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Outros modos de se fazer filosofia

(https://diplomatique.org.br/outros-modos-de-se-fazer-filosofia/)

(https://anpof.org/comunicacoes/coluna-anpof/outros-modos-de-se-fazer-filosofia)

Juliana Ortegosa Aggio (UFBA/CNPq)

Aqueles que não conseguem reler são obrigados a ler


a mesma história em toda parte.

(Roland Barthes)

A pergunta que guia este breve ensaio é a seguinte: qual autoridade legitima
certos modos de se fazer filosofia? Qual autoridade, mesmo que revestida de
institucionalidade, poderia se arvorar o poder de julgar o que pode ou não ser
considerado como conhecimento filosófico ou quem pode ser ou não reconhecido como
filósofo ou filósofa? Inspirada pelo ensaio Pode o Outro da filosofia falar? de Judith
Butler, proponho questionar os conteúdos da história da filosofia, os métodos
investigativos, as funções e os critérios avaliativos, bem como a autoridade em legitimar
certos modos de se fazer filosofia e excluir outros. Minha crítica sinaliza para uma
ousadia, a saber: talvez possamos pensar não apenas sobre, mas com e para além uma
pletora de obras se pudermos nos abrir para outros modos de se fazer filosofia.

Não se pretende, aqui, delimitar latifúndios do pensamento, nem propor


monocultura ideológica ou doutrinação acadêmica, tampouco elogios ao atual estado
das coisas. Muito pelo contrário, as perguntas deste ensaio acompanham minha
trajetória e, feito bumerangue, me fazem provar de meu próprio pharmakon: eu, que
fui formada nesse sistema bem delimitado da especialização sobre a filosofia de um
autor canonizado. Certamente, o meu incômodo me impele a provocar algum
constrangimento a essa instituição acadêmica que insiste em preservar seu excessivo
rigor científico, sua elegância eurocêntrica, sua erudição excêntrica, suas personalidades
arrogantes e idiossincrasias, sua enfadonha repetição do mesmo, sua tentativa de
assentar um solo inquebrantável na especialização em um autor e o infindável
comentário de texto desse autor. Erro maior não há na Academia do que a fidelidade às
palavras do filósofo e os desdobramentos das técnicas da especialização.

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Do problema da especialização como autorização para falar segue-se outro pior:
o de não se autorizar a pensar por si mesmo no sentido de ousar filosofar, encolhendo-
se na menoridade intelectual, tornando-se um espectro por detrás de um autor
canonizado e, ainda, gastar toda uma vida em disputar a propriedade nacional de
especialista desse autor para, no final, receber – permita-me aqui usar de inspiração
machadiana - o medalhão de grande especialista em... Com certa indignação e sede de
ousar, faço algum contraponto ao modo institucional dominante de se fazer filosofia
que seria, digamos, mais um saber sobre a filosofia de alguém canonizado do que a
liberdade de se pensar sobre, com e para além da filosofia de um ou mais autores. Essa
liberdade, todavia, pressupõe a abertura de se contestar os pressupostos institucionais
de legitimação da produção filosófica.

Na hierarquia acadêmica, os cargos de poder e seus medalhões revestem de


institucionalidade a autoridade para legitimar certos modos de fazer filosofia. Ora, mas
sempre cabe a seguinte contestação: Qual autoridade, mesmo revestida de
institucionalidade, poderia se arvorar o poder de julgar o que pode ou não ser
considerado como conhecimento filosófico ou quem pode ser ou não reconhecido como
filósofo ou filósofa? Quais são os pressupostos do julgamento e da seleção? Ora,
sabemos que eles operam como critério nas bancas de seleções para inserção como
discente e docente na universidade, nos pareceres que aprovam ou rejeitam
publicações e verbas que financiam projetos e eventos. Sabemos também que são os
docentes das universidades que sustentam esse entendimento e exercem o poder de
determinar o que seria mais ou menos filosófico ou nada filosófico. Agora, é preciso que
saibam que quando as mulheres em geral, e, sobretudo, mulheres e homens negros e
indígenas são excluídos do cânone, e quando certos temas, objetos, questões e modos
de produzir conhecimento também são excluídos, essas perguntas não poderiam deixar
de serem feitas e de serem, ainda, incômodas, justamente porque revelam uma
estrutura de poder por detrás dos parâmetros institucionais que definem o que seria
legitimamente filosofia.

Não apenas inclusão e ampliação do cânone, é preciso, em verdade, uma


completa revisão feminista e antirracista da história da filosofia, o que, para muitos,
parece ser um gesto de colocar alguma “impureza” nas tintas acadêmicas. Pois que, para
mim e para muitos, seria antes um gesto de justiça e, como disse Butler, no ensaio

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mencionado acima, Pode o Outro da filosofia falar?: “na medida em que a filosofia
perdeu sua pureza, também adquiriu sua vitalidade em meio às humanidades” (2022, p.
413). É preciso, portanto, fazermos uma história da filosofia que não apenas inclua os
excluídos, mas que se abra para novos objetos, questões e temas, bem como novas
formas de argumentar, imaginar e produzir conhecimento. Perspectivas culturais e
históricas ameaçam de forma saudável deslocar os próprios termos da filosofia e
ultrapassar as barreiras da departamentalização.

