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Matr izes Cu ltura is


da Arte no Brasi l
Professoras autoras Maria Elizia Borges , Ludimilia Justino de Melo
M elo Vaz e Ivaina de Fátima Oliveira
4 - Matrizes Cu ltura is da Arte no Brasil

A PRE SENTA Ç ÃO

Sabemos que as nossas matrizes são muitas e di- Esta proposta está organizada de forma simples,
versas, plurais. Basta prestar atenção a nossa lín- sucinta e didática. Sabemos das diculdades de
gua portuguesa e ver a riqueza de palavras que encontrarmos materiais didáticos publicados sobre
compõem nosso vocabulário: axé, caxixi, abajour, tais assuntos agrupados em um único livro.
futebol, etc. Você seria capaz de dizer a origem de
cada uma delas? A mesma coisa acontece com o Profa. Leda Guimarães - Coordenadora do Curso
nosso vocabulário de representações visuais. No
entanto, apesar dessa diversidade, algumas formas
foram historicamente mais valorizadas e conside- DADOS DA DISCIPLINA
radas melhores e mais “certas” do que as outras.
Ementa
Ao focarmos esse conteúdo nas três matrizes: in-
dígena, africana e européia queremos colocá-las Matrizes Culturais da Arte no Brasil: estudo das vi-
em pé de igualdade como referência para a nossa sualidades dos traços estéticos culturais de diferen-
formação estética visual, enfatizando algumas es- tes povos na formação da nossa arte; sincretismo,
pecicidades, mas também ressaltando processos retenções, permanência e hibridismos das três ma-
de hibridizações, sincretismos, mestiçagens, apro- trizes na arte brasileira; o museu afro-brasileiro e
priações, resignicações pelos quais essas matri- demais espaços do gênero; a presença dos aspec-
zes passaram ao longo desses mais de 500 anos de tos da herança africana e indígena na produção
história. O conteúdo dessa disciplina é formado por artística no Brasil; espaço da cultura afro-brasileira
um texto base da professora Dra. Maria Elizia Borges e indígena no ensino de artes visuais; discussão da
(unidades 1, 2 e 4), que apresenta a arte rupestre, in- lei 10.639/03 que torna obrigatório o ensino da His-
dígena e as matrizes européias (produção jesuítica tória e Cultura Afro-brasileira e Africana.
e a produção de imagens sacras de vertente popu-
lar). Aprofundando a informação sobre arte rupes- Objetivos
tre, temos o texto complementar da professora Ms.
Ludimilia Justino de Melo Vaz. Sobre as matrizes  Compreender aspectos das matrizes estético
africanas, temos o texto da professora Ms. Ivaina de culturais da arte brasileira;
Fátima Oliveira referente à unidade 2 - Matriz africa-  Entender os processos de sincretismos, mesti-
na. Como texto complementar temos “A falsa idéia çagens e hibridismos na arte brasileira;
de matrizes culturais” de Dernival Venâncio Ramos  Discutir e questionar as relações de poder en-
Júnior e Allysson García Fernandes. A proposta des- tre as diferentes matrizes culturais;
te material é fornecer aos leitores um conhecimento  Problematizar o uso das matrizes culturais na
geral acerca das matrizes culturais da arte no Brasil. formação do docente de artes visuais.

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UNIDADES
Unidade 1: Matrizes indígenas
1.1 Uma produção artística primordial L
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1.2 Produções artísticas de caráter coletivo A
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Texto complementar: Arte rupestre brasileira. Uma viagem ao O
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mundo simbólico da Pré-História. E
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Unidade 2: Matrizes africanas: religiosidade, resistência A
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e ofícios A
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2.1 Contribuição da cultura negra na formação cultural brasileira L
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2.2 Resistência e luta da cultura negra S
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2.3 Religiosidade africana e sincretismo R
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2.4 Miradas de universalidade positiva da cultura negra M

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Unidade 3: Matrizes européias: colonizar, catequizar e
construir
3.1 Registro artístico de uma terra exótica
Unidade 4: Imagens sacras
4.1 Aleijadinho
4.2 Veiga Valle

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4 - Matrizes Cu ltura is da Arte no Brasil

Unida de 1

Matrizes indígenas

Professora Autora Maria Elizia Borges*

Nota da autora: Material originalmente elabora- cerâmicas e estão espalhadas em sítios arqueoló-
do com a ajuda de algumas pessoas, às quais dirijo gicos por todo o país. Das regiões pesquisadas até
um agradecimento coletivo. No volumoso trabalho o momento, destacam-se os estados de Minas Ge-
de compilação documental e em momentos vários rais, Goiás, Piauí, São Paulo e Rio Grande do Sul.
nas atividades da pesquisa, menciono Henrique de
Freitas. No trabalho de processamento do texto, Os trabalhos manuais não eram considerados
recebi ajuda de Rodrigo Borges Marques. A artis- obras de arte pelas culturas que os produziram,
ta Lucimar Bello Pereira Frange fez a leitura crítica. pelo menos não no sentido formal em que é usa-
No zelo com o tratamento didático do livro, contei do o conceito. Trata-se, na verdade, de uma pro-
também com a leitura criteriosa do aluno então, dução artística originária de um contexto social
secundarista Ricardo Felício do Nascimento. completamente diferente da civilização ocidental,
que adota tal terminologia.

1 1 Uma produção
. Para o arqueólogo Ulpiano Bezerra de Meneses
artística primordial (Zanini, 1983), esses produtos devem ser estuda-
dos, quanto a suas funções, e aos procedimentos
A literatura arqueológica menciona três catego- de manufatura, a m de identicar quais deles te-
rias de trabalhos manuais realizados pelas culturas riam prováveis funções estéticas. Sabe-se que toda
chamadas de primitivas que habitavam todo o ter- manifestação estética propicia um aguçamento
ritório brasileiro, no período denominado Pré-co- na sensibilidade das pessoas, logo, o estudo dessa
lonial, entre 10.000 a.C. e 15.000 a.C., até a chegada produção tem grande interesse para os historia-
dos portugueses. São artefatos líticos, pinturas e dores da arte.

