Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
NOBERTO M. BLEICHMAR
CELIA LEIBERMAN DE BLEICHMAR
com a colaboração de
SILVIA WILKINSKI
A PSICANÁLISE
DEPOIS DE
FREUD
TEORIA E CLÍNICA
.- BibHote co -,
1Cent.rn /HE PB
-·---·-·--·- --- .
1 1
. ...... .... _ .._J
·•··
Catalogação na publicação: Mônica Ballejo Canto - CRB IO/ 1023
PRêÇO; - - · · - - - - ·
ISBN 85-7307-832-4
. '
{'· ,.
sº· ,) 0'\
) rJ];)' Porto Alegre, 1992
a tarefa de escrevê-los. A licenciada Guadalupe Sánchez colaborou em uma
etapa de sua elaboração. Devemos muito, também, aos pacientes que tive-
mos a sorte de analisar. Os Drs. Hugo Bleichmar e Emilce Dío de Bleich-
2
mar nos ajudaram, generosamente, no começo de nossa formação.
Silvia Wikinski, por sua vez, deseja dedicar o trabalho que realizou,
inestimável em todos os sentidos, como já dissemos, a seu esposo e-a seu filho.
Por último, queremos agradecer a nossos filhos, que nos deram a vita-
lidade e alegria necessárias para as horas de estudo e trabalho. Eles nos acom-
panharam com generosa paciência durante o tempo que dedicamos a este livro.
AS TEORIAS PSICANALÍTICAS
DEPOIS DE FREUD
l
24 A Psicanálise depois de Freud / 25
1
L
d~ con~ecimento pouco sustentada no tempo e na experiência, e a reitera- 5. Uma maneira de nos situarmos, quanto às diferentes teorias psicana-
çao e h1perprodução de "descobertas". Considera, com razão, que muitas líticas, é pensá-las em relação aos grandes problemas que a psicanálise se
vezes falta verificar a hipótese, apelando-se para o barroquismo no discur- propôs, para compreender o psiquismo humano. Consideremos alguns dos
so, para causar impacto nos interlocutores (pp. 24-25). mais importantes.
Há diversas soluções epistemológicas para situar a psicanálise no con- a) Natureza versus cultura. Este problema esteve presente na teoria freu-
junto das ciências, assim como para assegurar sua coerência interna e a vali- diana desde sua origem, com a noção de trauma e sua posterior subordina-
dade de suas afirmativas. Junto com as críticas habituais do empirismo con- ção aos conflitos pulsionais da sexualidade infantil e à idéia de fantasias se-
tra a psicanálise, surgiu uma corrente amistosa para esta disciplina, que a xuais nas pacientes histéricas. Freud optou, com sua hipótese das séries com-
propõe como usuária de concepções positivistas do estilo de Popper. Ou- plementares, por uma solução que combinasse os elementos pulsionais com
tros enfoques (Ricoeur, 1965) consideram a psicanálise como uma ativida- as experiências da infância. A questão novamente se apresenta muitas ve-
de hermenêutica, de interpretação e revelação de sentidos sucessivos. Final- zes, ao examinar as teorias pós-freudianas. No extremo "natureza", que acen-
m~nte, há a~ueles que, como Guntrip (1967), a concebem como uma disci- tua a importância dos fatores constitucionais para o desenvolvimento psí-
plina que es'tuda o ser humano, com sua própria metodologia científica, quico, estaria a teoria kleiniana. Esta destaca a relevância dos componentes
não comparável completamente nem à tradição empirista nem às ciências agressivos do ser humano para a constituição do mundo interno e o equilí-
sociais. E um modelo epistemológico próprio à psicanálise, que investiga brio a alcançar entre os impulsos tanáticos e os libidinais, que propiciam o
de dentro da relação bi-pessoal entre paciente e analista. amor, a gratidão e a reparação, para integrar os objetos bons internos e ex-
Estamos acostumados a pensar que existem os fatos, por um lado, e a ternos. Melanie Klein admite a importância dos fatores reais, principalmen-
reflexão, que o observador faz sobre eles, por outro. Esta foi a aproximação te o vínculo emocional do bebê com sua mãe, como moderadores da ansie-
das ciências naturais com sua intenção de descobrir propriedades objetivas dade e para favorecer a instauração de um circuito benéfico, que estabele-
da matéria, em níveis cada vez mais profundos. Os trabalhos de Claude ça os objetos bons, internos e externos, necessários para a estabilidade men-
Bernard são um exemplo privilegiado desta atitude. Porém, a epistemologia tal. Categorias tais como a inveja e a tolerância à frustração relativizam o
tradicional é questionada. Outra vez, a física nos dá um exemplo: o estu- peso dos fatores ambientais. Alguns pós-kleinianos, como Bion, com sua
do das partículas subatômicas descobriu novas unidades, à medida que o teoria do continente-conteúdo, Bick (1968) e Meltzer (1975), com a identifi-
instrumento de observação mudou. Assim, desvanesceu-se a idéia de que cação adesiva, voltam a acentuar a importância da mãe real como neutrali-
deve-se procurar uma última partícula; muitos pensam que tal elemento não zadora das ansiedades do bebê.
