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FARMACODINÂMICA E

FARMACOCINÉTICA I
Princípios básicos
da farmacologia
Tuane Bazanella Sampaio

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

> Identificar os princípios básicos da resposta farmacológica de um fármaco.


> Diferenciar potência relativa e eficácia relativa de um fármaco.
> Reconhecer o processo de desenvolvimento e registro de novos fármacos.

Introdução
A farmacologia compreende o estudo das substâncias que interagem com sistemas
vivos por meio de processos químicos, especialmente por meio de moléculas
reguladoras e ativação ou inibição de processos corporais normais ou patológi-
cos. Essas substâncias químicas administradas com o intuito de obter um efeito
terapêutico benéfico sobre algum processo no paciente nada mais são do que
os chamados fármacos.
Neste capítulo, você estudará os princípios da farmacocinética e da farmaco-
dinâmica, compreendendo por que o estudo dessas áreas da farmacologia é tão
importante para a prática clínica. Além disso, acompanhará as etapas pelas quais
um protótipo de fármaco precisa passar para ser aprovado para comercialização
como medicamento, desde os primeiros passos para a seleção de uma molécula
e a escolha do alvo farmacológico até os testes de desenvolvimento da pesquisa
pré-clínica e as três fases principais de um estudo clínico.
2 Princípios básicos da farmacologia

Farmacocinética e farmacodinâmica
Os efeitos da maioria dos fármacos são atribuídos à sua interação com os
componentes macromoleculares do organismo, como as proteínas, por exem-
plo. Essa teoria está incorporada há mais de um século ao termo receptor ou
alvo farmacológico. O receptor, portanto, é a macromolécula com a qual o
fármaco interage para produzir uma resposta celular, ou seja, uma resposta
farmacológica. Em sua maioria, os receptores estão localizados na superfície
das células, acoplados à membrana plasmática, e são macromoléculas protei-
cas. Entretanto, também se encontram receptores intracelulares, a exemplo
dos receptores nucleares, e constituídos por outras macromoléculas, como
os ácidos nucleicos que agem como receptores de agentes quimioterápicos
(KATZUNG; TREVOR, 2017).
Essa interação fármaco-receptor e os efeitos desencadeados a partir dela
são a base do estudo da farmacodinâmica, enquanto a farmacocinética irá se
preocupar em como o fármaco chega até esse receptor e como será eliminado
posteriormente pelo organismo. Vamos compreender melhor esses conceitos?

Farmacocinética
A farmacocinética é o ramo da farmacologia que estuda o movimento dos
fármacos no organismo, sendo constituída por quatro processos principais
(também chamados de ADME): (A) absorção, (D) distribuição, (M) metabolismo
ou biotransformação e (E) excreção de fármacos. Uma vez que a farmacociné-
tica é fundamental para a decisão da via de administração, dose e regime de
dose de um medicamento, a compreensão e a aplicação dos seus princípios
ampliam a possibilidade de sucesso terapêutico e reduzem a ocorrência de
efeitos adversos dos fármacos no organismo (RITTER et al., 2020).
O processo de absorção diz respeito à transferência de um fármaco do
seu local de administração para a corrente sanguínea e a amplitude com que
isso ocorre. Já a velocidade e a eficiência da absorção dependerão da via de
administração escolhida e da forma farmacêutica do medicamento. Desse
modo, a biodisponibilidade de um fármaco — fração do fármaco administrado
que chega à circulação sistêmica na forma química inalterada — é de maior
relevância do que a absorção em si.
Há duas vias principais para a administração de fármacos: a enteral e a
parental. A via entérica engloba as administrações oral, sublingual e retal,
enquanto a parental inclui as vias intravenosa, intramuscular, subcutânea
e intradérmica. A ingestão oral é o método mais comumente usado para a
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administração de fármacos, devido a sua segurança, conveniência e economia.