*Mini-currículo da autora: Professora do Programa de Pós-Graduação em Cultura Visual e do Programa de


Pós-Graduação de História, ambos na Universidade Federal de Goiás, Brasil. Pesquisadora do CNPq com ar-
tigos publicados no país e no exterior sobre arte funerária no Brasil. Foi professora e coordenadora do curso
de Artes Plásticas da Universidade de Ribeirão Preto (1973-91). Ministrou aulas na Faculdade de Arquitetura
da Instituição Moura Lacerda (Ribeirão Preto, 1992) e no curso de pós-graduação em História da Universidade
Estadual Paulista (Franca, 1994-95). Foi Secretária da Cultura em Ribeirão Preto (1993). Livros publicados: A
pintura na “Capital do Café”: sua história e evolução no período da Primeira República (1999); Arte Funerária
no Brasil (1890-1930): Ofício de marmoristas italianos em Ribeirão Preto (bilíngüe, 2002). Integra o Comitê
Brasileiro de História da Arte – CBHA, a Associação Brasileira de Críticos de Arte - ABCA, a Associação Brasileira
de Estudos Cemiteriais – ABEC, a Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas – ANPAP e a Asso-
ciation for Gravestone Studies – AGS. Site: artefunerariabrasil.com.br

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Tanto os arqueólogos como os historiadores da
arte se deparam, na coleta do material nos sítios
arqueológicos brasileiros, com diculdades de
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ordem geofísica: variações climáticas, acesso aos S
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sítios, preservação dos materiais como bras, ma- B
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deiras, peles etc. E de ordem geossocial: nancia- E
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mento, sistematização de critérios cientícos e ca- A
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rência de pesquisadores. S
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O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico C
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Nacional (IPHAN), fundado em 1937, é o órgão I
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responsável pela preservação do patrimônio dos M

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sítios arqueológicos.

1.1.1 Artefatos líticos

Com lascas de pedras os homens zeram, lâminas


de machado com funções múltiplas: furar, cortar, Muiraquitã, formas diversas. Zoólitos. Tapajós, Santarém
– PA. Museu Paraense Emílio Goeldi - Belém do Pará.
raspar, alisar e pressionar. Nos sítios, é encontrada
uma grande variedade desses artefatos, com for- 1.1.2 Pinturas rupestres
mas arredondadas, planas e côncovas, tendo pon-
tas bifaciais e losangulares, e acabamento polido. No Brasil, já foram localizadas pinturas rupestres
A estrutura geométrica é o ponto comum de to- em áreas de Várgea Grande-PI, Lagoa Santa – MG,
dos os artefatos líticos, inclusive dos que continu- Jaraguá e Serranópolis – GO, Campos de Lages,
aram sendo feitos por diferentes tribos indígenas, São Leopoldo – SC e Montenegro – RS e outras.
em períodos posteriores.

Ponta de Flecha. quartzo hialino, cachoeira


do Chacorão, rio Tapajós, PA

Há também os zoólitos, objetos utilitários de pe-


Pictograas. Abrigo de Santana do Riacho – MG.
dra, de formas geométricas e naturalistas, que
representam animais – aves, peixes etc. – assim
como os pequenos objetos líticos – pingentes, ber- São observados dois procedimentos técnicos na
loques e talismãs (muiraquitãs), gurados em sa- feitura dessas pinturas: a pictograa e o petroglifo.
pos, rãs e pererecas. O primeiro consiste na pintura sobre superfícies

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rochosas das grutas, com pincéis de bras ou com A cerâmica marajoara foi produzida por agriculto-
os dedos, utilizando-se de cores advindas de pig- res de origem andina, que habitavam as orestas
mentos de origem mineral – óxido de ferro (ama- tropicais. Formavam uma sociedade em processo
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relo) – e vegetal – urucum (vermelho), jenipapo de estraticação social, haja vista o valor dado ao
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(preto) e carvão. O segundo utiliza instrumentos ritual da morte, atestado pela produção de grande
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T líticos para sulcar, picotear e friccionar as paredes quantidade de urnas funerárias bem elaboradas.
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A rochosas de grutas e habitações subterrâneas. São urnas de grande porte e exibem decoração
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exuberante, proveniente da técnica e pintura, com
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Independentemente da técnica, os motivos das fundo geralmente creme claro, e da técnica excisa,
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pinturas rupestres apresentam dois repertórios. em que o desenho é ressaltado por linhas de vá-
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R O geométrico consta de inúmeras linhas e formas. rias espessuras, mediante a retirada da superfície
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O orgânico compõe-se de guras humanas e de da cerâmica, antes da queima.
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animais esquematizados e isolados ou associados
a cenas de pesca, caça, dança, combate e relações Em ambos os casos, a decoração apresenta-se com
sexuais. Os pormenores, muitas vezes, são natura- formas geométricas estilizadas. Muitas vezes, recor-
listas e o registro do meio ambiente vegetal tor- re também à representação zoomorfa de rãs e co-
na-se raro. Da direita para a esquerda, há aspectos bras, ou antropomorfa, de mulheres e homens. To-
ligados ao movimento, ao espaço e a aparência das as urnas são bem polidas, assim como os vasos
dessas imagens não verbais. e as tangas, que têm o mesmo processo de manufa-
tura. Quanto ao formato, as variações são básicas e
simples, variando da forma esférica à cilíndrica.

Petroglifo. Pedra do Ingá – PB.

