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DOI: 10.1590/1413-812320172210.

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Pode a Vigilância em Saúde ser emancipatória?

ARTIGO ARTICLE
Um pensamento alternativo de alternativas em tempos de crise

Can Health Surveillance be emancipatory? An alternative way


of thinking about alternatives in times of crisis

Marcelo Firpo de Souza Porto 1

Abstract This article in essay form is an invita- Resumo Este artigo, na forma de ensaio, é um
tion to reflect upon the emancipatory character of convite à reflexão sobre o caráter emancipatório
health surveillance, a debate that was interrupted da vigilância em/da saúde, um debate interrom-
in the 1990s. In these times of grave political and pido na década de 1990. Em tempos de grave crise
institutional crisis in Brazil and in the year of the política e institucional no Brasil e no ano da 1ª
first National Conference on Health Surveillance Conferência Nacional de Vigilância em Saúde (1ª
(1ª CNVS, acronym in Portuguese), it is particu- CNVS), é estratégico renovar as discussões teóri-
larly appropriate to revive the critical theoretical cas e epistemológicas críticas que fundamentaram
and epistemological discussions that have ground- a trajetória da medicina social latino-americana
ed the trajectory of Latin American social medi- e da saúde coletiva nos últimos 40 anos. Para isso,
cine and public health over the last 40 years. To baseamo-nos nos pensamentos críticos da moder-
this end, I draw on aspects of critical thinking on nidade que articulam o capitalismo, o colonialis-
modernity devised by the Portuguese sociologist mo (ou a colonialidade) e o patriarcalismo como
Boaventura de Sousa Santos, who postulates three os três pilares da dominação, segundo o sociólogo
pillars of domination: capitalism, colonialism (or português Boaventura de Sousa Santos. Em um
coloniality), and patriarchy. In the current con- contexto de crise civilizatória, repensar a eman-
text of a crisis of civilization, rethinking emanci- cipação significa atualizar o significado das lutas
pation requires us to refresh our understanding of sociais em seu relacionamento com o conhecimen-
the meaning of social struggles in terms of their to e as epistemologias desprezadas pela civilização
relationship with the knowledges and epistemolo- moderna e ainda presentes no Sul Global, seja nos
gies undermined by modern civilization and still espaços indígenas e camponeses ou nas periferias
present in the Global South, whether in spaces oc- urbanas.
cupied by indigenous peoples and poor farmers or Palavras-chave Vigilância em Saúde, Crise ci-
1
Centro de Estudos da in urban peripheries. vilizatória, Modernidade, Colonialidade e episte-
Saúde do Trabalhador e Key words Health Surveillance, Crisis of civiliza- mologias do sul
Ecologia Humana, Escola tion, Modernity, Coloniality, and epistemologies
Nacional de Saúde Pública
Sérgio Arouca, Fiocruz. R. of the South
Leopoldo Bulhões 1480,
Manguinhos. 21041-210
Rio de Janeiro RJ Brasil.
marcelo.firpo@
ensp.fiocruz.br
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Porto MFS

Introdução: para refletir sobre a vigilância ras próximas a uma concepção de vigilância da
e seu potencial emancipatório saúde.
Na terceira parte do artigo buscamos novos
A reflexão proposta por este artigo, em forma de referenciais para discutir limites e possibilidades
ensaio, se orienta a partir de uma questão chave: da vigilância para além de uma abordagem crí-
em que medida podemos pensar a vigilância em tica pautada na economia política, na análise do
seu caráter emancipatório, bem como seus limi- desenvolvimento das forças capitalistas recentes
tes e desafios nos tempos atuais? Nossa tentativa no país, na conformação do Estado e das classes
de contribuir para esse debate se baseia em mais sociais que forjam contradições, avanços ou re-
de 40 anos de experiências do autor no campo trocessos das lutas sociais e conquistas democrá-
da Saúde Coletiva (SC) em pesquisa, formação e ticas. Sem negar tal leitura, marcante na história
construção de políticas no âmbito do SUS, ba- da MSLA e em diversos intelectuais envolvidos
sicamente nas áreas de saúde do trabalhador, de na reforma sanitária brasileira, bem como no do-
saúde e ambiente, e de promoção da saúde envol- cumento orientador da 1ª CNVS, apresentamos
vendo trabalhos colaborativos e de pesquisa-ação outro referencial ainda pouco explorado pela SC.
com inúmeros grupos sociais vulnerabilizados Baseamos-nos em autores que discutem a temá-
nas cidades, campos e florestas. tica da modernidade, colonialidade e pós-colo-
Ao longo do artigo buscamos trilhar quatro nialismo, principalmente o sociólogo português
discussões que se entrelaçam. Inicialmente sin- Boaventura de Sousa Santos. Para este autor, é
tetizamos os elementos que marcam o contexto necessário construir um pensamento alternativo
atual da crise política e institucional apontados das alternativas3 que possibilite repensar o papel
pelo documento orientador da 1ª CNVS1. O do- das utopias e das lutas sociais emancipatórias em
cumento apresenta seríssimos desafios para as tempos de expansão do capitalismo globalizado,
políticas e ações de vigilância em contexto de com inúmeras crises que se agravam nos vários
retrocessos que rompem com pactos estabeleci- continentes, como a da democracia, da violência
dos pela Constituição Cidadã de 1988 e com os e a ecológica.