Entretanto, suas desvantagens compreendem a absorção limitada e irregular
de alguns fármacos, devido a interações medicamentosas e alimentares, bem
como à necessidade de cooperação por parte do paciente. Além disso, um fator
de extrema importância a ser considerado para fármacos administrados por
via oral é a biodisponibilidade reduzida devido ao metabolismo de primeira
passagem, isto é, a redução do fármaco disponível na circulação sistêmica
devido ao seu metabolismo intestinal e hepático.
Em contraste, devido aos locais de administração, a via parenteral permite
a liberação do fármaco na sua forma ativa, garantindo uma biodisponibili-
dade mais rápida e previsível, uma vez que não há metabolismo de primeira
passagem. Além disso, essa via é utilizada para fármacos pouco absorvíveis
ou instáveis no trato gastrointestinal, como a insulina, bem como em casos
de urgência e emergência, quando não é possível a colaboração do paciente
ou quando há a necessidade de um efeito mais rápido.
Assim que o fármaco ou uma fração dele alcança a circulação sistêmica,
pode então ser distribuído. A distribuição é o processo pelo qual o fármaco
reversivelmente deixa o leito vascular e entra no líquido intersticial e/ou nas
células dos tecidos. Sendo assim, esse processo depende das propriedades
físico-químicas de cada fármaco, do fluxo sanguíneo e da permeabilidade
capilar. Logo, órgãos bem irrigados, como rins, fígado e cérebro, recebem
inicialmente a maior parte dos fármacos, enquanto músculos, tecido adiposo,
pele e vísceras são alcançados pelos fármacos em um segundo momento.
O determinante mais importante do fracionamento sangue/tecido é a
ligação relativa do fármaco às proteínas plasmáticas, que limitam a con-
centração do fármaco livre. A albumina é a principal carreadora de fármacos
ácidos, a glicoproteína ácida α1 se liga aos fármacos básicos e as lipoproteínas
carreiam fármacos lipossolúveis. Em geral, essas ligações são reversíveis e
interações inespecíficas com outras proteínas plasmáticas ocorrem a uma
taxa insignificante. Essa reversibilidade é importante, pois apenas o fármaco
livre é capaz de penetrar nos tecidos e assim alcançar seu alvo farmacológico.
Da mesma forma, a reversibilidade da ligação fármaco-receptor é importante,
pois decorrido o período determinado pela afinidade da ligação fármaco-
-receptor, o fármaco livre retornará à circulação.
Novamente na circulação, o fármaco passará pelo processo de metabo-
lismo ou biotransformação. Em suma, essa etapa é responsável pela elimina-
ção do fármaco do organismo. Há dois tipos de reações principais para isso:
as reações de funcionalização de fase I são realizadas pelas isoformas do
citocromo P450 e interferases, que introduzem ou expõem um grupo funcional
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induzindo a perda ou ampliação da atividade farmacológica. Já nas reações de


biossíntese/conjugação de fase II, o fármaco é unido covalentemente a ácido
glicurônico, aminoácidos, sulfato, glutationa ou acetato. Por serem altamente
polares, esses conjugados são rapidamente excretados na urina e nas fezes.

Os sistemas enzimáticos envolvidos no metabolismo de fármacos


estão localizados principalmente no fígado, embora possam ser
encontrados em outros tecidos, como o do trato gastrointestinal, rins e pulmões.
Este é o motivo da redução da biodisponibilidade de um fármaco administrado
pela via oral. Ou seja, o metabolismo de primeira passagem nada mais é do que
a inativação metabólica de parte do fármaco nos epitélios intestinal e hepático
antes de chegar à circulação sistêmica.

Por fim, a eliminação dos fármacos pode ocorrer sem qualquer alteração
ou após eles serem convertidos em metabólitos. Como dito anteriormente,
em geral substâncias polares são mais facilmente excretadas, sendo neces-
sária a etapa de metabolização. A depuração é uma medida da eficiência do
organismo em eliminar um fármaco, e a meia-vida de eliminação representa a
taxa com que esse fármaco é retirado da circulação sistêmica. Essas medidas
são essenciais para o planejamento de um esquema racional de administração
prolongada de um fármaco.
Nesse contexto, o rim se destaca como o órgão mais importante para a
excreção de fármacos e seus metabólitos. As substâncias eliminadas nas
fezes são predominantemente fármacos que não foram absorvidos no trato
gastrointestinal ou metabólitos excretados na bile que não foram reabsor-
vidos. A excreção pelo leite materno é importante devido aos efeitos no
lactente, assim como a excreção pulmonar é importante para a eliminação
de gases anestésicos.