1.1.3 A Cerâmica

A feitura da cerâmica no território brasileiro desen-


volveu-se a partir do primeiro milênio a.C., época
em que as culturas primitivas já viviam no estágio Urna antropomorfa marajoara. Cerâmica,Ilha de Marajó
– PA. Museu Paraense Emílio Goeldi – Belém do Pará.
de sociedade agrícola. A documentação existen-
te nos museus antropológicos do país advém das A cerâmica de Santarém foi produzida por índios Ta-
inúmeras peças realizadas com uma matéria-prima pajós, com um sistema de organização grupal su-
farta – a argila. Fizeram-se recipientes utilitários, perior aos habitantes da Ilha de Marajó, uma comu-
como vasilhames e vasos; objetos decorativos e de nidade diversicada, hierarquizada e escravocrata.
uso, como estatuetas e tangas; recipientes especí-
cos, como urnas funerárias – vasos onde se depo- As cerâmicas são menores que as marajoaras e,
sitavam o cadáver ou as cinzas dos mortos. nas peças, observa-se o emprego da policromia,
de três cores ou mais – da incisa – o uso de artefa-
As principais fases da cerâmica ocorreram, sucessi- tos líticos para gravar os desenhos – e dos adornos
vamente, em locais diversos: Ilha de Marajó – AM, modelados – aplicados na superfície dos vasos. Os
Santarém – PA e Maracá – AP. Tapajós também empregavam de motivos geo-

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métricos estilizados, muito dos quais inspirados Em resumo, o fenômeno artístico do período
nas formas antropomorfas e zoomorfas. pré-colonial reúne grande variedade de artefatos
artísticos, produzidos com diferentes técnicas e
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A decoração, sempre sutil e delicada, evidencia o funções diversicadas por culturas em estágios S
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grau avançado da manufatura dessas cerâmicas. As diferentes de socialização. B
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estatuetas – ídolos do culto da fertilidade – e os va- E
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sos utilizados tanto em ritos cerimônias como nos Por que todos os objetos de função utilitária apro- A
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hábitos do cotidiano, são um bom exemplo disso. priam-se mais da representação antropomorfa e S
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da geométrica? Por que foi dado um maior de- U
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sempenho técnico e artístico às pinturas rupestres C
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e às urnas? Expressam as formas plásticas o fato I
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diferenciador e identicador dos trabalhos manu- M

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ais, quanto ao valor de uso e ao valor cerimonial?

Estas e outras indagações serão, por certo, eluci-


dadas à medida que essa produção for estudada
de um ponto de vista mais global. Peter Pilles,
arqueólogo do Serviço Florestal dos Estados Uni-
Vaso de gargalo com apliques. Zoomorfos. dos, em entrevista ao jornal O Popular, de 9 de se-
Cultura Cerâmica. Santarém – PA. Museu
Paraense Emílio Goeldi – Belém do Pará. tembro de 1997, conrma pesquisas realizadas na
África do Sul, que buscam explicar por que a arte
Quanto à cerâmica de Maracá, encontrada em sí- rupestre de vários lugares do mundo, inclusive a
tios próximos a igarapés do Rio Maracá, dela só do Brasil é parecida. Essa semelhança tem sido
restaram algumas peças vinculadas ao ritual da relacionada às necessidades básicas das culturas,
morte – pequenas urnas funerárias destinadas a isto é, considera-se que se trata de uma produção
sepultamentos secundários. O formato é variado artística primordial. Requer “olhar para ver” as se-
com estilização de formas zoomorfas e antropo- melhanças entre imagens plásticas, requer aten-
morfas complexas, que estão esculpidos até mes- ção e treinamento.
mo em adereços, pulseiras, cocares e braçadeiras.
SAIBA MAIS
Em outros sítios arqueológicos, como o Tupi-gua-
rani, também há exemplos de cerâmica – urnas Aonde ir
funerárias, vasos e outros artefatos. em Goiás:
 Museu de Antropologia da Universidade Federal
de Goiás. Praça Universitária - Goiânia.
 Fundação Jesco Putkamer – Goiânia.
 Sítios arqueológicos: Serra da Mesa - Serranopólis.
 Memorial do Cerrado – UCG - Goiânia.
 Casa do Índio – Goiânia.
Quando viajar, aproveite e visite os espaços listados:
 Museu Paraense Emílio Goeldi - Belém – PA.
 Parque Zoobotânico – Carajás - PA.
 Museu do Estado. Recife – PE.
 Museu de Arqueologia e Etnologia da Universida-
de de São Paulo. Cidade Universitária-SP.
 Museu Paulista da Universidade de São Paulo. Jar-
dim do Ipiranga. São Paulo – SP.
 Museu Arqueológico do Rio Grande do Sul. Ta-
quara – RS.
 Museu Universitário. Cidade Universitária. Trinda-
de. Florianópolis – SC.
Urna antropomorfa. Maracá. Cerâmica, escultura Maracá
–AP. Museu Paraense Emílio Goeldi- Belém do Pará.

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1 2 Produções artísticas
. formas abstratas e cores variadas. A arte do corpo
de caráter c oletivo não é feita de maneira aleatória, é determinada
pelo ritual e é condizente com o signicado de
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Quando os portugueses aportaram em terras do cada um deles. Cabe a cada indivíduo ressaltar sua
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Novo Mundo, ele era habitado por várias culturas beleza dentro das normas preestabelecidas.
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T nativas. O antropólogo Darcy Ribeiro (Zanini, 1983)
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A faz distinção entre as modalidades gerais dessas
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culturas, em função dos seus sistemas adaptativos
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de ordem geográca:
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 Os silvícolas – vivem em regiões de orestas
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R com vegetação densa e clima úmido;
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 Os campineiros – vivem em regiões do cerra-
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do, com vegetação mais rasteira e clima seco.
A quantidade de animais é mais escassa. Seu
sistema agrícola é inferior ao dos silvícolas.

Ambas as modalidades são produtoras de uma


grande quantidade de artefatos manuais primoro-
Gênero artístico efêmero. Pintura corporal indígena
sos, de cestaria, cerâmica, tecelagem e plumária.