existe e que novos métodos de observação "criam", dentro do. continuum A psicologia do ego e a teoria lacaniana também coincidem com Freud
da energia, agrupamentos especiais (Arden, 1985). A interpenetração inexo- e Klein, em aceitar um aspecto pulsional interno para a constituição do psi-
rável entre o fenômeno em estudo e os instrumentos que são usados, dimi- quismo. Não obstante, Lacan (1966), com um enfoque diferente, acentua
nui a esperança de encontrar o último "tijolo" do universo. · que a constituição do sujeito é excêntrica, a partir da linguagem e da cultu-
Em psicanálise, operou-se uma mudança semelhante, com a -idéia de ra. ·com seu gráfico L, define a identidade, a partir do imaginário do outro.
que o observador é parte constitutiva do campo de .estudo. Um d9s.grandes No extremo "cultura" do espectro, estão os autores que inclinam a ba-
progressos, neste ~tido, foi o uso da contra-transferência como instrumen- lança para a hierarquização dos fatores ambientais, para explicar a forma-
to técnicq,, e não itpenas como pert,urbação. ção da personalidade e a origem dos sintomas. Winnicott, com sua idéia
O~vemos indagar se uma téoria psicanalítica é um instrumento de ob- de."mãe sufiç,ientemente boa" e a importância do holding materno, que pos-
servação que define o campo em estudo. Não há dúvida de qp,e .c ada teoria sibilita a primeira diferenciação ego-não ego, estabelece uma seta unidirecio-
possibilita ollse:rvar alguns fa_tps e não outros. A experi~nçi~,qiniéa ta:nbém nal de fora para dentro, do ambiente para a criança. Nesta mesma linha,
nos permit~ supor_<4lle algumas teorias resolvem melhor cer,tos pr_Qbl~as. pode-se situar o pensamento de Kohut. Balint, Fairbairn e Mahler também
Freud passou do método da hipnqse ao da associação livre e ps1caQáhse, hi~~ quizam irnport~cia decisiva dos fatores externos, em especial as ca-
porque se achou em dificulda~es que imp~am ~a.mudan~a, c~mo o,.,re- radeásticas da personáliqade da mãe.
aparecimento do sintoma ou o caso dos su1e1tos nao influenciá~eIS pela. s~- b) O problema da,agressão. Está intimamente relacionado com o ante-
ges~Q. Preferimos algumas teorias a outras porque nos parecem, na práti- rior. Existem autores que, com diferentes fundamentos, sustentam a existên-
ca, supêriores. cia de uma agressividade intrínseca à constituição do sujeito, que é autôno-
ma nijQ redp Uvel ao conceito de frustração. Tampouco pode ser atribuí-
da exclusivamente ao tra ...ma. Aqui situamos Freud, Hartmann, Klein e La-
<
,F,
"',,,
1 ~~os ~a técnica analítica (Kris, 1952; Zetzel, 1956a; Greenson, ·1967) e a
utihzaçao do modelo estrutural da segunda t6pica (Hartmann, 1964;. Arlow
e Brenner, 1964). Tratou-se de passar de uma psicologia do id, baseada no
por sua situação na estrutura interpessoal e ante a cultura. O falo, como sig-
nificante primordial, e a metáfora do nome do pai dão o lugar e a identidade.
Cada enfoque, em sua perspectiva, soluciona alguns problemas e dei-
•..,-
.,.,
es~do das pulsões, a uma psicologia do ego, enfatizando os aspectos da re- xa outros em aberto, ao mesmo tempo que apresenta dificuldades internas,
alidade externa e a adaptação do sujeito a ela. A idéia de autonomia primá- recebendo críticas externas.
ria e secundária de Hartmann quis mostrar os componentes do ego que não Os problemas que a teoria de Melanie Klein apresenta seriam, entre
se originam no conflito, nem ficam imersos nele. O preço que, em nossa outros, sua ênfase exagerada no ponto de vista genético, que a leva a conce-
.,
opinião, esta corrente teórica paga por suas intenções, é que diminui a im- ber toda fantasia do adulto como uma repetição do estado que o bebê atra-
portância do desejo humano e da fantasia. A psicologia do ego é, por assim vessou, nas primeiras etapas da vida; podemos levar em conta a descober-
dizer, hiper-realista, o que1limita a compreensão da complexa subjetivida- ta kleiniana, sem aceitar a linearidade do enfoque evolutivo de origem dar-
de humana e das motivações. Pressupõe uma realidade externa ao psiquis- winiana, que Melanie Klein tomou de Freud e Abraham . Outr9 aspecto que
mo, que é "objetiva", e uma adaptação "realista" a ela. Na clínica, o concei- pode suscitar problemas é o papel das pulsões de vida e de morte como de-
.-
.-,
to de adaptação tem o perigo de normativizar a decisão ou ponto de vista terminantes quase absolutos dos acontecimentos psíquicos, sem lhe dar um
do observador; além disso, é difícil sustentá-lo, a partir de uma perspecti- maior equilíbrio ou modulação recíproca com a influência da mãe ou do
va metapsicol6gica. ambiente. Quanto à técnica psicanalítica, deve-se assinalar o avanço alcan-
...-.
Para resumir, em breves palavr;,s, quais são, a nosso critério; as mu- çado por Klein em muitos aspectos. Ao insistir, para mencionar somente
danças conceptuais que vão de Freud a Melanie Klein, destacaremos as se- algumas idéias, na necessidade de analisar a transferência latente do mes-
guintes. mo modo que a explícita, e dar tanta importância à análise da transferência
Em primeiro lugar, a estrutura da mente é concebida como um siste- positiva quanto a da negativa, resolve muitos problemas clínicos.
ma de objetos internos produzidos por transações de relações objetais e da Lacan é outro dos grandes pensadores pós-freudianos e suas contribui-
fantasia inconsciente. Em segundo lugar, propõe um sistema de relações ções reformulam, com um alto nível de complexidade e sofisticação, os pró-
emocionais, reunidas nos conceitos de posição esquizo-paran6ide e depressi- prios fundamentos das categorias psicanalíticas. A incorporação da lingüís-
va, que organiza as atitudes, vínculos e, de maneira geral, todo o funciona- tica estruturalista, sobretudo de Saussure, e a antropologia estrutural lhe
•
mento psíquico. permitiram reconsiderar quase todos os aspectos da metapsicologia e da prá-
Com estas categorias, Klein sustenta que o conflito mental está basea- tica psicanalíticas. É uma obra formidável por sua envergadura, erudição e
do na luta de emoções e fantasias inconscientes com os objetos internos e
••
originalidade. A teoria tem um alto nível de formalização, rigorismo e coe-
externos. É uma ótica diferente da noção clássica de conflito concebido co- rência interna. Gostaríamos de destacar, no entanto, que uma vez que se
mo luta entre a pulsão e a defesa. O enfoque kleiniano é personalístico, a supere o deslumbramento inicial e se estude desapaixonadamente a teoria
mente é um espaço onde "habitam'" objetos internos, à maneira das pesso- de Lac;an, não é nem mais coerente nem mais completa do que as demais.
