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Douglas Barros

Quem foi Freud?


4º Aula1

“E deixe-me mor rer de repente, nascer de novo na


revelação da beleza ... “
(Cesaire)

1 Este ensaio será utilizado como material complementar no curso Quem


foi Freud? Seu conteúdo pode ser livremente reproduzido desde que ci-
tada a fonte.
Ato 4: O desejo

O desejo é o cerne da prática psicanalítica. Há


muita confusão entre a ideia de pulsão e a
de desejo. O que as distingue, entretanto, é um fato
básico: a pulsão é para ser satisfeita ao passo que o
desejo é para ser realizado. Como assim? O desejo é
algo radicalmente distinto da esfera da necessidade
ou de qualquer exigência, ele está para além de uma
satisfação. É uma representação (Vorstellung) que tem
como correlato os fantasmas (fantasias) que orientam
sentido da ação subjetiva. Portanto, o desejo é uma ideia.
Enquanto a pulsão gira em torno do mal infinito no ciclo
de recomposição de seu impulso de satisfação, o desejo
ao ser realizado amadurece a organização de sentido das
satisfações da pulsão do sujeito. O desejo se constitui
por uma falta primeira ante um objeto que é substituido
por uma representação e se encarna noutros objetos e
objetivos que ao serem atingidos reconstitui a falta. Ou
seja, o desejo se recompõe e indica que a ação do sujeito,
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aquela que funda sua subjetividade consiste em desejar o
desejo.
A grande dificuldade para compreensão do desejo
reside no fato de que o desejo é radicalmente desligado,
desnaturalizado, de qualquer necessidade biológica, ele
é algo imerso na ordem simbólica. E isso indica algo
vertiginoso: o desejo só pode emergir na sua relação
com a alteridade. Da Interpretação dos sonhos até os
últimos escritos de Freud, essa conclusão permanece
como um elemento fixo: o desejo não aponta ao objeto
empiricamente considerado, mas a falta de um objeto
arcaico que o orienta.A satisfação do desejo é em si mesma
sempre adiada ao passo que a objetividade pelo qual ele
se direciona é realizada reconstituindo sua fantasia.
Muitos comentaristas da obra freudiana partilharam da
ideia de que essa forma de conceber o desejo tem sua
origem na maneira como Hegel propõe sua descrição
na Fenomenologia do espírito. Algo que escapa daí é o
fato de que há uma cisão fundamental na concepção de
ambos: enquanto o desejo em Hegel é organizado de
maneira translúcida pela consciência, ainda que sempre
escape, o de Freud se correlaciona diretamente com o
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inconsciente. É na maneira de pensar o inconsciente que
a ideia freudiana se destaca sem, contudo, abandonar as
marcas do desejo pensado à moda hegeliana. E, sendo
assim, precisamos agora pensar primeiro o que significa
o desejo em Hegel?

O desejo em Hegel

O desejo funciona em Hegel de duas formas


que se imbricam: por um lado, a carência da
consciência-de-si impulsiona a satisfação do desejo – há
nessa consciência uma imediatez vinculada ao desejo,
que procura pôr o exterior em conformidade com sua
singularidade interna; por outro lado, a presença de um
objeto como um diferente dessa consciência, um “Outro”
– uma outra consciência, demonstra a contradição e faz
com que a consciência seja levada a buscar sua identidade
consigo própria através dessa outra.
O impulso do desejo segue a carência que a consciência
tem de colocar as coisas exteriores de acordo consigo
mesma. Nesse estágio – esse primeiro processo da
consciência-de-si para Hegel, encontra-se ainda numa
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fase ligada ao elemento natural – o desejo para se realizar
assume a forma do consumo, ou da destruição imediata
das diferenças entre o objeto e a consciência. Ainda não há
propriamente um elemento que se interponha a imediatez
e, portanto, ainda é como se a consciência seguisse puras
necessidades instintuais. Ao atingir o objeto de sua
necessidade a consciência, diz Hegel, temporariamente,
sossega seu impulso aniquilador frente à exterioridade,
que lhe fornece somente diferenças.
Hegel chama a atenção para o fato dessa exterioridade
ser a responsável pela experiência dolorosa sofrida
pela consciência que se percebe como algo unilateral.
Mas, ao mesmo tempo, é nessa dor que ela descobre-
se como consciência-de-si aniquiladora das diferenças
numa unilateralidade intrínseca ao seu desejo de se pôr
como unidade. Se, para a consciência, segundo Hegel,
sua totalidade se exprime pela unidade da objetividade
e subjetividade, com a presença do Outro, marca-se um
desequilíbrio contraditório, pois o objeto que se apresenta
na figura do Outro tem uma independência que é de
todo estranha. Sendo assim, para essa consciência, em

