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EM BUSCA DA FELICIDADE, O CORPO SE CONSOME NO CONSUMO

SEARCHING FOR HAPPINESS, THE BODY CONSUMES ITSELF IN THE

CONSUMPTION

Leda Verdiani Tfouni1

Bebida é água!
Comida é pasto!
Você tem sede de quê?
Você tem fome de quê?

A gente não quer só comida


A gente quer comida
Diversão e arte
A gente não quer só comida
A gente quer saída
Para qualquer parte...

(Titãs)

Introdução

Neste texto, discutindo a relação entre desejo e felicidade, na intersecção entre a

Análise do Discurso pêcheutiana e a Psicanálise lacaniana, promoverei uma

articulação entre a mais-valia marxista e o mais-gozar psicanalítico. A argumentação

centra-se em discutir como se dá a tentativa de preenchimento do vazio do desejo na

sociedade moderna (de consumo), destacando o papel da mídia e particularmente dos

slogans de publicidade nesse processo. Topicalizando o conceito de felicidade

embutido no slogan “Magazine Luiza: Vem ser feliz!”, analisarei como ele é reificado

na mercadoria, produzindo um efeito fetichizante, que apaga a historicidade, e

tampona a dinâmica do funcionamento psíquico, ao mesmo tempo que aponta que o

discurso dessa propaganda (e outras semelhantes) anuncia uma oferta que cria

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Professora Titular sênior da Universidade de São Paulo; pesquisadora do CNPq; psicanalista.
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demandas fadadas ao fracasso do sujeito e ao triunfo das empresas empenhadas em

faturar, já que põe a operar a falta constitutiva do sujeito imaginariamente, deixando-o

alienado simbolicamente do seu desejo fundamental.

Necessidade, demanda e desejo – Circuito sempre inacabado

A psicanálise lacaniana faz uma articulação entre necessidade, desejo e demanda,

relacionando a necessidade com o Real, a demanda com o Imaginário, e o desejo com

o Simbólico. Enquanto a necessidade (fome, por exemplo) pode ser satisfeita, o desejo

não pode, e, assim, a demanda (manifestação imaginária do desejo) por novos objetos

de satisfação é constante, obedecendo à pulsão. No entanto, entre o desejo e a

demanda há uma hiância, um vazio que nenhum objeto pode tamponar, e isso gera a

angústia no sujeito (relacionada à falta-a-ser). Sabe-se que toda demanda é uma

demanda de amor, ou seja, supõe uma alienação ao grande Outro, alienação essa que

tem origem no primeiro momento em que a Mãe interpreta um desconforto qualquer

da criança, dando-lhe nome. A primeira satisfação de necessidade da criança produz

uma imagem mnésica que nunca mais será reencontrada como tal. É a isso que se dá o

nome de das Ding, o objeto original de satisfação, perdido para sempre. A pulsão se

encarrega de fazer com que o desejo gire, e coloca o sujeito sempre em busca de novos

objetos de satisfação, o que produz a cadeia metonímica do desejo.

Masotta (1987, p. 83-84, grifos do autor) pontua que:

Para Freud, o desejo é o que põe em movimento o


aparelho psíquico e o orienta segundo a percepção do
agradável e do desagradável. O desejo nasce da zona
erógena do corpo, e sem se reduzir ao corpo (soma)
somente pode se satisfazer apenas parcialmente; ele
realiza-se no movimento de querer-mais-e-mais. Como
formula Lacan, "O desejo é sempre o desejo de um outro
desejo”. O desejo humano é algo sempre adiado, é
intervalar. O desejo vive de sua insatisfação, resguardada
esta estranha função: a função de insatisfação”
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A procura incessante pela satisfação do desejo, ao mesmo tempo que provoca

sofrimento no sujeito, faz também com que ele se volte para buscar realização – ou

satisfação parcial – no mundo objetivo (nas artes, no trabalho), ou na subjetividade

(sonhos, projetos utópicos, fé no absoluto, etc). De acordo com Lima e Fregonezzi

(2006, p. 1), “O que entendemos por sujeito é construído desse circuito onde a libido

sempre tem um excesso que sustenta o movimento desejante”.

