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DIREITO CONSTITUCIONAL I

AULA 1 – APRESENTAÇÃO PESSOAL E DO CURSO. O QUE É


CONSTITUIÇÃO. O QUE É DIREITO CONSTITUCIONAL.
RELAÇÃO ENTRE CONSTITUIÇÃO E CIDADANIA

1.1 APRESENTAÇÃO PESSOAL E DO CURSO

Apresentação Pessoal (Currículo Lattes):

Buscar por “Luiz Antonio Ribeiro da Cruz” em:

http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/busca.do?metodo=apresentar

Na base de pesquisa “Demais Pesquisadores”

Apresentação da disciplina:

O Direito Constitucional trata “do conhecimento sistematizado da organização


fundamental do Estado, através da investigação e estudo dos princípios e
regras constitucionais atinentes à forma do Estado, à forma e sistema de
governo, ao modo de aquisição e exercício do poder, à composição e
funcionamento dos seus órgãos, aos limites de sua atuação e aos direitos e
garantias fundamentais.”1

Com esta definição, podemos concluir que Direito Constitucional é a disciplina


mais importante do Curso de Direito.

A afirmação não decorre da falta de modéstia, nem de uma tentativa de


valorização de nossas aulas, mas da constatação de que o objeto de seu estudo,
a Constituição Brasileira de 1988, é a norma fundamental e suprema do nosso
sistema jurídico.

Isto significa que, no Brasil:

a) ela é o veículo da transformação das decisões políticas em decisões jurídicas;

1
Dirley da Cunha Júnior, Direito Constitucional, p. 43
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b) ela também é o limite do poder
político/administrativo/econômico/familiar/religioso, não podendo ser
efetivado nenhum ato que a contrarie. Ou que, caso isto tenha ocorrido, ele deve
ser anulado (suprimido) do nosso meio social. Em suma, ela tenta estabelecer,
de forma ordenada, a segurança e a liberdade em nosso país, civilizando e
racionalizando o poder, estabelecendo salvaguardas para a sociedade, sem se
identificar com concepções abrangentes de natureza religiosa, moral, filosófica
ou ideológica.

c) quando um assunto é tratado por ela, ainda que de forma incompleta,


nenhuma outra norma pode se opor ao que ela afirma, nem podem os
responsáveis pelo cumprimento aguardarem que ela seja “completada”.

d) ela regula os próprios procedimentos de criação de novas leis/mudanças em


leis já existentes, e até mesmo os procedimentos para sua (da Constituição)
própria modificação;

e) seu texto, no mais das vezes escrito em expressões amplas e até mesmo
ambíguas, é a fonte de inspiração e de busca de novos direitos a serem
reconhecidos pela sociedade. Ela claramente se propõe mais do que regular a
sociedade que já existe. Ela se propõe a ser o veículo institucional que acolhe
a transformação desta mesma sociedade.

f) a soma de ser o “topo” do ordenamento jurídico, com a utilização de


expressões vagas, faz com que o Direito Constitucional tenha que ser
interpretado com extremo cuidado e com teorias e técnicas muito específicas a
ele, sendo de pouca utilidade modelos utilizados para a interpretação de outras
disciplinas, como o Direito Civil e o Direito Penal.

O currículo prevê um total de três semestres para o estudo da Disciplina. Neste


semestre, a matéria se chama “Direito Constitucional: Teoria Geral da
Constituição e Controle Constitucional Normativo”, ou como passaremos a
chama-la resumidamente, Direito Constitucional I.

Entre os temas destacados acima, ela se concentrará principalmente nos


seguintes:

a) Definição de Constituição e Poder Constituinte


b) Métodos de interpretação da Constituição
c) Órgãos judiciais de interpretação da Constituição
d) Aplicação e Eficácia da Constituição
e) Controle de Constitucionalidade

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Método de Estudo

Nós temos uma previsão de 16 a 17 encontros neste semestre. À exceção


das duas aulas destinadas às avaliações obrigatórias (1ª Prova Bimestral, 2ª
Prova Bimestral) nossa aula será realizada com as seguintes atividades, cuja
ordem variará a cada encontro: exposição do conteúdo pelo professor, exame
de vídeos e áudios disponíveis na internet, debates entre os alunos e o professor,
testes e exercícios em sala de aula.