as que vivem no mundo, ou dos atores que se movem em um cenário. Não obstante, resolve muito bem certos aspectos essenciais da psicanálise,
É oportuno mencionar, já que estamos comentando ·a1guns dos proble-
mas da teoria kleiniana, que existem, até o momento, três grandes enfoques
acerca da estrutura da mente: um, como o que Freud utilizou no capítulo
tais com9 o do narcisismo e a relação entre o sujeito e a cultura, fornecen-
do modelos apropriados para pensar a estrutura do inconsciente e a cone-
xão entre a base biológica, as representações psíquicas e o ambiente. Suas •
VII de A interpretação dos sonhos e, posteriormente, em O ego e o id, a
concebe com o modelo de um aparelho. Primeiro foi o modelo neµronal,
depois um telescópio e, finalmente, a estrutura tripartite do id, ego e mpere-
go, à maneira de uma vesícula.intercomunicante.
Ao segundo enfoque para criar modelos da mente, designaremos de
principais dificuldades têm a ver com a convicção de tomá-la como o úni-
co sistema psicanalítico aceitável, um déficit na conceptualizaçãp dos afetos
e as conseqüências técnicas, especialmentre o papel errado que, em nossa
opinião, dá à interrupção (escansão) da sessão. Cada tese de Lacan pode
'-
·. ser discutida, tanto no nível da disciplina externa à psicanálise que utiliza,
personalístico. É este que Melanie Klein utiliza. Destacam-se as relações de por exemplo, a lingüística ou a antropologia, como no pr.1priamente psica-
o bjeto, personalizando-as. Sua formulação mais desenvolvida é a teoria do nalítico. Lacan é um' extremo na polêmica ambiente-indivíduo, no sentido
m undo dos objetos internos. de que o lugar em que fica situado o sujeito é inapelável. Seu seminário so-
Finalmente, o enfoque de Lacan, que é posicional ou estruturalista. Pa- bre a carta roubada, o conto de Poe, é um exemplo de engenho e, ao mes-
ra este au tor, há um sistema relacional intersubjetivo que define o sujeito, mo tempo, de reducionismo. Bem se entende porque o significante, a carta,
ordena as posições de cada um dos par.t icipantes, porém não o problema
1. Panorama geral
A psicologia do ego teve suas origens nos anos 30, e seu ápice nos 60,
nos Estados Unidos, país para o qual emigraram muitos analistas europeus,
devido à Segunda Guerra Mundial e à perseguição nazista .
Encabeçamos este capítulo com o nome de Hartmann, pois, sem dúvi-
da, ele foi o mais importante dos teóricos da psicologia do ego. Seguiremos
especialmente suas idéias, mas é imperativo dizer que assim se faz uma in-
justiça, já que é realmente notável a quantidade de pensadores que esta esco-
lha inclui. Seria uma tarefa impossível mencionar todos os nomes e idéias.
Pense-se, por exemplo, que o Psychoanalytic Study of the Child, onde a
psicologi13 do ego teve uma acentuada influência, tenha publicado, até o pre-
sente, mais de quarenta volumes. Nossa síntese procura respeitar o espírito
geral do grupo. Para ampliar seus conhecimentos, o leitor interessado po-
de consultar a primeira página de nossos comentários no próximo capítulo,
/ onde se incluem alguns nomes e obras.
Do ponto de vista teórico, os fundadores desta corrente, e Hartmann
principalmente, basearam-se nos últimos trabalhos de Freud, em particular
os reft:rentes à formulação da segunda tópica (estrutura tripartite da mente:
id-ego-superego) e se dedicaram a continuar tais teorizações.
Esta linha de trabalho obedeceu a duas categorias de motivações: uma,
de índole teórica, outra de tipo prático . O interesse teórico que os guiou foi
o de transformar a psicanálise, que até então se tinha dedicado a estudar o
conflito mental e os fenômenos inconscientes, em uma psicologia geral. Pa-