A despeito da peneira estreita da academia que reduz os modos de se fazer


filosofia, a própria filosofia, escandalosamente, vem se multiplicado e ganhando força
para questionar, novamente, os conteúdos da história da filosofia, os métodos
investigativos, as funções e os critérios avaliativos. As perguntas que trago aqui
levantam certa suspeita sobre “a filosofia institucionalizada”, mas não para
simplesmente defender que haveria “uma filosofia desistitucionalizada”, caindo num
falso binarismo, e sim para suscitar a multiplicidade da produção filosófica que força o
alargamento dos limites institucionais, muitas vezes fixados em protocolos e padrões
por demais restritivos.

Outros modos de se fazer filosofia já existem fora do reduto oficial da filosofia


acadêmica, nas suas beiradas interdisciplinares e nas fronteiras de seus conceitos lidos
e relidos por análises culturais sofisticadas e potentes, como nos mostrou Butler (2022).
E essas foraclusões da filosofia, esse outro estranho que lhe assombra e a faz perder de
si, essa “filosofia fora da filosofia” mostra que “a filosofia tem sido majoritariamente
solitária, territorial, protetiva e cada vez mais hermética” (2022, p. 411). Se esse
diagnóstico estiver correto, então talvez seja preciso que a filosofia volte novamente a
buscar o que lhe é próprio, não no sentido de uma definição precisa do que ela seja, o
que não parece ser sequer possível, mas no sentido de plena abertura para o
pensamento que pensa a si mesmo. Ora, na medida em que qualquer objeto de
pensamento pode ser um objeto da filosofia, ela não teria limites senão aqueles
impostos a posteriori e por vias institucionais. Ou seja, não seria o seu objeto, por
natureza ilimitado, que a delimitaria, mas o modo de capturá-lo em palavras e ações.
Tais limites ou delimitações do fazer filosófico determinados e impostos arbitrariamente
ou com base em razões, não são naturais, eternos, imutáveis, infalíveis e
inquestionáveis. São historicamente contingentes e filosoficamente passíveis de

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questionamento. Ora, a filosofia já foi modo de vida, mas parece ter se encerrado na
tarefa de produzir discursos sobre conceitos ou, mais restritivamente, na tarefa
acadêmica de analisar textos e argumentos.

Assim, não é simplesmente a filosofia acadêmica que gostaria de questionar,


nem sua formação histórica e contingente, mas afirmar que, justamente por sua
institucionalização ser histórica, ela pode e deve se transformar, alargando seus
parâmetros e suas exigências, operando numa espécie de minimum criteria, ou seja, que
os critérios para legitimar o que é filosófico sejam mínimos o bastante e amplos o
suficiente para se permitir uma natureza múltipla, aberta e inclusiva da filosofia.
Tampouco a filosofia acadêmica deveria se arvorar a ser hegemônica no tecido cultural,
mas se ver apenas como mais uma vertente, aberta à interdisciplinaridade e, se
tornando, por isso mesmo, mais alargada em seu interior e mais borrada em suas
fronteiras com o exterior. Se abertura aqui almejada visa a multiplicidade dos modos de
se fazer filosofia, então isso só poderia ser alcançado e mantido se a deferência ao
purismo for abandonada em nome da expansão dos problemas, conceitos e métodos,
bem como da inclusão de pensadores que não foram canonizados e não são,
atualmente, reconhecidos como filósofas/os/es.

Ora, se a filosofia for feita com menos tecnicismo, com uma linguagem menos
hermética e com uma clareza convincente e profunda, se não for feita somente por e
para especialistas, se a paciência do conceito vencer a pressa do produtivismo, se a
especulação criativa vencer a lógica do mercado e das honrarias, se ela romper os muros
dos narcisismos que a apequenam e a reduzem a medalhões, se ela abandonar o
purismo e se lançar a pensar objetos considerados não filosóficos pela academia, se não
se pretender inteiramente a-histórica e não ignorar a função social que lhe cabe
conforme cada momento histórico, se o texto for apenas pretexto para uma vivência
transformadora de si e do mundo, se ela não estiver tão apartada da vida, mas puder
ser também um modo de vida, capaz de criticar a si mesma e não se levar tão a sério, se
as fronteiras institucionais, departamentais e disciplinares forem alargadas e borradas,
então podemos imaginar que dela surgirão resultados inesperados e outros modos de
fazer filosofia poderão habitar os corredores da Universidade.

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