Para facilitar e estimular o debate, os alunos receberão previamente a


cada aula, via GOOGLE CLASSROOM, o resumo do que será discutido em
sala no encontro seguinte. O GOOGLE CLASSROOM será utilizado também
para outras atividades, como testes e desafios.

A participação e o debate não somente são livres, como são necessários,


e serão estimulados. Pede-se apenas que os alunos sejam respeitosos com todos,
expondo seu ponto de vista com tranquilidade, sem ofensas. A contradição faz
parte do processo, mas nunca a agressão!

CONTATOS DO PROFESSOR

Dúvidas e questões sobre temas jurídicos podem também ser encaminhadas ao


professor pelo email

luiz.cruz@professor.unis.edu.br

Para assuntos informais, acessem ainda minhas redes sociais:

Twitter, em @lribeirocruz
Instagram em ribeirodacruzluiz
Facebook em Luiz Ribeiro da Cruz

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1.2 O QUE É UMA CONSTITUIÇÃO?

Antes de mais nada ela é uma NORMA JURÍDICA ESCRITA2 – um


documento estabelecido por um Poder Político (o Poder Constituinte, tema de
nossa próxima aula), no qual se dispõem regras para a organização da sociedade
e para o convívio social, fundamentando todo o direito desta sociedade. Estas
regras são: a) prescritoras de direitos e deveres; b) prévias (anteriores aos fatos
que elas regulam), abstratas (não tratam de nenhum caso específico), c)
universais (destinam-se a todos que se encontrem na mesma situação); d)
obrigatórias (seu cumprimento não está à disposição dos envolvidos na
situação); e) estabilizadoras das expectativas sobre os comportamentos dos
agentes políticos e sociais.

Mas ela não é qualquer norma jurídica, ela é a NORMA JURÍDICA


FUNDAMENTAL. A expressão fundamental aqui tem dois sentidos:

a) no primeiro, informar que ela é a norma jurídica mais importante do


sistema jurídico, a qual todas as outras normas e atos (particulares e
estatais) têm que observar. Abrange todas as regras que tenham sido
incluídas neste documento, independentemente de seu conteúdo
(fundamental em sentido formal);

b) no segundo, dizer que ela trata dos assuntos fundamentais à estruturação


do convívio social: quais são os principais direitos, deveres e obrigações
dos cidadãos? Como se organiza o seu governo? Quais são os limites dos
poderes estatais? Como são produzidas novas leis? Seu conteúdo pode
ir além disso (a brasileira certamente vai), mas este é um núcleo mínimo
para reconhecimento de uma Constituição no direito comparado
(fundamental em sentido material)

A divisão entre normas constitucionais materiais e normas constitucionais


meramente formais é bastante controversa, mas, ao mesmo tempo, bastante

2
O caráter escrito é o modelo predominante no Brasil e na quase totalidade do mundo, com a notável exceção
do Reino Unido. Alguns autores, como Zachary Elkins em The Endurance of National Constitutions (A
duração das Constituições Nacionais, em tradução livre), p. 49, afirmam que isso não é exatamente correto,
sendo melhor afirmar que a Constituição Britânica não é sistematizada apenas, encontrando-se esparsa em
diversas leis comuns.
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explicativa da realidade político-jurídica de qualquer país. Vamos a um exame
mais detalhado do que se fala quando se usa a expressão “Normas
Constitucionais Materiais”.

1.3 DO QUE TRATA A CONSTITUIÇÃO? A RELAÇÃO ENTRE


DIREITO CONSTITUCIONAL E CIDADANIA

Qualquer assunto pode estar na Constituição, bastando sua inclusão no seu


texto pelo Poder Constituinte, passando a integrá-la formalmente, como visto
acima.

Nossa pergunta aqui é diversa: que assuntos uma Constituição não pode deixar
de tratar e por quê?

A respostas mais tradicional sobre o conteúdo mínimo (ou conteúdo material)


da Constituição, amparado fortemente no direito comparado, diz que ela deve
tratar, em última análise, de pelo menos dois assuntos:

a) Direitos Fundamentais dos cidadãos;

b) Organização do Estado.

Essa resposta, tecnicamente certa, esconde em conceitos estáticos um


fenômeno extremamente dinâmico e mutável na história, e que pode se tentar
apreender a partir de uma outra questão, unificadora dos dois temas: a quem se
dirige o texto constitucional?

Como assim, a quem se dirige a Constituição? Vocês podem estar surpresos


com a pergunta e responderem logo: obviamente a todos, professor.