avanços, ainda que limitados e contraditórios, de Esse pensamento alternativo reflete uma
quatro gestões do governo do PT, encerrado com crítica mais ampla à modernidade eurocêntrica
o impeachment da Presidenta Dilma Roussef. e ocidental enquanto projeto civilizatório uni-
Num segundo momento resgatamos a dis- versal. As lutas sociais emancipatórias são vistas
cussão em torno da vigilância da saúde iniciado para além da luta de classes e dos processos de
nos anos 80 e 90, impulsionado pela Medicina emancipação-regulação da modernidade. Tra-
Social latino-americana (MSLA) e, no Brasil, ta-se de incorporar outras visões, experiências e
pela Reforma Sanitária e autores da Saúde Co- conhecimentos provenientes das lutas sociais do
letiva (SC). Nossa intenção é retomar um debate chamado Sul Global. Ou seja, dos espaços, povos,
interrompido entre uma vertente mais ampla e culturas e saberes que foram e continuam a ser
emancipatória afinada com os princípios da de- radicalmente excluídos e invisibilizados ao lon-
terminação social da saúde, chamada de vigilân- go de séculos de dominação colonial, capitalista
cia da saúde2; e outra concepção mais restrita que e patriarcal que ainda não terminaram, já que se
veio a ser denominada como vigilância em saúde, renovam e se articulam de diversas formas em
de caráter mais operacional e voltada ao controle tempos de globalização neoliberal.
de agravos, tornada hegemônica na organização Por fim, encerramos o artigo refletindo bre-
do Ministério da Saúde e do SUS. vemente sobre a questão inicial – em que medida
Como veremos, a concepção contra-hegemô- a vigilância pode ser emancipatória – a partir das
nica permanece até os dias de hoje com alguma discussões apontadas anteriormente, levantando
vitalidade no campo acadêmico da SC, bem como desafios e alguns caminhos possíveis para a vigi-
por meio de experiências locais porém instáveis lância.
e descontínuas. Elas navegam por entre espaços
político-institucionais de eleições e coalisões fa- A 1ª Conferência Nacional de Vigilância
voráveis à sua implementação, num frágil limiar em Saúde em contexto de crise
entre o instituinte e o instituído. Mesmo no âm-
bito federal ao longo da gestão do PT, jamais a O tema da 1ª CNVS é “Vigilância em Saúde:
discussão da vigilância da saúde foi retomada, ou Direito, Conquistas e Defesa de um SUS Público
foram criados esforços mais sólidos, sistêmicos e de Qualidade”. O documento orientador1 apro-
sistemáticos para apoiar as experiências inovado- vado pelo Conselho Nacional de Saúde, faz uma
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extensa análise da atual conjuntura brasileira. O armamentos, dentre outros. Além do Congresso,
eixo principal do documento é Política Nacional vários setores do judiciário e do próprio execu-
de Vigilância em Saúde e o Fortalecimento do SUS tivo, com enorme apoio da mídia hegemônica,
como Direito à Proteção e Promoção da Saúde do têm sustentado as medidas excludentes e antide-
Povo Brasileiro. Em seguida são discutidos quatro mocráticas que fragilizam direitos fundamentais
subeixos estratégicos: (i) o lugar da vigilância no e a defesa dos bens públicos e comuns. Também
SUS; (ii) responsabilidades do estado e dos go- complica-se a questão urbana e do saneamento
vernos; (iii) saberes, práticas, processos de traba- básico: o tema da cidade democrática, sustentável
lhos e tecnologias na vigilância; (iv) vigilância em e saudável é considerado estratégico, dado o peso
saúde participativa e democrática para enfrenta- da população urbana no Brasil. Além da falta de
mento das iniquidades em saúde. saneamento nas periferias que marcam as desi-
Ao analisar o quadro atual, o documento des- gualdades socioespaciais das cidades brasileiras,
creve uma situação bastante complicada no país e e que estão na base dos surtos de dengue, zika
no mundo. Por exemplo, afirma que, após a crise e chikungunya com graves impactos epidemioló-
global do sistema financeiro em 2007-2008, para- gicos, o documento destaca a tendência de agra-
doxalmente está em marcha um movimento ne- vamento de outros problemas socioambientais
oliberal ainda mais ortodoxo que drena recursos como a poluição, a crise hídrica e os desastres,
da produção e de políticas sociais redistributivas sejam eles os decorrentes de eventos climáticos
através de políticas de austeridade fiscal, penali- ou os de origem industrial, como a emblemáti-
zando, desta forma, as classes médias e as classes ca tragédia crime da mineradora Samarco em
populares em vez dos mais ricos cada vez mais Minas Gerais ocorrida em novembro de 2015. A
ricos. Com o impeachment de 2016, rompe-se questão da produção de alimentos, a concentra-
com o conflitivo e frágil pacto social em torno ção fundiária pelo agronegócio, a contaminação
da “constituição cidadã” de 1988. A solução ne- por agrotóxicos e a obesidade são também apon-
oliberal (ou ultraliberal) em curso imposta por tados como grandes desafios.
um governo não eleito enfrenta a crise econô- O documento reconhece que não é novo o
mica por meio do retrocesso das políticas de in- problema estrutural do país que reforça a con-
clusão social e participação democrática, mesmo centração de renda e poder, as desigualdades so-
que limitadas após 13 anos de governo do PT. cioespaciais e a degradação ambiental. Ele está
As propostas de Emendas à Constituição Fede- ligado ao modelo capitalista em curso no Brasil e
ral em curso, como as reformas previdenciária e no conjunto da América Latina, assente em uma
trabalhista, são avaliadas como sérias ameaças à economia extrativista que se transformou numa
cidadania, à democracia e aos direitos humanos. encruzilhada: ao exportar commodities minerais
Trata-se, em verdade, de um processo de ra- e agrícolas produziu superávites primários com
dicalização de um conservadorismo existente no a redução da dívida externa, possibilitando certas
país e intensificado ao longo do governo Dilma políticas sociais redistributivas e a manutenção
Roussef, principalmente desde 2014, que termi- do frágil pacto social mencionado. Ao mesmo
nou por romper com a base da democracia repre- tempo, reforçou o poder político de grupos con-
sentativa, e por isso foi denominado de golpe. Tal servadores, a concentração fundiária, a riqueza
processo visa quebrar conquistas expressas em dos mais ricos e o rentismo, a degradação da
políticas públicas inclusivas em campos como a natureza e os conflitos de terra com indígenas,
educação, o meio ambiente, a saúde, a segurida- quilombolas e camponeses. Como esperado em
de social, o direito à terra, o acesso ao trabalho países exportadores de commodities, a crise no
decente, a renda familiar, a agricultura familiar, mercado internacional e a retração do cresci-
a segurança alimentar e nutricional, a segurança mento da China acabaram por produzir impor-
pública cidadã, bem como o reconhecimento dos tantes efeitos econômicos e políticos.
