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A SEMIÓTICA EM “MORTE NO NILO”

RESUMO: Neste trabalho proponho-me a analisar e relacionar elementos-chave de um livro de drama e mistério e
alguns temas abordados na disciplina de semiótica, neste caso específico a abdução de Charles Sanders Peirce, o tipo
de leitor e os tipos de interpretação de Umberto Eco e conceitos abordados no texto “A Ordem do Discurso” de
Michel Foucault. Foi o meu interesse pela maneira como Eco e Pierce abordam os policiais como objeto de estudo
semiótico e a minha preferência por este gênero de livros como atividade de lazer que me levou a escolher este tema.
O livro específico que vai ser abordado foi escolhido devido ao carácter multifacetado dos personagens e o efeito que
isso provoca na perceção do leitor antes do desfecho final.
Palavras-Chave: Detetive, leitor modelo, interpretação, abdução, perigos do discurso.
O livro “Morte no Nilo”, de Agatha Christie, conduz uma história de um belo e luxuoso cruzeiro que atravessa o rio
Nilo, no Egito. Deparamo-nos com uma panóplia de passageiros diferentes e excêntricos, mas é em Hercule Poirot (o
famoso detetive presente em vários livros de Agatha Christie) e em Linnet Ridgeway, que a história vai focar.
A bela e rica Linnet embarca no cruzeiro para desfrutar de uma lua de mel com o seu recém marido Simon Doyle, mas
o destino tem outros planos…
Poirot, julgando ir desfrutar de umas merecidas férias no Egito depara-se com um escândalo inesperado: o assassinato
de Linnet no seu próprio camarote.
É através do mistério e da investigação de Poirot que pretendo desenvolver o meu trabalho. Para começar, irei referir
como o conceito “leitor modelo” de Umberto Eco é fundamental para ler e desfrutar de uma obra de drama e mistério
como a apresentada. Depois vou focar também a maneira como o processo da abdução, de Charles Sanders Peirce, é
fundamental para “adivinhar” e perceber as pistas deixadas ao longo da obra. De seguida, pretendo utilizar um dos
conceitos presentes em “A Ordem do Discurso” de Michel Foucault, que diz preocupar-se com os poderes e os perigos
associados à produção discursiva, e neste caso, utilizar os perigos do discurso para perceber como a história, o
contexto temporal da mesma e a descrição dos personagens por parte da autora levam o leitor a interpretar, de maneira
errada, certas manifestações linguísticas de determinadas personagens, chegando a acreditar que as mesmas são as
culpadas do crime, baseando-se apenas no seu discurso.
Este livro pode dividir-se em duas fases distintas: os acontecimentos que levaram à morte de Linnet e a investigação
de Poirot para descobrir o autor do crime.
A obra começa com a apresentação da personagem Linnet Ridgeway, que recentemente se mudara para o Egito e
estava agora e construir a sua mansão. Linnet é apresentada como a rapariga “sensação” do momento: é rica (herdou a
maior fortuna de Inglaterra), bela e querida por todos. Linnet desempenhava o papel associado à personagem criada
pelas notícias dos jornais e rumores que sobre ela corriam, de maneira inconsciente, acabando a viver uma vida dupla.
Linnet é contactada por uma grande amiga, Jacqueline Bellefort, que necessita que Linnet arranje um emprego para o
seu noivo Simon Doyle, para os dois poderem celebrar o matrimónio.
No mesmo espaço/tempo nos quais que estas ações se desenrolam, Hercule Poirot, o famoso detetive, decide ir
desfrutar de umas férias ao Egito. Na noite em que toma essa decisão vai jantar a um restaurante, onde sem querer,
repara num casal harmónico e feliz, nitidamente, por estar junto, no entanto Poirot diz uma frase sobre a jovem do
casal que não pode ser ignorada: “Ama em demasia esta jovem.”.
Mais tarde, vem a descobrir-se que o casal que se encontrava no restaurante eram Simon e Jacqueline, porém para
surpresa do leitor, no sexto capítulo, Simon aparece como recém marido de Linnet, ex-melhor amiga da sua ex-noiva.
Um dos fatores interessantes desta “troca de noiva” é o facto de a partir das descrições no livro, se perceber que Jackie
