5. As duas linhas estilísticas do romance europeu:
- Primeira linha estilística: protótipo do heterodiscurso (“romance sofista”) - Segunda linha estilística: autenticamente heterodiscursiva
Bakhtin escreveu “O problema do conteúdo, do materal e da forma na
criação verbo-literária”, ensaio de teoria geral da literatura polemicamente voltado contra os formalistas russos, em 1924. (p. 7) Bakhtin só conceberia o projeto da Teoria do romance em 1930, menos de um ano após a publicação de Problemas da obra de Dostoievsky. (p. 7) “O grande pesquisador é aquele para quem as adversidades da vida e do tempo são, para parafrasear Camões, aquém do que permite a força humana.” (p. 8) “[...] as décadas de 20 e 30 foram as mais produtivas na atividade criadora do teórico, e [...] toda a sua teoria do romance situa-se nos anos 30 [...]” (p. 9) “Para Bakhtin, o heterodiscurso é um produto da estratificação interna de uma língua nacional única em dialetos sociais, falares de grupos, jargões profissionais, e compreende toda a diversidade de vozes e discursos que povoam a vida social, divergindo aqui, contrapondo-se ali, combinando-se adiante, relativizando-se uns aos outros e cada um procurando seu próprio espaço de realização. O resultado de tudo isso é um mundo povoado por um heterodiscurso oriundo das linguagens [...] de todas as manifestações da experiência humana individual e social e da vida das ideias.” (p. 12- 13) “[...] os discursos do autor, dos gêneros intercalado e dos heróis são apenas unidades basilares de composição através das quais o heterodiscurso se introduz no romance e o faz representar não apenas o homem e sua vida, mas, essencialmente, o homem falante e a vida que fala pelo heterodiscurso. Esse heterodiscurso social fecunda as diferenças, divergências e contradições individuais, cria a natureza dialógica ou dialogicidade interna como força geradora da forma romanesca e, em conjunto com a dissonância individual como produto da subjetividade criadora, sedimenta no romance um harmonioso sistema literário que vem a ser a peculiaridade basilar do gênero romanesco.” (p. 13)
1. A estilística atual e o romance
“O fio condutor deste livro é a superação do divórcio entre o “formalismo”
abstrato e o igualmente abstrato “ideologismo” no estudo do discurso literário, e uma superação baseada numa estilística sociológica, para a qual a forma e o conteúdo são indivisos no discurso concebido como fenômeno social [...]” (p. 21) Na maioria dos casos, a estilística era uma estilística da maestria de gabinete e ignorava a vida social da palavra fora da oficina do artista, na vastidão das praças, ruas, cidades e aldeias, dos grupos sociais, gerações, épocas. A estilística não operava com a palavra viva, mas com seu preparado histológico, com a palavra abstrata da linguística a serviço da maestria individual do escritor. Mas até esses tons harmônicos individuais e tendenciais do estilo, desligamentos das principais vias sociais da vida da palavra, receberam inevitavelmente um tratamento superficial e abstrato e não puderam ser estudados em unidade orgânica com as esferas semânticas e ideológicas da obra.” (p. 21-22) “Durante muito tempo, o romance foi objeto apenas de um enfoque abstrato-ideológico e uma apreciação publicística. Passava-se totalmente ao largo das questões concretas da estilística ou dava-se a elas um tratamento apressado e desprovido de um princípio; concebia-se o discurso da prosa literária como um discurso poético em sentido estrito e a ele se aplicavam, de maneira acrítica, as categorias da estiliística tradicional (centrada na doutrina dos tropos como fundamento) [...]” (p. 23-24) “Era muito difundido e peculiar o ponto de vista que via no discurso romanesco certo ambiente extraliterário, privado de uma elaboração estilística particular e original. Sem encontrar neste discurso a esperada informação puramente poética (em sentido restrito), negam-lhe qualquer significação artística: como no discurso vital e prático ou científico, não passa de um instrumento artístico neutro de comunicação. Tal ponto de vista descarta a necessidade de análises estilísticas do romance e revoga a própria questão de sua estilística ao permitir que nos limitemos a análises puramente temáticas.” (p. 25-26) “O romance como um todo verbalizado é um fenômeno pluriestilístico, heterodiscursivo, heterovocal. Nele, o pesquisador esbarra em várias unidades estilísticas heterogêneas, às vezes jacentes em diferentes planos de linguagem e subordinada às leis da estilística. Eis os tipos básicos de unidade estilístico-composicional, nos quais costuma decompor-se o todo romanesco: 1) Narração direta do autor da obra literária (em todas as suas multiformes variedades; 2) Estilização das diferentes formas de narração oral do cotidiano (skaz); 3) Estilização das diferentes formas de narração semiliterária (escrita) cotidianas (cartas, diários, etc.); 4) Diferentes formas de discurso literário, mas extra-artístico, do autor (juízos morais, filosóficos, científicos, declamações retóricas, descrições etnográficas, informações protocolares. etc.); 5) Discursos estilísticos individualizados dos heróis.” (p. 27-28)
“A originalidade estilística do gênero romanesco reside de fato na
combinação dessas unidades subordinadas, mas relativamente independentes (às vezes até heterolinguísticas) na unidade superior do conjunto: O estilo do romance reside na combinação de estilos; a linguagem do romance é um sistema de “linguagens”.” (p. 29)
“O discurso do autor, os discursos dos narradores, os gêneros intercalados e
os discursos dos heróis são apenas as unidades basilares de composição através das quais o heterodiscurso se introduz no romance; cada uma delas admite uma diversidade de vozes sociais e uma variedade de nexos e correlações entre si (sempre dialogadas em maior ou menor grau. (p. 30) “A língua única e comum é um sistema de normas linguísticas. Contudo, essas normas são um imperativo abstrato, mas forças criadoras da vida da língua, que superam o heterodiscurso da linguagem, unificam e centralizam o pensamento verboideológico, criam no interior da língua nacional heterodiscursiva um núcleo linguístico firme e estável da língua literária oficialmente reconhecida ou protegem essa língua já formada contra a pressão do crescente heterodiscurso.” (p. 40) “Em cada momento concreto de sua formação, a língua é estratificada em camadas não só de dialetos no exato sentido do termo [...] mas também [...] em linguagens socioideológicas: linguagens de grupos sociais, profissionais, de gêneros, linguagens de gerações, etc. Desse ponto de vista, a própria linguagem literária é apenas uma das linguagens do heterodiscurso e, por sua vez, também está estratificada em linguagens (de gêneros, tendências, etc.). E essa estratificação factual e diversamente discursiva não são apenas a estática da vida da língua, mas também a sua dinâmica. A estratificação e o heterodiscurso se ampliam e se aprofundam enquanto a língua está viva e em desenvolvimento; ao lado das forças centrípetas segue o trabalho incessante das forças centrífugas da língua, ao lad da centralização verboideológica e da unificação desenvolvem-se incessantemente os processos de descentralização e separação.” (p. 41) “Enquanto as variedades básicas de gêneros literários se desenvolvem no curso das forças centrípetas unificadoras e centralizadoras da vida verboideológica, o romance e os gêneros da prosa literária que gravitam em torno dele formaram-se historicamente no curso das forças centrífugas descentralizadoras.” (p. 42) “O discurso do pensamento estilístico tradicional só conhece a si mesmo (isto é, o seu contexto), o seu objeto, sua expressão direta e sua língua única e singular. Só conhece outro discurso, situado fora do seu contexto, como discurso neutro da língua, como uma palavra de ninguém, como possibilidade de discurso. O discurso direto [...] só encontra resistência do próprio objeto (sua inesgotablilidade pelo discurso, sua inefabilidade), mas em seu caminho para o objeto não esbarra em contraposições essenciais e multiformes do discurso do outro. Ninguém o atrapalha, ninguém o contesta.” (p. 48) “O enunciado vivo, que surgiu de modo consciente num determinado momento histórico em um meio social determinado, não pode deixar de tocar milhares de linhas dialógicas vivas envoltas pela consciência socioideológica no entorno de um dado objeto da enunciação, não pode deixar de ser participante ativo do diálogo social. É disto que ele surge, desse diálogo, como sua continuidade, como uma réplica e não como se com ele se relacionasse à parte.” (p. 49) “Em todas as suas vias no sentido do objeto, em todas as orientações, o discurso depara com a palavra do outro e não pode deixar de entrar numa interação viva e tensa. Só o Adão mítico, que chegou com sua palavra primeira ao mundo virginal ainda não precondicionado, o Adão solitário conseguiu evitar efetivamente até o fim essa orientação dialógica mútua com a palavra histórica concreta do homem: pode abstrair-se da palavra do outro, mas apenas em termos convencionais e só até certo grau.” (p. 51) “Todo discurso está voltado para uma resposta e não pode evitar a influência profunda do discurso responsivo antecipável. O discurso falado vivo está voltado de modo imediato e grosseiro para a futura palavra-resposta: provoca a resposta, antecipa-a e constrói-a voltado para ela. Formando-se num clima do já dito, o discurso é ao mesmo tempo determinado pelo ainda não dito, mas que pode ser forçado e antecipado pelo discurso responsivo. Assim acontece em qualquer diálogo vivo.” (p. 52- 53) “[...] O heterodiscurso pode ser introduzido nos gêneros puramente poéticos, preferivelmente nas falas das personagens, mas aqui ele é coisificado, aqui é mostrado em essência como coisa, não se situa na mesma camada da linguagem real da obra: trata-se do gesto representado da personagem e não da palavra que representa.” (p. 61) “A língua, como o meio concreto vivo habitado pela consciência do artista da palavra, nunca é única. Só é única como sistema gramatical abstrato de formas normativas, desviada das assimilações ideológicas concretas que a preenchem e da contínua formação histórica da língua viva. A vida social viva e a formação histórica criam no âmbito de uma língua nacional abstratamente única uma pluralidade de universos concretos, de horizontes verboideológicos sociais e fechados.” (p. 63) “No romance humorístico inglês encontramos uma reprodução paródico- humorística de quase todas as camadas da linguagem literária falada e escrita de sua época. Praticamente todos os romances dessa variedade que mencionamos são uma enciclopédia da totalidade dos discursos e formas literárias [...]” (p. 79) “O estilo humorístico requer esse movimento vivo do autor de aproximação da linguagem e de afastamento dela, requer essa mudança constante da mudança constante da distância entre eles e uma passagem coerente da luz para a sombra ora de uns, ora de outros elementos da linguagem.” (p. 81) “Chamamos de construção híbrida um enunciado que, por seus traços gramaticais (sintáticos) e composicionais, pertence a um falante, mas no qual estão de fato mesclados dois enunciados, duas maneiras discursivas, dois estilos, duas “linguagens”, dois universos semânticos e axiológicos.” (p. 84) “O discurso do outro [...] é, na maioria dos casos, impessoal (“opinião comum”, linguagens de profissões e gêneros) e em parte alguma está delimitado do discurso do autor: os limites são deliberadamente movediços e ambíguos, amiúde no interior de uma oração simples e, às vezes, dividem os termos essenciais da oração. (p. 89) “[...] A narração do narrador ou do autor convencional constrói-se no campo da linguagem literária normal, do habitual horizonte literário. Cada elemento na narração se correlaciona com essa linguagem e com o horizonte, contrapõe-se a estes, sendo que se contrapõe dialogicamente: como um ponto de vista a outro ponto de vista, uma avaliação a outra avaliação, um acento a outro acento. É essa correlatividade, essa conectividade dialógica de duas linguagens e dois horizontes que permite realizar-se a intenção do autor de tal modo que a percebemos nitidamente em cada momento da obra.” (p. 99) “O discurso dos heróis [...] podem também refratar as intenções do autor e, por conseguinte, ser até certo ponto uma segunda linguagem do autor. Além disso, os discursos dos heróis quase sempre influenciam (algumas vezes de forma poderosa) o discurso do autor, disseminado nele palavras de outro (o discurso dissimulado do heróis) e assim inserindo nele a estratificação, a heterodiscursividade.” (p. 100) “O romance permite que se introduzam em sua composição diferentes gêneros tanto literários (novelas intercaladas, peças líricas poemas, cenas dramáticas, etc.) como extraliterários (retóricos, científicos, religiosos, narrativa de costumes, etc.) Em princípio, qualquer gênero pode ser incluído na construção do romance, e de fato é muito difícil encontrar um gênero que não tenha sido introduzido algum dia e por alguém no romance.” (p. 108) “As linguagens dos gêneros extraliterários que integram o romance ganham amiúde tal importância que a introdução de um gênero correspondente (do epistolar, por exemplo) cria uma época não só na história do romance, mas também na história da linguagem literária.” (p. 109) “O jogo humorístico com linguagens, a narração “não do autor” (do narrador, do autor convencional, do herói), os discursos e as zonas dos heróis em, por último, os gêneros intercalados ou emoldurados são as formas basilares de introdução e organização do hetero discurso no romance. Todas essas formas permitem realizar um modus de emprego indireto, precondicionado e distanciado das linguagens.” (p.112) “[...] o Dom Quixote de Cervantes [...] realizou, com excepcional profundidade e amplitude, todas as potencialidades ficcionais da palavra heterodiscursiva e interiormente dialogada do romance.” (p. 113) “O heterodiscurso introduzido no romance [...] é discurso do outro na linguagem do outro, que serve à expressão refratada das intenções do autor. A palavra de semelhante discurso é uma palavra bivocal especial. Ela serve ao mesmo tempo a dois falantes e traduz simultaneamente duas diferentes intenções: a intenção refratada do autor. Nessa palavra há duias vozes, dois sentidos e duas expressões.” (p. 113) “O romancista desconhece uma língua única, singular, ingênua (ou convencionalmente) indiscutível. A língua chega ao romancista estratificada e heterodiscursiva. Por isso, até onde o heterodiscurso permanece fora do romance, onde o romancista atua com atua com sua língua única e consolidada (sem distância, refração, ressalva) ele sabe que essa língua não tem significação universal nem é indiscutível, sabe que ela soa no meio do heterodiscurso, que precisa ser protegida, purificada, defendida, motivada. Por isso, essa língua única e direta do romance é polêmica e apologética, isso é, dialogicamente correlacionada com o heterodiscurso. (p. 123) “O objeto fundamental, “especificador” do gênero romanesco, que cria sua originalidade estilística, são o falante e sua palavra.” (p. 124) “1) O falante e sua palavra no romance são objeto da representação verbalizada e fictional. [...] 2) O falante é um homem essencialmente social, historicamente concreto e definido, e seu discurso é uma linguagem social [...], uma linguagem de grupo e não um “dialeto individual”. [...] 3) O falante no romance é sempre, em maior ou menor grau, um ideólogo, e sua palavra é sempre um ideologema. [...]” (p. 124) “A ação do herói romanesco sempre é ideologicamente destacada: ele vive e age em seu próprio universo ideológico (e não no universo único da epopeia), tem sua própria apreensão do mundo (Gesinning), que se materializa na ação e na palavra.” (p. 127) “Não se pode representar adequadamente o universo ideológico do outro sem permitir que ele mesmo ressoe, sem revelar sua própria língua. Pois só a sua própria palavra pode ser efetivamente adequada para representar o mundo ideológico original, embora não seja a palavra sozinha, mas unida ao discurso do autor.” (p. 127) “O falante no romance [...] não deve, em absoluto, ser obrigatoriamente personificado no herói. O herói é apenas uma das formas do falante [...]. As linguagens do heterodiscurso integram o romance sob a forma de estilizações paródicas impessoais (como nos humoristas ingleses e alemães) sob a forma de gêneros intercalados, em forma de autores convencionais, em forma de skaz; por último, até o discurso absoluto do autor, tendo em vista que é polêmico e apologético [...] está até certo ponto concentrado em si mesmo, ou seja, não só representa como também é representado.” (p. 128) “Em todos os cantos da vida e da criação ideológica nosso discurso está repleto de palavras e imparcialidade. Quanto mais interessante, diferenciada e elevada é a vida social de um grupo falante, maior é o peso específico que o ambiente dos objetos passa a ter na palavra do outro, no enunciado do outro enquanto objeto de transmissão desinteressada, de interpretação, discussão, avaliação, refutação, apoio, sucessivo desenvolvimento, etc.” (p. 130) “O falante e sua palavra no discurso do dia a dia servem como objeto de uma transmissão interessada em sentido prático e nunca de sua representação. (p. 134) “A vinculação do discurso com a autoridade – não importa se a reconhecemos ou não – cria uma separação específica, um isolamento desse discurso: ele exige distância em relação a si mesmo [...]. O discurso de autoridade pode organizar em torno de si massas de outros discursos (que o interpretam, elogiam, aplicam-no de modos vários, etc.), mas ele não se funde com estes (por exemplo, por meio de transições graduais) – permanece acentuadamente destacado, compacto e inerte: ele, por assim dizer, exige não só aspas como também um destaque mais monumental, por exemplo, com um tipo especial de letra.” (p. 137) “[...] para a vida ideológica independente, a consciência desperta cercada em um mundo de palavras dos outros, das quais ele a princípio nçao se destaca; a distinção de sua palavra e da palavra do outro, de seu pensamento e do pensamento do outro acontece bem mais tarde.” (p. 139) “Nossa formação ideológica é justamente essa tensa luta que em nós se desenvolve pelo domínio de diferentes pontos de vista, enfoques, tendências e avaliações verboideológicas. A estrutura semântica do discurso interiormente persuasivo não é concluída, é aberta, e em cada novo contexto dialogante é capaz de relevar possibilidades semânticas sempre novas.” (p. 140) “Todos os procedimentos de criação da representação da linguagem no romance podem ser resumidos a três categorias básicas: 1) hibridização das linguagens; 2) interação dialógica das linguagens; 3) diálogos puros de linguagem. Essas três categorias de procedimentos só podem ser desmembradas in abstracto; inconcreto elas se entrelaçam inseparavelmente no tecido literário único da imagem.” (p. 156) “O que é hibridização? É a mistura de duas linguagens sociais no âmbito de um enunciado – o encontro, no campo desse enunciado, de duas diferentes consciências linguísticas divididas por uma época ou pela diferenciação social. (ou por ambas).” (p. 156) “A representação literária da linguagem deve, por sua própria essência, ser um híbrido (intencional) de linguagens: aí é forçoso que estejam presentes duas consciências linguísticas – a representada e a representadora – pertencentes a outro sistema de linguagens. Porque se não existe essa segunda consciência representadora, a segunda vontade linguística representadora, já não temos diante de nós uma representação de linguagem mas simpresmente um protótipo autêntico ou falsificado da linguagem do outro. (p. 157) “O romance não só não dispensa a necessidade de um conhecimento profundo e sutil da linguagem literária como ainda exige, além disso, o conhecimento também das linguagens do heterodiscurso. O romance requer a ampliação e o aprofundamento do horizonte linguístico, o aprimoramento de nossa percepção dos matizes e das diferenciações sociolinguísticas. (p. 166) “É necessário que haja a desintegração e a queda da autoridade religiosa, política e ideológica vinculada a essa linguagem. É no processo dessa desintegração que amadurece a consciência linguística prosaico-literária descentralizada, que se baseia no heterodiscurso social das línguas nacionais faladas.” (p. 172) “O florescimento do romance está sempre vinculado à decomposição dos sistemas verboideológicos estáveis, ao fortalecimento e à intencionalização da heterodiscursividade da linguagem tanto no âmbito do próprio dialeto literário como fora dele. (p. 172) “O romance de cavalaria em versos, embora também tenha sido determinado pela ruptura entre o material e a língua, supera essa ruptura, põe o material em comunhão com a linguagem e cria uma variedade especial de um autêntico estilo romanesco. Já a primeira prosa romanesca europeia nasce e se forma exatamente como prosa de exposição, e isto determinou os seus destinos por um longo tempo.” (p. 182- 183) “Os romances da primeira linha estilística revelam a pretensão de organizar estilisticamente o heterodiscurso da linguagem falada e dos gêneros escritos cotidianos e semiliterários. Isso determina, até certo ponto, sua relação com o heterodiscurso. Já os romances da segunda linha estilística transformam essa organizada e “enobrecida linguagem literária dos costumes em matéria essencial para a sua orquestração, transformando em seu heróis essenciais as pessoas que usam essa linguagem, isso é, as “pessoas literárias” com seus pensamento.” (p. 188) “No início do século XVII, a primeira linha estilística começa a sofrer pequenas mudanças: forças históricas reais passam a utilizar a idealização abstrata e o polemismo abstrato do estilo romanesco para realizar tarefas polêmicas e apologéticas mais concretas. A desorientação social do abstrato cunho romântico da cavalaria é substituída pela nítida orientação de classe e política no romance barroco.” (p. 192) “Desenvolve-se e realiza-se integralmente um novo modus de utilização do material no romance histórico-heroico do barroco. A época, representada por uma classe dominante dilacerada pelas contradições do absolutismo, lança-se com avidez à procura de um material carregado de tensões heroicas em todas as épocas, países e culturas [...].” (p. 193)” “A ideia de provação do herói e de sua palavra é, talvez, a ideia basilar essencial de organização do romance, que cria a distinção radical entre ele e a epopeia: o herói épico está, desde o início, do lado oposto de qualquer provação; no universo épico é inconcebível o clima de dúvida quanto ao heroísmo do herói.” (p. 195)