direitos de populações discriminadas e vulnerá- Enfim, trata-se de um quadro sombrio e com
veis como os indígenas, os quilombolas, os cam- poucas esperanças para avanços na proposição
poneses, os negros, os favelados, as mulheres e a de uma vigilância universal, integrada, partici-
comunidade LGBT. pativa e territorial. Diante disso, como pensar as
Um palco privilegiado desse retrocesso tem bases de uma política nacional a ser discutida na
sido o Congresso Nacional por meio das banca- 1ª CNVS? Como aproximar a vigilância do con-
das vinculadas aos interesses do agronegócio, da junto da sociedade, de forma integrada aos terri-
mineração, das empreiteiras e construção civil, de tórios e às lutas por democracia, direitos e saúde?
grupos religiosos conservadores, da indústria de Como interpretar o contexto e os desafios que a
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atual crise colocam para a construção da vigi- tornou a desigualdade uma categoria central na
lância? Enfim, é possível pensar numa vigilância epidemiologia latino-americana, adjetivada en-
emancipatória? tão de social.
Não pretendo propriamente responder ques- Nos anos 1980 e 1990 a MSLA realizou dis-
tões tão complexas, mas principalmente levantar cussões sobre os possíveis avanços no planeja-
alternativas de como pensá-las com referenciais mento e organização de sistemas e serviços de
até o momento pouco trabalhados pela SC, lan- saúde, sendo um dos principais autores o argen-
çando mão de algumas ideias do pensamento tino Pedro Luiz Castellanos6, que enfatizou a im-
crítico pós-colonial ou decolonial e as propostas portância da análise dos processos saúde-doença
de Boaventura de Sousa Santos. Nossa aposta é e das condições de vida das populações para en-
que elas podem nos ajudar a renovar formas de frentar as desigualdades sociais.
compreender e avançar em proposições emanci- Esta discussão frutifica no Brasil em conso-
patórias no campo da saúde coletiva e, mais espe- nância com os debates sobre a reforma sanitária
cificamente, no debate sobre a vigilância. e a construção do SUS desde o início dos anos
Porém, antes de entrar nas bases desse pensa- 19907, e possui como marco o texto seminal de
mento alternativo, faremos um breve resgate da Carmem Teixeira, Jairnilson Paim e Ana Luiza
construção do campo da vigilância para mostrar intitulado “SUS, modelos assistenciais e vigilância
tensões e impasses que permaneceram ao longo da saúde”2. O texto sistematiza as principais dife-
da SC e da implementação do SUS. renças entre os dois modelos hegemônicos, o mé-
dico-assistencialista e o sanitarista, e a proposta
Vigilância em ou da Saúde: emergente da vigilância da saúde a ser construída
um debate interrompido no SUS. Ela teria por objeto os danos, os riscos
e as necessidades de saúde, as condições de vida
É curioso que uma área tão estratégica para a e trabalho, incorporando meios de trabalho ba-
saúde pública e coletiva como a vigilância tenha seados na comunicação, no planejamento e pro-
permanecido sem um aprofundamento teórico e gramação local e situacional, assim como nas no-
político por tanto tempo no âmbito da SC, pelo vas tecnologias médico-sanitárias. As formas de
menos em relação a outras áreas. Trata-se de organização do modelo proposto previam ações
uma questão relevante, já que historicamente a intersetoriais, políticas públicas saudáveis e ope-
vigilância pode ser considerada como a área da rações sobre problemas de saúde e gupos popula-
saúde pública/coletiva que atua diretamente so- cionais específicos. Enfim, uma proposta afinada
bre os determinantes socioambientais da saúde com o espírito da sáude coletiva, ainda que pe-
e o modelo de desenvolvimento, tão discutidos sem limitações como a convivência acrítica entre
no documento orientador. Passadas aproximada- os saberes biomédicos especializados com os sa-
mente três décadas do fim do governo militar, da beres populares e as lutas sociais na definição das
Constituição Cidadã de 1988 e do próprio SUS, e necessidades e prioridades de saúde.
apesar de vários avanços operacionais, o campo A proposta da vigilância da saúde refletia
da vigilância continua sem uma política e sem uma disputa existente nos Congressos de Epide-
definições claras, principalmente no âmbito mu- miologia já naquela época entre duas vertentes
nicipal local. da vigilância5,7.