É devido a essa dinâmica que se postula que o sujeito em psicanálise é dividido; o

sujeito não é o in-divíduo. O esquema abaixo serve para ilustrar o que foi dito até aqui.

Necessidade (REAL) –
ligada à satisfação
da pulsão. (Privação)

Desejo
Demanda (SIMBÓLICO)
(IMAGINÁRIO) - (Frustração)
experiência psíquica de um
objeto de satisfação
perdido- (Castração)

Entre demanda e desejo, instaura-se uma fenda que nunca é obturada (a “falta-a-ser”),
Entre
onde se instala a angústia.

Maria Lucia Homem (2008) expõe de forma “didática” (se é que isso é possível, quando

se trata de Lacan!) a relação entre necessidade, demanda e desejo:

A teoria psicanalítica fala de um "desejo inconsciente


cujo objeto falta", concepção que constitui o "cerne da
psicanálise". O movimento do desejo cria um espaço que
pretende ser preenchido por aquilo que se estabelece
como seu objeto. Mas o encaixe nunca é perfeito, e o
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espaço é provisoriamente preenchido com outros objetos


que inevitavelmente deixarão evidentes as lacunas que
ainda permanecem
Alguém tem necessidade de alguma coisa e isso é
manifestado de forma tal que pode ser interpretada. Além
da necessidade, há agora uma demanda, que se dirige ao
outro. Estamos, portanto, no reino da linguagem que dá a
esse processo um significado que independe da satisfação
da necessidade. O que falta e o que é recebido é, agora,
algo mais: não é apenas a coisa que pode satisfazer a
necessidade, mas é a resposta à demanda. Isso é o desejo,
um vazio que é constantemente renovado pela linguagem.
Esse processo é inerente ao sujeito, por isso dizemos que
essa falta é estrutural, isto é, está na sua constituição.

Segundo Freud ([1900] 2001), o desejo é o que põe em movimento o aparelho

psíquico e o orienta segundo a percepção do agradável e do desagradável. O desejo

nasce da zona erógena do corpo, e sem se reduzir ao corpo (soma) pode se satisfazer

apenas parcialmente.

Para a Análise do Discurso, sabemos que é a ideologia que se encarrega de fornecer ao

sujeito os objetos substitutivos que em vão tentam preencher o vazio do real. Segundo

F. Tfouni (1998, p. 48):

(...) na sociedade capitalista atual, o desejo se realiza


através da fórmula do desmentido fetichista: se o desejo é
desejo puro e não pode ser preenchido por nada, então a
tarefa de preencher esse desejo com algo é ideológica,
marcada pelo Capital, que impõe produtos (objetos) a
desejar (consumir). Isto se realiza, de acordo com Zizek e
Lukács, por uma fórmula fetichista, visto que quando o
sujeito nomeia o desejo, finge acreditar que os objetos
nomeados constituem a sua verdade, e estão, portanto,
obturando seu desejo (seu sintoma).

Esse ato, no entanto, não pode ser realizado de maneira aleatória, nem segundo a

vontade do sujeito, visto que o fornecedor de significantes é o Outro, ou seja, a própria

estrutura da linguagem. No entanto, esta é também faltosa, fraturada e incompleta; em

consequência, é preciso buscar o sentido naquilo que falha: na língua, ou seja, no

equívoco, no duplo sentido, nos lugares onde o sujeito tropeça e falha, lugares esses

que atestam a presença de um real que não pode ser dito nem recoberto em sua
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totalidade. Segue-se daí que o desejo nunca é satisfeito plenamente, e a pulsão nunca

cessa de não se inscrever, o que leva o sujeito a perceber-se dividido, sem conseguir

fazer UM, e isso o impulsiona a uma busca sem fim do “objeto” que poderá

ilusoriamente obturar essa falta. Temos, assim, a inscrição de um sujeito que se move

aparecendo entre significantes no discurso, um discurso marcado pela

presença/ausência de um objeto que não existe senão por ilusão, por criação

discursiva, que indicia a língua incompleta, funcionando a partir de uma fala desejante,

e, portanto, também marcada pela falta, assim como o sentido, a todo momento pronto

a se desfazer Ao reconhecer tais equívocos - aquilo que da língua faz furo no real - é

que se reconhecerá a própria mola de funcionamento do inconsciente, e, em última

instância, a dinâmica de produção dos sentidos.

