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VESTÍGIOS FORENSE

Vestígios Forense

Ciências Forense

A Ciência Forense é compreendida como o conjunto de todos os conhecimentos científicos e técni-


cas que são utilizados para desvendar não só crimes, como também variados assuntos legais (cí-
veis, penais ou administrativos). Ela é considerada uma área interdisciplinar pois envolve física, Quí-
mica, biologia, entre outras. Tem como objetivo principal o suporte a investigações referentes a justiça
civil e criminal.

A Ciência Forense possui estreita ligação com a Criminalística, uma vez que a distinção entre ambas
as áreas não é clara, sendo comum a confusão entre ambas, inclusive com utilização do termo "crimi-
nalística forense". Muitas vezes o tratamento é como sinônimos, se referindo a ambas como ciências
naturais aplicadas à solução de crimes. Alguns autores, como Grazinoli Garrido e Alexandre Giova-
nelli, tratam a Criminalística como disciplina da Ciência Forense. A Criminalística tem origem no
termo alemão kriminalisticI e na escola alemã com propagação na Europa, por outro lado, a Ciência
Forense tem origem do inglês forensic science. Dentre as diferenciações feitas estão a que o especia-
lista em criminalística (detetives e investigadores) seria o responsável pelo comando da investigação e
encarregados das provas, enquanto que os cientistas forenses analisam cientificamente os termos re-
lacionados ao objeto de investigação.

Em investigações criminais o foco principal dos profissionais na área é tanto confirmar a autoria dos
crimes, quanto descartar o envolvimento do(s) suspeito(s). Em casos de homicídio são utilizados diver-
sos recursos como, por exemplo, fio de cabelo, sangue e impressão digital deixados no local do crime
e que são úteis na identificação dos suspeitos. É possível também descobrir a hora, a data, causa da
morte, quem matou e o que levou ao homicídio. Peritos de diversas especialidades são os profissionais
que realizam os testes forenses dentro de instituições policiais, associadas ao governo, ou em consul-
torias independentes.

Para o sucesso do trabalho forense se faz necessário o uso de algumas técnicas. Uma delas é derma-
toglifia que estuda os padrões das cristas dérmicas. Outra bastante utilizada é a técnica do pó, no qual
são depositados pós em superfícies lisas que facilite o decalque das impressões digitais.

Etimologia

A palavra forense vem do latim forensis, que significa "de antes do fórum". A história do termo provém
da época romana, onde uma acusação criminal significava apresentar o caso perante um grupo de
indivíduos públicos no fórum e, tanto o acusado do crime quanto o acusador dariam discursos com
base em suas perspectivas da história. O caso seria decidido em favor do indivíduo com o melhor
argumento entregue. Esta origem é a fonte dos dois usos modernos da palavra forense — como uma
forma de prova legal e como uma categoria de apresentação pública. No uso moderno, somente o
termo forense no lugar de ciência forense pode ser considerada correta, pois o termo forense é efeti-
vamente um sinônimo para legal ou relacionado aos tribunais. No entanto, devido o termo ser tão as-
sociado com o campo científico, muitos dicionários incluem um significado que equivale para a pala-
vra forense e ciência forense.

História

Métodos iniciais

No mundo antigo não existiam práticas forenses padronizadas, resultando em muitos casos que não
tiveram resolução. Investigações criminais e julgamentos eram fortemente baseados em confis-
sões e testemunhos. No entanto, há fontes antigas que contêm vários relatos de técnicas que indicam
o início dos conceitos da ciência forense que foram desenvolvidas séculos mais tarde.

Arquimedes (287-212 a.C.), por exemplo, inventou um método para a determinação do volume de um
objeto com forma irregular. De acordo com Vitrúvio, uma coroa votiva de um templo havia sido feita
para o rei Hiero II, que havia fornecido ouro puro para ser usado em sua fabricação e, a partir disto,
Arquimedes foi solicitado para determinar se alguma prata havia sido colocada na coroa durante sua
produção pelo ourives. Arquimedes não podia danificar a coroa e, para resolver o problema, pode ter
se utilizado de seu princípio da flutuabilidade, onde é possível observar o deslocamento dos corpos a
partir da imersão na água.

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O primeiro relato escrito do uso de medicamentos e da entomologia para resolver casos criminais é
atribuído ao livro Xi Yuan Lu (traduzido em inglês como Washing Away of Wrongs), escrito no ano 1248
na China por Song Ci (宋慈, 1186–1249), durante a dinastia Sung. Em um dos relatos do livro, há o
caso de uma pessoa assassinada com uma foice que foi resolvido por um investigador que instruiu
todos os moradores próximos do local do crime a trazerem suas foices para uma determinada locali-
dade, pois tinha percebido qual arma foi utilizada testando várias lâminas em uma carcaça de animal e
comparando as feridas. A partir disto, moscas atraídas pelo cheiro de sangue eventualmente se reuni-
ram em uma única foice, o assassino confessou logo após o ocorrido.

O livro também oferece informações sobre como distinguir um afogamento (água nos pulmões) de
um estrangulamento, juntamente com outras evidencias que podem ser analisadas para examinar ca-
dáveres e determinar se a morte foi causada por homicídio, suicídio ou acidente.

Origens

Na Europa, durante o século XVI, médicos militares e universitários começaram a reunir informações
sobre a causa e circunstâncias da morte, como Ambroise Paré, um cirurgião do exército francês que
estudou sistematicamente os efeitos da morte violenta em órgãos internos e dois cirurgiões italianos,
Fortunato Fidelis e Paolo Zacchia, que lançaram as bases da patologia moderna estudando as mudan-
ças ocorridas na estrutura do corpo como resultado de enfermidades. No final do século XVIII, os es-
tudos sobre o tema ficaram em evidencia devido a obras como "Um Tratado sobre Medicina Forense e
Saúde Pública" pelo médico francês Francois Immanuele Fodéré e "O Sistema Completo de Medicina
da Polícia" pelo médico perito alemão Johann Peter Frank.

Como os valores racionais da época do Iluminismo estavam cada vez mais permeado a sociedade do
século XVIII, a investigação criminal tornou-se um procedimento mais baseado em evidências, racional
— o uso de tortura para forçar confissões foi reduzido e a crença em bruxaria e poderes ocultos deixa-
ram de influenciar as decisões de tribunais.

Áreas científicas relacionadas

Agentes do CID, Estados Unidos, numa investigação de um crime.

Antropologia forense

Fonoaudiologia forense

Computação Forense

Biologia forense

Bioquímica forense

Botânica forense

Entomologia forense

Genética forense

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Hematologia forense

Histologia forense

Geologia Forense

Enfermagem forense

Medicina forense

Odontologia legal

Psiquiatria forense

Traumatologia forense

Asfixiologia forense

Toxicologia forense

Tanatologia forense

Química forense

Forense computacional

Matemática forense

Papiloscopia forense ou Datiloscopia forense

Balística forense

Cultura popular

Uma das primeiras séries de televisão que se focaram na premissa de análise científica de evidencias
foi Quincy, M.E. (baseado em uma série canadense intitulada Wojeck), onde o personagem principal é
um médico legista que trabalha em Los Angeles resolvendo crimes através de um estudo cuidadoso
das provas. A abertura de cada episódio se inicia com o personagem principal, interpretado por Jack
Klugman, dizendo em uma palestra para policiais "Senhores, vocês estão prestes a entrar na esfera
mais fascinante do trabalho policial, o mundo da medicina forense". Posteriormente surgiram séries
com premissas semelhantes, como Dexter, The Mentalist, CSI, Hawaii Five-0, Cold Case, Bones, Law
& Order, Body of Proof, NCIS, Criminal Minds, Silent Witness, Detective Conan e Midsomer Murders,
onde retratam versões glamorizadas das atividades dos cientistas forenses do século XXI.

As Ciências Forenses são um conjunto de componentes ou áreas, como a Antropologia, Criminologia,


Entomologia, Ondotologia, Patologia, Psicologia e Medicina Legal, que em conjunto, actuam de modo
a resolver casos de carácter legal. A Ciência Forense não é uma ciência única. Esta está dependente
de todas áreas que sejam necessárias em casos específicos.

A ciência forense é utilizada para a análise de vestígios principalmente em crimes violentos. Utiliza-se
material biológico como sangue, cabelo, sémen, e outros tecidos mais frequentemente encontrados
nas cenas do crime. Estes chegam a um laboratório criminal de várias formas e é necessária uma
extrema cautela para prevenir contaminações na hora de identificar. Dada a alta exactidão e natureza
sensível das investigações forenses, é possível colher e conservar melhor uma evidência biológica. Os
investigadores e os profissionais de laboratório usam todo o tipo de materiais para manipular as evi-
dências a fim de evitar o contacto com os vestígios recolhidos e de modo a não haver contaminação
(adulteração dos vestígios) dos mesmos. Os detalhes são um ponto importante no que diz respeito à
observação e tratamento de vestígios.

Áreas da Ciência Forense

Dependendo do tipo de casos e das características do meio em que são cometidos os crimes, a equipa
de investigadores varia, sendo constituída por especialistas nas mais diversas áreas como as que aqui

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estão referidas:

· Antropologia

· Entomologia

· Odontologia

· Patologia

· Psicologia

· Criminologia

· Medicina Legal

Genética Forense: a importância do DNA

Os avanços nas tecnologias de DNA surtiram um enorme impacto no campo da ciência forense. Com
uma incrível sensibilidade e um alto poder de discriminação, a analise de DNA tem sido uma poderosa
ferramenta para a identificação humana (ex: testes de paternidade) e investigações criminais.

Técnicas mais utilizadas: (as técnicas estão descritas no relatório da visita ao Visionarium)

- Electroforese

- Reacção em cadeia da polimerase (PCR)

Em termos de aplicações forenses especificas, de tecnologias moleculares, nada teve um efeito mais
profundo do que a implementação global dos bancos de dados de DNA forense. Eles têm alterado a
paisagem do sistema de justiça criminal e remodelado o campo da ciência forense, principalmente por
fornecerem a oportunidade da identificação de indivíduos e resolução de casos em que não existem
suspeitos, e portanto, não existem amostras para serem comparadas com o material recolhido na cena
do crime. Com o fornecimento de novos desafios de mecanismos pelos quais as provas forenses po-
dem ser utilizadas, o ónus de responsabilidade daqueles que administram o seu uso, tem aumentado.

Os bancos de dados necessitam de um nível apropriado de sofisticação e também um bom suporte


legislativo, político e financeiro.

A Atividade Pericial

O laudo pericial é uma opinião especializada de um profissional habilitado, para solucionar discórdias
em discussões judiciais. É um dos meios de prova utilizados pelo juiz para proferir a sentença. Poderá
incluir variadas matérias: medicina, engenharia, informática, meio ambiente etc. Diante de matéria téc-
nica que exige conhecimentos especializados, o juiz pedirá um laudo ao especialista respectivo. Difere
do parecer, que é uma mera resposta à consulta de uma das partes sobre dados pré-existentes.

O atestado fornecido por médico particular não substitui o laudo para comprovação da materialidade
em processo criminal.

As perícias de natureza criminal devem ser realizadas preferencialmente nas instituições médico-le-
gais. Na inexistência delas, as perícias podem ser realizadas por médicos ou profissionais liberais de
nível superior na área de saúde, dentro da área.

Nas acções penais, o laudo médico-legal não é um documento sigiloso. O laudo médico-legal é uma
peça pública, como o boletim de ocorrência e o inquérito policial no qual ele é anexo. Quando a autori-
dade policial acredita que a sua divulgação pode prejudicar as investigações, solicita ao juízo o segredo
de Justiça sobre o caso.

As perícias podem ser realizadas nos:

Vivos

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· Diagnóstico de lesões corporais;

· Determinação de idade, de sexo e de grupo racial;

· Diagnóstico de gravidez, parto e puerpério (fase pós-parto);

· Diagnóstico de conjunção carnal ou actos libidinosos em casos de crimes sexuais;

· Estudo de determinação da paternidade e da maternidade;

· Comprovação de doenças profissionais e acidentes de trabalho;

· Evidências de contaminação de doenças venéreas ou de moléstias graves;

· Diagnóstico de doenças ou perturbações graves que interessam no estudo do casamento, da sepa-


ração e do divórcio;

· Determinação do aborto.

Cadáveres

· Diagnóstico da causa da morte;

· Tempo aproximado da morte;

· Identificação do morto;

· Diagnóstico da presença de veneno no corpo, retirada de um projéctil, ou qualquer outro procedimento


que seja necessário.

Esqueletos

· Identificação do morto;

· Quando possível, determinar a causa da morte.

Objectos

Não são raras as vezes em que se pede a identificação de:

· Pêlos;

· Exames de armas e projécteis;

· Levantamento de impressões digitais;

· Pesquisas de esperma;

· Leite, colostro, sangue, líquido amniótico, fezes, urina, saliva e mucosidade vaginal (nas roupas, mó-
veis ou utensílios)

Geologia Foorense

A Geologia Forense está relacionada com a utilização de princípios, práticas e procedimentos geológi-
cos no âmbito da investigação criminal. Para o efeito, um geólogo forense identifica, analisa e compara
materiais geológicos, tais como o solo, rochas, minerais e fósseis encontrados num receptor (e.g. um
suspeito, um veículo ou outro meio de transferência, tal como a água) para possíveis áreas de origem
(e.g. uma cena de crime ou um local de álibi). O objectivo deste tipo de comparações é estabelecer o
grau de probabilidade do local de origem do material; e assim, associar ou desassociar uma pessoa ou
objecto com determinada localização.