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seu registro por assim dizer “ainda natural”, a contradição
que vivencia só será resolvida com a satisfação do desejo,
ou melhor, com a aniquilação do Outro. Perceba: sem
esse outro não há ainda uma organização simbólica que
de significado ao impulso da busca pela unidade de si. Ou
seja, a consciência está fora do registro simbólico.
A própria noção que Hegel apresenta com o conceito
de consciência-de-si se refere à identidade que esta
tem consigo mesma, tal identidade, ao ser encarnada
pela aniquilação do objeto, apreende uma dolorosa
contradição visto que a exterioridade do objeto está
lançada no terreno da vida . Essa oposição, existente
entre a consciência e o objeto, só pode ter fim quando
um dos lados for negado, ou melhor, quando o objeto
for tomado pela consciência-de-si desejante que nega sua
independência e autonomia. Essa unidade imediatamente
dada pela aniquilação do objeto, além de demonstrar
a unilateralidade da consciência-de-si somente pode
ser produzida pela imediata satisfação do desejo e pela
cessação de sua carência via consumo.
O consumo é, então, aquilo que irá trazer uma solução –

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ainda que provisória – à oposição. “Por essa suprassunção
do objeto... o sujeito suprassume também sua própria
falha, seu desmoronar em um Eu = Eu indiferenciado, e
em um Eu referido a um objeto exterior; e tanto confere
objetividade à sua subjetividade como faz seu objeto,
subjetivo” (ECF, § 427). O problema existente aí, para
Hegel, é que a contraditória oposição da consciência e
do objeto se mantém a despeito da identidade unilateral
produzida pelo imediato consumo e pela aniquilação do
objeto.
Isso significa que o processo de consumo é insuficiente
frente à vida e ao desejo, como impulso da consciência-de-
si. A identidade da consciência propiciada pela aniquilação
do objeto torna-se provisória. No desejo, há então uma
monótona “negação” do Outro, negação esta que se repete
num ciclo infernal – forçando a barra: é como se o desejo
ainda não tivesse saído da esfera pulsional obedecendo
apenas ao critério da necessidade de pôr o mundo de
acordo com a consciência. Tal negação está enclausurada
nos limites da própria identidade que a consciência tem
consigo mesma. Para que, todavia, haja um passo decisivo
que lance a consciência para além dessa pura naturalidade
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e que, por fim, se inicie o desdobramento do tempo
histórico é necessário que essa negação seja negada. Essa
medida só pode ocorrer quando essa consciência tem
negada a possibilidade imediata de aniquilar o objeto.
Ou ainda: quando o desejo de uma consciência é barrado
pelo desejo exterior de outra.
É somente quando a consciência-de-si encontra Outra
consciência-de-si que o desejo sairá da esfera imediata do
consumo. É inviável analisar agora a famosa “dialética do
Senhor e Escravo”, para introduzir o tema; cumpre, porém,
assinalar que, pela oposição de uma outra consciência,
resta ao desejo a mediação da atividade formante, ou,
ainda, do próprio trabalho que executa-se no mundo
simbólico. O objeto agora será mediado e estabelecerá
o laço de meio-termo entre as duas consciências
antagônicas. Para Hegel, o que importa a essa consciência
não é mais a forma como o objeto era imediatamente
consumido antes de esbarrar com outra consciência. O
surgimento dessa outra consciência mudará radicalmente
a experiência que a consciência tem com o objeto, e, por
consequência, com a vida. O advento do novo será a
própria transfiguração da relação mantida com o objeto.
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É daí que surge o trabalho do desejo que, grosso modo, é
uma organização do próprio desejo ganhando significação
e saindo da esfera do impulso unilateral e “animalizado”
de pôr-se enquanto unidade.
Em Hegel, a noção de sujeito que se constitui pelo
refreamento do desejo, se constitui também pela
sujeição ao trabalho que organiza o mundo simbólico. A
consciência se vê diante da necessidade de uma relação
mediada pela coisa trabalhada, e mediada pela própria
consciência que tem de si e da coisa diante de uma Outra
consciência. Nesse reino da necessidade o que surge
como noção ainda implícita é a própria ideia de liberdade
que nasce da falta ante aquela unidade perdida que se
punha imediatamente através do consumo.
O desejo em Hegel é um desejo consciente. O que
marca a diferença entre a união efetivada pelo desejo em
contraposição com o trabalho, é que o ato de negar o
desejo, impresso pela imposição do trabalho, expressa
uma transformação sofrida no objeto e, ao mesmo
tempo, se opera uma transformação sofrida no desejo,
agora refreado. A mediação realizada pela consciência

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não é apenas uma mediação junto ao objeto senão nela
mesma como uma consciência que sabe de seu desejo e
do trabalho para realizá-lo. Em todo caso, a negação se
recoloca na fundamentação do mundo social. É como se a
efetividade expressasse, por fim, a verdade dessa unidade
encontrada no negativo como o próprio vazio constituinte
da consciência que agora passa a reconhecer a necessidade
de busca pela liberdade e reencontro de seu Si. E assim,
não podendo mais tranquilizar-se temporariamente
devido à sujeição ao trabalho, a consciência agora tem
que iniciar um autorreconhecimento de si por meio da
mediação que faz junto ao objeto. É nessa busca que
emerge, para Hegel, o surgimento da ideia de sujeito que
redefine os significados e organiza efetivamente o mundo
da linguagem e da cultura.
O trabalho realiza assim uma transformação do objeto
cujo sujeito – responsável por essa transformação –
imprime a ele a sua experiência. A própria alteração
do desejo, sua transfiguração de desejo imediato para
refreado, modifica as articulações da relação entre a
consciência e o objeto. O desejo supõe a necessidade

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e o primeiro passo para a sua satisfação é utilizar-se da
natureza. Dada a partida se organiza o mundo da linguagem
e da história. Esse é o desejo em Hegel: algo que realiza-se
mediante à falta, a impossibilidade “natural ou instintiva”
de colocar o mundo e o outro como unidade imediata de
si mesmo. Vejamos que isso tem algo radicalmente ligado
ao desejo pensado pela psicanálise com o adendo central
de que: a falta continua a reorientar a ação do sujeito só
que inconscientemente.

O desejo em Freud

A marca distintiva do desejo na psicanálise é a


conclusão de que ele está fora da concepção
naturalista ou biológica de necessidade. Enquanto
numa concepção biológica do desejo, a necessidade,
registrada no campo físico, é satisfeita ao alcançar um
objeto específico que permite a redução da tensão; para a
psicanálise o desejo não implica um objeto real, mas uma
fantasia. O desejo pode realiza-se ao atingir o alvo de
sua fantasia, mas jamais irá se satisfazer com esse objeto.

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Freud foi o primeiro a admitir que o desejo é um desvio
da ordem natural e, portanto, não compreensão dele se
permanecermos presos ao regime biológico. A fantasia
é estruturada pela substituição do objeto primário que
organiza o desejo. Enquanto a fantasia enforma o campo
da ação do sujeito, o desejo orienta seu sentido sendo
algo vazio em si mesmo.
O objeto do desejo é a falta marcada por um desvio no
qual o gozo do desejo reside no próprio ato de desejar: o
desejo recai sobre o desejo mesmo. Aquilo que estrutura
o desejo organiza a inacessibilidade da satisfação completa
diante do objeto que, embora admita a realização do desejo
nos objetos e nos objetivos, assinala a falta que constitui
seu ímpeto. “Freud é bastante claro quano nos fornece o
modelo de constituição do desejo com base na experiência
de satisfação. Um bebê recém-nascido, premido pela
fome, chora, esperneia e agita os braços, numa tentativa de
afastar o estímulo causador da insatisfação. A intervenção
da mãe oferecendo-lhe o seio tem como efeito a redução
da tensão decorrente da necessidade e uma consequente
experiência de satisfação... daí por diante, uma imagem
mnemônica permanece associada ao traço de memória da
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excitação produzida pela necessidade, de tal forma que
na vez seguinte em que essa necessidade emerge ‘surgirá
imediatamente um impulso psíquico que procurará
recatexiar a imagem mnemônica da percepção e reevocar
a própria percepção, isto é, restabelecer a situação de
satisfação original. Um impulso dessa espécie é o que
chamamos desejo.”
Aquilo que dá contornos à ideia de desejo se refere
justamente a essa possibilidade de reproduzir de maneira
fantasiosa uma satisfação original perdida: a busca por
algo que já não é mais, um objeto perdido organizado
pela falta primitiva. O desejo é uma lembrança de um
objeto perdido que se encarna no objeto presente e
organiza a fantasia. Então a concepção freudiana do desejo
nada tem em comum com uma ideia empirista, tanto
que as variações diante do objeto de desejo desnudam
seu caráter de desvio. O objeto do desejo se articula no
simbólico e desliza numa série infinita de construções
que estruturam o movimento do gozo.

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