Como não há AD, nem psicanálise, sem análise, proponho-me a ilustrar aqui esse

processo através da análise de um slogan de propaganda, ou genérico discursivo que

circula na mídia brasileira: “Vem ser feliz” (de uma loja de departamento - Magazine

Luíza). Parto do princípio, já esquematizado, que o desejo (inconsciente) se estrutura

na falta, demandando satisfação; porém, estruturalmente ele é sempre insatisfeito e sua

realização é sempre parcial, o que implica uma felicidade também incompleta,

transitória e fugaz. Topicalizando o conceito de felicidade embutido nesse slogan,

analisarei como ele é reificado na mercadoria, produzindo um efeito fetichizante, que

apaga a historicidade, apontando que o discurso dessa propaganda (e outras

semelhantes) enuncia uma oferta que cria demandas fadadas ao fracasso do sujeito, e

ao triunfo das empresas empenhadas em faturar, já que põe a operar a falta constitutiva

do sujeito imaginariamente, deixando-o alienado simbolicamente do seu desejo

fundamental. A discussão que se segue retoma, em parte, artigo de Tfouni, Pimenta e

Patti (submetido).
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Como o slogan que será analisado tem estrutura de genérico discursivo, comento a

seguir alguns aspectos importantes para a discussão.

Sobre os Genéricos Discursivos

O termo “genérico discursivo” provoca estranhamento e malentendidos, mesmo entre

aqueles que incluem a linguagem e a Linguística como preocupação científica. Usei a

expressão pela primeira vez em minha tese de doutoramento (TFOUNI, 1986), por

inspiração em discussões com Claudia de Lemos e também pelo trabalho de Dähl

(1972).

Os genéricos discursivos caracterizam-se por uma estrutura linguística semelhante a

"Todo x é y", o que os eleva à categoria de “universais”. Na atividade linguageira,

materializam-se discursivamente sob a forma de provérbios, ditos populares, slogans,

palavras de ordem, máximas, etc. Acreditamos que é em lugares discursivos como

esses que se condensam formações discursivas específicas a respeito de como o sujeito

coletivo representa o indizível, ou seja, sua sujeição à ideologia e ao desejo. Partimos

do princípio de que o genérico funciona como um mandamento que faz o sujeito-leitor

gozar, ao ocupar uma posição ideologicamente definida. Do ponto de vista teórico,

procuraremos descrever como a memória se atualiza, tanto no discurso oficial, quanto

no imaginário popular, naturalizando sentidos, e afetando a identidade. Segue-se daí

que há todo um imaginário (construído ideologicamente), que afeta o sujeito do

discurso sob o modo da interpelação, e o coloca em lugares específicos de produção de

sentidos, sem que ele (sujeito) se dê conta disso. Vozes coletivas, socialmente aceitas

como “formadoras de opinião”, ecoam nesses enunciados.

Seguindo esse raciocínio, podemos aproximar os genéricos discursivos do conceito

lacaniano de significante-mestre e do de palavras-mestres, de Milner (2007). Este


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autor, para falar sobre os genéricos (que ele denomina “universais”) constrói uma

metáfora na qual os aproxima da selva de Kipling. Afirma ele: “Na selva de Kipling,

há palavras-mestres. Aquele que detém uma delas vence em todos os

enfrentamentos.Os hangares da opinião mundial compartilham bem as características

de uma selva; ali se distinguem as matilhas de lobos, os tigres mancos, os macacos

tagarelas, os abutres pacientes”. (p. 63).

A relação entre os genéricos e a detenção do poder está metaforizada pelo autor na

selva, o que equivale a ver o papel de convencimento e persuasão que a mídia

desempenha na compulsão ao consumo como algo irracional, que depende muito mais

da lei do mais forte do que das escolhas individuais.