Noutros casos, a comparação dos materiais geológicos ou seus derivados é utilizada para determinar
o tempo, a causa ou a responsabilidade dum incidente. Daí que a geologia forense seja uma excelente
ferramenta auxiliar da investigação criminal e, como tal, todas as subdisciplinas das geociências têm

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uma potencial aplicação forense. Porém, a sedimentologia, a mineralogia, a petrologia, a geoquímica,


a paleontologia e a geofísica, foram as que deram maiores contributos até este momento. Os métodos
de prospecção geofísica têm sido amplamente utilizados por arqueólogos forenses para localizar e
caracterizar sepulturas clandestinas e objectos enterrados, tais como drogas e armas. Contudo, a apli-
cação mais amplamente reconhecida da geologia forense é o uso dos materiais geológicos como ves-
tígios que podem ser utilizados para ligar um suspeito a uma cena de crime. Na literatura forense e
legal, os sedimentos, o solo, a poeira e os fragmentos de rochas têm sido frequentemente agrupados
num único termo: “vestígio geológico”. Em Portugal, esta ciência forense encontra-se a dar os primeiros
passos, existindo actualmente muito poucos estudos nesta área.

Breve História Da Geologia Forense

A potencial contribuição do estudo das rochas, minerais e sedimentos para investigações criminais é
reconhecida há mais de um século, mas os seus protagonistas não eram, de facto, geólogos. Em 1893,
no seu “Hanbuch fur Untersuchungsrichter” (ou Handbook for Examining Magistrates), Hans Gross, um
professor de criminologia austríaco, enunciou a “poeira” do calçado dum suspeito como um possível
indicador dos seus movimentos. Em 1908, foi o químico alemão Georg Popp, o primeiro investigador a
considerar o solo como uma evidência/vestígio, resolvendo o homicídio de Eva Disch. Este professor
reconstruiu os movimentos do suspeito, analisando a poeira encontrada nos sapatos: a camada supe-
rior, portanto, a mais antiga, continha fezes de ganso e outros materiais geológicos que foram compa-
rados com os encontrados no passeio fora de casa do suspeito.

A segunda camada continha fragmentos de arenito vermelho e outras partículas que foram comparados
com as amostras da cena em que a vítima havia sido encontrada. A camada mais baixa, portanto, a
mais jovem, continha tijolo, pó de carvão, cimento e toda uma série de outros materiais que foram
comparados com as amostras dum local em redor dum castelo, onde a arma do crime e as roupas do
suspeito tinham sido encontradas. O suspeito afirmou que tinha andado apenas nos campos no dia do
crime, todavia esses campos continham quartzo leitoso, mas Popp não encontrou este tipo de material
nos sapatos, apesar de o solo ter sido molhado nesse mesmo dia, por isso, comprovou que o suspeito
estava a mentir.

Também nesta época, o escritor inglês de ficção, Sir Arthur Conan Doyle, criador literário do investiga-
dor Sherlock Holmes, empregou igualmente a comparação do solo em um dos três casos em que ele
se tornou um investigador da vida real. O trabalho destes homens teve uma importante influência sobre
Edmund Locard, inicialmente um estudante de medicina legal, que mais tarde passou a ser director do
Laboratório de Polícia Técnica em Lyon, França, o qual desenvolveu os primeiros pormenores sobre
os procedimentos científicos para a análise de vestígios de poeira e estabeleceu o princípio de troca
de Locard, tão famoso nos cientistas forenses: “Entre o autor e o local do crime há sempre troca de
elementos”.

Apesar de todo este trajecto, só em 1975 é que se assiste à edição do primeiro livro sobre esta ciência,
daí que o domínio da relação da geologia com a ciência forense se tenha mantido envolto em mistério
durante muitos anos. Embora a interacção do Homem com o ambiente envolvente seja objecto de
constante estudo por parte dos cientistas físicos, ainda existe, actualmente, pouca literatura relativa a
esta área. Isto, não obstante, durante a primeira metade do século XX, os governos e estabelecimentos
de ensino da Suíça, França, Alemanha, Reino Unido e Estados Unidos da América terem começado a
desenvolver laboratórios de investigação especializados, para analisar vestígios geológicos no âmbito
forense.

Nas últimas duas décadas, a importância da geologia forense aumentou de forma constante, sendo
aplicada não só para ligar suspeitos a casos criminais, mas também para rastrear a procedência das
drogas ou mercadorias contrabandeadas, incluindo a fauna, explosivos e reconstruir e desvendar os
crimes de guerra, bem como as possíveis aplicações para detectar atentados contra o ambiente. Outra
nova área de desenvolvimento da geologia forense é a sua utilização no domínio da “intelligence”. Uma
pessoa pode afirmar, por exemplo, que nunca foi a um determinado local, mas depois é encontrada
com sedimentos desse ponto, o que a vai ligar a uma localização geográfica. Quem não se lembra do
afloramento que existia atrás de Osama Bin Laden na TV, após o 11 de Setembro? Qual era a locali-
zação? Um geólogo que fizesse trabalho de campo nessa área facilmente seria capaz de localizar o
afloramento, e isso actualmente já acontece, por exemplo, o geólogo John Shroder foi capaz de iden-
tificar a região onde Bin Laden havia sido avistado no Afeganistão em 2001 (ver Geotimes, Fevereiro
de 2002).

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O futuro da Geologia Forense aparenta ser muito promissor, contudo, para que tal seja possível e assim
surjam novas oportunidades, torna-se necessário que sejam operadas muitas mudanças. Novos méto-
dos estão a ser desenvolvidos para se tirar partido do poder inerente de discriminação dos materiais
geológicos. A difracção de raio-X pode revolucionar o exame de solo em termos forenses e, quando os
laboratórios tomarem este tipo de técnica como rotina, será possível efectuar uma análise mineralógica
quantitativa que é facilmente reprodutível. Apesar disso, o microscópio ainda continuará a ser uma
ferramenta importante na identificação de um grão invulgar ou de um artefacto. Os métodos de amos-
tragem, a formação sólida e completa das pessoas que recolhem amostras para fins forenses, terão
que ser aperfeiçoados.

A Utilidade Da Geologia Forense

Em toda a parte, porque os tamanhos, tipos e distribuição dos materiais terrestres são tão variados, a
probabilidade de um material geológico ser de um local único é elevada, portanto, o valor probatório
destes materiais é de extrema importância na maioria dos casos. Tal valor está directamente relacio-
nado com o número quase ilimitado de tipos de materiais e com o grande número de medições e ob-
servações que se podem efectuar sobre estes materiais, pois existe uma grande variedade de minerais,
rochas e fósseis que são identificáveis, reconhecíveis e que podem ser caracterizados. É esta diversi-
dade de materiais geológicos, combinada com a capacidade de medir e observar os diferentes tipos,
que fornece o poder da discriminação forense.

Existem muitas questões/situações em que as técnicas, procedimentos e os dados geológicos podem


ser aplicados no âmbito forense, nomeadamente:

Se esteve presente um determinado indivíduo, ou veículo, ou item num determinado local (por exem-
plo, cena de crime);

Qual foi a sequência e, se possível o tempo, da visita a esse local e provavelmente a outros;

A localização de objectos enterrados (por exemplo, cadáveres, armas, drogas, etc.);

A fonte de itens importados/contrabandeados;

A causa da morte (especialmente em casos de um possível afogamento ou asfixia);

A origem geográfica de restos humanos não identificados;

A duração de tempo que um organismo está num determinado local e a duração do intervalo post-
mortem.

Os fragmentos de rocha, sedimentos, solos e poeiras podem estar presentes em toda uma variedade
de itens de interesse, mas os mais frequentemente submetidos a laboratório para exame de um crime
são: roupas, calçados, veículos, materiais para pisos, utensílios de escavação, filtros para máquinas
de lavar, sacos de polietileno em que os itens tenham sido armazenados, armas de fogo, facas, etc. As
amostras associadas com o corpo humano também são às vezes sujeitas a exame, nestas incluem-se
raspagem dos dedos e das unhas, lavagens do cabelo, passagens nasais, traqueia e pulmões, o con-
teúdo do trato gastrointestinal e fezes.

Existe na literatura, alguns factos descritos sobre a utilização dos vestígios geológicos como ferramen-
tas auxiliares da investigação criminal, levando o seu estudo a resolução de crimes, um exemplo disto
foi o “13th INTERPOL Forensic Science Symposium” que decorreu em Outubro de 2001 em Lyon,
França, onde foi apresentado um artigo que ostenta um resumo dos relatórios sobre as evidências
geológicas desde 1998, tendo sido relatados vários casos resolvidos devido ao exame forense deste
tipo de vestígios.

Por exemplo, em Iwate no Japão, num caso de homicídio foi encontrado um corpo de uma vítima en-
terrado numa praia. Perante isto, foram recolhidas amostras de solo do veículo dum suspeito e areia
da praia (amostra controlo) para se efectuar análises e posteriormente realizar-se a comparação entre
as amostras. Os resultados expuseram um valor inusitado de um mineral denominado por augite em
ambas as amostras recolhidas, tanto no veículo do suspeito como na praia e, para além disso, grande
parte destas partículas de augite estavam caracterizadas por grandes cristais (1-2 mm) e abarcavam
inclusão distintiva, levando a que a observação destes cristais efectuasse a ligação do suspeito com a

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vítima, realçando assim, o potencial forense na análise dos solos.

Na maioria dos casos, para se realizar comparações entre amostras de solo provenientes de uma cena
de crime e uma amostra suspeita, seja ela recolhida num cadáver, num veículo ou mesmo num calçado,
é necessário efectuar vários tipos de análises, por exemplo, crivagem, difracção a laser, estudo da
mineralogia da amostra total, estudo dos minerais de argila em lâminas sedimentadas, estudo da mi-
neralogia da fracção densa (Quadro 1), etc., para que os resultados conquistados sejam consistentes.
Isto porque, contrariamente ao que acontece com outros países, Portugal não dispõe ainda, de um
equipamento designado por QUEMSCAN (Quantitative Evaluation of Minerals by Scanning Electron
Microscopy), que possibilita, com apenas uma pequena porção de solo, adquirir vários resultados num
tempo reduzido realizando meramente uma única análise. O QEMSCAN é um sistema automatizado
de análise mineral e baseia-se na microscopia electrónica de varrimento, sendo esta técnica ampla-
mente utilizada não só na geologia sedimentar, mas também em muitos ramos da ciência forense. Este
sistema utiliza várias tecnologias para analisar minerais e permite obter: as imagens das partículas, as
associações minerais, a estimativa dos grãos e o tamanho das partículas, as características do minério,
a moda mineralógica das amostras, etc.

Existem vantagens e limitações para todas as técnicas de análise mineral disponíveis, mas esta técnica
tem demonstrado ser bastante consistente, na medida em que podem ser recolhidos grandes quanti-
dades de dados mesmo a partir de amostras muito pequenas e a aquisição dos dados é extraordinari-
amente rápida.

Este tipo de equipamento poderia ser uma opção futura para obter análises de solo das cenas de crime,
contribuindo para isso para um grande desenvolvimento das ciências forenses e, em especial, da geo-
logia forense em Portugal.

Quadro 1: Exemplos de minerais da fracção densa (adaptado de Reis, 2010).

A Geologia Forense Em Portugal

Em Portugal, a geologia forense encontra-se numa fase embrionária, contudo já existem estudiosos e
entidades científicas que começam a desenvolver alguns trabalhos e projectos nesta área. Alguns
exemplos disto são: a criação de uma base de dados de sedimentos para aplicações forenses, desen-
volvida por investigadores da Universidade do Porto, Centro de Geologia, Departamento de Geociên-
cias, Ambiente e Ordenamento do Território da Faculdade de Ciências.

Com vista à constituição de uma base de dados para aplicação forense, com as características dos
sedimentos e solos de Portugal Continental, foram amostradas praias (praia e duna), foz de rios, cabe-
delos e restingas de norte a sul de Portugal Continental. As amostras recolhidas foram analisadas
através de várias técnicas analíticas e efectuados diversos estudos para avaliar que propriedades (cor,
distribuição granulométrica, composição química e susceptibilidade magnética) dos sedimentos são

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mais adequadas para a discriminação entre as áreas amostradas e amostras recolhidas; os Mestrados
em Geologia (Faculdade de Ciências) e em Ciências Forenses (Faculdade de Medicina), na Universi-
dade do Porto, que contêm a disciplina geologia forense, onde se pretende que os alunos adquiram
conhecimentos científicos e técnicos no campo da amostragem e análise de materiais que se relacio-
nam directamente com as ciências forenses, tais como: solos, sedimentos, minerais, fragmentos de
rocha, pigmentos, gemas, entre outros e, ainda na avaliação, interpretação, apresentação e explicação
das provas geológicas, a fim de promover as melhores práticas na sua futura aplicação; o GIGPAF –
Grupo de Investigação em Geologia e Palinologia Forenses, afecto à Faculdade de Ciências da Uni-
versidade do Porto; A dissertação intitulada “ A análise palinológica e mineralógica de solos portugue-
ses e o seu potencial forense”, apresentada à Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias
para a obtenção do grau de Mestre em Biologia, realizada conjuntamente com o Departamento de
Ciências da Terra (laboratório de sedimentologia) da Universidade de Coimbra, onde foi efectuada pela
primeira vez a comparação de duas regiões distintas de Portugal (distrito de Coimbra e distrito de Se-
túbal), relativamente à sua composição palinológica e mineralógica, com o intuito de comprovar o po-
tencial forense deste tipo de amostras; entre outras.

