é claro, a aproximação
cada vez maior entre ciência e tecnologia, de modo a até falarmos hoje em uma tecnociência. Porém,
considero que não seria apropriado, tampouco desejável, confundi-las, nem promover uma
artificialização generalizada da ciência e da epistemologia. Contribuições de recursos de análise de
Big Data, por exemplo, trazem consigo o risco de se substituir a relação de causalidade (tão cara à
filosofia e à prática científica tradicional) por simples correlações entre grande quantidade de dados.
O erro categorial de confundir ‘natural’ e ‘artefactual’, em minha opinião, decorre de uma acepção de
‘dado’ na qual o mesmo não é dado, mas, construído[3]: dados sobre objetos físicos são colocados na
mesma categoria dos próprios objetos físicos. O construtivismo dataísta parece se reduzir a um jogo
palavras, a uma elaboração semântica que dispensa a aderência da teoria à realidade, como se só o que
existisse fosse o discurso (e pelo discurso), que possuiria uma dinâmica própria. No entanto, tendo a
pensar que a dureza dos fatos, a resistência da realidade, que nos objeta, com o tempo, se impõe sobre
elucubrações, articulações meramente discursivas. Tenho mantido ao longo de minha trajetória que,
apesar dos diversos matizes discursivos, das tendências narrativas existentes, a racionalidade e os
dados naturais prevalecem como sustentáculos na busca de um conhecimento aprofundado da
realidade (conhecimento humano, falibilista, mas, ainda assim, conhecimento em um sentido forte),
atendendo aos anseios humanistas de respeito à liberdade individual, à justiça social e à autonomia do
pensamento e da ação. De uma perspectiva feminista, que eu advogo, o construtivismo dataísta é uma
visão equivocada (ou limitada) da prática científica. Além disso, minha recusa a esse construtivismo
é reforçada pela concepção ética, segundo a qual a prudência pragmática é um desiderato científico
feminista, bem como um recurso preventivo às posturas que podem colocar em descrédito a mesma
ciência. Ao ignorar a prudência pragmática, pode-se abrir as portas a uma tendência tecnocrata da
chamada Era da pós-verdade, sinônimo, a meu ver, de totalitarismo (de controle e opressão autoritária
via domínio de dados) e desrazão. Se as reflexões precedentes forem aceitáveis, questões
epistemológicas e científicas, deveriam incluir considerações sobre suas possíveis consequências
pragmáticas. Nesse contexto, destaco um princípio de responsabilidade pragmática caro ao feminismo,
que propõe um diálogo colaborativo entre as artes, as ciências humanas e as ciências exatas, biológicas,
valorizando ações que minimizem a probabilidade de arrependimento futuro, antes que eles ocorram.
Além disso, o reconhecimento do falibilismo e da possibilidade de autoengano deveria estar na base
das investigações. O falibilismo, que possibilita o reconhecimento de erros mediante constantes
revisões críticas de hipóteses e teorias, tem representado uma das mais significativas oposições ao
dogmatismo e ao fanatismo; reconhecer a falibilidade da faculdade de conhecimento, abre espaço para
o cultivo do apreço pela tolerância à diversidade. Qual seria no contexto atual a relação entre a ciência
e a filosofia? Dra. Edna Souza - Considero que a 4ª revolução industrial ou a era da informação parece
constituir a ponte para se transpor o que separa as “duas culturas”, na acepção de Snow (2015 [1959]).