e Linnet eram completos opostos. Linnet era rica, alta e loira, enquanto Jackie era pobre, baixa e morena, no entanto
eram as duas consideradas igualmente bonitas.
Embora no livro encontremos diversos personagens, diferentes e com dinâmicas igualmente interessantes, foi no
triângulo amoroso Linnet, Jacqueline e Simon e na perceção do mesmo para Poirot que me vi mais envolvida, devido
a todo o simbolismo a ele associado. Os comentários dos restantes passageiros mostram também como todo
o “escândalo” era percebido por aqueles que eram exteriores ao mesmo.
Na “primeira parte” desta história podemos entender que está em causa o conceito de leitor modelo, ou seja, para um
bom entendimento da mesma, o leitor necessita de destreza para perceber de que maneira a história dos personagens
influencia a maneira como se relacionam uns com os outros e com Poirot, que aparenta ser o elemento mais neutro no
que trata da sua relação com todo o triângulo amoroso, já que todo o barco parecia ter algum tipo de opinião, interesse,
rancor e inveja de um (ou todos) os participantes do triângulo amoroso.
Na “segunda parte” já são chamados os conceitos de abdução e perigos do discurso, já que tudo aquilo que é dito a
Poirot durante a sua investigação é de alguma maneira importante e precisamos do conhecimento adquirido
anteriormente, ao ler a primeira parte, para entender as pistas e/ou as gafes cometidas pelos personagens quando
confortados com o crime e quando lhes é pedido que contem sua versão dos acontecimentos.
Eco estudou, num outro livro de Agatha Christie (“Das Nove às Dez”), o papel do narrador ao longo da obra. Neste
livro em específico, embora a própria autora seja a narradora principal, é possível entender Poirot como um narrador,
não omnipresente, nem omnisciente, mas com a maior neutralidade possível, por querer resolver o crime sem se
envolver com juízos próprios pré concebidos, ao longo da viagem.
É do interesse do leitor perceber que tem de mergulhar nos relatos destes dois narradores para chegar à verdade. Em
primeiro lugar, o narrador propriamente dito não pode ser alguém em quem o leitor confia de plena fé, visto que o seu
objetivo é criar o maior suspense possível até ao clímax do livro e à revelação do autor do crime e ainda conduzir
quem lê por vários caminhos, de maneira que o leitor tenha o discernimento de perceber quais os que são realmente
importantes para desvendar o crime e quais os dispensáveis cujo único objetivo é acrescentar interesse, confusão e
desconfiança ao leitor.
Este tipo de texto, e a esta autora, pretendem criar um leitor-modelo, que seja crítico e consiga articular ao longo da
sua leitura a interpretação semântica – “que é o resultado do processo pelo qual o destinatário, diante da
manifestação linear do texto, preenche-a de significado” (Eco 2004/2016) – e a interpretação crítica – “aquela por
meio da qual procuramos explicar por quais razões estruturais pode o texto produzir aquelas (...) interpretações
semânticas” (Eco 2004/2016).
Um leitor-modelo capaz de achar uma infinidade de leituras possíveis não significa que a obra não tenha um código
secreto. Seu código secreto está nesta sua vontade oculta, que se faz evidente quando traduzida em termos de
estratégias textuais, de produzir esse leitor, livre para arriscar todas as interpretações que queira, mas obrigado a
dar-se por vencido quando o texto não aprova suas ousadias mais libidinais. (Eco 2004/2016).
Esta questão de leitor modelo relaciona-se diretamente com a questão da abdução, levantada por Peirce e, mais tarde,
desenvolvida por Eco, já que é um processo indispensável ao leitor.
No texto Umberto Eco da “Obra Aberta” para “Os Limites da Interpretação” é discutido o que um detetive (Poirot
ou o leitor) e um cientista (no caso Peirce) têm em comum. A resposta óbvia passa por perceber que ambos necessitam
de realizar conjeturas e prová-las (ou não) de maneira a serem capazes de decifrar os seus respetivos “mistérios”.
Peirce, para explicar a sua ideia de abdução, associa-lhe mais dois conceitos: a indução e a dedução. O raciocínio