Criminalidade Urbana

Inquietações Públicas E Preocupações Científicas

No Brasil, desde o início da década de 70, ao menos nas grandes cidades brasileiras, a existência de
crianças e de adolescentes vagando pelas ruas, mendigando, vigiando veículos estacionados nas ruas,
vendendo balas e doces junto aos semáforos, via de regra em troca de pequenas somas de dinheiro,
vem sendo percebida como problema social.2 Pouco a pouco, uma opinião pública inquieta, certa-
mente influenciada pelo impacto que o rápido crescimento da criminalidade urbana violenta exerceu e
vem exercendo sobre o comportamento coletivo, passa a suspeitar de um envolvimento crescente e
inexorável desses jovens com o crime, principalmente daqueles procedentes dos setores mais paupe-
rizados das classes trabalhadoras.

De fato, um rápido exame das sondagens de opinião pública indica que o crime constitui, na atualidade,
uma das principais preocupações na agenda dos mais urgentes problemas sociais com que se defronta
o cidadão brasileiro. Não são poucos aqueles que têm uma história a ser contada: já foram vítimas de
alguma ofensa criminal, especialmente furtos e roubos. Nesses acontecimentos, não é raro apontar-se
a presença de jovens. As imagens veiculadas pela imprensa e pela mídia eletrônica, cada vez mais
frequentes e cotidianas, pintam cenários dramáticos com cores muito fortes: a de jovens, alguns até no
limiar entre a infância e a adolescência, audaciosos, violentos, dispostos a tudo e prontos para qualquer
tipo de ação, inclusive matar gratuitamente.

A introdução de recentes mudanças na legislação de proteção às crianças e adolescentes tem contri-


buído para acirrar o debate público e mesmo polarizar as opiniões a propósito das soluções possíveis
para conter a delinquência juvenil. A partir da Constituição de 1988, desenhou-se uma nova política de
proteção e de atendimento à infância e à adolescência, que, ao contrário da anterior, considera crianças
e adolescentes titulares de direitos: direito à existência digna, à saúde, à educação, ao lazer, ao traba-
lho e sobretudo ao amparo jurídico. Dois anos mais tarde, os preceitos constitucionais foram regula-
mentados através da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, a qual revogou o Código de Menores (1979)
e instituiu o Estatuto da Criança e do Adolescente — ECA.

Desde sua edição, o ECA vem sendo objeto de ampla polêmica. Para alguns, é visto como instrumento
eficaz de proteção e de controle social. Em posição diametralmente oposta, encontram-se aqueles que
suspeitam ser o ECA instrumento legal inaplicável à sociedade brasileira, pois, segundo seus argumen-
tos, a criminalidade juvenil vem crescendo porque os jovens delinquentes não são punidos ou, quando
o são, as medidas socioeducativas são brandas comparativamente à gravidade das ocorrências polici-
ais, entre as quais roubos, homicídios, estupros, tráfico de drogas, porte de armas.

Uma avaliação da eficácia deste instrumento legal exige conhecimento prévio a respeito da magnitude
e evolução da delinquência juvenil. Não obstante o recente acúmulo de estudos e pesquisas brasileiros
sobre o envolvimento de jovens com o mundo da rua e da delinquência (Fundação Seade e NEV/USP,
1995; Adorno, R. 1997; Cardia, 1997; Gregori, 1997; Soares et alii, 1996; Peralva, 1992 e 1996; Zaluar,
1994), pouco ainda se sabe sobre a evolução dessa delinquência no tempo, seu impacto no sistema
de justiça da infância e da adolescência e, em especial, quanto ao efetivo alcance das medidas adota-
das pelo poder público em suas atribuições de conter o crime juvenil no contexto do Estado de Direito.

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A pesquisa realizada, que pretendeu justamente cobrir essas lacunas, constitui prosseguimento de
projeto anterior, cujos resultados preliminares já foram divulgados (Adorno et alii, 1998). Esses resul-
tados indicaram que, no período considerado (1988-1991) e no município enfocado (São Paulo), o
envolvimento de jovens com o crime violento obedece ao mesmo padrão observado para a população
em geral. Em outras palavras, os jovens não são nem mais nem menos violentos do que o comporta-
mento agressivo da população em geral.

No entanto, há fortes suspeitas de que, em virtude de recentes mudanças no consumo e tráfico de


drogas, esse comportamento tenha se alterado muito rapidamente, evoluindo na direção de um cresci-
mento acentuado do crime juvenil violento. O propósito de atualizar os dados da pesquisa visou justa-
mente responder a esta inquietação social.

Para tanto, a pesquisa identificou três grandes objetivos. Em primeiro lugar, procurou-se comparar
quantitativamente entre os dois períodos estudados (1988-91 e 1993-96), as ocorrências policiais pra-
ticadas por adolescentes, segundo a natureza da infração penal, na cidade de São Paulo. Em decor-
rência, comparou-se a magnitude das ocorrências de natureza violenta que envolviam adolescentes
com a das ocorrências policiais deste tipo, na população em geral, registradas neste município, em
ambos períodos considerados.

Um segundo objetivo buscou identificar o perfil social do adolescente autor de infração penal, selecio-
nando-se, para tanto, as seguintes variáveis: sexo, cor, idade, naturalidade, escolaridade e ocupação
nos dois períodos observados. Por fim, um terceiro objetivo consistiu em examinar as medidas judiciais
aplicadas aos processos selecionados. É justamente o cumprimento desse objetivo que constitui, por
assim dizer, a "essência" desta investigação, permitindo conhecer, sob um determinado ângulo, o modo
como o Estado tem operacionalizado suas diretrizes de controle repressivo da ordem social e ao
mesmo tempo como tem procurado oferecer proteção, assistência e amparo à infância e à adolescên-
cia, em especial àqueles envolvidos com a criminalidade violenta.

Em termos metodológicos, o universo empírico da atual pesquisa compôs-se de uma amostra, estatis-
ticamente representativa, de todos os adolescentes infratores, na faixa etária de 12 a 18 anos incom-
pletos,3 processados nas 1ª, 2ª, 3ª e 4ª Varas Especiais da Infância e da Juventude da Capital, entre
1993 e 1996. A amostra compreendeu 3.893 adolescentes infratores, os quais, após a coleta dos da-
dos, revelaram uma média de 1,6 passagem por adolescente, ou seja, um total de 6.343 ocorrências
envolvendo adolescentes.4 Convém sublinhar que, na pesquisa anterior (1988-91), a média detectada
foi de 1,4 passagem por adolescente, correspondendo a um universo de 5.425 ocorrências.

A despeito dos objetivos abrangentes da pesquisa, este artigo enfoca tão-somente os resultados rela-
tivos à participação dos adolescentes no movimento da criminalidade. Inicialmente, aborda-se a cons-
trução social da delinquência juvenil como problema e, em seguida, são explorados mais detidamente
os resultados empíricos da investigação.

Adolescência E Criminalidade

A associação entre adolescência e criminalidade não é inquietação exclusivamente própria de socie-


dades com acentuadas desigualdades sociais e em que as políticas sociais governamentais, ainda que
se esforcem por minimizá-las, não logram assegurar direitos sociais fundamentais para grandes parce-
las da população urbana ou rural, cujo ônus recai preferencialmente sobre crianças e adolescentes,
como sugerem vários estudos (Araújo, 1996; Faria, 1992; Hoffman, 1992; Singer, 1996). Mesmo em
sociedades caracterizadas por elevados indicadores de desenvolvimento humano, condições e quali-
dade de vida, a preocupação com o envolvimento de crianças e adolescentes com o mundo do crime
não é recente e revela, não raro, traços não muito distantes do modo como o problema é percebido e
enfocado na sociedade brasileira contemporânea. Tanto nos Estados Unidos e Canadá quanto em
vários países europeus — especialmente, Inglaterra, França, Alemanha e Itália —, essas inquietações
sociais têm sido constantes desde a segunda metade do século XIX, embora adquiram colorido mais
dramático em determinadas conjunturas histórico-sociais.

Desde o clássico estudo de Ariès (1973), sabe-se que a infância e a adolescência constituem constru-
ções sociais e históricas. Segundo esse historiador, infância e adolescência inexistiam durante a Idade
Média (conquanto essa tese venha sendo contestada por recentes estudos históricos). A representação
da adolescência como uma etapa intermediária entre a infância e a vida adulta é fenômeno contempo-

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râneo à emergência e à consolidação da sociedade moderna em fins do século XVIII, no mundo euro-
peu ocidental. Emancipado e concebido como etapa preparatória da vida adulta, o corpo adolescente
é então esquadrinhado por uma série de discursos — médicos, psicológicos, sociológicos, religiosos,
pedagógicos, jurídicos e policiais —, que percorrem suas dimensões físicas, psíquicas, sexuais e mo-
rais, buscando definir uma identidade própria (Foucault, 1975 e 1979; Levi e Schmitt, 1994).

Conforme apontam inúmeras análises históricas e sociológicas, a emergência da adolescência — seja


como acontecimento no interior dos saberes, inclusive científico, seja como acontecimento que perturba
o cotidiano das relações inter-subjetivas entre pais e filhos, entre parentes e pessoas conhecidas —
resulta de complexos processos de mudança social. Em parte tem a ver com mudanças que incidiram
na estrutura e organização da família enquanto instituição civil, motivadas sobretudo pelas novas for-
mas de inserção de seus membros — pai, mãe e filhos — no mundo do trabalho urbano industrial
(Perrot, 1996). Em grande parte tem a ver também com a progressiva universalização do acesso à
escola básica, especialmente pública, estimulando a criação de novos padrões de necessidades sociais
(Caron, 1996). Ademais, o acentuado desenvolvimento do individualismo filosófico, político e religioso
exerceu igualmente seu peso e influência. Na Europa, em fins da primeira metade do século XIX, esse
conjunto de mudanças acabou promovendo certo isolamento da família. Internamente, diferenciaram-
se suas esferas íntima, doméstica, privada e pública, repercutindo na proximidade e na distância, no
adensamento e na formalidade das relações intra-familiares (Perrot, 1997).

É também neste contexto discursivo e de fatos sociais que a adolescência é construída como pro-
blema e, enquanto tal, fonte de preocupações e inquietações sociais. Por um lado, enfoca-se o adoles-
cente como objeto de atenção especial e especializada: restringem-se suas horas de trabalho fabril;
regulamenta-se a educação compulsória; desenvolvem-se programas próprios de lazer e ocupação do
tempo livre, ao que tudo indica raiz primária das chamadas culturas juvenis.

Neste cenário, o adolescente vai adquirindo cada vez maior autonomia, especialmente nas grandes
metrópoles industriais. Ele passa a ser reconhecido como portador de um querer próprio que precisa
ser respeitado nos mais distintos aspectos da vida pessoal independente: escolha profissional, vestu-
ário, consumo, lazer, iniciação e atividade sexual. Mas, por outro lado, essa mesma autonomia é vista
como fonte de riscos,5 entre os quais, talvez o mais temido, seja o envolvimento com o mundo do crime
e da violência.

A descoberta da adolescência como problema é, portanto, contemporânea da associação entre juven-


tude6 e delinquência. Neste domínio, o marco teórico constitui o modelo storm and stress ("agitação e
tensão"), formulado originalmente pelo psicólogo americano Stanley Hall, para quem a adolescência
era concebida como um período de "agitação hormonal" durante o qual adolescentes tanto requeriam
liberdade para dar vazão a seu potencial explosivo quanto reclamavam maior controle para incutir-lhes
disciplina social (apud Newburn, 1998). Na esteira desse modelo, surgem desde as primeiras décadas
deste século, sobretudo nos Estados Unidos, várias teorias sociológicas que tenderam a conceber a
delinquência juvenil como resultado de um contexto social carente de autocontroles e de controles
sociais, especialmente aqueles exercidos pelos pais.

Igualmente, precárias condições de vida social eram responsabilizadas pela pobreza de oportunidades
de inserção social aos jovens, sobretudo precária oferta de serviços de lazer e ocupação do tempo livre
de forma considerada socialmente construtiva. Acreditava-se ser essa a razão pela qual não poucos
adolescentes, imersos na pobreza que grassava nas grandes metrópoles americanas e privados de
viver sob adequadas condições sociais de existência, associavam-se às quadrilhas e bandos locais.
Socialmente percebidas como fonte de inesgotáveis conflitos entre os jovens e suas comunidades,
essas formas de associação pareciam estar na origem da escalada da criminalidade violenta que se
observou nos Estados Unidos, desde o início deste século, e na Europa, notadamente a partir do final
da II Guerra Mundial.

Sejam quais forem suas efetivas razões, o certo é que desde essa época consolidaram-se quatro esti-
los, por assim dizer, de falar algo sobre a delinquência juvenil. Em primeiro lugar, uma acentuada pre-
ocupação em cotejar mito e realidade. O quanto existe de compatibilidade ou de descompasso entre o
sentimento geral de insegurança, que em determinados momentos e em conjunturas determinadas
parece se acentuar, e o efetivo movimento de registros de ocorrências criminais provocadas por ado-
lescentes e jovens? Afinal de contas, quem são esses personagens: anjos ou demônios? Vítimas ou
algozes? Carentes de proteção social e legal ou carentes de sanção penal rigorosa?

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Parte da literatura e do debate enveredou por esse caminho. Baseadas em sondagens de opinião e
sobretudo em observação de notícias veiculadas na mídia cotidiana, muitas análises tenderam a acen-
tuar o predomínio de representações sociais que fortaleciam verdadeiro pânico social. Associados fre-
quentemente às imagens de carência emocional, de irresponsabilidade, de liberdade incontrolável, de
permissividade inclusive sexual, de negligência e imaturidade, de vulneráveis às más influências do
meio circundante (Muncie, 1999), adolescentes envolvidos com o mundo do crime e da violência não
raro estimularam verdadeiras campanhas moralizatórias.

Unindo distintos agentes e agências sociais — o pedagogo e a escola, o sociólogo e as agências de


controle social, o religioso e as instituições filantrópicas, o psicólogo e as instituições de reparação
social, o jurista e as agências de contenção repressiva do comportamento —, essas campanhas pre-
tendiam conter a delinquência juvenil em níveis socialmente suportáveis, mesmo que, se necessário
fosse, se devesse recorrer a meios os mais rigorosos de restrição de liberdade individual.

Por isso também, uma segunda tendência da literatura foi a de concentrar estudos na observação
sistemática da evolução dessa forma de delinquência. Com base em estatísticas oficiais, cuja confiabi-
lidade foi desde logo submetida à rigorosa crítica, inúmeros levantamentos periódicos realizados por
agências oficiais ou conduzidos por pesquisadores em universidades e centros de pesquisa procuraram
examinar tendências de longa duração. Imagens veiculadas pela mídia, impressa e eletrônica, cons-
troem cenários cada vez mais dramáticos: adolescentes audaciosos e violentos, destituídos de quais-
quer freios morais, frios e insensíveis que não hesitam em matar.

De tempos em tempos, a opinião pública é surpreendida com a notícia de homicídio, cometido contra
algum cidadão portador de maior projeção social, praticado por um adolescente no curso de um roubo.
Fatos desta ordem têm a propriedade de reforçar apreensões coletivas e consequentemente acentuar
preconceitos contra esses segmentos da população urbana. Nesses momentos, suspeita-se que o en-
volvimento de crianças e adolescentes com o crime venha se acentuando. Se, nesses tempos sombrios
de final de século, maior número de pessoas vem violando as leis penais é porque — assim dizem —
vem crescendo em ritmo acelerado e em elevadas proporções a participação de crianças e de adoles-
centes.

Em parte, levantamentos e estudos realizados na América do Norte e Europa corroboram essas sus-
peitas coletivas. Indagando se a violência "epidêmica" dos anos 90 constituía uma distorção resultante
de cobertura proporcionada pela mídia aos acontecimentos violentos do período ou se refletia real mu-
dança no comportamento de jovens, estudo realizado pelo Center for Study and Prevention of Violence,
da University of Colorado, observou que nos Estados Unidos:

- cresceram as taxas de jovens vítimas de violência, em especial no grupo etário de 12-15 anos;

- houve discreto aumento, em torno de 8% a 10%, no envolvimento de adolescentes em algum tipo de


grave ofensa violenta;

- tem se verificado um dramático crescimento nas taxas de homicídio contra adolescentes, desde 1988
(CSPV, 1994).

Tudo indica, por conseguinte, que a presença de jovens no mundo do crime e da violência revela duas
faces de uma mesma moeda: como autores e vítimas da violência dos outros.

Na mesma direção, um terceiro estilo de falar sobre adolescentes e violência é o de abordar suas
causas. Esse é seguramente um dos terrenos mais movediços e sujeito a debates não raro influencia-
dos por acirrado clima político-ideológico. Muitos estudos vêm se aprimorando nessa direção, bus-
cando isolar uma ou mais variáveis que, associadas entre si, responderiam por fortes estímulos à de-
linquência juvenil. Plano do governo federal americano, destinado a enfrentá-la, identifica cinco conjun-
tos de causas:

- influências individuais relacionadas à biografia pessoal, à inserção em grupos, ao desempenho de


lideranças, ao emprego do tempo livre e à saúde mental;

- influências familiares associadas, entre outros aspectos, aos conflitos entre pais e entre pais e filhos,
ao suporte financeiro e à educação proporcionados por pais e parentes, à iniciação sexual e à gravidez
precoces;

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- influências escolares que incluem não apenas inserção e participação regular nas atividades, como
também em programas especiais, tais como os de prevenção ao consumo de drogas e álcool;

- influências dos grupos de pares, particularmente inserção em gangues e quadrilhas tanto quanto me-
nor participação em atividades desportivas, menor dedicação a trabalho voluntário, menor frequência
a programas de mediação e resolução de conflitos;

- influências da vida comunitária, inclusive presença em áreas "isentas de aplicação sistemática de


leis" como sejam zonas que sediam o tráfico de drogas, o contrabando de armas e o comércio de
produtos roubados, a exploração da prostituição (Donziger, 1996; CSPV, 1994).

Nesse elenco de causas, não se poderia ignorar o argumento defendido por demógrafos que sustêm a
influência da youth wave ("onda jovem"), detectada ao longo desta década, que acontece "quando,
como resultado de uma dinâmica demográfica prévia, os grupos etários entre 15 e 24 anos experimen-
tam um crescimento excepcional" (Dellasoppa, Bercovich e Arriaga, 1999:170). Esse argumento sugere
que, em virtude da onda jovem, esse grupo etário não apenas estará à frente de uma série de fenôme-
nos novos — escolarização precoce, inserção precoce no mercado de trabalho, uniões conjugais e
constituição precoces de famílias —, formulando portanto novos desafios para as políticas sociais,
como também provavelmente estará na dianteira de tantos outros problemas, como delinquência, con-
sumo de drogas, desobediência civil.

A despeito da extensa discussão que este estilo de falar suscita, mormente porque os estudos ainda
não parecem completamente conclusivos quando muito aproximativos de uma causalidade que se afi-
gura complexa e multifacetada, expectativas em torno da descoberta das precisas causas da delin-
quência juvenil estimulam a formulação de programas de intervenção por parte de organizações gover-
namentais ou não-governamentais. São esses programas e planos de ação que alimentam um dos
eixos do imaginário onírico da sociedade moderna: o desejo de uma sociedade sem crimes e sem
violência e na qual os adolescentes se encontrassem plenamente ajustados às regras e aos modelos
de comportamento social considerados adequados do ponto de vista da moralidade pública e privada.
Não sem motivos, um quarto estilo de abordar as associações entre juventude e delinquência refere-
se às políticas públicas de controle social.

Duas tendências opostas têm caracterizado as políticas públicas nessa área. Por um lado, diferentes
sociedades do mundo ocidental têm procurado imprimir, em suas legislações nacionais, princípios e
recomendações de proteção à infância e à adolescência formuladas por organismos normativos inter-
nacionais, em particular desde início da década de 80. Tais princípios, materializados em recomenda-
ções e instruções normativas, compreendiam: "Regras de Beijing", aprovadas e adotadas pela Assem-
bléia Geral das Nações Unidas em 1985; a Recomendação R20, do Comitê dos Ministros da Europa,
de setembro de 1987; os Princípios de Ryadh, de 1990, para prevenção da delinquência juvenil; e as
Regras Mínimas das Nações Unidas para Proteção dos Menores Privados de Liberdade, também co-
nhecidas como Regras de Havana, de 1990.

Essas recomendações dirigiam-se a dois atores: governos signatários das convenções internacionais
e justiça especializada em crianças e adolescentes. Em linhas gerais, recomendavam investimentos
em recursos humanos especializados, em pesquisa e em avaliação de programas, em políticas sociais
capazes de assegurar direitos fundamentais e evitar tanto o abandono quanto a deriva para a delin-
quência. Recomendavam igualmente o concurso da sociedade civil organizada, particularmente atra-
vés de programas executados por organizações não-governamentais — ONGs.

Quanto à justiça especializada, as recomendações pretendiam restringir ao mínimo a intervenção legal,


privilegiando instrumentos de mediação, cumprimento de medidas socioeducativas em meio-aberto
monitoradas por agentes comunitários, entre outras iniciativas congêneres. As recomendações revela-
vam portanto uma clara inclinação por intervenções de tipo preventivo, voltadas para a proteção social,
em lugar de intervenções exclusivamente repressivas, que visavam conter o comportamento social de
adolescentes envolvidos com o mundo do crime e da violência. Sob esta perspectiva, atribuiu-se um
novo papel à justiça especializada enquanto "parte integrante do processo de desenvolvimento de cada
país, no quadro geral da justiça para todos os jovens" (Regras de Beijing, apud Lahalle, 1994:9).

Por outro lado, nesse mesmo período, à medida que as suspeitas de crescimento da delinquência
juvenil alcançam amplos segmentos da sociedade pós-industrial independentemente de clivagens so-
cioeconômicas e à proporção que as estatísticas oficiais tendem a ir de encontro a essas suspeitas,

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surgem cada vez mais e com maior força pressões no sentido de reverter as políticas liberais no trata-
mento dispensado aos adolescentes delinquentes. Tanto nos Estados Unidos quanto na Inglaterra, a
partir da segunda metade da década de 80, tenta-se viver sob a mais estrita observância de lei e ordem,
com repercussões em verdadeira revolução na justiça especializada em jovens.

Na Inglaterra, as mudanças mais significativas incidiram na aplicação das medidas adotadas as quais
tenderam a apertar o cerco em torno da restrição da liberdade para adolescentes envolvidos com o
crime. Seus efeitos não demoraram a se manifestar: declínio significativo da aplicação de medidas
custodiais, sobretudo aquelas que apelavam para programas de apoio comunitário; em contrapartida,
sensível elevação da aplicação de medidas de detenção em torno do tratamento que se convencionou
a chamar, no início da década passada, de short, sharp, shock ("curto, severo, chocante"). Tendência
análoga verificou-se nos Estados Unidos no mesmo período (Donziger, 1996). Na França, onde há
longa tradição de justiça especializada em infância e adolescência profundamente inspirada em princí-
pios liberais e nas convenções internacionais, recentemente colocou-se sob suspeição a pertinência e
oportunidade de políticas nitidamente preventivas, a favor de políticas de redução de riscos (Bailleau,
1997).

Nos Estados Unidos e Inglaterra, algumas análises inclinam-se a sustentar que o declínio das taxas de
delinquência juvenil, especialmente o envolvimento em crimes violentos, verificado ao longo dos anos
90 — a despeito do acentuado crescimento da violência fatal contra crianças e adolescentes —, tem a
ver ou mesmo resulta das políticas repressivas, do encarceramento massivo como resposta punitiva
para graves ofensas criminais. Não há, contudo, consenso a respeito. Outras análises apontam para
outras razões, entre as quais mudanças demográficas e no comportamento criminal em geral, bem
como o emprego de outras medidas como supervisão comunitária e sistemas de mediação que, pre-
vistas nos regulamentos e estatutos legais, também contribuíram para o declínio das taxas (Newburn,
1998).

Adolescentes No Movimento Da Criminalidade Urbana No Município De São Paulo

Estes quatro estilos de falar sobre a delinquência juvenil não estão ausentes do debate público e aca-
dêmico no Brasil. Em particular, em conjunturas em que os sentimentos coletivos de medo e insegu-
rança diante violência parecem exacerbados, estimulando o pânico moral contra suspeitos de comete-
rem crimes, acirram-se e radicalizam-se as posições pró e contra a adoção de políticas exclusivamente
repressivas, em especial destinadas aos adolescentes autores de infração penal. Nesse debate, re-
corre-se com frequência ao argumento de que os crimes praticados por esse segmento da população
estão crescendo acentuadamente sem que os poderes públicos disponham de instrumentos legais ca-
pazes de conter esse avanço. Não sem motivos, partidários dessas apreensões advogam adoção de
medidas rigorosas como detenção em massa, encarceramento por períodos mais longos e redução da
idade de maioridade penal.

O que há de mito e realidade nessas suspeitas? Afinal, a delinquência juvenil vem efetivamente cres-
cendo? Em caso positivo, em qual direção? O movimento e a evolução dessa delinquência acompa-
nham tendências mais gerais, existentes nesta e em outras sociedades do mundo ocidental ou revela
particularidades? É o que se pretenderá responder na exposição e análise dos resultados alcançados
com a pesquisa realizada.

