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Aula 6
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HEGEL, Fenomenologia, par. 179
dinâmica quando falamos do desejo. Agora, Hegel lembra que a perda de
si é também perda do Outro [já que o Outro também só é enquanto
reconhecido]. “A consciência-de-si deve superar esse seu-ser-Outro”.
Esta superação ou des-alienação da consciência é necessariamente
retorno a si através da construção de um conceito renovado de auto-
identidade (não mais a auto-identidade enquanto experiência imediata de
si a si, mas a identidade enquanto o que é reconhecido pelo Outro). No
mesmo movimento, ela é reconhecimento da sua diferença para com o
Outro. Diferença que poderá ser então reconhecida porque a consciência
sabe que ela traz e si mesma a diferença em relação a si mesma, ou seja,
ela verá no Outro a mesma diferença que ela encontra nas suas relações
à si. Daí porque Hegel precisa dizer:
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HEGEL, Fenomenologia, par. 182
Por conseguinte, o agir tem duplo sentido (doppelsinnig), não só
enquanto é agir quer sobre si mesmo, quer sobre o Outro, mas
também enquanto indivisamente é o agir tanto de um quanto do
Outro5.
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HEGEL, Fenomenologia I, p. 134. "Dem Denken sich des Gegenstand nicht in Vorstellungen, oder
Gestalten, sondern in Begriffen, das heit in einem unterschiednen Ansichsein, welches unmittelbar für das
Be wutsein kein unterschiednes von ihm ist" (HEGEL, PhG, p. 137)
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HEGEL, Fenomenologia, par. 186
“apresentar-se a si mesmo como pura abstração” 9 que é o motor da ação
da consciência.
Notemos o ponto de partida. Hegel não diz algo como: “de início, a
consciência-de-si é animada pela realização de suas necessidades, pela
afirmação de suas propriedades”, como seria em um estado de natureza
hobbesiano. Ele diz: “de início, a consciência-de-si é puro para-si”, ou
seja, ela é independência absoluta, afirmação de sua transcendência em
relação a tudo o que é para-Outro. Tal apresentação como pura
abstração é, na verdade, o fundamento da auto-determinação da
subjetividade. A subjetividade só aparece como movimento absoluto de
abstração (é por vincular o ser do sujeito ao ponto vazio de toda
aderência imediata à empiria que Hegel continua vinculado à noção
moderna de sujeito). O primeiro movimento de auto-determinação da
subjetividade consiste pois em negar toda sua aderência com a
determinação empírica, consiste em transcender o que a enraíza em
contextos e situações determinadas “para ser apenas o puro ser negativo
da consciência igual-a-si-mesma”. Para Hegel, a individualidade
(Individualität) aparece sempre, em um primeiro momento, como negação
que recusa toda co-naturalidade imediata com a exterioridade empírica.
Por isto, Hegel deve afirmar:
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HEGEL, Fenomenologia, par. 187
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HEGEL, GWF; Fenomenologia do Espírito – vol. II, Rio de Janeiro: Petrópolis, 1992, p. 33
uma larga tradição de reflexão que chegará até as discussões recentes
sobre a “self-ownership” como atributo fundamental da pessoa 15.
Na verdade, Hegel procura mostrar como a verdadeira autonomia
da consciência-de-si só pode ser posta em um terreno para além (ou
mesmo para aquém) da forma da pessoa jurídica portadora de diretos
positivos e determinações individualizadoras. Por isto, tudo nos leva a
crer que Hegel insiste que se trata de mostrar como a constituição dos
sujeitos é solidária da confrontação com algo que só se põe em
experiências de negatividade e des-enraizamento que se assemelham à
confrontação com o que fragiliza nossos contextos particulares e nossas
visões determinadas de mundo, ou seja, que se assemelha à morte. A
astúcia de Hegel consistirá em mostrar como o demorar-se diante desta
negatividade é condição para a constituição de um pensamento do que
pode ter validade universal para os sujeitos.
Sendo assim, as tensões internas à teoria hegeliana do
reconhecimento também não podem ser pensadas a partir de dualidades
como esta proposta por Habermas ao afirmar:
15
Ver, entre outros COHEN, G.A.; Self-ownership, freedom and equality, Cambridge University Press, 1995.