De acordo com a Portaria 3.252 de 2009 do (i) Uma mais restrita, de caráter operacio-
MS, a vigilância em saúde engloba um conjunto nal e voltada ao controle de agravos específicos
de subáreas e setores, desde as tradicionais vi- com a incorporação de algumas técnicas mo-
gilâncias epidemiológica e sanitária, até outras dernas da Saúde Pública, e que mais tarde veio
áreas – saúde dos trabalhadores, saúde ambien- a se consolidar como vigilância em saúde. Tal
tal, promoção da saúde e análise de situações de vertente assumiu a hegemonia institucional na
saúde – que refletem tanto o desenvolvimento da organização do MS e do SUS. Ainda que tenha
Nova Saúde Pública4 como práticas inovadoras incorporado avanços conceituais e metodológi-
do SUS. Tais áreas são centrais por incidirem nos cos presentes em experiências inovadoras, jamais
riscos e vulnerabilidades relacionadas ao modelo conseguiu materializar uma reorganização mais
de desenvolvimento econômico do país. De acor- ampla do conjunto das ações e serviços de aten-
do com Sabroza5, tal modelo é responsável pelas ção, principalmente no nível local;
desigualdades sociais e regionais do País, resul- (ii) Outra vertente ampliada, ancorada na
tando num tipo de transição epidemiológica bas- proposta de vigilância da saúde, parte dos prin-
tante fora dos padrões dos países centrais, o que cípios da Saúde Coletiva e da Reforma Sanitária
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para pensar o setor saúde como promotor de na compreensão e modelagem de problemas9-11;
políticas estratégicas de transformação social e as interfaces entre as ciências ambientais e do
enfrentamento das desigualdades sociais, inter- risco, e mais recentemente da ecologia políca em
vindo sobre os determinantes sociais ou socio- contextos socioambientais de maior vulnerabi-
ambientais. A proposta parte dos conhecimentos lidade e injustiça12; o enfoque ecossistêmico em
da epidemiologia e das ciências sociais em saúde saúde como alternativa teórico-metodológica
para priorizar e enfrentar problemas em terri- transdisciplinar para a intervenção no âmbito
tórios e grupos populacionais delimitados, com comunitário13.
ênfase em ações intersetoriais e setoriais de pro- Experiências inovadoras no âmbito local fre-
moção da saúde, prevenção de riscos e agravos, quentemente se apoiaram na articulação entre
bem como na reorganização da assistência médi- grupos acadêmicos, o SUS e setores da sociedade,
co-ambulatorial e hospitalar em articulação com incluindo movimentos sociais, com profissionais
as necessidades de saúde. Possui nas vigilâncias engajados da saúde conquistando ou mantendo
em saúde do trabalhador e saúde ambiental, bem espaços para implementá-las. No nível local as
como ações de promoção da saúde, um lócus pri- ações de vigilância tendem a diluir as frontei-
vilegiado de experimentação. ras fragmentadoras entre as clássicas vigilâncias
A disputa entre as vertentes restrita (hege- epidemiológica e sanitária com as de saúde dos
mônica) e a ampliada de vigilância continua até trabalhadores e saúde ambiental, o que contribui
o presente, muitas vezes na forma de paradoxo, tanto para integrar como para complexificar e
contradições e silenciamentos nas negociações limitar as ações. Apesar disso, em que pese con-
que defininiram a(s) vigilância(s) e seus setores tribuições específicas, jamais houve um processo
ou, se preferirmos, seus “bunkers” especializados. de reflexão teórica mais abrangente e uma con-
Permanecem lacunas não só entre as promessas solidação dessas experiências no âmbito federal
de se enfrentar os determinantes socioambien- do SUS, que estancaram na proposta seminal da
tais em saúde, como na gestão e autonomia no vigilância da saúde2.
nível territorial e local enquanto estratégico para Por exemplo, entre 2009 e 2011 chegou a ser
a efetivação do SUS em seu deslocamento para desenvolvida uma proposta de vigilância e pro-
um modelo que superaria as vertentes assisten- moção da saúde em territórios específicos finan-
cialista e sanitarista. A questão territorial local ciada pelo Ministério da Saúde a partir de um
inclui questões vitais para o enfrentamento das projeto de capacitação docente organizado pela
desigualdades sociais para além da eficiência tec- Rede de Escolas de Saúde Pública e realizado pela
noburocrática das instituições reguladoras e fis- ENSP/Fiocruz. A proposta resgatava e atualiza-
calizadoras, como a democracia e a participação va os debates da vigilância da saúde, tendo por
social/comunitária onde vivem e trabalham pes- eixo a análise das condições de vida, saúde e seus
soas de corpo e alma. determinantes socioambientais, bem como o de-
Em linhas gerais, podemos dizer que as con- senvolvimento de ações integradas de prevenção
cepções ampliadas de vigilância permanecem e promoção com forte componente participativo
com certa força principalmente no âmbito aca- e comunicacional com atores locais, incluindo
dêmico, com algumas experiências periféricas uma agenda pactuada de problemas de saúde
e descontinuadas dentro do SUS em realidades prioritários14. Negociada no final da segunda
regionais e locais propícias, caso das ações de go- gestão do governo Lula, a proposta não teve con-
vernos mais progressistas e profissionais engaja- tinuidade na gestão Dilma Roussef. Ao mesmo
dos. Tais experiências contra-hegemônicas ocor- tempo, reforçava-se no governo federal a con-
rem desde os primórdios do SUS como práticas cepção de uma vigilância em saúde pautada pela
sociais com avanços conceituais e metodológicos inserção do Brasil na rede global de vigilância
importantes que buscam cruzar as fronteiras en- num contexto de globalização e crescente preo-
tre o instituinte e o instituído, sendo experiências cupação com a segurança frente à emergência de
instáveis, descontínuas e periféricas à estrutura novas doenças, difusão de riscos de pandemias,
organizacional do SUS. Dentre os temas, concei- bioterrorismo e possibilidade de catástrofes14.
tos e métodos incorporados nesse processo des- As dificuldades de avanços aparecem mesmo
tacamos: território e territorialização, incluindo em áreas com políticas em tese melhor definidas.