Cabe investigar, então, quais são esses genéricos, a quais formações discursivas estão

filiados, e de que forma a ideologia os faz funcionar num determinado sentido, afetado

pela história. Inicialmente, chamamos a atenção para o fato de que a construção law-

like (em forma de lei) generalizante confere aos genéricos um caráter de

universalidade, que faz parecer que eles asseveram uma verdade que é válida em todos

os mundos possíveis, através da propagação de palavras-mestres, às quais os sujeitos-

consumidores, seduzidos, aderem, na ilusão de que estão escolhendo livremente algo

que de fato lhes é imposto.

Notamos que o leitor comum, ao ler um genérico, em qualquer uma de suas formas

(slogan, provérbio, palavra de ordem, etc.), tem como ferramenta para a interpretação

o arcabouço ideológico que acompanha o genérico: Ele é interpelado, capturado pela

ideologia, que o aprisiona em uma única interpretação possível (impedindo a deriva de

sentidos). O apagamento de qualquer legitimação, aliado à estrutura de lei que a

configuração sintática lhe atribui, transforma o universal (genérico) em significante

mestre, na medida em que funciona como imperativo, uma ordem categórica do


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grande Outro para que o sujeito goze.

Continua Milner (2007) afirmando que “A palavra-mestre, como todos os mestres, está

dispensada de direito, porque detém a força. Ela legitima ações e propostas, na medida

exata em que sua própria legitimidade não poderia ser examinada” (p. 62).

É possível fazer uma aproximação entre a discussão acima e questão do desejo e de

como ele (não) é preenchido no capitalismo tardio. Trata-se de abordar, para tanto, o

fetichismo, como faremos a seguir.

Desejo e fetiche: o processo da criação dos sentidos

Segundo Tfouni e Tfouni (2008), o sujeito fetichista, ou perverso, não é aquele que não

sabe o que faz (e que, portanto, seria enganado pelo capital). Para os autores, esse

sujeito

(...) teria uma lógica mais cínica em relação ao


desejo, ou à incapacidade de preenchê-lo por
completo. O fetichista sabe que não é aquele o alvo
real do seu desejo, mas, mesmo assim, ele o deseja.
(...) O sujeito pode criticar a realidade, mas acaba
concordando cinicamente em viver nela, como se
dissesse: ‘sei que o mundo não é bom, mas, ainda
assim, acredito que seja’ (p. 84).

Desse modo, ainda segundo os mesmos autores, o sujeito fetichista caracteriza-se por

agir “como se” a fantasia a ele oferecida pelo Outro estivesse preenchendo o vazio do

Real. Ora, essa fantasia é “estruturada como linguagem, isto é, simbolizada,

narrativizada”; daí o papel das fórmulas genéricas da propaganda (slogans, por

exemplo) ser o de preenchedor simbólico desse desejo, assujeitando o sujeito ao

consumo de alguma mercadoria.

Como já foi comentado no início, Freud ([1900] 2001) e Lacan (1999) postulam que a

estrutura do desejo é marcada desde o início por uma falta de objeto, sendo que este só

pode ser contornado pela ordem simbólica, da linguagem. Sendo simbólico, há sempre
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uma incompletude, pois nem tudo pode ser dito. Diante deste não dizer tudo, algo

impulsiona para um novo dizer, uma nova palavra, ou à busca ilusória de outro objeto

que possa satisfazer este impulso, que está sempre em movimento. O processo de

consumir, portanto, pode ser interpretado tanto na voz ativa (consumir uma

mercadoria), quanto na voz passiva (ser consumido por ela). Ao consumir a

mercadoria, procurando consumar o desejo, o sujeito deixa-se consumir. A etimologia

de “consumo” mostra que essa é uma palavra originada do Latim CONSUMERE,

“destruir, gastar, esgotar”, tendo sido formada por COM-, intensificativo, mais

SUEMERE, “apoderar-se, tomar, agarrar”.