Farmacodinâmica
A farmacodinâmica é a vertente da farmacologia que se dedica ao estudo
dos efeitos bioquímicos e fisiológicos dos fármacos e seus mecanismos de
ação. Mediante esse estudo, é possível racionalizar o uso de fármacos e
ajudar a desenvolver novos agentes terapêuticos. Portanto, em essência
podemos considerar que a farmacodinâmica estuda os efeitos provocados
pelo fármaco ao organismo.
Tais efeitos, que podem ser terapêuticos ou tóxicos, são provenientes da
interação entre o fármaco e o receptor do organismo. Por meio dessa intera-
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ção, o fármaco altera a função do receptor, iniciando uma cascata de eventos


bioquímicos e fisiológicos que culminarão na resposta ao fármaco. Ou seja,
em geral, os fármacos alteram a velocidade ou a magnitude de uma resposta
celular intrínseca, ao invés de produzir reações que antes não ocorriam. Além
disso, os receptores apresentam características químicas que medeiam a
função dos fármacos. Nesse sentido, os receptores determinam as relações
quantitativas entre a concentração de fármaco e o efeito farmacológico ob-
tido, bem como a seletividade e a afinidade de ligação do fármaco (KATZUNG;
TREVOR, 2017). Conforme veremos na próxima seção, o efeito desencadeado
por um fármaco dependerá do aumento ou redução da atividade intrínseca
do seu alvo farmacológico/receptor.

A variabilidade inter e intraindividual é muitas vezes substancial


para o efeito de um fármaco, e este fato pode resultar em alteração
da eficácia/potência ou efeitos adversos inesperados. Embora grandes ensaios
clínicos bem conduzidos possam prever o efeito médio dos fármacos, é reco-
nhecida a existência de subgrupos de pessoas que apresentam maior potencial
de resposta benéfica do que outros. Tais variações podem se dever a questões
fisiológicas específicas, como sexo e idade, a fatores adquiridos, como doenças
crônicas, ou a fatores ambientais, como interações fármaco-fármaco e fármaco-
-alimento. No entanto, um fator que causa maior individualidade na resposta
a fármacos e que tem sido extensamente investigado nos últimos anos é o
componente genético. Essa variação individual na resposta farmacológica pode
ser causada por diferentes concentrações do fármaco no local de ação, ou seja,
em virtude de variações farmacocinéticas, ou por diferentes respostas à mesma
concentração plasmática de fármaco, denominada variação farmacodinâmica.
Portanto, sempre que um desses fatores interferentes for conhecido, deve-se
racionalizar a farmacoterapia (RITTER et al., 2020).

Interação fármaco-receptor
A interação fármaco-receptor é muito mais dinâmica do que a sugerida pelo
modelo de receptor rígido. Atualmente, sabe-se que a ligação de pequenas
moléculas pode levar a alteração conformacional nas estruturas terciárias ou
quaternárias da macromolécula. Assim, acredita-se que, quando um fármaco
F se liga a um receptor R, formando um complexo F-R, ocorrem variações na
conformação do receptor, e esse rearranjo já pode constituir por si o fenômeno
que desencadeia o efeito e/ou o estímulo necessário para o favorecimento
da interação do receptor com outras moléculas efetoras (RITTER et al., 2020).
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O estímulo gerado é considerado proporcional à fração de receptores no