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Infelizmente a resposta é negativa, tanto na perspectiva histórica, como na
perspectiva política.

A leitura de cada texto constitucional é o mapa quase perfeito de quem é


cidadão daquela ordem jurídica: ou seja, de quem tem direitos fundamentais,
e de quem tem acesso às posições de comando do Estado, sendo responsável
pela sua organização e administração.

As primeiras Constituições (com a notável exceção da Constituição do Haiti,


que veremos na próxima aula) são escritas como documentos destinados a
assentar a cidadania de uma classe muito específica, a burguesia. Oprimida,
até então, pelos monarcas absolutistas, e vitoriosas após processos
revolucionários mais ou menos extensos, a burguesia registra em um
documento político-jurídico as questões que são relevantes para si.

E até o início do século XX, apenas as questões relevantes para essa classe
serão consideradas “Direito Constitucional”.

Todos os documentos constitucionais deste século e meio são construídos a


partir do direito de propriedade, como elemento que distingue os integrantes
dessa classe do restante da população:

a) a proteção da propriedade (inclusive sobre outros seres humanos), em


abstrato e pela atuação de órgãos judiciais;

b) a liberdade entendida como a liberdade para aquisição de propriedade, e,


muito perifericamente, para que tais pessoas possam exercer sua expressão
pessoal (liberdade de expressão e religião bastante limitadas);

c) a igualdade compreendida como a isonomia política entre aqueles que detêm


propriedade;

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d) o acesso à direção do Estado (cargos legislativos e executivos) por pessoas
detentoras de propriedade3.

e) Papel extremamente limitado para ação estatal, com baixíssima (ou


nenhuma) tributação da propriedade e da renda4

As referências a possíveis interesses de outras classes sociais são sempre


modestíssimas.

Normalmente, não há nenhum tipo de menção (e muito menos proteção) ao


trabalho como elemento constitutivo. Tampouco são garantidos quaisquer tipos
de direitos que, mesmo remotamente, possam ensejar alteração do quadro
econômico, como direito à saúde ou educação.

Ultrapassando-se o aspecto rigidamente classista para avançarmos para as


demais características humanas, veremos que:

a) Não há qualquer menção às mulheres ou seus direitos, a não ser como


integradas à família5. O mesmo se dá em relação às crianças;

b) A questão racial é completamente ignorada, quando não se admite


abertamente a existência de pessoas escravizadas em função de sua raça6;

c) Religiões que não sejam a predominante na classe burguesa local não


gozam de nenhuma proteção, em regra;

3
Como exemplo, nos termos dos artigos 92 e 94 da Constituição do Império (1824), a condição de eleitor
dependia da comprovação de renda individual de cem mil réis anuais e a de candidato duzentos mil reis
anuais. Segundo o artigo “Preços e Comercialização do Café no Vale do Paraíba Paulista”, extraído da
Biblioteca Digital da FGV em acesso do dia 29 de jul de 2022, em 1825, uma saca de café valia
aproximadamente 3 mil réis. A mesma saca vale hoje, também aproximadamente, R$ 987,96 (cotação para
vendas em setembro de 2023, conforme consulta ao site https://www.noticiasagricolas.com.br/cotacoes/cafe,
em 31 de julho de 2023.
4
Até 1934, o Brasil tinha como renda tributária quase que exclusivamente os impostos sobre importação e
exportação.
5
A palavra “mulher” não existe na Constituição do Império, por exemplo
6
A Constituição dos Estados Unidos, em sua Seção 2, não só mencionava abertamente a existência de
pessoas em estado de servidão no país, como as incluía, a proporção de 60% das pessoas livres, para cálculo
do coeficiente eleitoral para eleição de deputados.
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d) Questões como diversidade sexual e proteção ambiental não são sequer
concebidas como problemas.

Em suma, é fantasioso entender a Constituição, em seu início histórico, como


uma carta de direitos universais, assim entendido como uma proteção jurídica
extensível a todos os seres humanos, em todas as suas características essenciais.

Não obstante, ante o seu inegável sucesso em se posicionar nos diversos


sistemas jurídicos nacionais como a norma suprema, a ser observada por todas
as outras normas inferiores, e como instrumento de (in) validação do
comportamento de todos os integrantes da sociedade, todas os grupos excluídos
passaram a buscar a inclusão de suas pretensões nos textos constitucionais.

Esta inclusão se dá em “ondas”, sempre após muitas lutas (eventualmente


físicas, até) dos grupos interessados.

