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CONSUMPTION
Bebida é água!
Comida é pasto!
Você tem sede de quê?
Você tem fome de quê?
(Titãs)
Introdução
embutido no slogan “Magazine Luiza: Vem ser feliz!”, analisarei como ele é reificado
discurso dessa propaganda (e outras semelhantes) anuncia uma oferta que cria
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Professora Titular sênior da Universidade de São Paulo; pesquisadora do CNPq; psicanalista.
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o Simbólico. Enquanto a necessidade (fome, por exemplo) pode ser satisfeita, o desejo
não pode, e, assim, a demanda (manifestação imaginária do desejo) por novos objetos
demanda há uma hiância, um vazio que nenhum objeto pode tamponar, e isso gera a
demanda de amor, ou seja, supõe uma alienação ao grande Outro, alienação essa que
uma imagem mnésica que nunca mais será reencontrada como tal. É a isso que se dá o
nome de das Ding, o objeto original de satisfação, perdido para sempre. A pulsão se
encarrega de fazer com que o desejo gire, e coloca o sujeito sempre em busca de novos
sofrimento no sujeito, faz também com que ele se volte para buscar realização – ou
(2006, p. 1), “O que entendemos por sujeito é construído desse circuito onde a libido
sujeito não é o in-divíduo. O esquema abaixo serve para ilustrar o que foi dito até aqui.
Necessidade (REAL) –
ligada à satisfação
da pulsão. (Privação)
Desejo
Demanda (SIMBÓLICO)
(IMAGINÁRIO) - (Frustração)
experiência psíquica de um
objeto de satisfação
perdido- (Castração)
Entre demanda e desejo, instaura-se uma fenda que nunca é obturada (a “falta-a-ser”),
Entre
onde se instala a angústia.
Maria Lucia Homem (2008) expõe de forma “didática” (se é que isso é possível, quando
nasce da zona erógena do corpo, e sem se reduzir ao corpo (soma) pode se satisfazer
apenas parcialmente.
sujeito os objetos substitutivos que em vão tentam preencher o vazio do real. Segundo
Esse ato, no entanto, não pode ser realizado de maneira aleatória, nem segundo a
equívoco, no duplo sentido, nos lugares onde o sujeito tropeça e falha, lugares esses
que atestam a presença de um real que não pode ser dito nem recoberto em sua
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totalidade. Segue-se daí que o desejo nunca é satisfeito plenamente, e a pulsão nunca
cessa de não se inscrever, o que leva o sujeito a perceber-se dividido, sem conseguir
fazer UM, e isso o impulsiona a uma busca sem fim do “objeto” que poderá
ilusoriamente obturar essa falta. Temos, assim, a inscrição de um sujeito que se move
presença/ausência de um objeto que não existe senão por ilusão, por criação
discursiva, que indicia a língua incompleta, funcionando a partir de uma fala desejante,
e, portanto, também marcada pela falta, assim como o sentido, a todo momento pronto
a se desfazer Ao reconhecer tais equívocos - aquilo que da língua faz furo no real - é
Como não há AD, nem psicanálise, sem análise, proponho-me a ilustrar aqui esse
circula na mídia brasileira: “Vem ser feliz” (de uma loja de departamento - Magazine
semelhantes) enuncia uma oferta que cria demandas fadadas ao fracasso do sujeito, e
ao triunfo das empresas empenhadas em faturar, já que põe a operar a falta constitutiva
Patti (submetido).