Assim, a mercadoria fetichizada surge ao mesmo tempo como possibilidade de se

alcançar uma sociedade sem diferenças, e também como um tamponador de espaços

vazios, que, supostamente, são espaços da realidade, porém indiciam a falta constitutiva

do desejo, que nunca pode ser tamponada. Silva (1998, p. 62) comentou propondo a

noção de falsa permeabilidade social:

O que se considera como consumismo, ou o consumo


acelerado de mercadorias, pode ser um sinal de que
alguma coisa está sendo substituída durante o ato de
consumo. A renovação de bens, a constante recompra de
produtos industrializados parece que exercem um papel
fundamental na sustentação e manutenção do modelo
social vigente em quase todo o mundo. O discurso da
globalização, a preocupação com qualidade e a busca
constante por mercadorias pode estar “resolvendo” uma
parte de conflito social. (...) A posse das coisas -
relativamente de baixo custo e oferecidas no varejo - com
status reconhecido como, por exemplo, os sanduíches
McDonald’s _ funcionam dando noção de
permeabilidade, igualdade social. Todo mundo pode
comer aquilo. Seria a justiça social, pois todas são iguais
perante o consumo, notadamente do que é barato, mas
reconhecidamente de “valor” social.

Em resumo: um novo Jardim do Éden, onde todos seriam felizes.

Para Freud, o fetiche tem origem em um trauma de ordem sexual: o menino procura

substituir a falta de pênis da mãe por um outro objeto (o fetiche), que é investido de
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um valor social, mercadológico. O encontro entre esses dois campos - o psíquico e o

da mercadoria - pode ser entendido pelo conceito de “mais valia”, conforme é usado

por Marx, e depois por Lacan: para Marx, a mais-valia sustenta a economia capitalista;

para Lacan, o mais-gozar sustenta a economia libidinal do sujeito. Importante também

é notar, na criação do fetiche, que está aí a própria dinâmica da produção de sentidos:

por substituição e por deslocamento:

Se o ser da linguagem, como escreve Lacan, é o não-ser dos objetos, ele eterniza o

desejo: substitui a coisa por um símbolo.

Onde se encontra a felicidade?

Porém, onde se encontra a felicidade? O duplo sentido do título desta sessão é

intencional: pretende sinalizar um questionamento, dirigido ao outro/Outro sobre a

existência de um lugar onde a felicidade estaria (Onde está a felicidade?), e também

coloca a felicidade como algo que existe e que precisa ser procurado (Onde a

felicidade pode ser encontrada?). Podemos tentar uma entrada para esse dilema

relacionado ao desejo insatisfeito - e à busca incessante por satisfazê-lo - procurando

ver como funciona a palavra felicidade e seus derivados em slogans de propaganda.

Vejamos o caso do Magazine Luísa, uma grande rede de lojas e departamentos de

varejo no Brasil, que veicula constantemente pela mídia impressa e televisiva a

fórmula, ou slogan “Vem ser feliz”, que corresponde inicialmente a um chamamento

ilusório, onde se inscreve o conceito de “ser” feliz no objeto desejado. O imperativo

“vem”, que soa como um convite sedutor, é uma interpelação ao sujeito em forma de

“palavra de ordem” disfarçada de convite. Para Reboul (1977), as fórmulas se

caracterizam por uma estrutura sintática com sujeito indeterminado, o que lhe atribui

uma característica de genérico. O autor afirma que a palavra de ordem resume o fim a
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ser atingido e oferece um conteúdo tático preciso, e que ela é precisa e pouco

passional, é puro imperativo ou optativo; não pretende convencer ninguém, mas dirigir

pessoas já convencidas a um objetivo, como, por exemplo, “Seja positivo; doe sangue”

(REBOUL, 1977, p. 34).