Em linhas gerais, a análise da presença e participação dos adolescentes no movimento da criminali-


dade urbana, no Município de São Paulo, entre 1993 e 1996, revela sensíveis mudanças comparativa-
mente ao período anterior (1988-91). Quando se considera a natureza das infrações cometidas por
adolescentes, destacam-se as seguintes tendências: no período recente, houve aumento percentual
das lesões corporais e dos roubos e diminuição dos furtos. No entanto, não se pode dizer que estas
diferenças sejam significativas, pois os valores do período 1993-96 encontram-se dentro dos limites
dos intervalos de confiança.

As infrações contra o patrimônio cometidas por adolescentes infratores, entre 1993 e 1996, represen-
tam 51,1% (no período anterior correspondiam a 49,5%). Entre esses crimes, o roubo tomou a dianteira,
antes ocupado pelo furto. Os registros relativos ao uso e porte de drogas representam 4,3%, enquanto
aqueles referentes ao tráfico compreendem 2,9%. É muito pouco significativa a ocorrência de homicí-
dios (1,30%), embora essa modalidade de infração tenha a faculdade de exercer ampla mobilização da
opinião pública e estimular o imaginário coletivo de medo e insegurança. É significativo que 11,7% de
todos os registros refiram-se a lesões corporais resultantes de agressões, uma proporção quase três

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vezes maior do que o porte ilegal de armas e do que as infrações relativas ao porte, consumo e tráfico
de drogas.

Segundo a literatura especializada, este perfil de distribuição da delinquência juvenil acompanha ten-
dências mais gerais. Nos Estados Unidos, as prisões para infrações determinadas revelaram, em 1993,
a seguinte distribuição: enquanto 29,35% do total de infrações cometidas por jovens correspondiam a
crimes contra o patrimônio, apenas 0,16% referiam-se a homicídio (U.S. Departament of Justice, Fe-
deral Burreau of Investigation, Crime in the United States, 1993, apud Donziger, 1996:132). A mesma
fonte informa que o crime violento permaneceu estável, em torno de 13% de todas as ocorrências, no
período 1972-93.

Na Inglaterra, as tendências não são muito distintas, embora indiquem particularidades, com predomi-
nância também dos crimes contra a propriedade. Segundo a natureza, as infrações de maior incidência
são, pela ordem, furto, roubo com arrombamento e os crimes contra a pessoa, padrão que parece ter
se estabilizado durante uma década (1985-1995). Os casos de graves ofensas criminais são menos
frequentes. Entre 1979 e 1994, foram condenados 210 adolescentes, com 17 anos, por homicídio do-
losos e 220 por homicídio culposo. No entanto, constatou-se aumento de dois quintos no registro de
casos violentos, a partir de 1987 até 1993. Em contrapartida, o mesmo período registrou a decréscimo,
em idêntica proporção, nos casos de furtos. Portanto, quando justapostas ambas tendências, conclui-
se que o crime violento cresceu em ritmo mais acelerado e em proporção mais elevada do que há uma
década. De igual modo, observou-se aumento do registro oficial de casos de consumo de drogas a
partir de 1985 (Newburn, 1998).

Na França, enquanto a criminalidade em geral diminuiu cerca de 3% em 1996, o crescimento da delin-


quência juvenil foi da ordem de 14%. Entre 1974 e 1995, as infrações contra o patrimônio foram as de
maior incidência, mantendo-se estáveis ao longo do período. No entanto, destacam-se algumas signi-
ficativas mudanças: cresceram substantivamente as infrações referentes a destruições com o emprego
de meios perigosos (como incêndios), que passaram de 23,3% para 40,7% do total, entre 1974 e 1995;
aumentaram também o roubo praticado com emprego de violência (de 19,8% para 30,9%), o porte de
armas (de 8,3% para 14,2%), agressões e ferimentos (de 7,2% para 12,2%) e os homicídios (de 5,5%
para 7,1%). Observa-se, portanto, que na França igualmente constatou-se tendência de aumento das
infrações violentas (Aubusson de Cavarlay, 1997).

Há poucas informações sobre as tendências da delinquência juvenil no Brasil. Segundo Assis (1997),
no Rio de Janeiro, as infrações violentas cometidas por adolescentes passaram de 2.675 ocorrências,
em 1991, para 3.318, em 1996. Portanto, um crescimento da ordem de 25% em meia década. No
mesmo período, verificaram-se redução dos crimes contra o patrimônio e, em contrapartida, acentuado
aumento do envolvimento de adolescentes com as drogas, dos quais cerca de 70% mantêm algum
compromisso com o tráfico. Os homicídios representaram 1,3% de todas as infrações.

Um detalhado estudo sobre a delinquência juvenil na cidade de Ribeirão Preto, no Estado de São Paulo,
para 1974-96, adotou metodologia de pesquisa muito próxima daquela empregada nesta pesquisa, de
sorte que a comparação torna-se ainda mais sugestiva. Observou-se que as infrações contra o patri-
mônio foram as mais frequentes e representavam 40,88% dos processos infracionais investigados, no
período considerado, correspondendo a 28,09%, em 1974, e a 51,16%, em 1996. O furto aumentou
1,66 vez, conquanto tenha reduzido sua participação percentual se considerados o início e o fim do
período (31,84% e 20,09%, respectivamente em 1974 e 1996). Também registraram aumento de roubo
e extorsão (6,07 vezes); uso e porte de drogas (4,02 vezes); tráfico de drogas (23,75 vezes); lesão
corporal culposa (1,38 vez) (Silva, 1998).

Há que se abrir aqui um parênteses. Embora os dados e análises proporcionados quer pela literatura
especializada internacional quer nacional apontem crescente envolvimento de adolescentes no mundo
do crime violento, as mesmas fontes não cessam igualmente de apontar a crescente vitimização desses
segmentos. "Em essência, na atualidade os jovens são mais frequentemente vítimas da violência. (...)
Uma importante dimensão da violência juvenil tem claramente mudado. Os atos violentos de hoje são
mais letais, uma extensa proporção desses atos resulta em grave ofensa ou morte. O fato de que as
taxas de homicídio entre adolescentes mais do que dobrou desde 1988 (enquanto a taxa geral perma-
neceu estável) é impiedosa evidência do crescimento da letalidade. E este dramático aumento da leta-
lidade da violência juvenil é explicado quase inteiramente pelo crescimento do uso de armas nestes
desfechos violentos" (CSPV, 1994:1-2).

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No Brasil, esse fenômeno vem sendo confirmado por vários estudos e análises. Segundo o Suplemento
da PNAD (Fundação IBGE, 1990), no período de um ano, mais de 1 milhão de pessoas declararam-se
vítimas de agressão física. Desse universo, 19,48% eram crianças e adolescentes,11 sendo 66,05%
meninos e 33,95% meninas, na faixa etária de 0-17 anos. Considerando-se o agente agressor, crianças
e adolescentes foram vitimizadas principalmente por pessoas conhecidas (39,82%), por desconhecidas
(35,56%), parentes (19,01%) e policiais (4%). Pesquisa realizada pelo NEV-USP (Castro, 1993) revelou
que o número estimado de crianças e adolescentes assassinadas, no Estado de São Paulo, em 1990,
equivalia a 2,72 crianças por dia.

Esclarecedor estudo realizado por Souza (1994), da Fundação Oswaldo Cruz (RJ), apontou acentuado
crescimento dos homicídios entre jovens, no período 1980-88, no Brasil. Assim, foi da ordem de 79,5%
o aumento dos homicídios entre jovens com idade de 10 a 14 anos, para ambos os sexos. Para aqueles
na faixa etária de 15-19 anos, esse aumento não foi menos expressivo (45,3%). Com base nesses
resultados, assinala a autora: "a incidência de mortes por violência, em especial os homicídios, em
idades mais jovens reasseguram este grupo como o principal responsável por anos potenciais de vida
perdidos (APVPs). Dados da OPS (1986) mostram que, no Brasil, em 1983, os homicídios provocaram
544,5 APVPs (de 1 a 64 anos) por 100 mil habitantes, o que significa 33,0 APVPs por morte. Nos
Estados Unidos, esses valores foram de 258,8 e 32,4, respectivamente. Na população masculina do
Brasil, essa mesma causa foi responsável por 489,9 APVPs por 100 mil habitantes, ou 32,7 APVPs por
morte. Esses valores são também maiores que os observados nos Estados Unidos: 414,1 e 32,2, res-
pectivamente. Tais dados indicam que, aqui, os homicídios são mais frequentes e incidem em pessoas
mais jovens do que naquele país" (Souza, 1994:50). Sobre esse assunto, ver também o trabalho de
Gawryszewski (1995).

Análises ainda mais recentes vêm confirmando essas tendências. Prado Jorge (1998) observou que,
no Município de São Paulo, para os homens com 15 a 19 anos, a mortalidade proporcional por homicí-
dios passou de 21% para 71% em 30 anos (1965-1995). Nesse mesmo grupo, em um período de 35
anos (1960-1995), o coeficiente de mortalidade motivado por homicídio saltou de 9,6 para 186,7 por
100 mil habitantes, ou seja, um crescimento da ordem de 1.800,00%. Outro recente estudo, abordando
o perfil sociodemográfico da população jovem do Estado de São Paulo, indicou que "enquanto no inte-
rior as chances de óbito por homicídio diminuíram de forma relativamente significativa neste período
[1990-94], na capital tiveram um aumento expressivo. Reflexo desta situação é o coeficiente positivo
extremamente significativo (0,829) associado à capital, comparativamente ao interior, no que se refere
ao local de residência, indicando que os jovens da capital estão mais sujeitos a uma morte por homicídio
do que os residentes do interior" (Saad, Mameri e Maia, 1998:59).

Portanto, tudo indica que tanto o crescimento da delinquência juvenil — mais propriamente da partici-
pação do crime violento nesse movimento — quanto a crescente vitimização de que são alvo jovens
não são fenômenos isolados, próprios de metrópoles com características sociais como as predominan-
tes no Município de São Paulo. Possivelmente, processos sociais mais amplos, até mesmo relaciona-
dos aos circuitos contemporâneos de internacionalização dos mercados e de integração de estruturas
sociais em escala quase planetária, estejam na origem dos fenômenos e fatos observados.

Talvez fosse algo ousado dizer, mas nada impede de aventar a hipótese segundo a qual a própria
construção social da adolescência e da juventude esteja sendo submetida à lógica do que vem se
convencionando a chamar de processo de globalização, inclusive para o bem ou para o mal sua faceta
perversa — o envolvimento com o mundo do crime e com a violência.

Tal hipótese, no entanto, não significa ignorar o peso e a influência das particularidades próprias da
sociedade brasileira em sua aparentemente infindável capacidade de acompanhar tendências gerais,
acentuando-as até o ponto de torná-las dramáticas. É o que sugere a análise que se segue.

A hipótese de um crescimento efetivo da criminalidade juvenil, em especial a de tipo violento, é obser-


vada no Gráfico 1. Quando se comparam os padrões da criminalidade na população em geral e entre
os adolescentes, é possível constatar maior crescimento do crime violento entre estes últimos. Mais
surpreendente ainda é verificar que o percentual de infrações violentas cometidas pelos adolescentes
supera ao correspondente da população em geral, no segundo período investigado (1993-96).

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Não se trata igualmente de uma tendência isolada. Na Inglaterra, na década de 80, verificou-se eleva-
ção dos crimes em quase todas as modalidades de infração. Ao mesmo tempo, a delinquência juvenil
tendeu a se distanciar dramaticamente da delinquência adulta. Aumentou substantivamente a preva-
lência de ofensas praticadas por adolescentes do sexo masculino, por 100 mil habitantes, entre meados
da década de 60 e da década de 70.

Em seguida, esse padrão estacionou e tendeu mesmo a declinar ligeiramente até a metade dos anos
80, quando então retorna aos níveis de dez anos atrás (Newburn, 1998). Na França, as mudanças
constatadas entre 1974 e 1995 também foram no sentido de confirmar o crescimento das infrações
violentas praticadas por adolescentes. Nesse período, os roubos de toda a espécie perdem importân-
cia, enquanto crescem as ofensas contra pessoas, contra a ordem pública e em matéria de drogas
(Aubusson de Cavarlay, 1997).

Portanto, a maior participação de adolescentes no crime violento comparativamente à participação da


população em geral, no Município de São Paulo, no período de 1993-96, é em grande parte ressonância
de tendências mundiais mais gerais, que afetam igualmente outras sociedades, independentemente do
grau ou estágio de desenvolvimento econômico-social em que se encontrem. Mas não se pode igual-
mente desprezar possíveis efeitos da "onda jovem".

Embora uma análise nessa direção demandasse procedimentos técnicos mais sofisticados, pode-se
ao menos aventar hipóteses. No período de 1980 a 1996, vem sendo observada, no Município de São
Paulo, diminuição na média de crescimento da população urbana. No entanto, esta redução não tem
sido homogênea para todos seus distritos. Há aqueles em que a taxa de crescimento se manteve muito
alta, o que está levando à constituição de diferentes perfis na distribuição dos grupos etários no muni-
cípio (Cardia, 1999).

É flagrante a concentração de população jovem em certos bolsões ou regiões onde a taxa de cresci-
mento permanece elevada a despeito da tendência geral em contrário. Por exemplo, no Jardim Ângela
— um dos bairros do município que vem se constituindo verdadeiro laboratório social dada suas carac-
terísticas e composição de sua população —, o crescimento demográfico anual, ao longo da década
de 90, vem sendo de 4,4%, enquanto a média de crescimento populacional do município tem sido de
0,34%.

