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A repartição de competências e o
princípio federativo na Constituição de 1988
Rodrigo Kaufmann, aluno de graduação do
Direito da UnB (5o semestre)
O princípio federativo constitui, hoje, uma em que a concepção federal foi substituída pela estru-
das idéias fundantes de toda a organização do Estado tura unitária de Estado. Dessa maneira, é realmente
Brasileiro. Essa relação entre a forma de Estado e o mérito inegável da Constituição de 1988 a tarefa de
contexto nacional se dá de modo bastante íntimo, vis- promover a reconstrução do federalismo no Brasil.
to que, da implantação do sistema da Federação na Entretanto, não coube a essa Constituição apenas a
realidade do país em 1891 até a atual situação consti- função de reestruturar o sistema da Federação no
tucional, a consolidação da Federação como forma do molde das fontes republicanas do federalismo consti-
Estado Brasileiro se fez de peculiaridades e exclusivi- tucional mundial. A Carta Maior ainda inovou imple-
dades que a tornaram única e, portanto, rica de estu- mentando novos fundamentos para o bom funciona-
dos doutrinários e interpretações constitucionais. mento dessa forma de Estado.
A sua introdução por meio do Decreto nº 1 Entre esses novos fundamentos pode-se citar
de 1889 já destoou, por completo, dos moldes e pres- a inclusão dos Municípios no grupo dos corpos que
supostos utilizados pelos elaboradores da Carta Ame- compõem a união indissolúvel da República Federati-
ricana de 1787, documento este que praticamente a- va, expressa no primeiro artigo da Constituição de
presentou a moderna organização federativa ao mun- 1988. Tal fato é singular, não encontrando correspon-
do. Naquele país, o federalismo nasceu da necessidade dência nas antigas Constituições brasileiras e nem tão
de reunião de estados pré-existentes com o fim de, pouco em Constituições federais estrangeiras como no
abdicando de parte da soberania em nome de um ente caso da americana, da argentina e da alemã. Essa no-
central, fortalecerem-se para melhor enfrentarem os vidade adveio do movimento municipalista e de uma
desafios internacionais originários de uma realidade evolução do federalismo nacional a partir das Cartas
mundial de intensas mudanças. É importante notar de 1934 e1946, que indicava uma valorização dos te-
que os estados que formaram a federação americana já mas municipais principalmente no que tange a reparti-
existiam, já tinham uma certa soberania constituindo ção da receita federal. Desta forma, o Município eri-
realidades sociais e políticas diversas e independentes giu-se como ente autônomo formador da República
umas das outras. No Brasil, todavia, a recepção da Federativa, muito ao contrário da idéia que existia até
idéia federativa ocorreu da cúpula para a base, ou seja, então: o município como assunto doméstico do esta-
de um Estado Unitário criaram-se estados-membros do-membro.
para constituírem o novo Sistema Federal. Desse mo-
do, desde o início, a realidade e vida política estadual A segunda grande inovação instituída pela Lei
estiveram sempre condicionadas às decisões da União Maior de 88 foi quanto à forma de repartição de com-
Federal. É claro que este fator teve influência decisiva petências entre a União, os Estados, os Municípios e o
em toda a evolução constitucional da divisão de com- Distrito Federal. Dentro do universo constitucional, a
petências entre os entes federados e, por conseguinte, divisão de alçadas é tópico fundamental na caracteri-
mantém-se ainda evidentes reflexos na atual autono- zação da tendência federalista e do próprio sistema
mia dos estados-membros. funcional do Estado, isto porque, por essa matéria,
verifica-se se, em dado país federalista, a concentração
A Constituição Federal de 1988, dentro desse de poder é demasiada com consequente sacrifício da
contexto, promoveu uma grande reformulação do autonomia ou se a Federação é forte e consolidada
federalismo brasileiro. Tal modificação envolveu o com proporcionais e razoáveis poderes para cada ente
abandono do sistema previsto pela Constituição de federativo. A Constituição de 1988 sistematizou o te-
1967 e pela Emenda nº 1 de 1969 as quais reduziram ma e distribuiu-o nos domínios da competência geral
os estados e os municípios a meros receptores dos da União (art. 21, I a XXV), competência legislativa
preceitos legislados pela União Federal. Essa crise do privativa da União (art. 22, I a XXIX), competência
federalismo brasileiro só encontra equivalência no pe- comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e
ríodo de vigência da Carta Política de 1937, momento dos Municípios (art. 23, I a XII, parágrafo único) e a
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tamente isso que a Constituição de 1988 tentou evitar, cuária (art. 23, VIII) são de alçada preponderantemen-
porém é isso o que vem ocorrendo. te estadual mas que devem também ter acompanha-
mento do Governo Federal. Contudo, o mesmo vício
Em relação à competência geral da União, o do artigo anterior também se encontra no artigo 23,
ponto não é tão discutível já que o artigo 21 e seus 25 parágrafo único. Os estados não poderão exercer as
incisos elencam uma série de matérias concernentes atividades necessárias desse artigo de forma autôno-
exclusivamente ao interesse nacional como, por e- ma. Mesmo em se executando os serviços que natu-
xemplo, poderes de organização (art. 21, XIII, XV e ralmente são regionais, não poderão os Estados se ver
XXIV), poderes de Administração e Fiscalização Eco- livres de obediência a uma legislação federal, isso pois,
nômico-financeira (art. 21, VIII), poderes soberanos mais uma vez, será lei complementar federal (de difícil
(art. 21, I a VII), etc., e que a União, sendo guardiã do aprovação) que regulará a cooperação dos entes fede-
ordenamento central, seria o único ente responsável rados tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento
para o trato dessas questões (o que a Carta de 1988, e do bem-estar em âmbito nacional (art. 23, parágrafo
louvavelmente, determinou). As imperfeições estão, único).