ferramentas do geoprocessamento para a análise É o caso da promoção da saúde, cuja política na-
socioespacial de problemas de saúde8; comple- cional foi publicada inicialmente em 2006. Vários
xidade e vulnerabilidade que contribuem para autores15,16 identificam um profundo fosso entre
pensar as diferentes escalas espaciais e temporais o que preconiza a Política e a realidade das práti-
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cas institucionais hierarquizadas e centralizadas, ca de uma ciência social autônoma e anti-impe-


em contextos de fortes desigualdades socioes- rialista, além de teóricos da dependência, como
paciais. As críticas indicam uma ausência siste- Orlando Fals-Borda, Rodolfo Kutsch, Pablo Gon-
mática de escuta das necessidades e interesses zález Casanova, Paulo Freire e Darcy Ribeiro.
das pessoas e comunidades justamente as mais Para Arturo Escobar17, alguns elementos sin-
vulneráveis e que têm seus direitos fundamen- tetizam a posição dos autores que apostam numa
tais não garantidos e invisibilizados. Mesmo com leitura não eurocêntrica para repensar o mundo
diversos avanços na atenção básica, o diagnóstico e suas possibilidades emancipatórias. A seguir,
aponta os limites do modelo biomédico e pro- destaco de forma resumida algumas dessas ca-
dutivista na organização de um sistema de saúde racterísticas3,17-21.
verticalizado e pouco dialógico, o que impossi- •  Uma visão crítica acerca da modernidade
bilita avanços inovadores na participação social, e da globalização enquanto um fenômeno his-
no exercício da cidadania e no trabalho em redes tórico, sociológico, cultural e filosófico universal
com a sociedade. e totalizante. O projeto moderno é visto como
Como refletir as lacunas de políticas, conhe- eurocêntrico, uma visão particular de mundo
cimentos e práticas, sua contradições e parado- no qual concepções de sociedade, natureza e
xos que permanecem ao longo quase 40 anos de progresso negam, desqualificam e invisibilizam
ABRASCO e 30 de SUS? Como resgatar o sentido outras visões. O sujeitos não modernos são con-
de emancipação nos dias atuais e aproximar a vi- siderados sub-humanos a serem subalternizados,
gilância das lutas e transformações sociais mais explorados e subordinados ao centro capitalista e
candentes de nosso tempo? colonial. A tarefa central, portanto, é desconstruir
e descolonizar tais pressupostos e reconstruir no-
Um pensamento alternativo para pensar vas racionalidades e imaginários a partir da pre-
alternativas: pós-colonialismo, sença dos sujeitos, povos e culturas excluídas.
colonialidade e epistemologias do Sul •  O reconhecimento de que o fim das colô-
nias na geopolítica mundial, iniciado nas Améri-
Para refletir sobre as questões anteriores, lan- cas e aparentemente encerrado no século XX no
çamos mão dos trabalhos de intelectuais e ativis- pós-guerra, não foi o fim do colonialismo. Este
tas políticos que atuam nas últimas décadas na permanece não apenas pela dominação capita-
Ásia, África e América Latina. Eles compreendem lista no sistema-mundo entre centro e periferias,
a globalização econômica hegemônica a partir da mas enquanto um domínio que nega e invisibili-
crítica do capitalismo em articulação com pro- za existências, sujeitos e saberes. Trata-se, portan-
cessos coloniais e patriarcais que, ao longo dos to, de uma colonialidade do saber e do poder que
séculos, sempre estiveram presentes nas clivagens reproduz formas de dominação cegas às alterna-
não somente econômicas e sociais, mas episte- tivas de outros mundos, uma epistemologia da
mológicas e culturais. cegueira. As propostas de descolonizar formas de
Trata-se, em realidade, de uma vasta produ- pensar e sentir fazem parte de um movimento te-
ção intelectual com inúmeros autores e corren- órico, ético e político que questiona as pretensões
tes17,18. Na Ásia e África surgem os estudos pós- universalizantes da modernidade, de suas on-
coloniais e subalternos no campo da filosofia, tologias e conhecimentos científicos assumidos
literatura e cultura com nomes como o palestino como superiores epistemológica e moralmente,
Edward Said, o indiano Homi Bhabha e Frantz ao mesmo tempo em que busca reescrever alter-
Fanon, nascido na Martinica, mas que atuou na nativas a partir dos saberes, culturas e ontologias
independência da Argélia e influenciou no Brasil do Sul Global sistematicamente desprezados.
Paulo Freire. Mais próximos e recentes, na Amé- •  Ainda que se reconheça o caráter emanci-
rica Latina o programa de pesquisa denominado patório do marxismo, ele é visto como parte de
modernidade/colonialidade reúne, principal- uma modernidade intrinsicamente eurocêntrica,
mente com a virada do século XXI, autores como um espelho da ideologia liberal, com um ide-
o venezuelano Edgardo Lander, o peruano Aníbal al universalizante e totalizante impregnado por
Quijano, o argentino Walter Mignolo, o colom- ideias evolucionistas como progresso e determi-
biano Arturo Escobar e o argentino radicado no nismo social, sendo necessário superá-lo a partir
México Enrique Dussel, dentre inúmeros outros. de outras perspectivas. Por exemplo, a ideia de
As origens desse grupo remontam a importantes Dussel de uma transmodernidade pós-colonial
autores do pensamento latino-americano crítico implica um princípio ético de liberação de to-
ligados à teologia e à filosofia da libertação, à bus- dos os oprimidos, não apenas trabalhadores, por
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meio de uma solidariedade de todos os grupos -humanos não candidatos à inclusão social. A ne-
subalternizados, cuja existência e identidade fo- gação dessa humanidade é essencial à constituição
ram negadas ontologicamente. Daí a importân- da modernidade, uma vez que é condição para que
cia de inúmeras frentes de lutas sociais emanci- o lado de cá possa afirmar a sua universalidade. As-
patórias, como as antirracistas e feministas, e o sim, práticas que não se encaixam nas teorias não
protagonismo de grupos sociais desvalorizados põem em causa essas teorias, e práticas desumanas
pelo marxismo até então, como camponeses, in- não põem em causa os princípios da humanidade3.