dedutivo “prova, que algo deve ser, a indução mostra que alguma coisa é realmente operativa; a abdução sugere
simplesmente que alguma coisa pode ser” (PEIRCE, 2003, p.220).
Aplicando estes conceitos à obra em análise: a dedução é utilizada quando dois personagens não “aparecem em cena”
e devido à sua história ou relação no livro, deduzimos que estão juntos; a indução ocorre quando partimos do princípio
que certo personagem deve pensar determinada coisa de outro e ao longo do livro esse nosso pensamento de partida é
provado, apurando as nossas conjeturas indutivas e, por fim, a abdução é o mecanismo que utilizamos em toda a obra
ao tentar explicar os motivos, tanto da morte de Linnet, como deaquelesdaqueles que conduzem os personagens a
realizar determinadas ações (como Jacqueline seguir o casal para todo o lado), sem realmente obtermos uma reposta
para as nossas “possibilidades adivinhadas” até ao final do livro.
Ao longo desta obra podemos considerar o triângulo amoroso apresentado pode ser entendido como um signo, já que
funcionam como um organismo interdependente e a ação individual de cada elemento é influenciada pelas ações dos
restantes elementos do grupo.
Outro aspeto que a mim me despertou interesse foi o discurso de Jacqueline, num dos primeiros capítulos do livro,
sobre como gostaria de matar Linnet e de que forma o faria. A descrição do assassinato foi seguida quase à risca,
fazendo de Jacqueline a suspeita principal para a maioria e talvez para o próprio leitor, afetado pelo discurso de
Jacqueline, manipulado pela autora para parecer o mais incriminatório possível e tornando-o para a personagem algo
perigoso para o seu futuro.
O discurso em questão é: “(…)Mas receio… sim, por vezes receio… perder a cabeça… ter vontade de a matar… de
lhe espetar uma faca, de lhe encostar a minha pequena pistola à cabeça e depois… premir simplesmente o gatilho…”,
utilizando o conceito esclarecido por Foucault na sua obra “A Ordem do Discurso”, segundo o qual uma das
possibilidades do discurso é tornar-se perigoso quando mal percebido. Na minha opinião, a autora utilizou o discurso
de Jackie como algo suspeito, ofuscando traços da sua personalidade que permitiriam ao leitor perceber que não era
possível que a mesma tivesse algo a ver com o crime, tal como Poirot percebeu.
Estudando um dos meus géneros de livro favorito de acordo com a semiótica, percebi como o leitor e o escritor estão
diretamente relacionados, no que trata de entender determinado discurso/texto de maneira específica. Isto porque o
autor trabalha em prol de conseguir conduzir o leitor por um caminho definido aquando da escrita da obra e da sua
conclusão. O leitor pode (inconscientemente ou não) deixar-se guiar por este caminho, ou lutar contra o mesmo numa
tentativa de se esquivar da “manipulação” inscrita na obra, desafiando a lógica inicial do autor. Este conhecimento faz
com que me aperceba que a leitura e a escrita fazem parte de um processo muito mais interdependente do que o que
imaginei.
Fonte:
Christie, A. (2008). Morte no Nilo (I. Alves, Trad.) RBA Colecctionables. (Obra original publicada em 1937)

Outras Referências:
Carvalho Lopes, M. (2010). Umberto Eco: Da "obra aberta" para "os limites da interpretação". Universidade da
Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab).

Eco, U. (2016). Os limites da interpretação (P. de Carvalho, Trad.; 2a ed.). Editora Perspectiva. (Obra original
publicada em 1990)

Eco, U. (2016). Os limites da interpretação (P. de Carvalho, Trad.; 2a ed.). Editora Perspectiva. (Obra original
publicada em 1990)

Fidalgo, A. E Gradim, A. (2005). Manual de semiótica [Universidade da Beira Interior].


https://ubibliorum.ubi.pt/bitstream/10400.6/714/1/fidalgo-gradim-manual-semiotica-2005.pdf

Nöth, W. (1990). Handbook of semiótics. Indiana University Press.

Serra, P. (s.d.). Peirce e o signo como abdução [Universidade da Beira Interior].


http://bocc.ufp.pt/pag/jpserra_peirce.pdf

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