Não por acaso, o Jardim Ângela é uma das áreas mais carentes deste município, com as mais elevadas
taxas de violência fatal. Em de 1995, o Mapa de Risco da Violência indicava que a taxa de homicídio,
para a faixa etária de 15-24 anos, era de 222,2 por 100 mil habitantes (Cedec, 1996). O quanto ambos
fenômenos se cruzam e o quanto a delinquência juvenil vem sendo influenciada por essas tendências

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demográficas constituem matéria a ser oportunamente investigada.

Finalmente, uma terceira hipótese explicativa apela para a influência do crime organizado, cuja pre-
sença e importância na criminalidade urbana no Brasil vêm sendo anotadas há duas décadas, inclusive
pela pesquisa científica. Neste contexto, cabem considerações sobre a criminalidade juvenil organi-
zada.

Os dados disponíveis para análise no período de 1988-91 não confirmavam, de modo claro e preciso,
a existência de bandos e quadrilhas como um padrão emergente e ao mesmo tempo dominante de
delinquência juvenil. Em contrapartida, no período subsequente, observou-se a diminuição da ação
isolada a favor, especialmente, da ação em conjunto com um ou mais adultos (Tabela 2).

O crime organizado e a constituição de gangues e quadrilhas de adolescentes são por excelência temas
americanos (Thrasher, 1928; Cohen, 1955; Yablonsky, 1966; Short, 1968; Klein, 1971; Miller, 1980;
Jankowski, 1991). Conforme vem apontando a literatura especializada internacional, não há consenso
entre os especialistas a respeito do que se deva compreender por bandos ou gangues juvenis no
mundo da delinquência. Segundo Klein (1971), pode-se considerar gangue qualquer grupo de jovens
que reúna as seguintes características: seja percebido como um agregado bem distinto pelos habitan-
tes de um bairro ou região; se auto-identifique como tal devido ao emprego de um nome próprio e
peculiar; tenha cometido um apreciável número de infrações penais a ponto dos habitantes locais e das
autoridades encarregadas de preservação da ordem pública terem desenvolvido atitudes negativas e
de reprovação contra o grupo.

No entanto, sabe-se que essa definição não é consensual entre os diferentes pesquisadores. Notada-
mente na Inglaterra, desde os anos 60, tem-se assistido à emergência de gangues e bandos de jovens
— teddy boys, mods et rockers, skinheads, rastas e rude boys — não necessariamente relacionados à
prática de crimes convencionais como furtos, roubos e tráfico de drogas. Ao contrário, o que parece
movê-los são os conflitos de classe, os conflitos étnicos e inter-étnicos (Newburn, 1998). Constatações
desta ordem colocam em suspenso afirmações categóricas que estabelecem uma associação mecâ-
nica entre bandos juvenis e criminalidade.

Como consequência da ausência de um suporte conceitual normativo, predominam heterogêneos pro-


cedimentos técnico-metodológicos nos serviços de estatísticas oficiais que contribuem para viciar a
mensuração das infrações penais cometidas por jovens na condição de membros de gangues e qua-
drilhas. Por exemplo, em algumas cidades americanas, como Chicago, contabilizam-se como delitos
cometidos por gangues somente aquelas infrações efetivamente relacionadas com atividades próprias
de grupos locais, isto é, estabelecidos em determinados "pedaços" da cidade. Em outras cidades, como
em Los Angeles, atribui-se ao fenômeno um sentido mais amplo. Tende-se a classificar, como tal, toda
infração penal cujo autor ou sua vítima pertença a uma quadrilha ou bando (Jankowski, 1991). Além
disso, um outro procedimento também contribui para turvar a fidedignidade das estatísticas oficiais.
Nos Estados Unidos, de modo geral, a unidade de referência estatística é a infração e não o jovem
infrator, procedimento que, se tem seus méritos, é um sério entrave à mensuração do universo de

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jovens delinquentes organizados em gangues.

Todas essas considerações caminham no seguinte sentido: é provável que a delinquência juvenil or-
ganizada esteja subestimada pelas próprias fontes oficiais ou oculta no interior da criminalidade adulta.
Por exemplo, em 1928, o estudo pioneiro de Thrasher estimava que, em Chicago, 10% dos 350 mil
jovens, na faixa etária de 10 a 20 anos, estavam submetidos à influência de gangues. Klein (1971),
anos mais tarde, alcançou uma proporção menor para Los Angeles, verificando que, em 1960, cerca
de 6% dos jovens, na faixa etária de 10 a 17 anos, encontravam-se envolvidos naquelas modalidades
de organização criminosa.

As estimativas americanas recentes variam segundo o grupo etário e a cidade considerada. No con-
junto, gravitam em torno de proporções inferiores a 10%. Convém observar, contudo, que essas taxas
são significativamente mais elevadas entre jovens negros. No final da década de 80, 25% dos jovens
negros, na faixa etária de 15 a 24 anos, na cidade de Los Angeles, estavam de um ou outro modo sob
influência das gangues (Jankowski, 1991). Ademais, alguns estudos americanos revelam uma tendên-
cia recente ao envelhecimento das lideranças nas quadrilhas e bandos de jovens delinquentes. A pre-
sença de jovens adultos vem se tornando cada vez menos rara. São eles que exercem papéis de chefia
e liderança e, não sem motivos, aparecem fortemente implicados nos crimes mais violentos (Jankowski,
1991).

Guardadas as diferenças com suas congêneres americanas, bandos e quadrilhas são fenômenos que
vêm sendo anotados por pesquisadores brasileiros (Zaluar, 1994; Vianna, 1996; Misse, 1997; Dióge-
nes, 1988). Segundo Zaluar (1990), a emergência do crime organizado entre as classes populares do
Rio de Janeiro tem a ver com o desmantelamento dos mecanismos tradicionais de socialização juvenil
e das redes igualmente tradicionais de sociabilidade local, ancoradas no passado através das relações
de patronagem entre pobres e ricos e mais recentemente por intermédio de um novo clientelismo polí-
tico, que tem no jogo do bicho e nas escolas de samba seus pontos de inflexão. O desmantelamento
dessas redes tradicionais de sociabilidade foi acompanhado também de um distanciamento nas rela-
ções entre pais e filhos, instituinte da redefinição desses papéis sociais e, por conseguinte, fonte pro-
pulsora de mudanças nas funções de agências socializadoras como a escola, os centros de assistência
social e a política, agora investidas de atribuições antes reservadas aos pais.

É justamente nesse processo de transição social, no qual novas agências de socialização ainda não
se configuraram, que o crime organizado, em especial o narcotráfico, captura os jovens moradores dos
conjuntos habitacionais populares ou das favelas encravadas nos morros cariocas. E os captura não
como reação a um mundo social de injustiças e de degradação moral, sequer como alternativa ao
estreitamento das oportunidades oferecidas pelo mercado formal de trabalho, mas sim por meio dos
atrativos oferecidos pela sociedade de consumo e pelas possibilidades de afirmação de uma identidade
masculina associada à honra e à virilidade, modos concretos de inserção e de localização sociais em
uma era caracterizada pelo cercamento e cerceamento das opções de escolha pessoal. O resultado
desse processo não é, como acentua Zaluar, a instituição de regras de solidariedade entre os pobres
e excluídos constituídas em torno do narcotráfico, porém a explosão de individualismo que, para os
jovens, se traduz na valorização de "bens como a arma e o fumo, o dinheiro no bolso, as roupas boni-
tinhas e a disposição para matar" (Zaluar, 1994:102).

Desses atrativos resultam a inserção dos jovens nas quadrilhas seja como "chefe", aquele que tem
autonomia e comanda, seja como "teleguiados", aqueles que se sujeitam e obedecem — divisão de
trabalho instituinte de interminável guerra entre quadrilhas cujo desfecho é, como se disse, a morte
prematura desses jovens, cuja média de vida não ultrapassa os 25 anos. Assim, mesmo considerando
que o número de jovens envolvidos com o crime violento seja inferior ao de jovens assassina-
dos,12 tudo indica que um pequeno número de jovens infratores seja responsável pelo crescimento
das infrações violentas. Isso significa que alguns desses jovens vêm se tornando mais violentos e
agressivos. Tendo construído uma carreira no mundo delinquente, dificilmente conseguem reverter
essa trajetória (Adorno, 1991). A biografia do jovem Carlos Ferro é ilustrativa desse processo:13 roubo
aos nove, tiroteio aos 11, internamento aos 12, vício em crack aos 16, cadeia aos 20 anos. Finalmente,
escreve sua autobiografia.

Quanto ao observado para a delinquência juvenil no Município de São Paulo, pode-se suspeitar que a
criminalidade organizada, constituída sobretudo em torno do narcotráfico, não tenha se restringido à
cidade do Rio de Janeiro. Se o tráfico nutre-se da circulação de dinheiro, não há razões visíveis para
que essa modalidade de organização não tivesse se instalado na cidade de São Paulo, ainda que em

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moldes distintos daquela que predomina no Rio de Janeiro. É de todo provável que as disputas entre
quadrilhas, no mais das vezes gravitando em torno do tráfico de drogas, sejam responsáveis pelo
imenso crescimento das mortes de adolescentes nos últimos anos, conforme apontado anteriormente.

Em conclusão, talvez não se devesse abandonar a hipótese que sustém a existência, em São Paulo,
de uma criminalidade juvenil organizada, disseminada pelos bairros populares e pela periferia urbana.
Sob essa ótica e no domínio dos fundamentos sociológicos do crime, valeria a pena insistir um pouco
mais em perfilar as descobertas de Alba Zaluar (1994) em seu estudo sobre a criminalidade entre as
classes populares no Rio de Janeiro. Através de estudos de casos, de perfis de carreira e de histórias
de vida de adolescentes socializados no crime, certamente seria possível identificar novas pistas, idéias
e hipóteses que viriam, em momento oportuno, contribuir para se conferir um outro tratamento às fontes
documentais oficiais, permitindo observar a realidade em espaços em que presentemente há pequena
ou nenhuma visibilidade.

Criminalidade: Perspectiva de Análise

A Explicação Dominante: Uma Crítica

A questão da criminalidade violenta nas grandes cidades é um dos eixos centrais de um quadro de
referência que opõe dois momentos, em uma periodização cujo marco é quase sempre a virada para
os anos 70. Ela se baseia na percepção da diferença entre o passado, quando o crime era vivido como
um problema menos angustiante, e o presente, período em que a criminalidade se torna progressiva-
mente mais violenta e organizada.

Ou seja, produz-se um corte temporal em que o passado se caracterizaria, não pela ausência de con-
dutas criminosas, mas por seu encapsulamento enquanto ações isoladas e intersticiais, e o presente
corresponderia a um momento em que essas práticas se organizam em empreendimentos coletivos e
permanentes, evidenciando dificuldades inusitadas de manutenção da ordem pública que tornam dra-
maticamente insegura a vida cotidiana. Pode-se dizer, portanto, que o núcleo da percepção social des-
tas questões é o crime comum organizado. É evidente que a existência da criminalidade difusa não
deixa de ser reconhecida; mas a diferença é que agora o crime passa a ter uma "cara" - uma estrutura,
um agente responsável.

As populações urbanas parecem considerar que a delinquência tradicional correspondia a atividades


criminais realizadas por "pessoas comuns" que cometiam deslizes de gravidade variável. Neste sen-
tido, ela se distingue do crime organizado como empreendimento permanente e baseado na ameaça
de violência física, que dependeria de princípios de orientação da conduta radicalmente diferentes. Ou
seja, organizados, os criminosos destacam-se da coletividade.

Estou sugerindo que a percepção social difusa possui sensibilidade suficiente para dar-se conta de
uma inflexão, marcada pelo surgimento de um novo ator coletivo que altera as condições de reprodução
da ordem pública. Entretanto, sua expressão cognitiva consciente, tal como surge no debate público e
na maioria das análises acadêmicas, não tem sido capaz de captar esta profunda transformação qua-
litativa - ou, na melhor das hipóteses, só o faz de maneira indireta.

Assim é que, neste plano, a explicação do desenvolvimento do crime organizado põe em questão, nos
termos mais imediatos, a relação entre dois agentes: de um lado, os próprios criminosos e, de outro,
os policiais enquanto encarregados diretos da atividade institucional de controle e repressão. Entre-
tanto, não parece exagero sugerir que, já neste nível mais concreto, praticamente todo o peso da lógica
explicativa que tenta apreender esta relação recai sobre as condições e o modo de funcionamento do
aparelho repressivo. Começando com a análise da polícia, mas raramente restringindo-se a ela, a ex-
plicação enfatiza a crise moral e de autoridade das instituições responsáveis pelo controle social e
administração da Justiça, causa de uma incapacidade radical de cumprimento de suas atribuições, a
qual se manifesta sob as mais variadas formas de impunidade, corrupção e tratamento discriminatório
das populações mais pobres. O resultado final é a "criminalização" da própria polícia, a desproteção
das camadas populares e o estímulo ao desenvolvimento do crime organizado.

De passagem, note-se que este é o nível mais concreto e tópico de uma explicação cujo sentido pro-
fundo é extraído do reconhecimento de que ela trata da expressão localizada de uma crise institucional
que é antes política que econômica. De fato, embora seja recorrente a menção à penúria das agências
governamentais, em uma linha de raciocínio cada vez mais generalizadora que a remete à crise fiscal
e à reconversão da economia, estas causas de natureza econômico-financeira têm antes o estatuto de

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variáveis intervenientes na explicação. Sua característica mais abrangente - que pode perfeitamente
passar como descrição típica da "estrutura da conjuntura" atual - é a incapacidade generalizada de
atuação do conjunto das agências do Estado: a ineficiência e a desmoralização interna do aparelho
policial seriam parte de uma crise política que afeta toda a estrutura do Estado e sua relação com a
sociedade.

Esta descrição, obviamente muito esquemática e superficial, não pretende captar a riqueza e variedade
das análises, mas apenas expor seu centro nevrálgico no que diz respeito à concepção dominante
sobre a criminalidade nas grandes cidades. A intenção é identificar o que considero como o nexo causal
básico da interpretação da relação entre ordem pública e criminalidade violenta na atualidade: de um
lado, como variável independente, uma profunda crise de autoridade, provocando a ineficiência das
agências estatais e o encolhimento do Estado; de outro, a variável dependente a ser explicada: o cres-
cimento do crime organizado nos espaços em que a atividade regulatória e as políticas substantivas do
Estado não conseguem preencher.

Incidentalmente, podem ser notadas importantes mudanças nas imagens da pobreza decorrentes desta
explicação. Os pobres transformam-se em vítimas, deserdados dos benefícios materiais da cidadania
e membros periféricos de uma sociedade que o Estado não abarca inteiramente. Nem "classe perigosa"
(papel que passa a ser reservado ao crime organizado) nem "sujeito" de sua própria história: simples-
mente vítimas de uma ausência, a do Estado. A este respeito, é ocioso lembrar as inúmeras variantes
conceptuais que convergem para a idéia básica de "ausência do Estado".

Estas observações não podem ser aprofundadas no presente texto, mas vale salientar que elas apon-
tam para o aspecto espacial da explicação mencionada: a ineficiência do Estado é percebida como não
apenas social, mas também territorialmente seletiva, afetando de maneira mais intensa as áreas pobres
das cidades, locais privilegiados do crime organizado. É claro que não se alteram as tradicionais avali-
ações sobre a forma urbana, agora sustentadas em novas bases: as favelas, que tipificam na percep-
ção social as áreas degradadas, continuam tão ameaçadoras quanto antes. Mas turvam-se as frontei-
ras de classe dessa percepção, pois agora elas são perigosas também para os po-bres. Tudo isso
expõe uma característica essencial do problema, tal como ele está construído na atualidade: trata-se
de uma questão sistêmica geral, cujo sentido não se esgota nos conflitos de classe.

A esta altura deve estar claro que a estrutura do argumento é semelhante ao clássico modelo durkhei-
miano. Assim, tanto a ineficiência das agências estatais, quanto a organização da criminalidade violenta
são descritas e interpretadas segundo o conhecido padrão ordem-desvio, que corresponde ao quadro
geral de todo o raciocínio. Em seu núcleo está uma concepção unificada da lógica da vida social e seu
corolário, a idéia de que a patologia, quando existe, encontra-se nas características do sistema. Se
este modelo tem a vantagem de não tratar o comportamento desviante como uma aberração incom-
preensível, por outro lado apresenta a desvantagem de não permitir considerar os cursos de ação
desviantes, segundo o quadro normativo considerado, como qualitativamente distintos dos demais
(pois o desvio é definido como uma desproporção quantitativa, e não um atributo qualitativo).

Mesmo nas versões que preservam a autonomia dos agentes e pretendem concentrar-se nos cursos
de ação construídos por eles, o esquema explicativo muda pouco. Resumidamente, elas propõem a
recomposição da ordem pública através de uma variedade de negociações visando a expansão da
cidadania, isto é, incorporando as demandas de segmentos cada vez mais amplos das populações
urbanas, e tornando as práticas das agências estatais social, política e territorialmente mais abrangen-
tes. Aqui, há duas idéias subjacentes que vale a pena mencionar.

A primeira delas é a de que a restauração da ordem pública depende do fortalecimento do Estado mas,
ao mesmo tempo, isto só vai ocorrer quando o funcionamento de suas agências for social e espacial-
mente mais homogêneo e universalista. Ao contrário de interpretações mais antigas, não se trata nem
de opor Estado e sociedade, nem de apagar esta diferença. Trata-se, antes, de reaproximar um do
outro, de modo a eliminar o padrão anti (ou pouco) democrático da interação entre eles que, em última
instância, é tido como o responsável pela fratura que ocasiona a dissolução da ordem pública. Consi-
dero que este ponto do paradigma explicativo é eticamente defensável e intelectualmente sensato,
além de corresponder aos elementos mais gerais de um consenso mínimo, capaz de fundamentar um
diálogo fértil entre as muitas posições diferentes que admite.

A segunda idéia é a de que, no longo prazo, este processo de construção democrática é condição

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suficiente para restaurar a ordem pública, fazendo retornar a condições aceitáveis a margem de inse-
gurança presente no curso da vida cotidiana. Ao contrário do anterior, este é um dos pontos que me
parecem mais problemáticos na estrutura da explicação dominante. Ele se baseia na idéia de que, sob
condições mais democráticas, melhoraria o desempenho, pelas agências estatais, de suas funções de
controle social que, ademais, seriam facilitadas devido ao impacto das tendências democratizantes
sobre a reprodução social, reduzindo as pressões econômicas que favorecem a adoção de práticas
criminosas. Ou seja, reduzido o espaço de organização da criminalidade, aumentaria o custo de esco-
lher condutas criminosas até o ponto em que estas alternativas seriam descartadas por agentes racio-
nais.

Esta estrutura lógica parece-me duplamente inconsistente. Em primeiro lugar porque, baseando-se no
postulado implícito de que a adaptação ao novo contexto é a atitude mais racional, nega a intenção de
reter como base da explicação a autonomia de decisão dos agentes: normas institucionalmente garan-
tidas determinariam as escolhas subjetivas, tal como na primeira versão comentada acima. E, em se-
gundo lugar, porque adota dois pesos e duas medidas: enquanto os criminosos se regeriam sempre e
apenas pela lógica instrumental, o restante das populações urbanas pode fundamentar suas ações em
princípios éticos e morais (os valores ligados à construção da democracia) mesmo sob condições que
não os recomendariam como as "melhores escolhas" de curto prazo.

Esta sumária exposição da estrutura lógica da explicação dominante visou demonstrar que, paradoxal-
mente, o desenvolvimento do crime organizado acaba se tornando uma questão secundária. As formas
recentes da criminalidade são reduzidas a uma expressão da crise institucional e se transformam em
meros indicadores de sua extensão e profundidade. Ou seja, o emprego crescente da violência e a
transformação das condutas criminosas em empreendimentos permanentes são fenômenos apreendi-
dos como meros efeitos, simples sintomas da incapacidade das agências de controle social de cumprir
satisfatoriamente suas funções. Assim, embora se localize na organização da criminalidade violenta o
principal problema de manutenção da ordem pública, a atenção volta, em uma espécie de "efeito boo-
merang", a concentrar-se não na formação da conduta dos criminosos, mas antes nos processos en-
dógenos de dissolução da ordem.

Não é demais repetir: estamos diante de uma concepção unitária e homogeneizante da vida social.
Talvez seja esta perspectiva geral que não deixa perceber que, do ponto de vista de seus conteúdos
concretos, a explicação dominante é um pressuposto, mais que uma análise propriamente dita.

Assim, seria absurdo negar que a conjuntura atual das cidades brasileiras se distingue por uma pro-
funda crise institucional e que a organização da criminalidade violenta torna-se cada vez mais amea-
çadora. Mas não me parece plausível estabelecer uma relação de dependência causal entre estes dois
processos. De fato, mesmo o mais superficial olhar sobre a formação do Estado brasileiro e a consti-
tuição da cidadania em nosso país é suficiente para perceber que a ordem pública nas cidades brasi-
leiras jamais foi um modelo de firmeza dos controles sociais ou de seu caráter democrático. E, no
entanto, até por volta dos anos 70 não há evidências de que o processo de organização da criminali-
dade fosse socialmente significativo. Logo, muito embora as dificuldades institucionais possam ser to-
madas como uma condição necessária, elas não são suficientes para explicar a organização da crimi-
nalidade violenta.

Estou sugerindo que a explicação dominante - por elaboradas que sejam algumas de suas muitas
versões concretas -, não é capaz de produzir uma compreensão intelectualmente adequada da crimi-
nalidade comum violenta pois, por assim dizer, no meio do caminho a atenção se desvia do objeto.
Como procurei demonstrar, a raiz desta dificuldade está no fato de serem reunidos em uma relação de
causa e efeito dois processos que são independentes, pelo menos em parte.

Na próxima seção, retomo estes comentários procurando explorar, ainda de uma forma muito embrio-
nária e com intenções simplesmente ilustrativas, as possibilidades analíticas da separação entre crise
institucional e organização da criminalidade.

Como venho sugerindo, trata-se de postura indispensável para apreender a singularidade do crime
violento e sua importância fundamental no quadro da vida urbana contemporânea. Como é óbvio, a
condição para um ponto de vista como este é deslocar a atenção do que chamei acima de processos
endógenos de dissolução da ordem. Deve ficar claro, entretanto, que esta providência não significa
negar a existência deles nem a necessidade premente de intervenções que visem restabelecer e apri-
morar as formas de controle social e a legitimidade da autoridade estatal.

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No fundo dos comentários que se seguem está uma concepção (muito embrionária, diga-se de passa-
gem) sobre os processos de "desconcentração" da violência física. Como procurei demonstrar, a crimi-
nalidade violenta tem sido entendida como uma espécie de caso-limite, derivado do acúmulo de pro-
blemas de regulação e controle que, em última instância, remetem à ilegitimidade do Estado. Pressio-
nada pela premência de intervenções práticas sobre o aparato institucional, a explicação dominante
tende a concentrar a atenção sobre o que chamei acima de processos endógenos de dissolução da
ordem.

Considero que, embora relevante, esta é uma perspectiva limitada. Quando abordada desde um ponto
de vista mais abrangente, é pelo menos plausível levantar a hipótese de que a criminalidade violenta
organizada pode ser vista como a ponta de um iceberg. Ela indicaria transformações culturais imensa-
mente profundas e a formação de uma sociabilidade radicalmente nova que a teoria social tem muita
dificuldade de apreender, na medida em que aponta para uma visão de mundo que lhe é exterior.
Evidentemente, não proponho uma reflexão deste teor, mas apenas uma abordagem mais direta e
atenta para as tendências de organização da criminalidade violenta, sugerindo que, até o momento,
sua compreensão tem sido muito parcial.

III. Uma Nova Forma De Sociabilidade

No final da seção anterior foi mencionada a "desconcentração" da violência física. Vale a pena começar
indicando brevemente o sentido e as implicações desta referência do ponto de vista do argumento que
vem sendo desenvolvido.

A organização extra-estatal da violência costuma ser considerada dentro de uma classificação que tem
como limites, de um lado, a "sobrevivência" de formas pré-modernas de dominação (quando a violência
privada é legítima) e, de outro, situações em que várias formas de organização da violência ilegítima
desembocam em conflitos que vão desde seu uso institucionalizado pelo próprio Estado até a guerra
civil, revoltas de grupos ou categorias sociais específicas, bolsões territoriais de resistência etc. A base
lógica desta classificação - que, apesar de todas as divergências teóricas, é consensual -encontra-se
na idéia de um proces-so unívoco de concentraçãodesconcentração, em que este segundo momento
(a desconcentração) corresponde a alguma transformação de fundo na estrutura do Estado4. Para o
presente trabalho, importa considerar uma implicação: a violência "desconcentrada" (privada/ ilegítima)
continua orientada para o Estado, mesmo que o objetivo - que pode estar apenas implícito - seja trans-
formar sua estrutura ou assumir seu controle.

É difícil admitir que esta mesma estrutura lógica possa ser aplicada à organização da violência operada
pela criminalidade urbana. Assim, as conhecidas referências ao "poder paralelo" ou ao "Estado dentro
do Estado" usadas para indicar o domínio de certas áreas pelo crime organizado não passam de sim-
ples metáforas para significar a gravidade do problema e indicar o "descaso" das agências estatais.
Além do mais, tudo leva a crer que mesmo os setores mais radicais há muito abandonaram as idéias
sobre o caráter revolucionário das organizações criminosas5. E, no entanto, parece indubitável, pri-
meiro, que se vive na atualidade um momento de desconcentração da violência; segundo, que este
processo não corresponde apenas à sua pulverização como meio de conduta de indivíduos isolados
movidos pela certeza de impunidade, nem é um simples caso de cristalização de condutas desviantes;
e, finalmente, que o ordenamento das relações sociais operado pelos criminosos não pode ser equipa-
rado às for-mas tradicionais de dominação, seja nas hierarquias constitutivas das empresas do crime
organizado, seja nas relações destas com suas vítimas e com os grupos sociais dominados6.

