Você está na página 1de 4

A luz de Tereza não apagará

25 de julho celebra o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha. No


Brasil a data também homenageia a vida e a luta de Tereza de Benguela uma das maiores
dirigentes políticas e líder quilombola do século 18.

Para compreendermos porque essa data foi escolhida como símbolo da resistência das
mulheres negras, indígenas e de comunidades tradicionais é necessário conhecer o
histórico de lutas protagonizadas por elas no passado.

O sangue latino vem na miscigenação


No dia 25 de julho de 1992, aconteceu o primeiro Encontro de Mulheres Negras Latinas e
Caribenhas, na cidade de Santo Domingo, na República Dominicana. Durante a conferência
discutiram pautas como machismo, racismo e como combatê-los.

Do evento surge a data que tem como objetivo dar visibilidade à luta das mulheres negras,
indígenas e de comunidades tradicionais contra a opressão de gênero, a exploração e o
racismo: Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha.

O marco foi reconhecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) no mesmo ano em
que o evento aconteceu, após a rede de mulheres, criada durante seu primeiro encontro,
pressionar a entidade a assumir a luta contra as opressões de raça e gênero.

A esperança no Quariterê
Apenas em 2 de junho de 2014 foi sancionado pela então presidenta do Brasil, Dilma
Rousseff, o dia 25 de julho como o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra,
através da Lei nº 12.987. A data homenageia uma das principais mulheres, símbolo de
resistência e liderança na luta contra a escravidão.

Apesar da importância da data, poucos sabem da sua existência. Para o filósofo camaronês
Achille Mbembe em seu ensaio Necropolítica, o Estado utiliza de mecanismos para decidir
quem deve morrer, e quem deve viver através do uso da violência contra os mais
vulneráveis. Logo podemos concluir que o Estado também decide quem “merece” ter uma
história e quem deve ser invisibilizado.

A história contada através da perspectiva do colonizador é um instrumento de dominação


política. Para o psiquiatra, filósofo e revolucionário Frantz Fanon a ideologia do colonizador
tem que ser combatida, pois “na relação colonizador/colonizado não há reconhecimento
envolvido”. O autor antilhano afirma que a história é uma importante arma de disputa
política revolucionária para a derrubada do programa de dominação colonial.

Tereza de Benguela foi triplamente vítima do Estado:

1º: Tendo seu corpo e sua força de trabalho escravizado;

2º: Quando capturada e morta;

3º: Quando sua história foi apagada.


O Dia da Mulher Negra é uma forma de reparar esse aglomerado de ausências históricas
dos povos negros, indígenas e de comunidades tradicionais.

Mas, quem foi Tereza? Mulher negra a qual o rei João I e toda a coroa portuguesa queriam
morta e sua cabeça exposta em praça pública?

Não se sabe ao certo sua origem, se nasceu no Brasil, ou se nasceu no porto de Benguela,
na Angola. Sabe-se apenas que era escrava fugida do capitão Timóteo Pereira Gomes.

Viveu no Quilombo do Quariterê, nas margens do rio Guaporé, próximo da cidade de Vila
Bela da Santíssima Trindade, a então capital do estado do Mato Grosso na época da
corrida do ouro. Não se sabe a localização exata do quilombo, pois era de difícil acesso
pelas grandes árvores que se encontravam na região. A floresta tinha uma passagem
estreita, que corroborou para que o Quariterê ficasse bem escondido e fosse um ambiente
seguro para as mais de 300 pessoas que viviam ali em comunidade formada por negros,
indígenas e mestiços.