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Como o slogan que será analisado tem estrutura de genérico discursivo, comento a
expressão pela primeira vez em minha tese de doutoramento (TFOUNI, 1986), por
(1972).
sentidos, sem que ele (sujeito) se dê conta disso. Vozes coletivas, socialmente aceitas
autor, para falar sobre os genéricos (que ele denomina “universais”) constrói uma
metáfora na qual os aproxima da selva de Kipling. Afirma ele: “Na selva de Kipling,
desempenha na compulsão ao consumo como algo irracional, que depende muito mais
Cabe investigar, então, quais são esses genéricos, a quais formações discursivas estão
filiados, e de que forma a ideologia os faz funcionar num determinado sentido, afetado
pela história. Inicialmente, chamamos a atenção para o fato de que a construção law-
universalidade, que faz parecer que eles asseveram uma verdade que é válida em todos
Notamos que o leitor comum, ao ler um genérico, em qualquer uma de suas formas
(slogan, provérbio, palavra de ordem, etc.), tem como ferramenta para a interpretação
Continua Milner (2007) afirmando que “A palavra-mestre, como todos os mestres, está
dispensada de direito, porque detém a força. Ela legitima ações e propostas, na medida
exata em que sua própria legitimidade não poderia ser examinada” (p. 62).
como ele (não) é preenchido no capitalismo tardio. Trata-se de abordar, para tanto, o
Segundo Tfouni e Tfouni (2008), o sujeito fetichista, ou perverso, não é aquele que não
sabe o que faz (e que, portanto, seria enganado pelo capital). Para os autores, esse
sujeito
Desse modo, ainda segundo os mesmos autores, o sujeito fetichista caracteriza-se por
agir “como se” a fantasia a ele oferecida pelo Outro estivesse preenchendo o vazio do
Como já foi comentado no início, Freud ([1900] 2001) e Lacan (1999) postulam que a
estrutura do desejo é marcada desde o início por uma falta de objeto, sendo que este só
pode ser contornado pela ordem simbólica, da linguagem. Sendo simbólico, há sempre
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uma incompletude, pois nem tudo pode ser dito. Diante deste não dizer tudo, algo
impulsiona para um novo dizer, uma nova palavra, ou à busca ilusória de outro objeto
que possa satisfazer este impulso, que está sempre em movimento. O processo de
consumir, portanto, pode ser interpretado tanto na voz ativa (consumir uma
“destruir, gastar, esgotar”, tendo sido formada por COM-, intensificativo, mais
vazios, que, supostamente, são espaços da realidade, porém indiciam a falta constitutiva
do desejo, que nunca pode ser tamponada. Silva (1998, p. 62) comentou propondo a
Para Freud, o fetiche tem origem em um trauma de ordem sexual: o menino procura
substituir a falta de pênis da mãe por um outro objeto (o fetiche), que é investido de
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da mercadoria - pode ser entendido pelo conceito de “mais valia”, conforme é usado
por Marx, e depois por Lacan: para Marx, a mais-valia sustenta a economia capitalista;
Se o ser da linguagem, como escreve Lacan, é o não-ser dos objetos, ele eterniza o
coloca a felicidade como algo que existe e que precisa ser procurado (Onde a
felicidade pode ser encontrada?). Podemos tentar uma entrada para esse dilema
“vem”, que soa como um convite sedutor, é uma interpelação ao sujeito em forma de
caracterizam por uma estrutura sintática com sujeito indeterminado, o que lhe atribui
uma característica de genérico. O autor afirma que a palavra de ordem resume o fim a
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ser atingido e oferece um conteúdo tático preciso, e que ela é precisa e pouco
passional, é puro imperativo ou optativo; não pretende convencer ninguém, mas dirigir
pessoas já convencidas a um objetivo, como, por exemplo, “Seja positivo; doe sangue”
No não dito, esse genérico propõe uma polarização entre dois lugares do mundo real,
posições essas que são sustentadas discursivamente pelo caráter dêitico do verbo
onde se encontra a pessoa que fala (primeira pessoa do discurso); "aí" é o lugar do
interlocutor (segunda pessoa do discurso). “Vem ser feliz (aqui) ”; a forma imperativa
enunciado (tu) está contido na própria forma do verbo vir, mas o sujeito da enunciação