Os objetos confeccionados pelos povos indí- 1.2.2 Gêneros artísticos perecíveis


genas eram considerados, até há poucos anos,
mero documento etnográco. A história da arte Alguns povos indígenas dão especial atenção aos
moderna começou, então, a avaliar parte desses cortes de cabelos, aos adornos de lábios , narinas e
objetos como fatos artísticos e como pontos de orelhas; outros adotam adornos e diademas plu-
referência estética. mários sobre a cabeça; e muitos utilizam arranjos
de decoro – braçadeiras, tornozeleiras, tangas, cin-
Um estudo global dessas comunidades evidenciou turões, faixas e colares, que são feitos de miçan-
a importância da criatividade artística como ele- gas, sementes, dentes, plumas, cipós e tecidos.
mento de integração cultural nessas sociedades. Todos esses adereços colocados no corpo pintado
Para os índios, as atividades artísticas fazem parte servem para identicar o tipo de ritual realizado.
da vida cotidiana. Todos têm tempo livre, dedica-
do ao lazer, ao fazer artístico e ao convívio social. As máscaras são objetos ritualísticos elaborados
com palha, madeira, pigmentos, etc. Utiliza-se
A pintura, a escultura, a arquitetura, a decoração, a uma guração grotesca e/ou abstrata para simbo-
música, a dança, são todas, manifestações de igual lizar o imaginário coletivo do bem e do mal, con-
valor expressivo. Todos os elementos da comuni- forme as manifestações místicas dessas culturas.
dade participam do processo como críticos e como
autores. Logo, não existe acervo, pois o produto é
feito com função e uso determinados, conrmando,
assim, a identidade particular de cada comunidade.

Três gêneros artísticos destacam-se pela relevân-


cia e meticulosidade estilística. São eles: efêmeros,
perecíveis e duradouros.

1.2.1 Gêneros artísticos efêmeros

Em rituais cerimoniais, muitos se expressam atra-


Máscaras ritualísticas., Índios Tukuna.
vés da pintura corporal – desenho sobre a pele de

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Os trançados – cestos, abanos, peneiras, esteiras nam-se símbolo da comunidade, pois exprimem a
e redes são produtos elaborados e sua duração capacidade do trabalho coletivo e o poder da lide-
também é relativa, pois a matéria-prima empre- rança tribal. Normalmente, elas têm uma congu-
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gada consiste de folhas, cipós, talos e bras. A ração com bases circulares ou ovais e o teto cônico, S
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complexidade na combinação das tramas resulta considerados de grande valor arquitetônico. B
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num trançado de formas geométricas. E
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Maloca indígena

Outro modelo de moradia é o de formato qua-


drangular, telhado de duas águas, podendo abri-
gar centenas de pessoas. Os sistemas de cobertu-
ra são variados, a depender da matéria-prima de
cada região: galhos e palhas, folhas de sororoca,
toldos de esteiras de cana e palmas.
Cesto Carguerio, katari anon - Índios Wayana-Aparaí

Para reetir
1.2.3 Gêneros artísticos duradouros
O que signica para você o artesanato indígena?
Incluem-se, nesse gênero, os objetos cerâmicos É um objeto de decoração ou de uso? Você já
e as edicações coletivas. A cerâmica da cultura dormiu em uma rede? Como se sentiu?
indígena atual adota processo semelhante ao das
culturas pré-coloniais, visto na unidade anterior.
Destacam-se aqui, os licocós – peças pequenas de A arquitetura moderna emprega o concreto ar-
cerâmica que retratam homens, mulheres e crian- mado em suas edicações e pode apropriar-se de
ças com corpos pintados e adornados. Eles são inúmeras formas cônicas como elemento de liber-
semelhantes às Vênus Esteatopígias, do período dade formal e técnica. Um exemplo é a Igreja de
paleolítico superior europeu. São Francisco de Assis de Belo Horizonte projeta-
da pelo arquiteto Oscar Niemeyer. Você conhece
As primeiras culturas indígenas deram um caráter formas similares em outras construções?
próprio e inconfundível aos licocós: posição estáti-
ca, estilizada, desproporção das partes do corpo,
movimentos leves e simplicidade temática. Já nas
produções atuais, os licocós retratam os hábitos da
vida cotidiana: cenas em movimento de formas
estilizadas, vazadas e policromadas. São temas
narrativos que procuram o resgate de seus mitos.

As malocas são moradias edicadas pelos homens.


As construções são realizadas da maneira mais ru-
dimentar à mais complexa, conforme o estágio cul-
tural de cada tribo indígena. Existem malocas cuja Igreja São Francisco de Assis. 1943. Pampulha, Belo
Horizonte – MG. Oscar Niemeyer, arquiteto.
função é apenas abrigo. As mais elaboradas tor-

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As linguagens visuais podem apresentar simi- As inscrições rupestres registram o impenetrável
laridades, mas o que se deve levar em conta é o mundo simbólico das populações pré-históricas.
contexto cultural em que ela foi criada. É preciso Não se sabe o que representavam estes desenhos
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querer “olhar para ver” as diversidades, além das ou qual a sua função no grupo, mas são admirá-
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semelhanças. veis as formas e as cores que perduram ocultas
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T nas paisagens rochosas.
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D Saiba mais
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No tempo presente o homem contemporâneo
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L O que ler: permanece utilizando paredes como suporte para
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S Maria Heloísa Fénelon Costa. se expressar, no entanto, estes grasmos diversos
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R – pichações, grates, palavras de ordem, declara-
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Berta Ribeiro;
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ções de amor – contém outros signicados sociais,
4 Aonde ir:
que devem ser compreendidos dentro do contex-
Lavras e Louvores. Museu de Antropologia da to a que pertencem. Comumente esta confusão é
Universidade Federal de Goiás. Praça Universitá-
ria. Goiânia – GO feita na intenção de estabelecer parâmetros entre
as diferentes manifestações. Contudo, cada siste-
O que assistir:
ma simbólico deve ser compreendido dentro do
Série O povo brasileiro (matrizes indígenas) – you-
seu próprio contexto.
tube
Exposição sobre Gilberto Freyre – Youtube
Observe como as classicações que fazemos
Casa da cultura da mulher negra –Canal Futura das formas estéticas do passado são puramen-
te convencionais, realizadas a partir do ponto de
vista das noções artísticas do nosso tempo. São
tentativas de entender culturas das quais temos
Para reetir
apenas vestígios.

“Antigamente a gente tinha muitos adornos de Apesar de a arte rupestre constituir um objeto xo
penas, eram grandes e grossos, muito mais bo- que está exposto ao consumo visual, a sua função
nitos que os de agora. Mas naquele tempo não
não era a de uma obra artística como entendemos
se precisava de tanto trabalho para conseguir as
penas: o pajé cantava e elas vinham voando; vi- hoje. Ela tinha a nalidade de transmitir e reforçar
nham penas de tucano, de arara, de japu para fa- o conhecimento cultural do grupo, provavelmen-
zer os colares das mulheres e aqueles diademas te, em situações rituais.
grossos”. (Ribeiro e Ribeiro, 1957:79).

Para Upiano Bezerra de Meneses (1983), o ponto frá-


gil para a apreciação da manifestação artística do pe-
Texto Complementar ríodo Pré-colonial é fundamentalmente acreditar na
existência de uma categoria à parte de objetos de-
Arte rupestre brasileira . nidos como artísticos. É assim que alguns objetos
Uma viagem ao mundo que não tem nalidade utilitária são enquadrados
simbólic o da Pré História - . no âmbito artístico, tais como os adornos e enfeites.

Ludimília Justino de Melo Vaz Porém, até estes objetos tiveram um signicado
social bastante relevante para as sociedades pré-
Arte rupestre é o termo cunhado especicamen- coloniais, as formas estéticas estavam incorpora-
te para referir-se ao comportamento do homem das aos artefatos ou utensílios do uso cotidiano,
de culturas ágrafas de representar grasmos em não havendo a categoria de objeto artístico dis-
suportes rochosos. São as pinturas e gravuras ins- sociada da função utilitária. Através deles estavam
critas em paredões rochosos, ou grandes blocos impressas formas estéticas e valores, tais como,
aorados, que algumas vezes proporcionaram posição social, descendência, faixa etária, entre
ambiente para o abrigo humano. outros. A arte rupestre, como expressão do co-

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nhecimento cultural destes grupos, estava mistu- cas, formas e cores, e que apresentam uma grande
rada à vida cotidiana – ritual, festividade, enterra- distribuição territorial. Nos estudos arqueológicos
mento – sem que os seus autores distinguissem estes conjuntos são chamados tradições, uma vez
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entre um signicado e outro. que incluem certa variabilidade dentro do conjun- S
A
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to, provocada pela dinâmica cultural. Esta classica- B
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Panorama da arte rupestre ção tem sido utilizada como parâmetro de similari- E
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no território brasileiro dade a cada vez que um novo painel é identicado A
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No território brasileiro são encontrados cente- e estudado (PROUS, 1992; GASPAR, 2003) S
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nas de paredões rochosos com arte rupestre. Os U
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primeiros habitantes nos limites do Brasil viviam De um modo geral, as gravuras, também chama- C
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da caça e da coleta, seu modo de vida exigia das petroglifos, parecem pertencer a contextos I
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que circulassem em diferentes ambientes ecoló- sócio-culturais distinto das pinturas, mas algumas M

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gicos em busca dos recursos necessários para a vezes se interpenetram.
manutenção do grupo. Os caçadores coletores
estabeleciam-se em acampamentos temporários Para a elaboração da gravura era usada uma rocha
sob abrigos rochosos, onde manifestavam suas que servia de artefato para o picoteamento ou fric-
crenças, realizavam rituais, enterravam seus mor- ção do suporte rochoso. Os painéis gravados cons-
tos. Posteriormente, quando o homem aprende a tituíam desenhos geométricos e formas humanas.
cultivar plantas, ele se torna sedentário, constrói
sua moradia, aumenta o número de membros da Sobre os grasmos geométricos não podemos
comunidade, mas continua fazendo excursões em deixar de dizer que estes participavam ativamen-
abrigos rochosos, para a caça, pesca ou coleta de te dos códigos de linguagem visual encontrados
recursos diversos e também para ns rituais. no território brasileiro. As formas, que para nós
são abstratas, tinham um signicado reconhecido
Nas investigações arqueológicas nem sempre é e aceito pelos grupos pré-históricos, tanto que,
possível encontrar correspondência entre as pin- muitos desses desenhos se repetem em diversos
turas do paredão e os diferentes grupos cultu- painéis, demonstrando a aceitação da representa-
rais que ocuparam o abrigo rochoso ao longo do ção iconográca (VAZ, 2005).
tempo. Isto se dá porque, ao escavar o terreno de
um abrigo, são encontrados vestígios de agricul- No Rio Grande do Sul um conjunto de gravuras de
tores ceramistas, nas camadas superciais do solo temática geométrica apresenta-se alinhado nas es-
e de caçadores coletores nas camadas mais pro- carpas do Planalto, corresponde à Tradição Meridio-
fundas. E o arqueólogo só poderá associar a arte nal. A temática pode ser dividida em dois grupos.
rupestre a um desses níveis temporais se encon- Um que se caracteriza pela ocorrência de círculos
trar vestígios desta atividade, como por exemplo, maiores rodeados por círculos menores, sugerindo
restos de pigmentos. pegadas de felídeos. E a outra apresenta traços retos
paralelos ou cruzados e as vezes curvos. A unidade
As classicações estilísticas baseadas nos critérios gráca formada por três linhas que partem do mes-
formais, técnicos e temáticos dos painéis de arte mo vértice, conhecida por “tridáctilo”, é identicada
rupestre, têm sido utilizadas por arqueólogos para em diversos painéis gravados.
compreender as dispersões e mudanças culturais
desse complexo universo de imagens.

Para compreender a diversidade da arte rupestre


no Brasil vamos apresentar um quadro geral, ba-
seado nas investigações e registros arqueológicos
sistematizados por André Prous (1992). Conforme
vamos observar, algumas áreas especícas conso-
lidaram determinados modos ou estilos de fazer Gravuras da tradição Meridional. Canhemborá.
grasmos rupestres, baseados em técnicas, temáti- Nova Palma – RS. Fonte: Prous (1992).