dígenas, negros, mulheres, moradores de perife- A ideia do pensamento colonial/abissal per-
rias urbanas, grupos LGBT, dentre outros. mite analisar a presença de duas realidades que
•  Por fim, a centralidade da disputa episte- convivem simultaneamente: (i) a metropolita-
mólogica nas lutas sociais em busca de uma nova na, espaço da modernidade e do Norte Global
razão decolonial ou pós-colonial. Assume-se eurocêntrico no qual o capitalismo globalizado
como central o papel da ciência moderna e oci- expressa tanto seus benefícios como suas contra-
dental nos processos de dominação e exclusão dições mais visíveis. Trata-se de uma realidade
de outras alternativas de mundo e de saberes. As orientada por um conhecimento-regulação as-
lutas sociais passam a ser também lutas pelo reco- sente no tripé da ciência, do Direito e do Estado
nhecimento de outras e múltiplas formas de saber modernos com suas instituições; (ii) as realida-
que ultrapassem dicotomias como moderno-tra- des do Sul Global, assumido para além de um
dicional, avançado-primitivo, ou científico-ig- espaço geográfico, como metáfora do sofrimento
norante. Originam-se proposições como conhe- humano provocado pelo capitalismo, pelo colo-
cimentos híbridos, pensamento de fronteira ou nialismo e pelo patriarcado que geram formas
ainda Epistemologias do Sul e ecologia de saberes. radicais de exclusão. Nesse espaço as modernas
Boaventura de Sousa Santos, sociólogo por- noções de Estado-Direito-Ciência não operam,
tuguês e principal autor dessa língua dentro dos predominando formas de espoliação e violência
estudos coloniais, possui grande importância sem a proteção das leis e do Estado. Ao mesmo
para o Brasil. Não apenas pela língua, mas pelo tempo é também o espaço das lutas sociais, das
fato de circular entre diferentes continentes, em resistências e alternativas a essas formas de opres-
especial a África e a América Latina, articulando são, por definição lutas que apontam para socie-
diálogos entre diferentes proposições advindas dades pós-coloniais e pós-abissais.
de intelectuais e ativistas de língua inglesa, espa- O pensamento abissal permite-nos falar
nhola e portuguesa. Com vasta obra – livros19-21 de um Norte dentro do Sul, ou seja, os espaços
e artigos3,22 – publicada em português e uma in- metropolitanos com certo estado de direito que
tensa produção atual, o diálogo com Boaventura coabitam diferentes formas de violência e espo-
irá nos ajudar para que possamos avançar nas liação principalmente nos países periféricos ou
questões de saúde e vigilância que nos propomos semi-periféricos do sistema-mundo no capitalis-
a refletir. mo global23,24. É esse Norte “moderno” e colonial
Uma das proposições mais originais de Boa- dentro do Sul que nos permite entender a ceguei-
ventura é a ideia de pensamento abissal, central ra das elites e classes médias diante de tantas for-
em sua proposta das Epistemologias do Sul3,21,22. mas de violências e massacres que ocorrem, por
A linha abissal faz parte de uma proposta epis- vezes ao lado, nos grupos excluídos radicalmente
temológica e política para entender como a mo- pela linha abissal.
dernidade, em sua tríplice forma de dominação Para Boaventura, as duas grandes utopias da
(capitalismo, colonialismo e patriarcado), mais modernidade, restritas ao espaço metropolita-
que excluir trabalhadores explorados, exclui ra- no, funcionam como espelho dentro do mesmo
dicalmente pessoas da condição de humanos e marco civilizatório eurocêntrico. De um lado o
sujeitos portadores de direitos e saberes. A linha liberalismo, transformado nas últimas décadas
abissal é simultaneamente radical, invisível e em neoliberalismo e que expressa o que Polanyi23
invisibilizadora, e se encontra por detrás de fe- denominou da grande transformação moder-
nômenos como o racismo, a xenofobia e outras na: a criação da sociedade de mercado baseada
formas de violência contra indígenas, favelados, na propriedade privada com poderosos grupos
mulheres e homossexuais, dentre outros . Trata- econômicos que se descolaram radicalmente das
se de uma linha que necessidades e da dignidade da vida das pessoas
impede a copresença do universo “deste lado da e comunidades. O mercado capitalista cada vez
linha” com o universo “do outro lado da linha”. Do mais passou a desprezar e restringir economias
lado de lá, não estão os excluídos, mas os seres sub e mercados de reciprocidade e redistribuição, os
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quais persistem, resistem e se reinventam nos es- com crescimento econômico e redistributivo,
paços comunitários e outros, basicamente no Sul dentre outros jargões do campo dito progressista
Global; (ii) de outro, a utopia socialista, marcada e que vem marcando o posicionamento intelec-
no século XIX pelo trabalho de Marx ao analisar tual na Saúde Coletiva. Não é que não devamos
o capitalismo como sistema social que dialética defender esse projeto de país, principalmente em
e inevitavelmente caminharia para relações so- momentos críticos dos retrocessos que vivemos.
ciais e sociedades mais justas e distributivas, as A questão é que ele reproduz uma visão de de-
sociedades socialistas ou comunistas. Cresceram senvolvimento econômico, científico e tecnoló-
então duas linhas utópicas socialistas que pas- gico que se encontra na raíz da modernidade e
saram a atuar de forma mutuamente críticas e seu projeto colonial. Sem um profundo renovar
divergentes: a reformista via social-democracia, de formas de pensar e sentir, que alguns chamam
fortalecida no pós-guerra com a construção do de giro decolonial ou corazonar, campos fun-
Estado de Bem Estar Social na Europa ocidental; damentais como a saúde coletiva fechar-se-ão
e a revolucionária, referenciada principalmente em suas instituições modernas – universidades,
na revolução soviética de 1917 e nos processos centros de saúde, hospitais – como claustros de
revolucionários na América Latina, África e Ásia, verdades instituídas impermeáveis a novos pro-
curiosamente em sociedades que seriam as menos cessos instituintes de natureza emancipatória.
propícias para o amadurecimento das condições As atuais crises, ao mesmo tempo em que
objetivas revolucionárias previstas por Marx. geram perplexidades, são vistas de forma super-
ficial por uma modernidade que cada vez mais
Reflexões sobre o ser emancipatório encastela-se na fugacidade do presente. Vive-se
para a saúde coletiva e a vigilância um presente rasteiro, superficial, entrincheirado
em tempos de crise entre o passado e o futuro, cuja alienação imobi-
lizadora reside na expectativa de um futuro que
A questão das utopias e o resgate possível da se expande indefinidamente na via da única da
esperança nas lutas emancipatórias são centrais racionalidade moderna, com sua ciência objeti-
nos trabalhos de Boaventura, já que, nas últimas va e universal. O progresso, inevitável, seria uma
décadas, presenciamos uma profunda desilusão questão de tempo. As crises mostram outra coisa.
com as utopias modernas. De um lado, a queda Como as utopias buscam responder neces-
do Muro de Berlim e o fim da União Soviética sidades e aspirações de um tempo presente com
atingem de uma só vez os sonhos socialistas (re- o paradoxo de se realizar num tempo futuro,
volucionários ou reformistas), ao mesmo tempo reiventar a utopia é se aproximar dos sujeitos e
em que tornam cada vez mais problemáticos os saberes excluídos ou desprezados radicalmente
sonhos de emancipação via crescimento eco- pela modernidade, uma utopia que reiventa a to-
nômico por um mercado que se expande sem lerância e a solidariedade a partir das lutas e das
limites. A hegemonia do neoliberalismo em ins- Epistemologias do Sul.
tituições internacionais (FMI, Banco Mundial e Sem dúvida, vivemos tempos difíceis para tal
OCDE) e nacionais dentro dos Estados-Nação e tarefa: Boaventura observa que com a globali-
da mídia está na base da desregulamentação do zação a crise se agrava mais e mais pelo fato da
Estado e dos processos de mercantilização e pri- exclusão metropolitana não radical e mais pro-
vatização sobre a vida e a natureza, incluindo os tegida pelo Estado de Direito está a se encolher,
planos privados de saúde. Tal processo é relatado enquanto que a exclusão radical dos processos de
com força pela análise de conjuntura do docu- espoliação e violência está a se expandir. É o Sul
mento orientador da 1ª CNVS, mas uma leitura invadindo e ocupando o Norte de várias manei-
mais ampla do capitalismo contemporâneo re- ras, fortalecendo a formação de guetos e muros
vela se tratar de um movimento global, não es- dentro das metrópoles. Essa é uma forma de falar
pecífico do Brasil ou da América Latina, mas da da crise da democracia em várias parte do mun-
própria modernidade colonial cada vez mais em do, inclusive no centro capitalista.
crise social, econômica, política e ecológica. A obra de Boaventura, ao analisar a crise
É por isso que devemos problematizar e em seu caráter cada vez mais amplo, planetário
avançar, ainda que defendendo-o taticamente, e complexo, reconhece-a enquanto civilizatória
um projeto de país caracterizado como nacional, moderna, cujo enfrentamento passa por uma
desenvolvimentista, soberano, que seja inclusivo, inversão da lógica do tempo: expandir o presen-
publicista, universal nos direitos e em suas garan- te, tarefa da sociologia das ausências, e contrair
tias, que promova o desenvolvimento sustentável o futuro, tarefa da sociologia das emergências.
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Resumidamente, o objetivo central da sociologia além de visões restritas atreladas a uma concep-
das ausências consiste em transformar objetos ção de Estado regulador e promotor do desen-
impossíveis (os saberes e experiências dos povos volvimento econômico. Como desafio central,
e culturas do Sul desprezados pela cegueira epis- apontamos a necessidade de superação de um
temológica da modernidade colonial e seu pensa- pensamento calcado numa ciência positivista de
mento abissal) em possíveis e, a partir daí, trans- especialistas que não dialogam com outros sabe-
formar ausências em presenças. Daí a importân- res e se afastam das lutas sociais mais candentes
cia central da aproximação do novo pensamento de nosso tempo. Talvez seja esse o maior dos de-
crítico com as lutas sociais de indígenas, negros, safios da saúde coletiva: enfrentar um inimigo
mulheres, trabalhadores, grupos étnicos, favela- ainda invisível que reside em epistemologias e
dos, mulheres, grupos LGBT, dos aprisionados. A paradigmas da ciência moderna, entranhados na
proposta decolonial aposta que o reconhecimen- biomedicina, na epidemiologia ou mesmo nas
to dos saberes e expectativas dessas pessoas e co- ciências sociais que se arrogam especializadas e
munidades sejam respeitados em sua dignidade. superiores, que estudam sujeitos objetos e falam
Daí a importância de metodologias colaborativas deles, por eles, dificilmente junto e com eles.
engajadas em lutas sociais que promovam a co- A concepção de ciência encontra-se no cen-
presença ativa dos sujeitos excluídos abissalmen- tro de disputas epistemológicas ainda desconsi-
te, com o encontro ou a ecologia de saberes. deradas pela grande maioria dos intelectuais da
De forma complementar, a tarefa da sociolo- saúde coletiva, que acredita dogmaticamente no
gia das emergências consiste em construir um fu- papel universal e superior da ciência como base
turo de possibilidades plurais e concretas, simul- para o progresso e a resolução de problemas de
taneamente utópicas e realistas, que se vão cons- saúde. Pouco avançaremos enquanto não re-
truindo a partir do que emerge no presente em conhecermos que o inimigo, mais que ao lado,
movimentos que buscam quebrar monoculturas mora dentro de nossas mentes e ideologias que
de saber e poder, possibilitando a emergência de conformam uma visão de ciência que invalida e
alternativas que formarão as bases da transição se afasta de encontros genuínos entre saberes in-
civilizatória e paradigmática. O pensamento al- ternos e externos à ciência presentes no contexto
ternativo permite pensar a transescalaridade das das lutas sociais.
lutas simultaneamente enquanto microespaços É preciso superar a ideia de que as instituições
de lutas cotidianas na busca de microutopias, de Estado atuam exclusivamente na perspectiva
com os espaços mais globais e nacionais que de uma racionalidade moderna universal que
refletem as macroutopias envolvendo questões embasa o conhecimento-regulação. Essa visão
como o papel do Estado, as políticas públicas, a faz com que técnicos e burocratas de instituições
convivência pacífica entre povos e países, enfim, como a Anvisa assumam-se como especialistas
outra globalização alternativa. Ambos os espaços em comunidades e processos decisórios fechados
de lutas e utopias não são excludentes, podem se aos não especialistas, radicalmente excludentes e
articular de várias formas, ainda que problemáti- distante dos saberes, práticas e lutas de povos e
cas, complexas e incertas. Esse é o desafio do glo- grupos sociais subalternizados pela racionalida-
cal: pensar e agir local e globalmente. de moderna. É essa pretensão de universalidade,
Repensar alternativas é fundamental frente objetividade e neutralidade que permite um pe-
à crise que, assumindo ser civilizatória, perma- queno agricultor familiar, ainda que de um as-
necerá nos próximos tempos mesmo com a re- sentamento da reforma agrária, agroecológico e
versão mais ou menos parcial do golpe em curso, envolvido em importantes lutas sociais ser trata-
com possíveis eleições diretas e a retomada do do pela Anvisa da mesma forma que uma gigante
crescimento econômico. No contexto brasileiro e transnacional da alimentação.
da saúde, diversos constrangimentos e tendências Superar tais limites não implica, como mui-
de retrocessos já existiam mesmo antes do golpe, tos podem imaginar, um abandono das conquis-
e tudo indica que o modelo desenvolvimentista tas da ciência, de muitas de suas tecnologias, uma
extrativista seguirá com força mesmo num go- espécie de retorno à barbárie primitiva temida
verno mais a esquerda. A questão aqui é o nível pela racionalidade moderna. Descolonizar a saú-
de conflitos e o grau de liberdade para o exercício de coletiva, a vigilância e as práticas de promoção
de resistências e a construção de alternativas em implica promover diálogos mais horizontais em
cenários mais conservadores ou progressistas. contextos de lutas sociais com os radicalmen-
Por tudo dito, é estratégico refletir sobre o te excluídos do Sul Global, permitindo a emer-
papel da vigilância e da promoção da saúde para gência de saberes e práticas emancipatórias para
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além de universalismos que invisibilizam alter- alimentação saudável, soberania e segurança ali-
nativas em termos de outras socialibilibidades, mentar, agroecologia, o saneamento no campo e
outras economias, outras formas de saber, sentir, nas favelas simultaneamente à luta por moradia
trabalhar e produzir. Tais emergências assumirão e por cidades inclusivas e democráticas. Outro
um crescente protagonismo nas lutas sociais de tema impulsionador de novas práticas envolve a
nosso tempo, que é o tempo das transições civili- crise ecológica e os conflitos decorrentes da po-
zatórias e paradigmáticas em que se agudizam as luição, dos desastres, do acesso à água e escassez
distopias do desenvolvimento, ao contrário das de recursos hídricos, ou mesmo do sentido de
esperanças prometidas pela modernidade. sagrado de rios, árvores e florestas presentes em
A saúde, quer os intelectuais da saúde coleti- inúmeras cosmovisões. Em todos esses espaços e
va assumam ou não, continuará a ser um campo questões, marcados sempre por lutas emancipa-
privilegiado de experimentações sociais para as tórias, a própria concepção de desenvolvimento,
Epistemologias do Sul e as ecologia de saberes. saúde e natureza serão colocadas em xeque, retra-
Pensemos, por exemplo, nos encontros de sabe- balhadas em lutas sociais a favor da dignidade e
res e práticas potencialmente emancipatórias em do bem viver das pessoas e dos povos. Uma vi-
torno da saúde indígena, da saúde no campo, da gilância emancipatória implicará num despojar
saúde dos quilombolas, da saúde nas favelas, da permanente de posições que, em nome da supos-
saúde mental, dos encontros da saúde e a arte nos ta objetividade e superioridade da ciência e efi-
espaços liminais entre conhecimentos definidos, cácia das normas, formam as linhas abissais que
das fronteiras que não se submetem e se revoltam impedem encontros e mobilizações fundamentais
à colonialidade do saber e do poder. Temas como para a transformação em tempos de crise.
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