No não dito, esse genérico propõe uma polarização entre dois lugares do mundo real,

posições essas que são sustentadas discursivamente pelo caráter dêitico do verbo

“dizer”: “aqui” é o lugar da felicidade; “aí” é o lugar da infelicidade. "Aqui" é o lugar

onde se encontra a pessoa que fala (primeira pessoa do discurso); "aí" é o lugar do

interlocutor (segunda pessoa do discurso). “Vem ser feliz (aqui) ”; a forma imperativa

na segunda pessoa remete ao interlocutor (público alvo); o sujeito sintático ou do

enunciado (tu) está contido na própria forma do verbo vir, mas o sujeito da enunciação

não fica evidente. Quem é esse sujeito não identificado? Uma resposta possível seria

afirmar que aí, nesse lugar vazio, temos a voz do Outro, representante do desejo. Uma

“voz sem dono”, como diz Courtine (1999) ao referir-se ao interdiscurso (lugar da

memória do dizer). Outra característica do dêitico “vem” refere-se ao fato de que o

alvo do movimento é o lugar onde está o falante. Portanto, essa palavra de ordem

“Vem ser feliz (aqui onde eu estou) ” tem o efeito de sentido de fazer o sujeito

consumidor acreditar que existe um lugar próprio onde a felicidade está; que tal lugar

não coincide com o do consumidor; que o lugar onde o consumidor está não o faz feliz

(é o lugar errado), e, finalmente, que basta ir a esse outro lugar e simplesmente ser

feliz. Porém, não é somente a felicidade que o slogan promete e assegura. No discurso

oral, o sintagma “vem ser” é também ouvido como seu homônimo “vencer”. Vencer e

ser feliz: o ideal completo do sujeito moderno – hedonismo e competição.

Além disso, a peça promocional acrescenta o nome desse locus da felicidade:

Magazine Luiza, uma loja de departamento, lugar de consumo, onde a felicidade se


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substancializa na imposição de objetos do desejo. Assim, o sentido do dizer está

implícito na formação discursiva de uma ideologia da classe dominante que manipula

e aliena, através de compulsivos apelos para o consumo. Na peça discursiva “Vem ser

feliz”, o pressuposto é que é preciso consumir para ser feliz, ou ainda que o consumo

seria a única fórmula para ser feliz e vencer (na vida?). Numa operação metafórica,

substitui-se mercadoria por felicidade.

A promessa embutida no slogan “Vem ser feliz” concretiza-se na ideia de que há um

lugar definido onde seria possível ser feliz. Apagam-se, deste modo, as diferenças

sociais, apresentando-se um mundo logicamente estabilizado e organizado de modo a

propiciar a felicidade, desde que o sujeito “saiba para onde ir”. O que fica recalcado aí

é que esses são espaços de compras, e que a mercadoria, nas sociedades capitalistas

tardias, é confundida com a felicidade.

Considerações Finais - As Últimas Regiões do Desejo

Se o sujeito “comum”, linguageiro, é conduzido pela ideologia - sem o saber - a

desejar o desejo do Outro, o mesmo não ocorre com o analista que, por dispor de um

dispositivo teórico, consegue restabelecer as condições de produção desse tipo de

discurso, e compreender o efeito de evidência de sentido que ele instala.

O trabalho do analista será o de “reconhecer o embuste” (MILNER, 2007), produzindo

um deslocamento nas fronteiras das formações discursivas, procurando evidenciar as

zonas de silenciamento que bordejam esses discursos universalizantes, ao mesmo

tempo em que procura mostrar, pela interpretação, como eles trabalham o imaginário

social. A eficácia das fórmulas genéricas está no fato de que - por condensarem os

valores, julgamentos, opiniões, enfim, um imaginário social dominante e determinante

de certas posições de sujeito - criam sítios de significação, ou lugares do interdiscurso


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(da memória do dizer) que irão produzir uma ilusão de que na sociedade não existem

conflitos nem contradições e que há uma comunhão universal de ideias, o que ajuda à

manutenção do status quo.

Na análise dessa peça discursiva, mostramos como as estruturas econômicas se

moldam e se adaptam à retórica do capitalismo tardio, enquanto o objeto de consumo,

fetichizado pelo funcionamento de substituição cada vez mais veloz das mercadorias,

vem substituir a ética protestante, segundo a qual, após uma vida de trabalho e retidão

de caráter, o “prêmio” da graça divina poderia ser atingido.