16
HABERMAS, Jürgen; Verdade e Justificação, Belo Horizonte: Loyola, 2004, p. 195
determinado de “propriedades pessoais essenciais” que não são objetos
de questionamento ou conflito, mas motor de toda demanda presente em
conflitos sociais. Esta é uma via que nos leva, necessariamente, à
substancialização de um conceito antropológico de sujeito. É exatamente
para impedir derivas desta natureza que Hegel insiste tanto na
necessidade do trajeto em direção à universalidade passar pelo “trabalho
do negativo” e pelo “caminho do desespero”. Mas para tanto faz-se
necessário entender melhor a função fenomenológica da confrontação
com a morte em Hegel.
O senhor absoluto
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HEGEL, G.W.F., Enciclopédia, pag. 161
A morte é a experiência da fragilidade das imagens do mundo e dos
sistemas substancialmente enraizados de práticas sociais de ação e
justificação. Ela é assim um movimento fundamental para a constituição
da estrutura moderna da subejtividade.
No entanto, “essa comprovação por meio da morte suprime
[erheben – termo não totalmente convergente com aufheben. Hegel usa o
termo para indicar uma negação imediata que não implica em
conservação] justamente a verdade que dela deveria resultar”. O puro
aniquilamento de si através da morte bloqueia a auto-posição de si como
fundamento. A pura morte do outro anula a possibilidade do
reconhecimento de tal processo de auto-posição e, por conseqüência, do
reconhecimento da liberdade implicada neste processo de auto-posição.
Daí porque Hegel afirma que a consciência faz a experiência de que “a
vida é a posição natural da consciência, a independência sem a
negatividade absoluta” e que a morte é apenas uma “negação natural”.
Através da luta de vida e morte, a consciência procura suprimir o
que lhe aparece como essencialidade alheia. Hegel joga com um duplo
movimento de supressão que é necessariamente convergente. Por um
lado, a consciência procura suprimir seu vínculo essencial à vida como
Dasein natural, ela procura afirmar-se através da distância em relação a
tudo o que está preso ao ciclo irreflexivo da vida. Por outro lado, a
consciência-de-si procura suprimir seu vínculo essencial à outra
consciência-de-si a fim de afirmar-se em sua pura imediatez idêntica a si
mesma. A convergência destes dois movimentos fica explícita se
lembrarmos que a vida fornece a determinação empírica da consciência-
de-si, ela fornece o em-si cuja objetividade implica necessariamente na
presença do Outro. Assim, negar a vida para se pôr como pura abstração
é, necessariamente, um movimento que envolve o negar da essencialidade
do Outro.
No entanto, o contrário também é verdadeiro. Como vimos no
parágrafo 186, a imersão integral da consciência no elemento da vida
implicava na impossibilidade do reconhecimento do Outro como
consciência-de-si independente. “Surgindo assim imediatamente, os
indivíduos são um para outro à maneira de objetos comuns, figuras
independentes, consciências imersas no ser da vida” 18. Isto apenas nos
lembra como a confrontação com a negatividade da morte tem um
caráter formador para a consciência-de-si; fato que ficará ainda mais
evidente no desdobrar da dialética do Senhor e do Escravo.
Podemos mesmo dizer que o reconhecimento não implica
exatamente no afastar-se da morte, até porque a vida do espírito é: “a
vida que suporta a morte e nela se conserva” 19. O que ele implica é, na
verdade, a compreensão de que o que está em jogo na experiência
fenomenológica da confrontação com a morte não é uma “negação
abstrata”: termo central que indica uma compreensão não-especulativa
de relações de oposição. A negação abstrata da vida produz uma situação
na qual os opostos (vida e morte): “não se dão nem se recebem de volta,
um ao outro reciprocamente, através da consciência, mas deixam um ao
outro indiferentemente livres, como coisas (Dinge)”20. Ou seja, a
significação dos termos opostos não passa uma na outra. Esta operação
não é aquilo que Hegel chama aqui de “negação da consciência (Negation
des Bewustssein)”, ou seja, esta negação determinada que “supera de tal
modo que guarda e mantém o superado e, com isto, sobrevive a seu vir-a-
ser superado”21. A consciência deve pois negar a vida de maneira
determinada, o que implica em compreender a vida como espaço no qual o
negativo pode ser convertido em ser. A vida deve ser inicialmente negada
para ser recuperada não mais como pólo positividade de doação imanente
de sentido, como fundamento originário, mas como locus de manifestação
da negatividade do sujeito, como “vida do espírito”.