Esta revolução em curso está reduzindo a distância entre cientistas, engenheiros e humanistas que,
impulsionados tanto pelas realizações grandiosas como pelos sérios problemas decorrentes dessa
ampla transformação científico-tecnológica, social e cultural, precisam pensar juntos sobre elementos
comuns que afetam as mais variadas escalas do conhecimento e da vida, principalmente, no atual
mundo pandêmico e pós-pandêmico. Reconheço que a busca pelo ideal de inter/multi e
transdisciplinaridade não é algo facilmente praticado, dado que certos problemas demanda um diálogo
ético, francamente cooperativo, entre pesquisadores que valorizem diferenças ambientais, biológicas,
contextuais e culturais. No entanto, essa dificuldade não é motivo para desânimo e sim para o empenho
à abertura cooperativa entre as diversas áreas de saber. Nesse sentindo, acredito que a relação entre a
filosofia e a ciência está, positivamente, se estreitando. Quais filósofos contemporâneos você gostaria
de destacar enquanto importantes no debate filosófico atual? Dra. Edna Souza - Considero muitas
filósofas e filósofos de grande relevância para a filosofia praticada hoje. Mas, como sua pergunta se
restringe à filosofia contemporânea, vou começar destacando uma filósofa iluminista inglesa, Mary
Wollstonecraft (1759 – 1797), cujo pensamento é de suma importância para o debate feminista atual.
O pensamento de Mary Wollstonecraft marca a elaboração sistemática de uma filosofia, não apenas
formal e especulativa, mas de cunho prático, transformador, com a preocupação premente voltada para
os problemas de sua época, como o entendimento das raízes da opressão sofrida pela mulher, a fim de
permitir a sua libertação. O protofeminismo presente em sua obra, bem como o seu pioneirismo como
ativista a favor dos direitos da mulher, a sua militância pelas causas de pessoas oprimidas de seu tempo
e a sua colaboração na luta abolicionista, conferiram a Mary Wollstonecraft o reconhecimento de ser
a “mãe do feminismo”. Tal perspectiva, como a concebemos hoje, defende a equidade de direitos,
alinhando as questões das “diferenças” de gênero, raça e classe social. Em última análise, tais
diferenças não representam uma realidade ontológica correspondente ao natural, antes, elas expressam
uma relação de dominação culturalmente construída e, portanto, passível de ser superada. A lógica,
patriarcal, hegemônica e capitalista procura fixar essas construções sociais como verdades absolutas,
inquestionáveis, a fim de “naturalizar” e manter a opressão sobre as ditas minorias sociais que
correspondem, de fato, à maioria numérica da espécie humana. Em sua célebre Reivindicações dos
direitos da mulher, Mary Wollstonecraft mostra a contradição do pensamento iluminista assim como
do movimento revolucionário francês da época que, embora enaltecessem a razão, apregoassem e
militassem por igualdade, liberdade e fraternidade, restringiam na prática, quando não também em
teoria, esses direitos a apenas metade da espécie humana: a masculina; ademais, mesmo dentre a
parcela masculina da humanidade, se privilegiava alguns em detrimento de outros, por questões de
raça e classe, notoriamente, sem qualquer sustentação genuinamente racional para esse proceder. A
argumentação libertária de Mary Wollstonecraft parte da consideração do reconhecimento (pelo
menos à época iluminista) de que a humanidade tem como característica fundamental e distintiva a
racionalidade, expressa no conhecimento e na virtuosidade dela decorrentes. Dessa forma, ou a
natureza estabeleceu grande diferença entre uns e outros membros da chamada espécie humana, ou a
civilização teria sido muito parcial, tornando a mulher subserviente ao homem. A causa externa da
inferiorização ou menoridade da mulher é identificada na educação[4] e nos costumes aos quais é
submetida. Para ela, não pode ser verdadeiramente sábio, responsável, nem virtuoso, o ser que antes
não for livre, pois o conhecimento, a responsabilidade e a virtude devem resultar do exercício
consciente, autônomo, de sua própria razão. Como a mulher está sempre sob a tutela do homem (como
filha, irmã, esposa e mãe), sendo refém do tipo de “decoro” que lhe é imputado e do controle severo
ao qual é submetida, ela é impedida de se emancipar, de exercer sua própria razão na busca de
interesses sérios, conhecimentos profundos e virtudes maiores. Sua menoridade é um efeito da
ignorância na qual é mantida. Assim, as distinções inaturais, preconceituosas, estabelecidas na vida
civilizada, é o que excluiria a mulher de uma posição equânime. As normas sociais, ditadas pelo
homem, segundo Mary Wollstonecraft, torna a mulher agradável, mas às custas da virtude. O prestígio
dado à delicadeza e à inocência da mulher, por um lado, serve à conveniência e ao prazer do homem,
pois a mantém no escuro: bela, graciosa, atraente, frágil, vulnerável, doce e obediente, destinada
apenas a satisfazer os sentidos masculinos. Por outro lado, conduz a mulher às “artes do coquetismo”
(sedução) e da “astúcia” (dissimulação estratégica) para satisfazer o apetite sexual e a arrogância
masculina e, com isso, garantir a própria sobrevivência e/ou realizar o desejo de ter algum tipo de
vantagem (como proteção e comodidade) ou poder sobre o homem, mesmo que limitado e temporário.