Como já foi dito, o desejo movimenta o aparelho psíquico e sua satisfação é sempre

parcial. A realização do desejo é sempre um querer-mais.Como formula Lacan ( [1958}

1999), "o desejo é sempre o desejo de um outro desejo”. Sendo assim, é a insatisfação

que caracteriza o sujeito desejante. A insatisfação causa sofrimento ao sujeito, mas

também o impulsiona a buscar a realização, seja no mundo “exterior”, seja na sua

subjetividade.

Sarti (submetido) coloca, a esse respeito, que

No capitalismo, o discurso publicitário exerce fortemente


esse papel [de tamponador do desejo], disponibilizando
produtos porta-vozes de determinados efeitos de sentido:
ao legitimar o desejo pela mercadoria fetichizada, a falta,
causa do desejo, fica aparentemente tamponada,
nomeada. Marx se utiliza da palavra fetiche para afirmar
que o produto assume não só um caráter econômico e
mercadológico, mas também ideológico, e diz que o
fetichismo da mercadoria oculta o desaparecimento da
coletividade. (...) a mercadoria fetichizada desempenha
um duplo papel que denuncia a relação entre a
modalização do desejo dos sujeitos e a função da
ideologia de dar coesão imaginária à sociedade.

F. Tfouni (1998) traz outro ponto importante para esta discussão, ao afirmar que o

desejo, sendo desejo de nada, cria um vazio que nenhuma entidade fenomênica pode

preencher.
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Segue-se que, nas sociedades capitalistas, o preenchimento fica a cargo do Estado, ou

da mercadoria, ou (...) enfim, de algum Outro, o que torna nosso desejo o desejo do

Outro. Prossegue o autor, comentando que o Outro fornece ao sujeito uma fantasia

(estruturada como linguagem, isto é, simbolizada, narrativizada), para que o sujeito

goze-no-sentido, e o Outro goze com o gozo do sujeito, acrescentando que, desse

modo, o capitalismo tardio colonizou as últimas regiões não colonizadas da mente

humana, como nossas fantasias.

Esse não preenchimento, que caracteriza o desejo, e leva o sujeito a consumir,

manifesta-se por seu aspecto perverso, visto que, ao consumir a mercadoria, o sujeito

também se deixa ser consumido por ela, de tal modo que, tal como na banda de

Moebius, sujeito e mercadoria alternam-se em um processo de subjetificação e

objetificação que nunca se completa, e no qual ambos jamais se encontram (Tfouni &

Tfouni, 2008).

Eis a banda, ou fita, em uma das representações feitas pelo genial gravurista holandês

M. C. Escher, que trabalhou com ela em várias obras. A figura abaixo foi retirada do

livro M. C. Escher (M. C. ESCHER FOUNDATION, 2006)

Se a felicidade for considerada como um estado onde inexistiria a necessidade, isso

equivaleria a negar que existe um circuito (banda de Moebius) em cujo trajeto o

sujeito passa de um estágio de mal estar e angústia para outro, de completude e

felicidade. Nesse último lugar, caso o modelo psicanalítico propusesse um

funcionamento estático, teríamos a felicidade plena, a completude, um lugar onde não

existiria falta. No entanto, o modelo é dinâmico, e o sujeito, em movimento constante

pela banda, volta a sentir angústia e a buscar outros objetos que supram sua falta-a-ser.

É aí que entra a indústria, com os objetos de consumo, que, supostamente, irão obturar

a fenda existente entre necessidade e desejo, que se constitui na demanda por objetos
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que tragam novamente o sujeito àquele momento mítico de primeira satisfação, que

está para sempre perdido. Nenhum objeto conseguirá jamais obturar o vazio, fazer o

sujeito sentir-se pleno, completo, “feliz”. Conclui-se que o desejo é sempre

insatisfeito.Em relação ao desejo, portanto, há sempre algo perdido, impossibilitado de

ser simbolizado, nomeado e satisfeito. A necessidade pode ser satisfeita, mas o desejo

não; ele pode realizar-se parcialmente com os objetos (mercadoria), mas sempre estará

insatisfeito. Essa mesma figura topológica proposta por Lacan pode servir para ilustrar

a busca inútil e sempre malograda pela felicidade, que nos consome através do

consumo.

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