Dominação e servidão
Mas esta realização ainda está longe. De fato: “nessa experiência, vem a
ser para a consciência que a vida lhe é tão essencial quanto a pura
consciência-de-si”22. Isto implica em uma clivagem: a conscîência
reconhece a essencialidade tanto da vida quanto da pura abstração em
relação ao Dasein natural. Por isto, Hegel fala da dissolução da unidade
18
HEGEL, Fenomenologia, par. 186
19
HEGEL, Fenomenologia, par. 32
20
HEGEL, Fenomenologia, par. 188
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HEGEL, Fenomenologia, par. 188
22
HEGEL, Fenomenologia,par. 189
do Eu como Eu simples que aparecia enquanto objeto absoluto da
consciência. Eu simples representado pela tautologia do “Eu=Eu” [lembra
da estrutura proposicional da igualdade/ a determinação particular é
idêntica à representação universal]. Esse Eu simples se dissolve em dois
momentos: uma pura consciência-de-si, independente e para quem o ser
para-si é a essência e uma consciência para-um-outro, consciência
aferrada à coisidade (Dingheit) e para quem o essencial é a vida ou o ser-
para-um-outro. Esses dois momentos “são como duas figuras opostas da
consicência (...) Uma é o Senhor, outra é o Escravo” 23.
Mas, antes de continuarmos, notemos a ambigüidade deste “como
se”. Hegel joga, em vários momentos do texto, com uma dupla acepção do
antagonismo figurado na dialética do Senhor e do Escravo. Por um lado,
ele parece ser a exteriorização de uma clivagem interna à consciência na
sua divisão entre o reconhecimento da essencialidade tanto da vida
quanto da posição de pura abstração. Por outro lado, ele aparece como o
resultado de uma confrontação entre duas consciências-de-si
independentes em um movimento fundador dos processos de interação
social. Esta duplicidade indica, na verdade, que estamos diante de um
modo de interação social que é, ao mesmo tempo, processo de formação
da consciência-de-si. Como dissera anteriormente, estruturação de
modos de socialização e processos de constituição do Eu convergem
necessariamente em Hegel, já que este não reconhece nenhuma unidade
originária da consciência-de-si.
Por outro lado, vale a pena contextualizar leituras que procuram
encontrar, neste momento da Fenomenologia do Espírito, as bases
normativas de uma teoria da gênese do social. Não como deixar de notar
diferenças profundas de inflexão entre esta versão do problema do
reconhecimento apresentada na Fenomenologia e aquela apresentada
tanto na Filosofia do Espírito, de 1805, e na Enciclopédia em sua versão
de 1830. Por exemplo, na Filosofia do Espírito, de 1805, o problema do
reconhecimento é apresentado de maneira explícita em termos legais e
políticos, já que a luta por reconhecimento se organiza a partir de
conceitos como: crime, lei, bens e constituição. Nada disto desempenha
papel central na apresentação própria à Fenomenologia do Espírito.
23
HEGEL, Fenomenologia, par. 189
Podemos mesmo falar que: “Nesta versão do problema do
reconhecimento, Hegel está primariamente interessado no problema da
universalidade, a maneira através da qual a atividade determinada
introduzida na seção precedente, ainda que mediada através formas de
interação social, pode ser bem sucedida em sua determinação apenas se o
que Hegel chama de “vontade particular” se transforme em “vontade
universal e essencial”24. É claro que isto não exclui problemas políticos e
legais, mas eles só podem ser compreendidos de maneira correta (e
reconfigurados em sua extensão) se apresentarmos primeiro os
problemas centrais que determinarão as bases mais amplas dos
processos de reconhecimento: eles tocam a questão do desejo, da
relação à vida e à morte e do trabalho.
Os próximos seis parágrafos são extremamente condensados e
tentam dar conta dos desdobramentos da dissolução da unidade inicial do
Eu simples. Eles são organizados em duas perspectivas distintas. Entre
os parágrafos 190 e 193, Hegel expõe os impasses do reconhecimento do
ponto de vista do Senhor. Dos parágrafos 194 a 196, Hegel expõe como o
conceito de reconhecimento poderá ser realizado através do Escravo.
O Senhor é logo apresentado como uma consciência que vive algo
como um impasse existencial ligado ao caráter parcial do seu
reconhecimento. Enquanto consciência que ainda procura realizar a noção
de auto-identidade como pura abstração de si, consciência que procura
sustentar uma relação imediata de si a si, o Senhor é certo de si através
da afirmação da inessencialidade de toda alteridade. No entanto, esta
certeza é dependente da negação reiterada da inessencialidade do
Outro. Uma negação que não é a destruição pura e simples do Outro, mas
a sua dominação enquanto desprezo pela sua essencialidade
independente. Como sabemos, a necessidade desta dominação contradiz a
aspiração do Senhor em ser reconhecido como pura identidade de si a si,
já que ele é reconhecido como Senhor apenas por uma consciência
inessencial. Este conceito de reconhecimento não pode aspirar validade
universal. Vejamos como Hegel nos apresenta tal impasse.