não fica evidente. Quem é esse sujeito não identificado? Uma resposta possível seria
afirmar que aí, nesse lugar vazio, temos a voz do Outro, representante do desejo. Uma
“voz sem dono”, como diz Courtine (1999) ao referir-se ao interdiscurso (lugar da
alvo do movimento é o lugar onde está o falante. Portanto, essa palavra de ordem
“Vem ser feliz (aqui onde eu estou) ” tem o efeito de sentido de fazer o sujeito
consumidor acreditar que existe um lugar próprio onde a felicidade está; que tal lugar
não coincide com o do consumidor; que o lugar onde o consumidor está não o faz feliz
(é o lugar errado), e, finalmente, que basta ir a esse outro lugar e simplesmente ser
feliz. Porém, não é somente a felicidade que o slogan promete e assegura. No discurso
oral, o sintagma “vem ser” é também ouvido como seu homônimo “vencer”. Vencer e
e aliena, através de compulsivos apelos para o consumo. Na peça discursiva “Vem ser
feliz”, o pressuposto é que é preciso consumir para ser feliz, ou ainda que o consumo
seria a única fórmula para ser feliz e vencer (na vida?). Numa operação metafórica,
lugar definido onde seria possível ser feliz. Apagam-se, deste modo, as diferenças
propiciar a felicidade, desde que o sujeito “saiba para onde ir”. O que fica recalcado aí
é que esses são espaços de compras, e que a mercadoria, nas sociedades capitalistas
desejar o desejo do Outro, o mesmo não ocorre com o analista que, por dispor de um
tempo em que procura mostrar, pela interpretação, como eles trabalham o imaginário
social. A eficácia das fórmulas genéricas está no fato de que - por condensarem os
(da memória do dizer) que irão produzir uma ilusão de que na sociedade não existem
conflitos nem contradições e que há uma comunhão universal de ideias, o que ajuda à
fetichizado pelo funcionamento de substituição cada vez mais veloz das mercadorias,
vem substituir a ética protestante, segundo a qual, após uma vida de trabalho e retidão
Como já foi dito, o desejo movimenta o aparelho psíquico e sua satisfação é sempre
1999), "o desejo é sempre o desejo de um outro desejo”. Sendo assim, é a insatisfação
subjetividade.
F. Tfouni (1998) traz outro ponto importante para esta discussão, ao afirmar que o
desejo, sendo desejo de nada, cria um vazio que nenhuma entidade fenomênica pode
preencher.
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da mercadoria, ou (...) enfim, de algum Outro, o que torna nosso desejo o desejo do
Outro. Prossegue o autor, comentando que o Outro fornece ao sujeito uma fantasia
manifesta-se por seu aspecto perverso, visto que, ao consumir a mercadoria, o sujeito
também se deixa ser consumido por ela, de tal modo que, tal como na banda de
objetificação que nunca se completa, e no qual ambos jamais se encontram (Tfouni &
Tfouni, 2008).
Eis a banda, ou fita, em uma das representações feitas pelo genial gravurista holandês
M. C. Escher, que trabalhou com ela em várias obras. A figura abaixo foi retirada do
pela banda, volta a sentir angústia e a buscar outros objetos que supram sua falta-a-ser.
É aí que entra a indústria, com os objetos de consumo, que, supostamente, irão obturar
a fenda existente entre necessidade e desejo, que se constitui na demanda por objetos
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que tragam novamente o sujeito àquele momento mítico de primeira satisfação, que
está para sempre perdido. Nenhum objeto conseguirá jamais obturar o vazio, fazer o
ser simbolizado, nomeado e satisfeito. A necessidade pode ser satisfeita, mas o desejo
não; ele pode realizar-se parcialmente com os objetos (mercadoria), mas sempre estará
insatisfeito. Essa mesma figura topológica proposta por Lacan pode servir para ilustrar
a busca inútil e sempre malograda pela felicidade, que nos consome através do
consumo.
Referências Bibliográficas
FREUD, S. (1900) Interpretação dos sonhos: Ed. comemorativa - 100 Anos. Trad.
em http://www.mnemocine.art.br/index.php?option=com_content&vie )
Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro, Jorge Zahar 1999. pp. 592-621
Campinas: Papirus.
publicada em 1997).
NASIO, J. D. (1993). Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar.