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CARTA ABERTA PRESIDENTE DA REPÚBLICA

Sua Excelência
Senhor Presidente da República Portuguesa
Professor Doutor Marcelo Rebelo de Sousa,

A 31 de dezembro de 2021 fazia-se história na Assembleia da República: uma larga maioria dos
deputados aprovava a primeira lei portuguesa em matéria climática. A Lei de Bases do Clima foi recebida
com entusiasmo, lá fora e cá dentro. Parecia ser um diploma inovador, que, entre outras coisas, reconhecia
a emergência climática, abordava o conceito de justiça climática, atribuía aos cidadãos direito ao equilíbrio
climático e criava uma longa lista de obrigações para o Estado enquanto principal ator da política
climática.
Desde então passaram-se mais de vinte meses e nenhum dos artigos da Lei foi posto em prática.
Esta inação do Estado português é especialmente reprovável num momento de evidente agravamento da
urgência climática, em que os eventos meteorológicos extremos se sucedem aceleradamente e as
condições de vida de milhões de pessoas se deterioram diariamente. Múltiplas instâncias internacionais,
regionais e nacionais têm vindo a reconhecer o direito a um clima estável e a afirmar que a inação estatal
configura, não só uma violação desse direito, como também violação dos direitos à vida e à vida privada e
familiar.
A Lei de Bases do Clima constitui na esfera jurídica do Estado várias obrigações positivas cujo
cumprimento é absolutamente fundamental para o sucesso da ação climática em Portugal. Prevê, desde
logo, a criação de orçamentos de carbono, os quais deverão orientar a política e a economia nacionais. O
primeiro destes orçamentos deveria aplicar-se ao período 2023-2025 e ter sido aprovado até dia 1 de
fevereiro de 2023. Ademais, até fevereiro de 2023 deveriam ainda ter sido executadas as seguintes
obrigações: 1) criação do Portal da Ação Climática; 2) elaboração do Relatório de Avaliação do Impacto
Climático da Legislação Vigente; 3) Elaboração do Relatório sobre o Património Público; 4) Elaboração
do Relatório sobre a Revisão das Normas sobre Sociedades Comerciais; 5) Regulamentação do risco
climático dos ativos financeiros; 6) Revisão do regime jurídico dos hidrocarbonetos. Até à data, nenhum
destes instrumentos foi criado, o que coloca o Estado português em efetivo incumprimento dos deveres
de execução resultantes da Lei de Bases..
Ao exposto acresce que a Lei de Bases do Clima prevê a elaboração de uma Estratégia de
Mitigação de Longo Prazo e de uma Estratégia de Adaptação de Longo Prazo, bem como a revisão do
Plano Nacional de Energia e Clima. Também nesta sede, a inação persiste. Igualmente por elaborar se
encontram os planos setoriais de mitigação também legalmente exigidos. Quanto a estes, a Lei prevê que
os planos setoriais relativos aos setores prioritários devam ser aprovados até ao final de 2023. Nada parece
apontar no sentido do cumprimento desse prazo, nem que seja porque tais planos só podem ser
aprovados após parecer do Conselho para Ação Climática, que, tendo sido recentemente criado por Lei
da Assembleia da República, ainda não está constituído nem tão pouco em funcionamento.
A falta de execução da Lei de Bases do Clima constitui, não só uma falha do Estado de Direito e
da democracia representativa, como uma violação dos direitos fundamentais dos cidadãos portugueses.
Em matéria climática, a postergação da ação é especialmente gravosa, porquanto os impactos
desencadeados são tendencialmente irreversíveis.
Em face do exposto, dirigimo-nos a Vossa Excelência na qualidade de representante último do
Estado português e garante do regular funcionamento das instituições democráticas, solicitando
intervenção junto do Governo e da Assembleia da República, a fim de instar os mencionados órgãos de
soberania à plena assunção das respetivas responsabilidades na matéria em apreço.

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