111
As gravuras da tradição Geométrica no Nordeste do
Brasil estão nas imediações de rios e cachoeiras, al-
gumas vezes sujeitas às enchentes sazonais. A Pedra
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Lavrada do Ingá, próxima ao município de Campina
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Grande, na Paraíba é uma obra de tamanho monu-
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T mental, o bloco rochoso tem 24 metros de largura
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A por três metros de altura. A maioria dos desenhos
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Gravuras da tradição Meridional. Sítio Josefa – RS.
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A Fonte: Prous (1992). são sinais não identicados, mas existem também
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guras zoomorfas e antropomorfas.
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Nas ilhas litorâneas do estado de Santa Catarina os
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R locais sinalizados estão a cerca de 15Km da costa,
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são de difícil acesso e até mesmo perigosos. Este
4
conjunto foi denido como tradição Litorânea Ca-
tarinense. Os painéis rupestres orientam-se para o
alto-mar, sugerindo uma mensagem endereçada
para quem chega do oceano. Os grasmos são com-
postos por linhas sinuosas, círculos concêntricos e
guras humanas bastante esquemáticas.

Pedra Lavrada, Ingá (PB).

Os pigmentos empregados na arte rupestre são


predominantemente de origem mineral. Os óxidos
minerais foram empregados para a obtenção dos
pigmentos vermelho e amarelo. O branco, tam-
bém de origem mineral, é encontrado em forma-
ções calcárias. O preto é proveniente do carvão de
vegetais ou de ossos. Os pigmentos penetram nas
Gravuras da tradição Litorânea Catarinense.
Ilha dos Corais. Fonte: Prous (1992). ssuras da rocha incorporando-se a ela, o que tem
proporcionado longa durabilidade (LAGE, 2002)
No continente, no planalto brasileiro que vai da
região Sul até a Nordeste as gravuras são identi- O conjunto classicado como tradição Planalto
cadas como Tradição Geométrica, encontram-se apresenta guras basicamente monocrômicas,
nos estados de Santa Catarina, Paraná, São Paulo, estão espalhadas desde a fronteira entre Paraná e
Goiás, Mato Grosso e Paraíba. Pode-se dizer que São Paulo até a Bahia. As pinturas foram produ-
se caracterizam por motivos geométricos inexis- zidas por pigmentos vermelhos, mais raramente
tindo quase completamente representações gu- aparece o preto, o amarelo e o branco. A temática
rativas. São predominantes as depressões esféri- representa animais, que ocorrem em maior fre-
cas, destacando-se também os “tridáctilos”. qüência que os desenhos geométricos, enquanto
que as guras humanas são raras.

No Vale do Rio São Francisco em Minas Gerais,


Bahia e Sergipe ocorrem painéis rochosos de pin-
turas caracterizadas pelo uso intenso da bicromia,
agrupados na Tradição São Francisco. As cores
vermelha, amarela, preta e branca dão grande in-
tensidade aos painéis de grasmos geométricos
Gravuras da tradição Geométrica meridional. (Fig. 7). A temática abstrata é predominante em
Morro do Avencal (SC) Fonte: Prous (1992).
relação às guras de animais e humanos. Os raros

112
O maior acervo de pinturas rupestres está implan-
tado no Parque Nacional da Serra da Capivara, no
Piauí. A formação geológica composta por uma
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cuesta – imensa linha de paredões verticais – abri- S
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ga um nicho ecológico favorável à ocupação pré- B
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histórica. Neste contexto e em suas adjacências já E
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foram registrados mais de 500 painéis rochosos A
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com pinturas e gravuras rupestres. S
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Nesta área podem ser identicados dois conjun- C
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tos de pinturas rupestres. Um deles, denominado I
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tradição Agreste, tem como elemento denidor as M

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guras animais ou humanas isoladas, de grande ta-
manho, dando destaque ao painel. O outro conjun-
to classicado como tradição Nordeste, caracteriza-
se pela abundância de guras humanas agrupadas
e formando cenas de expressão dinâmica.

Representações de animais da tradição A tradição Agreste é encontrada, além do Piauí,


Planalto. Pinturas. Fonte: Prous (1992).
nos estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Para-
zoomorfos são quase que exclusivamente peixes, íba e Pernambuco. Os painéis pintados são com-
pássaros, cobras, lagartos e tartarugas. Ocorrem postos por vários sinais acompanhados por ani-
representações isoladas de pés humanos, armas mais ou guras humanas, que costumam ser de
(lança, propulsores), instrumentos (cestos, tipiti, tamanho grande, destacando-se no conjunto das
panela, maracas). pinturas. A gura humana pode ser representada
de modo isolado ou em raras cenas de poucos
personagens. Os animais geralmente são estáti-
cos, havendo emas, quelônios e pássaros de asas
abertas e longas pernas, alguns com tendência ao
antropomorsmo. Há grandes guras geométri-
cas bem elaboradas e carimbos

Saiba mais

Os desenhos gurativos são chamados de antro-


pomórcos quando representam a gura huma-
Grasmos policrômicos da tradição São Francisco. Lapa na, e zoomórcos na representação de animais.
do Boquete, Januária (MG). Fonte: Gaspar (2003).
O antropomorsmo, por sua vez, indica a gura
animal com caracterização humana, como, por
Nos municípios de Montalvânia e Januária, em exemplo, a posição ereta com os membros supe-
Minas Gerais, região do São Francisco as investi- riores abertos. A frontalidade da gura animal, que
gações arqueológicas revelaram que a ocupação sempre é representada de perl, neste caso, seria
uma tendência ao antropoformismo. Este termo
mais antiga da área se deu por volta de 11.000 a.C. busca descrever guras de âmbito regional, não
Diversos grupos culturais se sucederam ali até o sendo, convencional a todos a arte rupestre.
período histórico. O resultado dessa diversidade
cultural se manifesta nos paredões rochosos, que
apresentam, além das pinturas geométricas poli- As cenas de temática reconhecível da tradição Nor-
crômicas, outros grasmos semelhantes aos en- deste sugerem caça, dança, guerra, cópula, rituais,
contrados no Parque Nacional Serra da Capivara etc. As guras humanas seguram armas (bastões,
– PI, representando humanos em cenas de ação propulsores), cestas e outros. Estas pinturas forne-
(PROUS et al., 1984, p. 47-58). cem informações sobre a vida cotidiana, as crenças,