Em um caminho totalmente inesperado pelos teóricos marxistas, a primeira


“onda” de extensão da cidadania atingiu os trabalhadores7, que, a partir da
Constituição Mexicana de 1917 conseguiu incorporar ao texto constitucional
os interesses desta classe. Na Europa, o primeiro movimento neste sentido é a
Constituição Alemã de 1919, conhecida como Constituição de Weimar. No
Brasil, com a Constituição de 1934. Tais Constituições também reduziriam
substancialmente o entrave à participação de trabalhadores nas eleições, bem
como ao seu acesso a cargos públicos.

Nenhuma dessas Constituições (ou qualquer de suas sucessoras) pode ser


considerada uma Constituição Socialista, pois nunca limitaram a cidadania
apenas à classe operária. O que elas fizeram foi apenas reconhecer que existia

7
Em muitos países, como no Brasil, primeiro os trabalhadores urbanos, muito depois os trabalhadores rurais,
e muito, muito depois, os trabalhadores domésticos.
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mais de uma classe social nos respectivos países, e que elas tinham pretensões
jurídicas diversas, que mereciam abrigo constitucional.

Exemplificativamente, a Constituição da União Soviética, de 19248 excluía da


cidadania, desde sua apresentação, a classe burguesa da cidadania, restrita
apenas ao proletariado.

Obviamente, constitucionalizar os direitos sociais não levou à completa solução


dos problemas dos trabalhadores, mas permitiu que suas lutas deixassem de ser
simplesmente ignoradas, quando não criminalizadas como antijurídicas, como
era o padrão até então.

A segunda “onda”, ainda bastante incompleta, incorporou as mulheres aos


textos constitucionais.

Esta incorporação teve como primeiro marco o direito ao voto. Embora deva
ser registrado o pioneirismo da Nova Zelândia, que legislou sobre o voto
feminino em 1893, na grande maioria dos países tratou-se de algo que somente
subiu à Constituição em meados do século XX: Estados Unidos, em 19209;
Brasil, 1934; França, 1945; Japão, 1946; Argentina, 1947; México, 1955, etc.

Normalmente, as mesmas regras constitucionais passaram a prever também a


possibilidade de participarem das eleições.

Mais recentemente, textos constitucionais, inclusive o brasileiro, reconheceram


que a simples permissão de votar e ser votada não estava levando a uma
participação política equitativa em gênero, e passaram a promover políticas
destinadas a este fim, com o estabelecimento de cotas para a participação
feminina. Recentemente, o Chile foi ainda mais longe, estabelecendo pela

8
http://pwerth.faculty.unlv.edu/Const-USSR-1924(abridge).pdf, acesso em 30.07.2022
9
Como regra geral para todo país, havendo Estados que adotaram anteriormente.
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primeira vez na história constitucional, a completa paridade entre os eleitos
para escrever a nova Constituição daquele país, ora em processo de conclusão.

Mas, como afirmado acima, o reconhecimento da igualdade plena das mulheres


com os homens, bem como o reconhecimento de direitos constitucionais em
função das peculiaridades decorrentes de sua condição de gênero, é uma luta
ainda longe de estar concluída.

O primeiro texto constitucional brasileiro que reconheceu expressamente a


igualdade entre homens e mulheres foi o de 1988, não tendo existido regra
similar até aquele momento.

Para ficar apenas nas questões rigorosamente formais, tal ausência permitiu,
por exemplo, que mulheres casadas fossem consideradas relativamente
incapazes até 1962, e que utilizassem o CPF do marido até 1988.

Na perspectiva dos direitos materiais, a perspectiva é ainda mais penosa,


quando não obstaculizada pela própria regra constitucional da igualdade
formal.

Houve grandes avanços, como a facilitação do divórcio, o reconhecimento


jurídico de uniões estáveis e de filiações fora do casamento10.

Problemas “femininos”, como a educação sexual, direitos reprodutivos, divisão


e equilíbrio de tarefas domésticas e trabalho externo, estão permanentemente
sob ataque, ou são, na melhor das hipóteses, ignorados.

10
A extrema formalização do conceito jurídico de família, normalmente com a atribuição de seu
estabelecimento e rompimento ao homem exclusivamente, foi um elemento histórico relevante na submissão
social da mulher.
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Uma terceira “onda”, ainda mais inconclusa, é a que pretende estender a
cidadania constitucional a partir de questões raciais.