Tereza foi esposa de José Piolho, fundador do assentamento, e, após a morte do


marido,tornou-se a líder do Quariterê, mas não há um consenso entre os historiadores,
alguns afirmam que ambos governaram juntos, mas após a morte de Piolho em um dos
confrontos que o quilombo enfrentou ela passou a governar o quilombo através de um
regime de parlamento. Fato confirmado através do Anal de Vila Bela publicado em 1770:

“A rainha Tereza governava esse quilombo a modo de Parlamento,


tendo para o conselho uma casa destinada, para a qual, em dias
assinalados de todas as semanas, entravam os deputados. Isso
faziam, tanto que eram chamados pela rainha, que era a que
presidia e que naquele negral Senado se assentava, e se
executavam à risca, sem apelação nem agravo”. (Anal de Vila Bela
de 1770)

Estrategista militar e dirigente política, Tereza governou o Quilombo Quariterê entre 1750 e
1770. Benguela liderou com mãos de ferro, desenvolvendo métodos e estratégias para não
sucumbir diante dos inimigos – os bandeirantes. A estrutura de organização social do
Quariterê era baseada na resistência, logo Tereza tinha que tomar decisões para manter o
quilombo seguro, por isso um dos métodos que ela utilizava era do enforcamento dos
desertores que pudessem a vir revelar a localização do Quariterê.

O quilombo era próspero, a produção agrícola era farta e complementada com a caça e a
pesca. O algodão era a principal fonte de renda, pois era matéria prima para a tecelagem,
uma das atividades do Quariterê. A venda dos excedentes na vila era convertida em outras
mercadorias, como armas para a manutenção da defesa do quilombo. Outra atividade do
assentamento era a forja, eles conseguiam transformar os mosquetes e outras armas em
panelas e itens para melhoria da qualidade de vida do Quariterê.

Em 1770 o quilombo foi atacado e destruído pelas forças dos bandeirantes, sob o comando
de Luís Pinto de Sousa Coutinho, o então governador da capitania do Mato Grosso. Após a
ação a população de 79 negros e 30 índios, morta ou aprisionada. De acordo com o
documento colonial os sobreviventes foram humilhados publicamente, e marcados em ferro
a brasa com a letra F, de fujão, e devolvidos aos seus antigos donos.

Os quilombolas que conseguiram sobreviver ao ataque se escondendo na mata fechada


reorganizaram e tentaram reerguer o Quariterê. Mas, em 1795 o quilombo foi exterminado,
após uma investida que contou com a participação de um negro forro capturado na ação de
25 anos antes.
Já Tereza, segundo o documento colonial, “em poucos dias expirou de pasmo. Morta ela, se
lhe cortou a cabeça e se pôs no meio da praça daquele quilombo, em um alto poste, onde
ficou para memória e exemplo dos que a vissem”. Esse foi o trágico fim de uma vida de
resistência e luta contra a escravidão, mas não há consenso entre os historiadores se a
morte de Tereza de Benguela foi suicídio, execução ou doença.

A história de Tereza, apesar de pouco conhecida, foi contada em livros, cordéis e até tema
de samba de enredo no Carnaval de 1994 do Rio de Janeiro, pela escola Unidos da
Viradouro: “Tereza de Benguela, uma rainha negra no Pantanal” - samba este que tomei a
liberdade poética de transformar alguns dos versos em título e subtítulos desta publicação.
Em 2020 a escola de samba de São Paulo Barroca Zona Sul homenageou Tereza em seu
samba: "Benguela… A Barroca Clama a Ti, Tereza".

A rebeldia acendeu a chama da liberdade


A história é um processo não linear, e as reivindicações feitas pelas mulheres negras no
primeiro Encontro de Mulheres Negras Latinas e Caribenhas há 29 anos ainda são as
principais pautas discutidas hoje.

O Dia da Mulher Negra, Latina e Caribenha não é uma data festiva, mas para reforçar a
importância da luta histórica das mulheres negras por sobrevivência em uma sociedade que
é estruturalmente racista e machista. A data serve para a consolidação das organizações
voltadas às mulheres negras, buscando maior visibilidade para pressionar o poder público
sobre as demandas das mulheres negras, indígenas e de comunidades tradicionais.

A crise da pandemia da Covid-19 evidenciou – ainda mais – as desigualdades de gênero e


raça, na organização social do Brasil. Apesar do vírus não fazer diferenciação de gênero ou
raça, as desigualdades causadas por ele sim. A crise do novo coronavírus agravou a
condição de vida das pessoas mais vulneráveis do país, sobretudo, das mulheres negras.