113
A região do Parque Nacional Serra da Capivara pa-
rece ter sido o berço da Tradição Nordeste caracte-
rizada pelas cenas de ação, considerando a quan-
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tidade e diversidade dessas pinturas na região. Os
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grasmos de ação estendem-se pelos estados de
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T Pernambuco, Rio Grande do Norte, Bahia, Ceará,
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A Minas Gerais e Goiás. A dispersão do estilo pode
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estar ligada à expansão do grupo cultural provo-
R Pinturas da tradição Agreste. Parque Nacional da
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L Serra da Capivara (PI). Fonte: Gaspar (2003). cada pelo crescimento demográco.
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R as manifestações rituais daqueles povos. Entre os As pinturas da região do Seridó, no Rio Grande
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animais dominam as emas, os cervídeos e peque- do Norte, correspondem a uma variação da tra-
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nos quadrúpedes. As cenas de caça são as mais re- dição Nordeste. Os grasmos da região do Seridó
presentadas, compostas por um ou mais animais, destacam-se pela representação humana de boca
por caçadores e artefatos utilizados para este m. aberta, talvez simulando um “bico de pássaro”. As
guras têm tamanho pequeno, geralmente, pinta-
das com traço no com tinta líquida vermelha.

Grasmos de reconhecimento. Tradição Nordeste.


Serra da Capivara – PI. Fonte: Pessis (2003).
Grasmos de ação. Tradição Nordeste.
Seridó – RN. Fonte: Pessis (2003).

A temática gurativa na composição de cenas se


estende até a região de Lagoa Santa, no estado
de Minas Gerais. Nesta região são encontrados
painéis pintados cuja particularidade está na fre-
qüência de guras derivadas da forma de pássaro.
Encontram-se aves de asas abertas e pequenas
guras antropomorfas de corpos lineares e com
bico de pássaro. Na Lapa do Ballet estão represen-
tadas duas las de guras humanas com identi-
Grasmos reconhecimento. Tradição Nordeste. cações de gênero, as mulheres são identicadas
Serra da Capivara – PI. Fonte: Pessis (2003)
pelo volume do ventre e os homens pelo falo.
As investigações arqueológicas na Serra da Capi-
vara têm dado importantes informações sobre a
presença humana na pré-história das Américas, re-
cuando sua antiguidade a cerca de 50 mil anos. O
processo de ocupação da região deu-se de maneira
contínua. A manifestação pictural aparece ainda no
Pleistoceno, período em que a clima sofria baixas
temperaturas, a cerca de 29.000 anos atrás. Mas as
expressões parietais constituídas nos padrões esti- Representações de gênero. Lapa do Ballet,
lísticos recuam a 12.000 anos (PESSIS, 2003). Lagoa Santa – MG. Fonte: Prous (1992).

114
A Tradição Nordeste também é identicada em Os estudos na Caverna da Pedra Pintada, locali-
situações pontuais no sudoeste do Mato Grosso. zada no município de Monte Alegre no estado
Na Bacia do Rio São Lourenço foram encontra- do Pará, revelam que os caçadores coletores se
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dos diversos abrigos com pinturas e lajedos com adaptaram também à oresta tropical. As data- S
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petroglifos. Em meio às inscrições geométricas ções radiocarbônicas situaram as primeiras ocu- B
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predominantes no contexto regional as represen- pações entre 11.200 e 10.000 anos atrás, datas que E
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tações de guras humanas em ação são quanti- correspondem às camadas com concentração de A
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tativamente minoritárias. As cenas reconhecíveis pigmento utilizado nas pinturas. As guras rupes- S
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mostram parto, caça e situações rituais. tres são grasmos geométricos, diversos animais U
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e cenas de caça e parto, além de impressões de C
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A tradição Amazônica abrange pinturas e gravuras mãos de crianças e adultos. I
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localizadas nos estados do Pará, Roraima, Amapá, M

Rondônia e Mato Grosso. Só no baixo Rio Ama- A antiguidade das manifestações 4

zonas foram identicados mais de uma centena rupestre em Goiás


de inscrições rupestres, sendo identicados pelo A ocupação do Planalto Central, nas divisas do es-
menos dois estilos de pinturas diferentes. Nesta tado de Goiás, teve início a 11.000 anos atrás. Nos
região os painéis estão compostos por guras hu- municípios de Serranópolis e Caiapônia as forma-
manas simétricas e geometrizadas, que medem ções rochosas de relevo tabular instalam locais
cerca de 50cm de altura. Os antropomorfos estão que serviram de abrigos para grupos humanos no
em posição estática, o tronco é retangular preen- passado. A estratigraa dos grandes abrigos com
chido por linhas cruzadas. Os diferentes painéis arte rupestre indicou a presença dos caçadores-
mostram cabeças humanas gravadas, geralmente coletores nas primeiras ocupações e de agriculto-
radiadas, bastões e linhas curvas gravadas, pintu- res ceramistas nas mais recentes.
ras de retas e retângulos preenchidos com traços,
além das guras humanas esquemáticas de mãos No município de Serranópolis estão concentra-
dadas. São, também, recorrentes os desenhos de dos cerca de 40 abrigos de ocupações humanas,
mãos, algumas vezes preenchidos com círculos as ocupações mais antigas são datadas em ao me-
concêntricos (Fig. 13). nos 10.500 anos A.P. As pinturas eram feitas com
tinta líquida aplicada com um “pincel” ou dedo ou
com pigmento seco riscado na rocha. O tamanho
SAIBA MAIS
predominante das guras é de 15m a 30 cm, mas
Os desenhos esquemáticos correspondem àque- existem guras com alguns poucos centímetros e
les que representam apenas elementos essenciais outras que atingem até um metro. A cor mais fre-
para o reconhecimento do objeto real. As guras qüente é o vermelho, mais raramente aparecem o
humanas esquemáticas estão representadas por
tronco, membros estendidos e cabeça apenas amarelo, o preto e o branco (SCHMITZ, et al.,1984).
delineada, sem detalhamento de pés, mãos ou
articulações que poderiam sugerir movimento. A temática compõe-se de guras animais, hu-
manas e geométricas. Os animais são variados:
lagarto, tatu, tartaruga, macaco, veado, ema, se-
riema, arara, papagaio e outras aves (Fig. 14). As
guras humanas são raras e as pisadas humanas
aparecem com certa freqüência. Os grasmos ge-
ométricos podem ser círculos, elipses, triângulos,
losangos, retângulos, e ainda linhas retas, que-
bradas e curvas. As guras podem estar vazias ou
preenchidas (SCHMITZ, 1984).