Enfim, a degradação da mulher está em se ter a beleza, gentileza, docilidade e afeto servil como as
virtudes fundamentais do sexo feminino e não as virtudes tipicamente humanas. Com efeito, a mulher
é tratada mais como fêmea do que como “criatura humana”. É assim que o peso da cultura explica a
manutenção de tais circunstâncias degradadoras da condição de mulher. Resumidamente, eis algumas
das conclusões a que Mary Wollstonecraft chega: 1) a mulher não é frágil por natureza, mas degradada
por uma série de circunstâncias; 2) a civilização tem sido muito parcial e ao homem se pode imputar
injustiça e inconsistência, por tiranamente subjugar a mulher, impedindo o desenvolvimento de sua
racionalidade e virtuosidade; 3) uma sociedade melhor, verdadeiramente esclarecida, proporciona a
emancipação para a espécie humana como um todo (mulheres e homens); 4) enfim, o desenvolvimento
humano e social requer uma “política sã” difusora da liberdade. Tendo questionado o lugar ocupado
pela mulher na sociedade e exposto as razões pelas quais a educação feminina é inadequada e
fomentadora de sua degradação, Mary Wollstonecraft apresenta uma proposta de sistema educacional
obrigatório, misto, igualitário e público, repensando a educação como um todo, da educação informal
à formal, para meninas e meninos, da infância à juventude e para pobres e ricos. Sistema esse em que
não se confunde virtude com reputação ou prestígio, de modo que a preocupação não seja com a
aparência e sim com o desenvolvimento do caráter. Aliás, a busca por reputação e prestígio,
comumente, vai de encontro aos deveres morais. A educação e os costumes da mulher primando pela
virtude, propriamente dita, deixa de superelevar a questão da beleza e delicadeza artificial da mesma,
a fim de atrair e agradar o homem, causa da dissimulação ou “astúcia feminina”, como já fora
mencionado. Além disso, o duplo padrão moral burguês revela-se escandalosamente desarrazoado. À
mulher não cabe como única virtude a castidade, capaz de aquilatar sua moral, de modo que a
possuindo possa ignorar outros deveres morais e não sendo mais casta seja desonrada, privada de todo
caráter. Em que pese a preocupação com a reputação relativa à castidade (significado de honradez
feminina) ser crucial para a mulher, ela é nula para o homem. Em ambos os casos – de sobra e falta
dessa preocupação com a castidade –, o resultado é nocivo à própria moralidade, pois torna o homem
um carrasco e a mulher uma dissimulada. Se o exemplo acima de aplicação da dupla moral soar algo
muito antigo, lembre-se que há pouco mais de vinte anos, ao homem era facultado anular o casamento
em caso de “falta de virgindade” da nubente. Casos de aplicação desse direito, descritos em processos
judiciais, revelam o horror e trauma a que a mulher era obrigada a passar[5]. Há cinco anos, assédio
sexual tornou-se crime pela legislação brasileira, mas, no caso de denúncia formal em Delegacias e
afins, o tratamento de mulheres vítimas dessa e de outras violências, comumente, é descrito como não
menos desumano, passando de vítimas às provocadoras do “inconveniente”. Essa é a expressão da
resistência em se mudar as estruturas de poder fortemente estabelecidas em nossa sociedade, que