Não podemos esquecer que o Brasil foi legalmente escravista (o sistema não
tinha previsão constitucional) até 1888. Proclamada a República, o novo regime
apressou-se em estabelecer uma série de legislações aparentemente neutras,
mas de profundo teor racialista: a) imigração em massa de europeus, com o
declarado objetivo de “clarear” a população; b) negativa do voto aos
analfabetos (ou seja, a praticamente todos os ex-escravizados); c) completa
ausência de políticas de emprego ou distribuição de terras aos ex-escravizados;
d) repressão policial/judicial à chamada “vadiagem” e às manifestações de
descendentes de africanos, como a umbanda e a capoeira.

O repúdio formal ao racismo somente entrou em um texto constitucional


brasileiro em 1934, sendo repetido, também de modo muito formal, nas Cartas
de 1946 e 1967.

Apenas o regime da Carta de 1988 conseguiu avançar, ainda que de modo


mínimo, no aspecto da extensão material da cidadania às pessoas negras.

Políticas de quotas, que tiveram grande inspiração na forma como os Estados


Unidos trataram do assunto entre 1950-1980, foram sendo construídas neste
século XXI como instrumento de promoção econômica e social da população
negra brasileira, a partir da autorização do artigo 3º, III da Constituição de
198811. Seu objetivo, ainda que não declarado, é o acesso de pessoas negras a
cargos e posições com real capacidade de influenciar a agenda político-jurídica.

Também cumpre destacar a chamada “Emenda Das Domésticas” (EC 72/13,


que estendeu os direitos trabalhistas ao emprego doméstico, função ocupada
em sua imensa maioria por mulheres negras.

11
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
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Trata-se de uma caminhada ainda no início, e bastante imperfeita, e, como a
incorporação das mulheres, também permanentemente sob ataque, inclusive no
aspecto formal. Neste sentido, a atuação legislativa e judicial destinada a
esvaziar o conceito de racismo, pela criação do tipo penal mais leve da “injúria
racial”, que reduz o ataque racista a uma rixa entre indivíduos isolados.

A população indígena do Brasil também somente foi reconhecida em sua


especificidade pela Constituição de 1988. Até aquele momento, nenhum outro
documento constitucional mencionava a palavra índios ou indígenas, negando-
se, simplesmente, a oferecer qualquer tipo de reconhecimento específico para
essas pessoas e suas culturas.

Tudo em volta do tema ainda é conflagrado: preservação dos territórios, da


cultura, reconhecimento da língua, e de qualquer outra especificidade. Não é
incomum que a própria existência da condição indígena seja questionada.

Para concluirmos este tópico, vamos pensar sobre grupos de pessoas e assuntos
que ainda lutam pelo reconhecimento de um mínimo de dignidade da cidadania
constitucional.

Foi somente no século XXI que sexualidades alternativas à heterossexual


passaram a ter reconhecimento constitucional. Este reconhecimento pode ser
expresso, ou mais genérico, a partir de uma norma mais ampla de proibição de
qualquer tipo de discriminação, como é o caso brasileiro, a partir de
interpretação do STF em 2011, e dos Estados Unidos da América, a partir de
2019.

Por outro lado, há países que se dão ao trabalho de inscrever em sua própria
Constituição a proibição de qualquer reconhecimento constitucional em função
da orientação sexual, como a Rússia, Hungria e Polônia. e outros que
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simplesmente proíbem e criminalizam qualquer ato sexual não heterossexual,
como a Argélia e o Egito.

Mesmo entre os países que reconhecem direitos às pessoas não heterossexuais,


o grau de autonomia é variado: há interpretações constitucionais que permitem
a união estável, mas não o casamento. Outros consideram aceitável a união
estável ou o casamento, mas restringem o acesso a cargos público,
especialmente os militares. Muito poucos são efetivos na repressão de atos e
palavras de ódio destinadas a esta população.

Em todos os casos, contudo, é evidente que tais direitos constitucionais estão


permanentemente conflagrados também, sempre se cogitando no meio político
de sua supressão. Veja-se, por exemplo, a controvérsia acerca da possibilidade
de homossexuais masculinos poderem doar sangue, tema de uma de nossas
dicas sobre podcasts, abaixo relacionadas.