De acordo com os dados do IBGE, mais da metade da população brasileira é negra e está
nos piores indicadores sociais, principalmente a mulher negra, que corresponde a 63% das
chefes de família que vivem abaixo da linha da pobreza, com base na Síntese dos
Indicadores Sociais.

As mulheres negras também são a maioria no índice de mulheres assassinadas no país,


segundo as estatísticas divulgadas pelo Atlas da Violência de 2019, elas são 66% de todas
as mulheres assassinadas naquele ano. E agora com a pandemia e aumento no número de
casos de violência contra a mulher esses números tendem a aumentar.

Como observou o sociólogo Florestan Fernandes, as barreiras raciais sempre foram


obstáculos para a participação ativa da população negra, indígenas e de comunidades
tradicionais na economia, na sociedade civil, na cultura e no Estado. A dinâmica social do
capitalismo produz desigualdades sociais, pobreza e miséria para a camada mais
vulnerável da população brasileira. São mais de 13 milhões vivendo sem acesso a políticas
públicas e a serviços básicos universais, como saneamento e saúde.

O sociólogo, jornalista e historiador Clóvis Moura afirma que o racismo está na


gênese/estrutura do Capitalismo Brasileiro e nunca será superado com o desenvolvimento
da sociedade capitalista. Para o autor a luta antirracista e a luta de classes se articulam
reciprocamente, assim como para a antropóloga Lélia Gonzalez o feminismo e a luta
antirracista pela emancipação da mulher latino-americana devem ser indissociáveis.
O apagamento histórico de líderes negros, indígenas e de comunidades tradicionais é um
dos obstáculos que precisamos superar na sociedade atual, para realizarmos a construção
do poder popular, mostrar a importância desses agentes revolucionários para colaborar com
a desalienação da população mais vulnerável deste país que são desumanizados através
da violência racista sofrida cotidianamente.

Lélia, em seu artigo “Por um feminismo Latinoamericano”, aborda a importância do


movimento para pautar as questões ligadas ao caráter multirracial e pluricultural das
sociedades existentes na América Latina e sobre como as discussões acerca da temática
ajudam na construção da identidade da mulher negra, latina e caribenha, e entendendo
suas demandas.

Aproximadamente 200 milhões de pessoas se identificam como afrodescendentes no


continente latino americano e caribenho, de acordo com a Associação Rede de Mulheres
Afro-Latinas, Afro-Caribenhas e da Diáspora (Mujeres Afro). Esses dados correspondem a
30% da população dessas regiões. A necessidade de pautar essa discussão sobre as
demandas das mulheres negras é que, independentemente da localização, elas são as
mais afetadas pela pobreza, marginalização e pelo racismo.

Apesar da máxima da filósofa estadunidense Angela Davis “quando a mulher negra se


movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”, mesmo as mulheres
negras se movimentando nesses últimos 29 anos, a estrutura se movimenta a passos
lentos, a construção do poder popular é uma luta constante, e é necessário que toda a
sociedade se mova junto com a mulher negra para materialização dessa construção e
combatendo a ideologia do colonizador.

Até que os leões tenham seus próprios historiadores, a história da caça sempre glorificará o
caçador. – Provérbio africano.

Referências

1. MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018. 80 p.


2. FANON, Frantz. Pele Negra Máscaras Brancas. Tradução de Renato da Silveira. – Salvador:
EDUFBA, 2008.
3. https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/historia-consciencia-negra-teresa-
de-benguela.phtml
4. https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao.html
5. https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/19/atlas-da-violencia-2019
6. FERNANDES, Florestan. A Integração do Negro na Sociedade de Classes, vol. I: o legado
da raça branca. São Paulo, Globo, 2008.
7. MOURA, Clóvis. Dialética radical do Brasil Negro. 2 ed.São Paulo: Fundação Maurício
Grabois: Anita Garibaldi, 2014.
8. GONZALEZ, Lélia. Primavera para as rosas negras. Editora Filhos da África, 2018.
9. https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2015-07/mulheres-negras-
enfrentam-problemas-semelhantes-na-america-latina
10. https://brasil.elpais.com/brasil/2017/07/27/politica/1501114503_610956.html

Você também pode gostar