estado ativado (Ra). Logo, quando o fármaco se desliga, deixa o receptor em
um estado não receptivo/inativo (Ri) que, em seguida, retorna ao seu estado
inicial R. Nesse sentido, temos que os receptores são moléculas dinâmicas,
encontradas numa conformação mais ativa (Ra) ou mais inativa (Ri).
Considerações termodinâmicas indicam que parte da quantidade total
do receptor deve existir na forma mais ativa Ra, demonstrando atividade
fisiológica mesmo na ausência de um ligante endógeno ou exógeno. Tal
atividade é denominada constitutiva ou intrínseca. Assim, a atividade cons-
titutiva de um receptor depende da sua facilidade em intercambiar entre os
estados Ra e Ri (flexibilidade conformacional) e da eficiência do acoplamento
receptor-efetor na célula. Logo, a interação do receptor com um ligante pode
estabilizá-lo predominantemente numa conformação mais ativa Ra ou mais
inativa Ri, estimulando, inibindo ou não alterando sua atividade intrínseca
(RITTER et al., 2020).
Com base nessas características, os principais ligantes farmacológicos
são divididos em: agonista pleno ou total, agonista parcial, antagonista e
agonista inverso. Conforme ilustrado na Figura 1, os agonistas apresentam uma
afinidade muito mais alta pela configuração mais ativa (Ra), e a estabilizam
de modo que uma grande porcentagem da quantidade total de receptores
reside na fração Ra-fármaco (Ra-F), com um efeito grande sendo produzido. Os
fármacos agonistas totais ou plenos (linha verde), quando administrados em
concentrações saturantes da quantidade de receptores disponíveis, podem
induzir seus sistemas receptor-efetor à resposta máxima. Desse modo, causam
um desvio de quase todos os receptores presentes para a conformação Ra-F.

Figura 1. Gráfico representativo da concentração logarítmica de fármacos versus a resposta


desencadeada pelos principais tipos de ligantes farmacológicos.
Fonte: Hilal-Dandan e Brunton (2015, documento on-line).
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Por outro lado, os chamados agonistas parciais não evocam a resposta


máxima do sistema receptor-efetor, por mais alta que seja a concentração
de fármaco. Isso ocorre porque a ligação do agonista parcial não estabiliza
tão plenamente a conformação mais ativa Ra quanto os agonistas totais,
permanecendo uma fração menor, porém significativa, de receptores na
conformação mais inativa Ri (Figura 1 — linha azul). Devido a isso, diz-se que
esses fármacos têm baixa eficácia intrínseca.
Já na ação antagonista convencional, o que ocorre é a afinidade equi-
valente do fármaco por ambas as conformações, Ra e Ri. Assim, o fármaco
antagonista estabiliza as frações mais inativas (Ri) e mais ativas (Ra) nas
mesmas quantidades que na ausência de qualquer fármaco (Figura 1 — linha
preta). Com isso, a atividade constitutiva não é alterada, conferindo a falsa
percepção de que o fármaco não possui efeito. Entretanto, a presença do
antagonista no sítio receptor bloqueia o acesso de agonistas ao receptor e
previne o efeito agonista habitual.
E o que acontecerá se um fármaco tiver uma afinidade muito mais forte
pela conformação mais inativa Ri do que pela mais ativa Ra e estabilizar uma
grande fração da quantidade total de receptores em Ri–F? Esse cenário ocorre
quando fármacos agonistas inversos interagem com o sistema receptor-efetor
(Figura 1 — linha vermelha).

Relação dose-resposta de fármacos


A escolha de fármacos e das suas respectivas doses deve ser embasada no
conhecimento de sua potência farmacológica relativa e da eficácia máxima
em relação ao efeito terapêutico desejado.
Considere o gráfico ilustrado na Figura 2. A potência farmacológica refere-
-se à quantidade de fármaco necessária para produzir 50% do efeito máximo
do mesmo (concentração efetiva para alcançar 50% do efeito — EC50). Sendo
assim, o fármaco B apresenta potência maior que o fármaco A, pois a concen-
tração de fármaco B necessária para alcançar metade do seu efeito máximo
é menor do que a do fármaco A.
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Figura 2. Gráfico de curva de concentrações logarítmicas de fármacos versus a resposta


farmacológica para quatro fármacos diferentes (A-D), ilustrando potências farmacológicas
e eficácias máximas diferentes.
Fonte: Katzung e Trevor (2017, p. 35).

Opostamente, a eficácia máxima de um fármaco será determinada a partir


do eixo de resposta do gráfico (Figura 2). Assim, observando o gráfico, percebe-
-se que a eficácia máxima é equivalente para os fármacos B, C e D, sendo
estas superiores à eficácia máxima do fármaco A. Ou seja, a eficácia máxima
corresponde à resposta máxima alcançada pelo fármaco, independentemente
da sua concentração necessária para tal.