1.4 INFRALEGALISMO AUTORITÁRIO – CONSTITUIÇÃO E ANOS


BOLSONARO (2019-2022) – O RISCO DA RUPTURA

O tema é delicado, por sua proximidade histórica extrema, mas já há uma


produção teórica relevante sobre o tema, que nos cabe apresentar aqui, e cujo
texto principal é Supremocracia e infralegalismo autoritário: o
comportamento do Supremo Tribunal Federal durante o Governo Bolsonaro,
disponível em
https://www.scielo.br/j/nec/a/MhZGQpCF7MTNfVF5BFsvrnv/, acesso em 31
de julho de 202312

Todos os governos brasileiros, de 1988 a 2018, procuraram de forma mais ou


menos intensa, adaptar seus programas ao texto da Constituição de 1988. Desde

12
Oscar Vilhena Vieira, Rubens Glezer e Ana Laura Pereira Barbosa.
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a presidência de José Sarney, o esforço estatal foi pelo reconhecimento do valor
do texto constitucional e pela sua implementação concreta.

O Governo Bolsonaro foi o primeiro a se eleger com uma plataforma


diametralmente oposta ao texto constitucional, prometendo, de modo claro, a
suspensão da implementação de políticas públicas nele previstas (proteção
ambiental, aos povos indígenas, reforma agrária, políticas expansionistas de
educação e saúde, direitos trabalhistas e sociais), bem como a restrição às
políticas voltadas para proteção de grupos socialmente minoritários (pessoas
negras, homossexuais, pessoas sem religião ou integrantes de religiões
minoritárias).

Em uma perspectiva de discurso político, tais políticas públicas e o


reconhecimento de grupos minoritários eram vistas como nocivas aos ideais
econômicos do grupo vencedor (reunidos sobre o rótulo genérico de
empreendedorismo), assim como contrárias aos interesses da “maioria”,
incorporado em um sujeito universal fictício: homem, branco, heterossexual,
cristão, em ascensão social pelo seu trabalho autônomo (e contrário a vínculos
formais de emprego), líder de uma família com papeis sociais bem definidos,
armado para sua autodefesa, de sua família e de sua propriedade. A este sujeito
atribui-se o direito ilimitado de ofensa a grupos minoritários, sob o fundamento
de um direito absoluto à expressão.

Em sua formalidade, o governo Bolsonaro manteve em grande parte o texto


constitucional recebido, mesmo porque nunca teve força suficiente no
Congresso para promover alterações, que demandam o voto de 3/5 dos
deputados federais e senadores da república.

A partir dessa constatação, os autores expõem que o ataque à Constituição de


1988, pela neutralização de seus direitos e valores, deu-se na frente infralegal,
ou seja, em atos práticos ou infralegislativos (decretos) que não eram sequer
submetidos à apreciação do Poder Judiciário.

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Em uma perspectiva infralegal, foram editados dezenas de decretos no campo
da política de armas, política educacional, trabalhista e ambiental sempre
voltados para redução da proteção constitucional nestas áreas.

Exemplos bastante interessantes foram:

- a edição do Decreto 10.935/22, que reduziu a proteção das cavernas, grutas


e lapas;

- o Decreto 10502/20, que estabelecia a segregação de alunos com


deficiências;

- uma infinitude de decretos sobre armas, que praticamente inviabilizou


qualquer controle sobre a compra, venda e transporte de armamentos;

- portarias (atos abaixo de decretos) que estabeleciam a aprovação tácita (não


explícita e fundamentada, como prevê a Constituição para todo ato
administrativo) de defensivos agrícolas (agrotóxicos);

- autorizações genéricas para a Polícia Rodoviária Federal atuar fora de sua


competência constitucional (fiscalização das rodovias federais), sobrepondo-se
à atuação das demais corporações policiais.

A flagrante inconstitucionalidade destes e muitos outros atos levou a uma


crescente animosidade entre o Poder Executivo e o Poder Judiciário, em
especial seu órgão de cúpula, o STF.

E essa constatação nos leva ao segundo conjunto de atos atentatórios à


Constituição, os atos práticos, dos quais os mais relevantes, sem dúvida
alguma, foram as ameaças explícitas ao Supremo Tribunal Federal e ao
Tribunal Superior Eleitoral, seja como órgãos, seja a seus membros.