sim, nos outros tipos de repartição.
A primeira delas é a chamada competência pri- Por último, o rol das competências concor-
vativa da União, em que o artigo 22 enumera 29 incisos rentes é fornecido no artigo 24 tratando de temas os
da alçada privativa da União. Realmente, nessa longa quais a União, os Estados, os Municípios e o Distrito
lista estão expostas questões de cunho eminentemente Federal poderão versar normativamente e concomi-
nacional, como no caso de direitos substantivos: civil, tantemente, como nos casos de direito tributário, fi-
comercial, penal, processual, agrário, eleitoral (art. 22, nanceiro, urbanístico (art. 24, I), produção e consumo
I); política econômica e social (art. 22, VI a XXIII); (art. 24, V), proteção da saúde (art. 24, XII), etc. Esses
organização de sistemas (art. 22, XVI, XVIII e XIX), casos talvez sejam os que mais evidenciam a interpre-
etc.; todavia, o constituinte, reconhecendo aspectos tação parcial das normas constitucionais. Mesmo nes-
regionais em algumas matérias, adotou procedimento sas hipóteses, os Estados não poderão legislar de ma-
que representaria a descentralização legislativa por meio neira originária pois, apesar de se tratar de competên-
do parágrafo único desse artigo ao preceituar que lei cia concorrente, os entes da federação não concorrem
complementar permitirá aos estados disciplinar ques- em igualdade de condições. Isso ocorre pois qualquer
tões específicas dessas matérias. Não nos devemos en- iniciativa legislativa de matérias do artigo 24 deverão
ganar ao achar que, nessas hipóteses, caiba aos estados- seguir previamente o molde, a moldura que a União
membros a legislação supletiva. Em primeiro lugar, Federal dispuser por meio de normas gerais (art. 24, §
porque a lei complementar necessita de maioria absolu- 1o). Além disso, é de se notar que, pela experiência
ta de membros das duas Casas do Congresso Nacional que vem sendo acumulada, a concepção da União Fe-
(não constitui tarefa muito fácil). Em segundo lugar, é a deral do que seja normas gerais é deveras ampla e a-
própria lei complementar que disporá a respeito das brangente. Desta feita, em muitas situações (áreas tri-
"questões específicas" que serão objeto da legislação butárias e diretrizes da educação, por exemplo) as re-
estadual. É a própria lei complementar que limitará a gras gerais elaboradas pela Governo Central esgotam,
atuação legiferante estadual. Vistos esses dois pontos, exaurem praticamente todo o espaço normativo perti-
não é difícil supor que a União estará sempre mais ten- nente ao assunto, restando ao Estado (e menos ainda
tada a legislar, ela mesma, a respeito desses tópicos do aos Municípios) se limitar a áreas escassas para desen-
que despender tempo e paciência para organizar um volver uma atividade legiferante. Evidencia-se, assim,
poder conjunto a fim de aprovar uma lei complementar uma função eminentemente secundária do poder legis-
delegante de competência legislativa aos Estados. Cons- lativo estadual e, em poucos casos, uma atuação efeti-
titui, portanto, uma concessão de pouca aplicabilidade vamente útil.
essa expressa no parágrafo único do artigo 22.