Desenvolvimento de fármacos
Com o desenvolvimento da indústria farmacêutica no fim do século XIX, a
descoberta de fármacos tornou-se um processo altamente focado e geren-
ciado, deixando de ser realizada por pesquisadores e passando a ser feita por
cientistas contratados com esse propósito. Grosseiramente, o processo de
desenvolvimento de novos fármacos pode ser dividido em três componentes
principais:

„ a descoberta do fármaco, etapa em que as moléculas candidatas são


escolhidas com base nas suas propriedades farmacológicas;
„ desenvolvimento pré-clínico, quando é realizada uma gama de estu-
dos sem o envolvimento de testes em humanos (incluindo teste de
toxicidade, análise farmacocinética/farmacodinâmica e formulação);
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„ desenvolvimento clínico, durante o qual o composto selecionado é


testado em relação a sua eficácia, efeitos adversos e perigos potenciais
junto a voluntários sadios e pacientes voluntários.

Embora o acontecimento sucessivo dessas etapas seja o ideal, em geral


elas se superpõem ao longo do desenvolvimento.

Fase de descoberta do fármaco


Inicialmente, algumas perguntas-chave irão guiar a descoberta de um novo
fármaco: Qual é a doença em estudo? Há um sintoma específico que se busca
amenizar? Há fármacos disponíveis com propostas semelhantes? Pretendo
apenas desenvolver uma versão melhorada de um fármaco já existente? De-
pendendo das respostas a essas perguntas, caso a intenção seja desenvolver
um fármaco inovador, ou seja, sem tomar como base moléculas com efeitos já
conhecidos, a etapa subsequente será compreender os alvos farmacológicos
que estão envolvidos na doença/sintoma em questão.
Em geral, os alvos farmacológicos são proteínas funcionais, como recep-
tores, enzimas, proteínas transportadoras, proteínas reguladoras, canais
iônicos, entre outros. Nesse sentido, embora muitas proteínas já tenham sido
caracterizadas quanto a sua estrutura e função, estima-se que centenas a
milhares de outras permaneçam desconhecidas, representando potenciais
pontos de partida para a descoberta de fármacos e exploração terapêutica.

O grande desafio emerge da seleção certeira de alvos atingíveis


e válidos, uma vez que a maior limitação à inovação não está na
descoberta e avaliação biológica e farmacológica primária dos alvos, mas sim
em outros fatores, como, o surgimento de efeitos adversos não previstos e a
translação da eficácia primária para a clínica.

O conjunto de conhecimento sobre os mecanismos da doença e as vias


de sinalização química, juntamente com a informação genômica, é a base
sobre a qual novos alvos são constantemente escolhidos. Disciplinas como
farmacogenética, bioinformática, proteômica e análise de sistemas vêm
desempenhando um papel cada vez maior por meio da revelação de novas
proteínas envolvidas na marcação química, novos genes envolvidos na doença
e novos modelos de progressão da doença.
10 Princípios básicos da farmacologia

Uma vez que o alvo molecular está decidido e a viabilidade do projeto foi
avaliada, inicia-se a busca pela caracterização do alvo farmacológico e pelos
chamados compostos-guia. A seleção dos compostos-guia se dá pela previsão
das interações dos compostos hipotéticos ou existentes em bibliotecas de
compostos com a estrutura proteica validada do alvo farmacológico. A partir
desse ponto, os compostos-guia selecionados são usados como base para
preparar grupos de homólogos por meio de química combinatória e para
estabelecer as características estruturais críticas para a ligação seletiva
com o alvo.
Apenas um em cada quatro projetos é bem-sucedido na produção de
um fármaco candidato, e somente esta etapa pode levar até cinco anos.
O problema mais comum ocorre quando a otimização do guia se mostra
impossível. Em outros casos, os candidatos principais, embora produzam os
efeitos desejados na molécula-alvo in vitro e não tenham efeitos adversos
evidentes, não conseguem produzir os efeitos esperados nos modelos ani-
mais da doença, evidenciando que o alvo provavelmente também não seria
adequado para a abordagem terapêutica em humanos. Uma minoria virtuosa
de fármacos progride para a fase seguinte, o desenvolvimento pré-clínico.