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Há, pelo menos, três grandes ondas de ataques a essas instituições durante o
Governo Bolsonaro: logo após o início da pandemia do Covid-19, sob o
pretexto de se contrapor à decisão do STF que admitiu aos Estados e
Municípios a prática de ações de combate ao vírus distintas das diretrizes
federais; entre julho e setembro de 2021, na qual o Presidente e seus partidários
mais radicais pregaram abertamente a desobediência ao STF e o seu
fechamento; e entre julho de 2022 e janeiro de 2023, em campanha aberta de
descrédito das eleições e de seus resultados, que culminou com a invasão e
destruição das sedes dos Três Poderes em 08 de janeiro deste ano.

Todos estes ciclos de ataque ao Poder Judiciário eram fundamentados em uma


interpretação completamente fantasiosa do artigo 142 da Constituição, que,
segundo os partidários do governo, autorizaria a intervenção das Forças
Armadas para destituir o Poder Judiciário quando este “atentasse contra
ordem”, obviamente a juízo do Presidente da República.

Ainda neste rótulo, de atos práticos inconstitucionais, os Autores incluem a


nomeação de servidores públicos temporários para dirigir órgãos estatais com
o declarado propósito oposto que estes órgãos teriam: assim, o diretor da
Fundação Palmares, voltada para defesa da população negra, era
completamente contrário a qualquer política favorecendo essa população; a
Ministra dos Direitos Humanos discriminava abertamente minorias e se omitia
em situações extremas de prejuízos a tais grupos; o ministro do Meio Ambiente
declarava abertamente que sua função no governo era “passar a boaiada” na
proteção ambiental.

Em um segundo nível administrativo, houve o completo esvaziamento de


órgãos de controle e estatística, desde a Procuradoria Geral da República, que
viveu seu período mais inerte, ao IBGE (com o atraso e diminuição do tamanho
do censo) ao IBAMA e ao Ministério do Trabalho (com a suspensão de
qualquer fiscalização ambiental e trabalhista).

É preciso dizer, contudo, que tal processo de esvaziamento “por baixo” do texto
constitucional não é original: em medidas variáveis, países como Hungria,
Polônia, Israel e até mesmo os Estados Unidos têm vivido tal fenômeno,
caminhando para um autoritarismo centrado no Poder Executivo, com o
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enfraquecimento de todos os demais poderes e órgãos de controle, sempre
baseados na alegada proteção de valores religiosos e familiares.

No Brasil, tal processo parece suspenso, mas apresento essa reflexão para vocês
para que possam ver que a proteção constitucional não é um fato da natureza,
nem algo imune a retrocessos. Constituição é ponto de encontro entre a Política
e o Direito, como afirmei acima. Este encontro pode ser cooperativo ou
conflitivo, neste último caso, com consequências impossíveis de se prever.

1.5 CONCLUSÃO

Em conclusão, podemos afirmar que faz parte do direito constitucional


formal qualquer norma que esteja incluída na Constituição de um determinado
país.

E que faz parte do direito constitucional material os direitos das classes,


gêneros e grupos que conseguem se fazer se reconhecer politicamente.

Todo discurso que fala em “desconstitucionalização” de direitos deve ser


ouvido com muitíssimo cuidado. Em tal processo, certamente haverá um grupo
cujos direitos serão rebaixados ou até mesmo suprimidos. No limite, voltarão à
condição política marginal que já tiveram antes. Lembre-se que nunca, em
momento histórico algum (salvo nos países socialistas), alguém cogitou um
texto constitucional sem direito à propriedade, por exemplo.

Obviamente, entre estar no texto constitucional e ser cumprido vai uma


grande distância. A este tema voltaremos em nossas próximas aulas. Mas não
estar no texto constitucional significa que nem como meta aquele tema é
pensado juridicamente.

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1.6 DICAS DE PODCASTS DE DIREITO CONSTITUCIONAL

Para os interessados, seguem aqui dicas de podcasts sobre Direito


Constitucional, com a indicação dos episódios por onde começar:

Salvo Melhor Juízo: episódio 35, “Posse e Propriedade”, para uma primeira
escuta.

Onze Supremos: episódio 21 , “Transfusão de sangue por homens


homossexuais”

Mas e se?: episódio 11, “Pensando como um negro”

PRINCIPAIS SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS

Para um estudo mais dogmático do texto constitucional:

Direito Constitucional Esquematizado – Pedro Lenza

Para um estudo mais teórico:

Curso de Direito Constitucional Contemporâneo – Luís Roberto Barroso

Avenida Alzira Barra Gazzola, nº 650, Aeroporto, CEP: 37100-000, Varginha-MG 18

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