Hegel primeiro lembra que o Senhor precisa afirmar sua
independência e sua dominação no interior de dois processos: na
24
PIPPIN, He satisfaction of self-consciousness, p. 155
confrontação com outra consciência-de-si e na confrontação com o
objeto (que, no interior da seção “consciência-de-si” aparece
necessariamente como tendo sua verdade enquanto objeto do desejo).
Tais processos de dominação são organizados como silogismos. O
primeiro é enunciado da seguinte forma:
25
HEGEL, Fenomenologia,par. 190
interpor o escravo entre ele e a coisa. Desta forma, o Escravo trabalha a
coisa e oferece, ao gozo do Senhor, uma coisa trabalhada: “o senhor
introduziu o escravo entre ele e a coisa, e assim se conclui somente com
a dependência da coisa, e puramente a goza: enquanto o lado da
independência deixa-o ao escravo, que a trabalha” 26. Só uma coisa
trabalhada pode satisfazer um desejo compreendido fundamentalmente
como modo de auto-posição (até porque: “o trabalho é o ato de se fazer
coisa”27). Isto demonstra como o Senhor só pode negar/dominar a coisa,
isto no sentido de intuir no objeto sua própria falta, através do trabalho
do Escravo. O gozo do Senhor, enquanto posição imediata de si na coisa,
é pois, em última instância, impossível. Gozo impossível porque ele só
pode ser alcançado através da mediação resultante do trabalho do
Escravo que, como veremos, se põe na coisa [é esta consciência posta que
o senhor deseja].
O impasse existencial do Senhor demonstra-se então nesta posição
que consiste em depender da mediação do Outro para realizar uma
satisfação que se quer imediata. A consciência inessencial fornece a
verdade da certeza de si mesmo do Senhor. A verdade da sua
independência é pois dependência, a verdade de sua imediatez é pois
mediação. Daí porque Hegel pode falar: “é claro que ali onde o senhor se
realizou plenamente ele encontra algo totalmente diverso de uma
consciência independente, o que é para ele não é uma consciência
independente, mas uma consciência dependente”28.
Hegel então lembra que estamos aí diante de um processo parcial
de reconhecimento. O reconhecimento é uma reflexão duplicada que
comporta quatro momentos: a reflexão do ser para-si no ser em-si da
primeira consciência, a reflexão do ser para-si no ser em-si da segunda
consciência, a reflexão do ser em-si da primeira consciência no ser para-
si da segunda consciência e a reflexão do ser em-si da segunda
consciência no ser para-si da primeira consciência. Estes dois últimos
movimentos são resultantes da compreensão de que a dimensão do em-si,
enquanto espaço do que se põe como objetividade, é um espaço de
interação social suportado pela presença reguladora da alteridade.
26
HEGEL, Fenomenologia, par. 190
27
HEGEL, Filosofia do Espírito, de 1805
28
HEGEL, Fenomenologia, par. 192
Neste sentido, temos aqui apenas a realização de dois processos: a
reflexão do ser para-si no ser em-si da segunda consciência (o Escravo
através do trabalho) e a reflexão do ser em-si da segunda consciência no
ser para-si da primeira consciência (o Senhor através da consumação e
do gozo da coisa trabalhada pelo Escravo). Daí porque Hegel afirma:
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HEGEL, Fenomenologia, par. 191
Hegel pode lembrar desta reversibilidade porque, ao menos em sua
Fenomenologia do Espírito, as relações de propriedade não aparecem
apenas como relações de uso, mas como relações de desejo. Eu não
apenas uso propriedades, eu desejo o que se reduz à condição de
propriedade e esta é a base do processo de alienação inerente a toda
noção de propriedade de si. Meu desejo se submete à forma da
propriedade, meu ser se determina no interior de um campo de
propriedades. Eu me determino a partir daquilo que se conforma à
condição de propriedade. Desta forma, desejar como um senhor de
escravo é definir o escravo como o modo de existência do meu desejo, é
vincular minha expressão ao que se dispõe integralmente, ao que se
define de forma unidimensional, ao que não pode escapar de minha
possessão, mas que apenas confirma meu domínio, minha narrativa sobre
mim mesmo. Por isto, tal posição só pode ser um impasse existencial.