Desenvolvimento pré-clínico
O objetivo do desenvolvimento pré-clínico é satisfazer todas as exigências
experimentais antes que um novo composto seja considerado pronto para
ser testado pela primeira vez em seres humanos. Sendo assim, os labora-
tórios credenciados para realização de desenvolvimento pré-clínico são
regularmente monitorados quanto a adesão aos padrões de boa prática
laboratorial (BPL, ou good laboratory practice — GLP). O objetivo da BPL é
eliminar o erro humano tanto quanto possível e assegurar a confiabilidade
dos dados submetidos às autoridades reguladoras, tornando todo o processo
de desenvolvimento rastreável (INMETRO, 2011).
Sendo assim, a fase de desenvolvimento pré-clínico ou não clínico é di-
vidida em quatro etapas principais: testes farmacológicos para avaliação de
segurança; testes toxicológicos; testes de farmacocinética e farmacodinâmica;
e desenvolvimento químico e farmacêutico (GOLAN et al., 2021). Dependendo
do estudo em questão, os resultados de uma etapa serão decisivos para a
continuidade nas etapas seguintes ou poderão ser obtidos paralelamente,
através da realização dessas etapas de modo simultâneo.
A primeira etapa, de testes farmacológicos, visa descartar qualquer efeito
agudo que possa interferir na segurança do possível fármaco, sendo chamada
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de farmacologia de segurança. Assim, analisa-se o potencial da molécula


em produzir quaisquer potenciais efeitos farmacodinâmicos indesejáveis
nas funções fisiológicas dos diversos sistemas orgânicos, como no sistema
nervoso central, cardiovascular e respiratório. Já os testes toxicológicos
preliminares buscam eliminar a indução de genotoxicidade e determinar a
dose máxima tolerada da molécula teste (GOLAN et al., 2021). Similarmente
aos testes de segurança farmacológica, os testes toxicológicos incluem a
utilização de duas espécies de mamíferos, sendo uma roedora e outra não
roedora. A aprovação da molécula-teste nos testes não clínicos de segurança
é exigida pelas agências reguladoras, como a Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (Anvisa) no Brasil, para autorizar o início dos estudos clínicos de
fase 1 de um candidato a fármaco (ANVISA, 2013).
A terceira etapa da fase de desenvolvimento pré-clínico envolve os testes
farmacocinéticos/toxicocinéticos e farmacodinâmicos, incluindo estudos
sobre absorção, metabolismo, distribuição e eliminação nas espécies animais
de laboratório utilizadas para teste toxicológico, bem como para relacionar
os efeitos farmacológicos e toxicológicos à concentração plasmática e à
exposição ao fármaco. Estudos de toxicocinética e farmacocinética são re-
alizados em roedores por meio da administração de doses do protótipo a
fármaco e posterior monitoramento no organismo do animal. Já os estudos
de farmacodinâmica podem contribuir para a seleção de doses nos estudos
não clínicos de segurança e estudos clínicos, além de indicar o possível uso
terapêutico em humanos (ANVISA, 2013).
Por último, a etapa de desenvolvimento químico e farmacêutico tem como
objetivo avaliar a viabilidade da síntese/produção e da purificação em larga
escala, analisar a estabilidade do composto em várias condições, determi-
nar algumas características importantes da molécula (como a solubilidade,
cristalinidade e ponto de fusão) e desenvolver a formulação adequada para
os estudos clínicos. O trabalho de desenvolvimento não clínico continua por
todo o período dos ensaios clínicos, quando muito mais dados têm de ser
gerados, especialmente em relação à toxicidade a longo prazo e reprodutiva
nos animais.

Desenvolvimento clínico
Uma vez que a pesquisa pré-clínica tenha estabelecido a eficácia e a se-
gurança potenciais de um composto, sua aprovação é solicitada, a fim de
iniciar a investigação em ensaios clínicos. Esse pedido deve conter os dados
de análises pré-clínicas submetidos na forma de um relatório detalhado às
12 Princípios básicos da farmacologia