degrada a mulher. Por isso, considero a crítica social elaborada por Mary Wollstonecraft, bem como
o prospecto positivo de que essa infeliz realidade, enquanto uma construção social, pode ser mudada
para melhor, de suma importância para o debate feminista atual, inclusive, aqui no Brasil. É
impressionante como um argumento do século XVIII, em contexto tão distante, pode ser tão bem
empregado hodiernamente no Brasil. A propósito, gostaria de destacar também grandes filósofas
brasileiras, cujas obras são contributos indeléveis para o debate da filosofia na atualidade. Além de
suas contribuições para o feminismo em geral, a reflexão de tais pensadoras nos permite entender
melhor a nossa própria identidade brasileira e a repensar problemas que nos assolam desde a tomada
e a ocupação deste território por outros povos que não os originários. São elas: Nísia Floresta (1810-
1885), atualmente, identificada como a primeira feminista brasileira, defensora dos direitos das
mulheres, dos povos originários e dos escravos, e ativista das campanhas abolicionista e republicana;
Lélia Gonzalez (1935-1994), uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado (MNU); Sueli
Carneiro (1950 - ), referência do feminismo negro brasileiro. Essas mulheres, dentre outras, têm muito
a nos dizer dos limites de nossa democracia e das dificuldades enfrentadas pelas iniciativas e
movimentos sociais brasileiros. Se a emancipação da mulher começa pelo acesso à educação e pela
inclusão na vida pública, então, temos muito ainda que lutar, pois se não há mais impedimento legal
para tal, há um impedimento estrutural, em que a opressão vem disfarçada. A falsa narrativa de que os
mesmos direitos são reservados a todas e todos é um mecanismo utilizado para manter a estrutura
opressora funcionando regularmente. Como minhas indicações acima, por si só, já revelam, o
feminismo negro parece se destacar no Brasil – algo que considero maravilhoso. É importante também
não nos esquecermos de que a nossa origem é vermelha, preta e branca, e que não só essa raiz comum
nos une, mas também o fato de estarmos todas sujeitas ao preconceito e à violência. Que possamos
unir nossas diversas e diferentes experiências e reflexões em prol da equidade! Um dos filósofos que
inaugura a modernidade no contexto da atualidade é Renè Descartes. Poderia nos falar sobre ele? Dra.
Edna Souza - Sim. Como você mesmo disse, Descartes “inaugura a modernidade”, ou seja, sua
proposta racionalista está na base da formação da ciência e filosofia modernas que conhecemos e que
são praticadas ainda hoje. Afinal, em muitos sentidos e a despeito das ditas filosofias pós-modernas
contemporâneas, ainda somos modernos. Esse tema é amplamente conhecido nos círculos filosóficos
e mesmo fora deles, dada a relevância de tal pensador para a história do pensamento. Mas, agora, eu
gostaria de abordar um outro Descartes, não tão conhecido: aquele que mantém correspondência
intelectual constante e profícua com pensadoras de sua época, as quais, embora invisibilizadas ao
longo da história, estão muito presentes na gênese e no desenvolvimento do pensamento cartesiano.