Em Serranópolis as gravuras aparecem nos abri-


gos, junto às pinturas. As pinturas eram executa-
Cabeças humanas. Monte Alegre – PA. Fonte: Pereira (2003).
das, geralmente, sobre as partes mais lisas e duras

115
petroglifos em uma área de inúmeros abrigos pin-
tados. Os desenhos lineares e fechados aparecem
juntos a pés e guras humanas. As “cruzes” são os
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únicos desenhos coincidentes nos petroglifos e
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pinturas. Foram realizados pela técnica de abra-
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T são e picoteamento; os sulcos são preenchidos
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A com pintura vermelha ou preta. O picoteamento
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parece mais recente do que a técnica de abrasão
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(SCHMITZ, 1981/82).
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Pinturas e gravuras são encontradas ainda em ou-
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tras regiões do estado de Goiás como em Formo-
4
sa, Serra de Jaraguá, Planaltina de Goiás e Nique-
lândia. A arte rupestre nestes locais apresenta um
alto nível de degradação provocado por fatores
diversos, entre eles, a intervenção nos painéis fei-
Pinturas, Serranópolis – GO. Fonte: Fundação Bienal (1984).
ta pela população atual com inscrições a carvão e
o uso dos locais para atividades atuais.
da rocha, enquanto que os petroglifos aparecem
nos arenitos mais moles. Existem também abri- Signicados da arte rupestre
gos exclusivamente com gravuras. Neste caso, a na contemporaneidade
temática se caracteriza por geométricos lineares Depois deste panorama é possível compreender
formando ângulos, guras fechadas, círculos pre- a diversidade dos grupos culturais e a vastidão
enchidos com raios, grades, elipses, pés de felinos do território brasileiro por eles ocupado no pe-
e de humanos, folhas, entre outros. Os únicos mo- ríodo pré-histórico. Vale ressaltar, no entanto, a
tivos elaborados a partir das duas técnicas são fo- fragilidade deste acervo exposto às intempéries
lhas e pés. A diversidade de motivos gravados não e ao processo de ocupação e usos contemporâ-
permitiu um indicador de semelhança estilística, neos destes locais. Muitos paredões rochosos
porque alguns grasmos têm ampla distribuição têm sido destruídos dando perda irreversível
no território brasileiro (SCHMITZ, 1981/82, p. 415). à arte rupestre.

Na região de Caiapônia as técnicas de pintura são A preservação da arte rupestre como patrimônio
as mesmas empregadas em Serranópolis – a tin- cultural exige ações e intenções especícas, que
ta líquida aplicada com “pincel”, a pintura a dedo lidam com a apreciação da arte, com a conser-
e o bastão seco. O pigmento mais comum foi o vação do patrimônio e com a continuidade das
vermelho, raramente aparecem o preto e a poli- pesquisas. Trabalhando dentro desta dinâmica de
cromia do vermelho e amarelo e/ou preto. As - interesses é que a Fundação Museu do Homem
guras humanas, em tamanho pequeno, cerca de Americano, juntamente com o IBAMA elaboraram
10cm, representam cenas de ação. Entre os ani- um Plano de Manejo para ser aplicado no Parque
mais estão representados os veados, antas, tatus, Nacional da Serra da Capirava (GUIDON, 2002).
tartarugas, onças, aves, macacos e peixes. Algu-
mas vezes os animais compõem cenas com hu- Para alcançar o desenvolvimento econômico e
manos ou são representados em bandos. Os pei- social auto-sustentável, que envolvesse a popu-
xes, por exemplo, podem estar aos pares ou em lação local, optou-se pelo turismo. As belezas
cardumes. Os geométricos ocorrem em menor naturais do Parque aliadas aos vestígios da pré-
quantidade, correspondendo a círculos concên- história foram os grandes atrativos da região.
tricos, losangos geminados, lineares, entre outros Com este intuito, o Parque foi preparado para a
(SCHMITZ, et al.,1984). visitação com abertura de estradas e trilhas de
acesso, colocação de passarelas para a condu-
Em Caiapônia foram localizados três abrigos com ção do público nos sítios arqueológicos, além da

116
preocupação com a higienização do Parque e A arte rupestre é um sistema de signicação do
conservação dos painéis de pinturas rupestres. passado que emerge na contemporaneidade com
outros sentidos. As manifestações estéticas da
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A preservação do patrimônio arqueológico se pré-história podem produzir vínculos afetivos do S
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justica, além de outros fatores, pelas referências homem com o seu espaço, com a sua terra mátria, B
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que traz do passado pré-histórico e pelo teste- na medida em que é conhecida e entendida como E
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munho do processo de mudança atravessado pertencente aos diferentes grupos sociais que A
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pela humanidade. constituem o povo brasileiro. S
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