Visto tudo isso, a real autonomia dos Estados
O artigo 23 da Constituição de 1988 elenca no que tange a uma legislação própria de questões
em seus 12 incisos a chamada competência comum da específicas é bastante questionável. Com tantas limita-
União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Fe- ções e obstáculos ao exercício legislativo estadual ex-
deral no que pertine a questões de natureza local mas pressos nos diversos tipos de divisão de competência
que têm importância nacional com vista ao interesse entre os corpos da Federação, resta apenas para os
público. E não há dúvidas de que matérias como o Estados legislar em campos não proibidos pela Cons-
acesso à cultura, à educação (art. 23, V), a proteção do tituição (art. 25 § 1º) . Todavia, mesmo nessas áreas os
meio ambiente (art. 23, VI), a criação de programas de estados estarão subordinados obrigatoriamente aos
moradia (art. 23, IX) e o incentivo à produção agrope- princípios constitucionais que estão colocados em di-
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versos passos da Lei Maior, como, por exemplo, o membramento, incorporação, etc., não são da alçada
artigo 1º, artigo 34, VII e artigo 60 § 4º. E mais. Os federal mas sim estadual (art. 18, § 4º). Ora, se con-
Estados estarão sempre sob o medo de sofrer novas forme a regra do artigo 1º da Carta Política de 1988, o
restrições em virtude de certas interpretações das município é ente da forma federativa do Estado brasi-
normas constitucionais, amparadas pela vasta doutrina leiro, as matérias atinentes a sua distribuição e organi-
americana dos “Poderes Implícitos”. Dentro de todo zação deveriam ser tratadas pelo Governo Federeal
esse contexto, a tendência (e é o que vem ocorrendo pois dele, primeiramente, fazem parte, antes mesmo
em vários casos) é o poder legislativo estadual tornar- de integrarem o estado-membro. Mas não paremos
se mero repetidor dos preceitos legais elaborados pelo por aqui. De acordo com a rica teoria do bicameralis-
legislador federal, a sua função se reduzir substancial- mo do poder legislativo e com toda a herança histórica
mente, perdendo a autonomia e a criatividade legislati- de formação e composição do Senado Federal naque-
va pois não mais resta espaço normativo que não te- les Estados Federais, o Senado, em si, constitui a “Ca-
nha sido ocupado pela União. sa da Federação”, pois nele se fazem presentes repre-
sentantes de todas as unidades formadoras da Federa-
- A participação dos Municípios na Federação da ção do Brasil. Assim colocado, pergunta-se: o municí-
Constituição de 1988: pio sendo ente formador da Federação brasileira, não
deveria ter representantes próprios no poder legislati-
O artigo 1º de nossa Constituição é enfático vo federal (apesar de sabermos que tal idéia torna-se
ao elevar o Município à estrutura política pertencente inviável na prática dado o grande número de Municí-
ao chamado “pacto da federação”. Entretanto, cabe- pios que existem no País)? De duas, uma. Ou o Sena-
nos analisar a efetiva condição do Município diante de do Federal não segue, no Brasil, estritamente a função
tal ditame constitucional. que justifica a sua criação e existência ou o município,
na prática, não é realmente patamar da organização
Já se discutiu a real autonomia dos Estados política formadora da Federação.
no que se refere à liberdade de legislação estadual e,
com tudo o que foi exposto, pergunta-se: o que resta É essa última hipótese que parece refletir a
ao Município de área normativa se para o estado- intenção do legislador constituinte de 1988. Tudo si-
membro o espaço já é assaz diminuto? O capítulo que naliza, então, para o fato da Constituição Federal ter
a Constituição de 1988 dedica à regulação dos Muni- cometido uma hipérbole. Ao ter enfatizado a impor-
cípios traz diversos preceitos em que é expressa a o- tância indiscutível do Município para o interesse geral
bediência desses aos dois graus de organização política e para a própria Federação brasileira, colocou-o for-
vertical superior como, por exemplo, o próprio teor da malmente e só a nível de homenagem entre os entes
lei orgânica municipal (caput do art. 29), os programas participantes da forma de Estado. Todavia, factual-
de saúde, ensino e a proteção do patrimônio histórico mente, ou pragmaticamente, o próprio legislador de
cultural (art. 30, VI, VII e IX), a função suplementar 1988 não quis considerar o Município, materialmente,
às legislações da União e dos Estados (art. 30, II), etc. efetiva unidade da Federação, pois se assim não fosse
Deste modo, assim como nos Estados, a autonomia interpretada a Carta, vários artigos constitucionais es-
dos Municípios se apresenta muito restrita limitando- tariam em desconformidade com a cláusula pétrea do
se somente à legislação de caráter indiscutivelmente artigo 60, § 4º, I (em que se deve entender a atual
local, pondo em cheque, inclusive, a real utilidade das constituição de Federação nacional exposta no artigo
Câmaras de vereadores ao discutirem as questões da 1º da Carta Política) constituindo assim, dentro da
cidade. Mas mesmo nesses casos, as normas munici- mais recente doutrina da hermenêutica constitucional,
pais deverão prestar obediência irrestrita aos princí- as chamadas normas constitucionais inconstitucionais.
pios gerais da Constituição Federal e da Constituição De qualquer forma, o que se está a debater quando se
Estadual. Essa subordinação a dois patamares de legis- questiona a real posição do Município como corpo
lação superior faz com que o espaço normativo do pertencente à Federação não é a existência de aplica-
Município torne-se, em muitos casos, meramente vir- ção do princípio federativo no Brasil (pois para isso,
tuais, já que a sua cota legislativa foi preenchida pelo basta a formação de estados-membros), mas sim a
ímpeto legislativo estadual pois, a nível também esta- efetiva validade e eficácia do tipo de Federação que se
dual, houve usurpação de competência que seria inici- quis implantar no País com o novo Texto Constitu-
almente do Estado. cional de 1988.
Após essa breve exposição de alguns tópicos
Ademais, com a leitura de todo texto consti- que afligem o pleno funcionamento da federação em
tucional, fica claro que as várias questões referentes nosso país, é de se concluir que, não obstante o fato
aos municípios como, por exemplo, a sua fusão, des- da Constituição de 1988 ter promovido uma grande
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