agências reguladoras, como a Anvisa no Brasil, a Food and Drug Administration


(FDA) nos Estados Unidos e a European Medicines Agency (EMA) na Europa.
Além disso, deve conter dados de pesquisas anteriores e a proposição de um
protocolo para a condução dos ensaios clínicos em seres humanos. Somente
após a permissão de tais entidades os estudos poderão prosseguir para os
testes clínicos em humanos.
Em suma, os ensaios clínicos são divididos em três fases. Em geral, os
estudos de fase 1 envolvem entre 20 e 100 voluntários saudáveis e visam
estabelecer a segurança e tolerabilidade de um composto. Para isso, ini-
cialmente são conduzidos ensaios de dose única para após serem testadas
doses consecutivas. Além disso, busca-se a utilização do escalonamento de
doses para proporcionar maior segurança ao paciente. Somado a isso, essa
exposição é aproveitada para avaliar as propriedades farmacocinéticas e
farmacodinâmicas do fármaco, incluindo a dose máxima tolerada. Dessa
forma, os estudos da fase 1 precisam produzir informações suficientes sobre
a farmacocinética do candidato à fármaco, como volume de distribuição e
meia-vida do fármaco, permitindo a determinação do regime de dose a ser
adotado nos estudos de fases 2 e 3.
Nos estudos clínicos de fase 2, os objetivos estarão relacionados à obten-
ção de dados preliminares sobre a efetividade do composto para tratamento
da doença em questão. Sendo assim, esta etapa pode envolver várias centenas
de voluntários portadores da doença de interesse. No entanto, os ensaios de
fase 2 continuarão monitorando a segurança farmacológica da terapia, e uma
vez que envolvem mais pacientes, propiciam a detecção de efeitos adversos
mais incomuns. Além disso, esta fase deve ser desenvolvida por meio de
ensaios cegos ou duplos-cegos, em que nem o paciente nem o pesquisador
sabem quem está recebendo a terapia ou o placebo. Os resultados obtidos na
fase 2 são cruciais para determinar os protocolos dos estudos de fase 3. Com
isso, geralmente são necessárias reuniões entre pesquisadores e a agência
reguladora local para estabelecimento da condução da próxima etapa.
Por fim, os estudos clínicos de fase 3 são conduzidos junto a milhares
de pacientes, de diferentes locais e com um regime de dose semelhante
ao esperado para a sua prática clínica, seguindo sempre os mais rigorosos
métodos científicos. Nesta fase, são especificados e analisados os desfechos
primários e secundários do estudo. Em geral, o fármaco só será aprovado
mediante resultado significativo em desfecho primário. Entretanto, depen-
dendo do possível benefício clínico, desfechos secundários/substitutivos
podem ser considerados. Ademais, a etapa de monitoramento da segurança
Princípios básicos da farmacologia 13

farmacológica se mantém mesmo quando a aprovação do fármaco já ocorreu,


podendo esta ser suspensa se houver qualquer indício de insegurança.
Em termos gerais, embora os princípios da farmacologia estejam clara-
mente inseridos no nosso cotidiano, para o profissional da saúde não basta
apenas compreendê-los. Mais do que isso, é de extrema importância dominar
os conceitos básicos da farmacocinética e farmacodinâmica para a aplicação
clínica baseada em boas evidências científicas, de modo a considerar a
individualidade do paciente atendido, a exemplo de pacientes nefropatas e
hepatopatas, idosos e crianças. Além disso, é crucial conhecer e propagar a
racionalização do desenvolvimento de fármacos, tanto em âmbito nacional
quanto internacional, e a sua regulamentação para aderência do tratamento
medicamentoso do paciente e, consequentemente, o sucesso terapêutico.

Referências
ANVISA. Guia para a condução de estudos não clínicos de toxicologia e segurança
farmacológica necessários ao desenvolvimento de medicamentos. Brasília: Anvisa, 2013.
GOLAN, D. et al. Princípios de farmacologia: a base fisiopatológica da farmacoterapia.
3. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2021.
HILAL-DANDAN, R.; BRUNTON, L. Manual de farmacologia e terapêutica de Goodman &
Gilman. 2. ed. Porto Alegre: AMGH, 2015. E-book.
INMETRO. Norma n. NIT-DICLA-035: princípios das boas práticas de laboratório — BPL.
Brasília: Inmetro, 2011.
KATZUNG, B. G.; TREVOR, A. J. Farmacologia básica e clínica. 13. ed. Porto Alegre: AMGH,
2017.
RITTER, J. M. et al. Rang & Dale farmacologia. 9. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan,
2020.

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