Falo de Sofia de Hannover, Cristina da Suécia e, mais especialmente, de Elisabeth da Boêmia. De
acordo com a filósofa portuguesa Maria Luisa Ribeiro Ferreira, “devemos a certas mulheres uma
melhor compreensão do pensamento cartesiano” e, ainda, devido as suas interposições “o
cartesianismo reconquista o corpo, estabelecendo-se definitivamente uma ponte entre o homem que
pensa, o homem que padece e o homem que age” (FERREIRA, 1998, p. 141;155). Então, é sobre esse
cartesianismo “mais inteiro” que meu interesse se volta na atualidade. Um escrutínio das
correspondências trocadas entre Descartes e as pensadoras acima mencionadas revela que ele não
apenas considerava seriamente a maneira de mulheres levantar questões filosóficas como teve que
rever muito de seu pensamento a partir das objeções levantadas por suas interlocutoras. O modo
próprio, pragmático, pelo qual as mulheres praticavam (e praticam) a filosofia pode ser até mesmo
considerado diferente do modo racionalista proposto pelo filósofo, mas não por uma incapacidade
filosófica de se enveredar por tal caminho, mas pela discordância de que essa seria a opção mais
adequada para tratar de problemáticas que lhe são caras. Com efeito, essa afirmação é sustentada pelo
teor das correspondências trocadas entre eles. Tais pensadoras levaram Descartes a repensar conceitos
fundamentais, reformular teses basilares, direcionar seu interesse para a relação corpo/alma (apesar de
inicialmente ele ter secundarizado, se não negligenciado, o corpo, a imaginação, a paixão e a
sensibilidade) e a procurar diluir dicotomias em sua obra. Uma mulher não esquece o corpo: ponto
nevrálgico da condição feminina. Assim, podemos ver a insistência de Elisabeth da Boêmia em fazer
Descartes rever o dualismo substancial mente/corpo. Na obra As Paixões da Alma temos uma
verdadeira síntese resultante das discussões epistolares que eles travaram ao longo de anos. Quais são
seus futuros planos de pesquisa na área filosófica? Dra. Edna Souza - Tenho alguns projetos de curto,
médio e longo prazos que, apesar de suas especificidades, dialogam entre si, pois trazem como eixo
central o anseio feminista por equidade de gêneros, classes, raças e etnias. Pretendo: investigar
filosofias feministas, especialmente, as abordagens feministas da ciência[6] e da linguagem, e o
ecofeminismo; pesquisar sobre a produção intelectual da mulher e o pensamento feminista brasileiro;
estudar a respeito da presença da mulher (e da imagem de mulher) na filosofia, repensando a história
da filosofia, a partir dessa temática. Em um esforço acadêmico conjunto, interdisciplinar, espero
desenvolver trabalhos críticos (próprios da filosofia) ao articular saberes e práticas sobre a chamada
virada linguístico-pragmática na filosofia. Entendo que as considerações pragmáticas sobre a
linguagem, culminando com a perspectiva ilocucionária, cujo enfoque é o ato de fala, ou seja, a função
da linguagem que implica ou demanda um comportamento, um uso e um valor contextuais, parece
lançar luz sobre problemas como o da socialização de gênero. Daí a proposta do desenvolvimento de
uma teoria do uso linguístico combinada a uma abordagem crítica da sociedade, em que a linguagem
está situada, bem como de uma perspectiva da ideologia, que explique as distorções e manipulações
no uso da linguagem, a partir das formas de dominação reproduzidas e justificadas na sociedade. Essa
abordagem, ao contrário da Semântica tradicional, parece mais adequada para estabelecer um diálogo
horizontal entre diversas perspectivas contemporâneas da filosofia, sociologia, linguística, dentre
outras, de modo a acomodar grandes questões da atualidade, como o papel dos diversos
saberes/ciências/tecnologias/linguagens frente à crise ambiental e social em avanço. Além disso,
começo a organizar um projeto de extensão “A mulher e seu corpo: da filosofia à dança”, em que
reflexão e ação somam no empoderamento da mulher. Enfim, há muito trabalho a ser feito na área dos
estudos feministas e de gênero, sobretudo, no Brasil, onde há tantos problemas e ainda poucas
abordagens do assunto.
com base no texto acima faça 5 perguntas filosoficas sobre para professora edina

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