Neste momento, já deve ter ficado claro que venho repetindo o termo "organização" e suas variantes
praticamente desde o início do raciocínio. Isto é proposital, pois quero insistir no fato de que estamos
diante de fenômenos que dizem respeito a uma forma de vida social organizada, isto é, a um complexo
de condutas para cuja formação a ordem pública não entra como referência. Como já salientei, isto
significa dizer que, contemporaneamente, a atividade criminal não pode ser reduzida a priori à mera
adaptação ao contexto, pois os criminosos não violam nem se rebelam contra o ordenamento estatal:
este simplesmente não é elemento significativo do comportamento destes atores.

Embora seja difícil falar em uma esfera ética no caso de relações sociais fundadas na violência, este é
exatamente o desafio que se coloca para uma compreensão me-nos parcial do fenômeno: descobrir
como os agentes do crime violento formulam as justificativas de seu comportamento e quais os signifi-
cados culturais que elas expressam.

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Observada deste ponto de vista, apesar das informações serem muito esparsas e de qualidade duvi-
dosa, creio ser possível sugerir como hipótese que a criminalidade comum nas áreas urbanas parece
ter passado a organizar-se de uma forma muito diferente daquela que a caracterizava até o final dos
anos 60.

Até aquele momento, o exemplo mais típico de organização das condutas ilegais era o jogo do bicho,
em relação ao qual a questão da violência se colocava como um problema secundário ou pelo menos
limitado. Assim, parece que tanto sua estrutura empresarial quanto sua inserção política seguiram a
tradicional lógica familística de formação de clientela. Não há dúvida que, durante o processo de for-
mação do controle unificado do jogo do bicho, tal como o conhecemos atualmente, as disputas por
áreas de atuação frequentemente envolviam o emprego de meios violentos. Entretanto, tudo indica que
se tratava de um recurso tópico, seletivo e restrito a lutas internas de poder conduzidas com um certo
cuidado, a fim de evitar atritos maiores com as demais instituições e grupos sociais.

É também útil lembrar que o jogo do bicho só foi "criminalizado" em 1946, muito depois de sua disse-
minação, e mesmo assim através de uma medida que não visava a atingi-lo, mas aos cassinos. A
expansão de seu poder político e econômico deu-se na fase de ilegalidade, mas alimentou-se do pro-
fundo enraizamento deste tipo de aposta na cultura popular.

Além do mais, há claros indícios de que o fortalecimento dessas empresas como agentes econômicos
e políticos - que, por sinal, foi um processo lento, se comparado à expansão dos empreendimentos do
crime violento na atualidade - sempre dependeu de um processo de negociação pacífica com os dife-
rentes agentes do ordenamento legal. Finalmente, cumpre notar que o jogo do bicho desenvolveu uma
cultura organizacional paternalista e assistencialista, com hierarquias baseadas em laços pessoais de
lealdade, e que orientações dessa mesma natureza cimentaram a formação de clientelas externas em
cujo tamanho e coesão baseava-se a capacidade de negociação no jogo político.

O jogo do bicho parece, por todas estas razões, ser típico da natureza ambígua e estruturalmente
intersticial da organização das atividades ilegais que envolviam o recurso sistemático à violência pri-
vada até a virada para os anos 70. Isso já aparece, como é óbvio, no próprio estatuto formal da ativi-
dade, uma simples contravenção. Mas o caráter ambíguo pode ser melhor percebido quando se atenta
para o fato de que, juntamente com as escolas de samba, o jogo do bicho foi um dos mais importantes
canais de incorporação política e cultural das massas populares urbanas - porém, ao mesmo tempo,
também foi um dos instrumentos de manutenção de sua subalternidade ao participar ativamente da
manutenção do sistema de controle clientelístico (CHINELLI e SILVA, 1993).

A partir dos anos 70, criminosos comuns passam a organizar-se em empreendimentos que se consoli-
dam com um formato, conteúdo e senti-do sócio-cultural marcadamente diferentes. Seu traço mais
básico e rotineiro é o recurso universal à violência. Não me refiro aqui a uma eventual "militarização",
analogia que poderia ser aventada em razão da rigidez das hierarquias e do uso generalizado de armas.
Penso nos próprios modos de interação entre os membros, também fundados na violência física, que
impedem a analogia com as corporações militares. As organizações criminosas atuais, embora sejam
empreendimentos econômicos altamente lucrativos - no momento, prioritariamente organizados em
torno do tráfico de drogas, que entretanto não é uma atividade exclusiva, nem parece ter estado pre-
sente nos momentos iniciais -, não são empresas, no sentido de serem compostas de uma hierarquia
orientada para fins coletivos.

Elas também estão baseadas internamente nos mesmo princípios de subjugação pela força, consti-
tuindo-se em uma espécie de amálgama de interesses estritamente individuais, com um sistema hie-
rárquico e códigos de conduta que podem ser sintetizados pela metáfora da "paz armada": todos obe-
decem porque e enquanto sabem serem mais fracos, a desobediência implicando necessariamente
retaliação física. No limite, pode-se dizer que não há "fins coletivos" nem "subordinação"; todas as
formas de colaboração tornam-se estritamente técnicas, e só se tornam possíveis pela subjugação que
elimina a vontade dos demais participantes como elemento significativo da formação das condutas.
Pouco se sabe sobre a natureza desse processo, mas cabe a metáfora da guerra de todos contra todos
- com a ressalva de que falta qualquer movimento para minimizá-la.

A experiência demonstra que, apesar de toda a instabilidade, esse modo de organização pode ser
permanente e racionalizado como "técnica" individualmente controlada, não sendo, portanto, apesar
de toda a sua fluidez, incompatível com a acumulação de poder e bens materiais.

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Sendo estas hipóteses aceitáveis, pode-se dizer que a organização contemporânea da criminalidade
corresponde à implantação da violência generalizada como base de um novo ordenamento social, para
cujo entendimento os instrumentos conceptuais disponíveis são inadequados. Pessoalmente, consi-
dero que um fértil ponto de partida seria retomar a conhecida idéia de um capitalismo aventureiro,
repensada pela introdução de dois elementos: a) os participantes não estão colaborando em um em-
preendimento coletivo: a lógica do crime organizado é a da subjugação pela violência, não a da agre-
gação de interesses ou da solidariedade comunitária; b) não há incompatibilidade com o cálculo de
longo prazo, embora no momento sejam inteiramente desconhecidos os fundamentos de valor de uma
racionalização da violência física oposta a seu controle e minimização.

Criminalidade no Brasil

As taxas de criminalidade no Brasil têm níveis acima da média mundial no que se refere a crimes vio-
lentos, com níveis particularmente altos no tocante a violência armada e homicídios. Em 2015, foram
registradas 28,8 mortes para cada 100 mil habitantes, uma das mais altas taxas de homicídios intenci-
onais do mundo. O limite considerado como suportável pela Organização Mundial da Saúde (OMS) é
de dez homicídios por 100 mil habitantes.

Observa-se, no entanto, que há diferenças entre os índices de criminalidade dentro do país. Enquanto
em São Paulo a taxa de homicídios registrada em 2010 foi de 13,9 mortes por 100 mil habitantes,
em Alagoas esse índice foi de 66,8 homicídios.

Em maio de 2017, uma pesquisa do instituto Datafolha indicou que aproximadamente um em cada três
brasileiros já teve um parente ou amigo que foi assassinado. Outra pesquisa do instituto indica também
que três em cada quatro brasileiros afirmam ter medo de serem assassinados.

Crimes Violentos

Homicídios no Brasil (total), de 1996 a 2015, segundo o Atlas da Violência (2017) em pesquisa realizada
pelo Ipea e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Crimes violentos cresceram na maior parte dos estados desde 2005, segundo o Fórum Brasileiro de
Segurança Pública (FBSP). O Brasil é um país grande e diverso, com diferenças socioeconômicas
significativas entre as diferentes regiões. Enquanto em estados como São Paulo e Rio de Janeiro (re-
gião sudeste) se observou queda nos crimes violentos nesse período, o aumento da criminalidade nos
estados da região norte e nordestes cresceram de forma muito mais significativa, fazendo a média de
crimes no país aumentar de forma significativa.

Segundo o 3° Relatório Nacional sobre Direitos Humanos no Brasil, a ineficácia do Poder Público pe-
rante o aumento da violência gera ainda mais violações de direitos humanos e impunidade, além de
aumentar o sentimento de insegurança e revolta da população.

Crimes Contra Homossexuais

De acordo com as estatísticas do Grupo Gay da Bahia, a cada 36 horas, um homossexual é morto no

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Brasil e 70% desses casos ficam impunes. Em abril de 2009, o Grupo Gay da Bahia chegou a concluir
que em 2008 foram assassinados 190 homossexuais no Brasil, sendo 64% gays, 32% travestis e 4%
lésbicas - um aumento de 55% sobre os números de 2007, mantendo o país como o que mais registra
crimes de natureza homofóbica.

Crimes contra jovens e negros

Felipe Barbosa Mendes, de 22 anos, funcionário de uma cooperativa de moto-táxis, foi assassinado
enquanto abastecia sua moto em um posto de gasolina no bairro de Andaraí - Rio de Janeiro.

Entre as vítimas de crimes violentos, os jovens e os negros são a maioria. Segundo o estudo do Ipea,
de um total de 59 080 homicídios registrados em 2015, 31 264 foram de jovens (53 por cento). De
acordo com o mesmo estudo, a cada cem pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negros. Eles pos-
suem chances 23,5 por cento maiores de serem assassinados do que brasileiros de outras raças.

Segundo o Mapa da Violência de 2013, dos 467,7 mil homicídios contabilizados entre 2002 e 2010,
307,6 mil, ou seja, 65,8 por cento foram de pessoas negras. Houve uma tendência de redução de
homicídios de brancos em 26,4 por cento e o aumento de homicídios de pessoas negras de 30,6 por
cento. Isso se observa na população em geral e principalmente nos jovens. Conforme o pesquisador
Julio Jacobo Waiselfisz, autor do estudo, há um mecanismo de culpabilização da vítima que incentiva
a tolerância à violência contra grupos mais vulneráveis, fazendo com que o Estado não tome medidas
para solucionar muitos desses casos.

Violência contra mulheres

Em 2006, foi promulgada a Lei Maria da Penha, que aumenta o rigor das punições de agressões contra
a mulher quando ocorridas dentro do ambiente doméstico. Após a promulgação, as denúncias de vio-
lência contra a mulher aumentaram em 600 por cento. No entanto, o Brasil ainda possui altos índices
de violência doméstica, tanto contra crianças quanto contra mulheres. As principais causas são alcoo-
lismo e vício em drogas, além de pobreza e baixa escolaridade. As mulheres de baixa renda que so-
frem com o problema têm acesso limitado à Justiça. O contato com o sistema de justiça criminal muitas
vezes resulta em maus-tratos e intimidações. Estatísticas divulgadas pelo Departamento Penitenciário
Nacional em 2008 indicaram aumento de 77 por cento na população carcerária feminina nos últimos
oito anos – uma taxa de crescimento maior do que a masculina. As mulheres detentas enfrentam maus-
tratos, assistência inadequada durante o parto e falta de condições para cuidar das crianças.

Outras estatísticas

Em 2012, um estudo realizado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime indicou que
das 30 cidades mais violentas do mundo, 11 são brasileiras (Maceió; Fortaleza; João Pessoa; Na-
tal; Salvador; Vitória; São Luís; Belém; Campina Grande; Goiânia; e Cuiabá).

Segundo o "Mapa da Violência 2013", os estados mais violentos do Brasil são Alagoas, Espírito
Santo, Pará, Bahia e Paraíba; e os municípios, Simões Filho (BA), Campina Grande do Sul (PR), Ana-
nindeua (PA), Cabedelo (PB) e Arapiraca (AL).

Já segundo a organização não governamental mexicana "Conselho Cidadão Para a Segurança", as


regiões metropolitanas mais violentas do Brasil são as de Maceió, Belém, Vitória, Salvador e Manaus.

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Das 50 cidades classificadas em 2014 por uma ONG mexicana como as mais violentas do mundo, 21
são brasileiras.

Segundo o ranking mundial da paz de 2016, o Brasil é o 105º país mais pacífico do mundo e o 9º mais
pacífico da América do Sul.

As vítimas letais de armas de fogo entre 1980 e 2014 totalizam 967.851 no Brasil, cujo predomínio é
de crime de homicídio (85,8%) e de vítimas homens (94,4%) e negros (o dobro em relação a brancos).

Crime organizado

No Brasil, existem grandes facções criminosas, que são sustentadas pelo narcotráfico, o tráfico de
armas, extorsão, roubos e assaltos. Duas facções de destaque são o Comando Vermelho e o Primeiro
Comando da Capital (PCC). Estima-se que o fortalecimento do crime organizado tenha ocorrido na
década de 70, quando houve o êxodo rural que fez com que as cidades crescessem aceleradamente,
com os trabalhadores rurais se estabelecendo nas periferias.

Os Comandos são formados por quadrilhas que obtém o controle das rotas de tráfico de uma determi-
nada região. Um Comando não costuma dar abertura para a entrada de pessoas de fora da sua comu-
nidade na organização, mas podem submeter quadrilhas menores através de ameaça. Além disso, não
raro, se valem de usuários de droga, de classe média, como "aviões" para ampliar sua área de venda.
Sua principal atividade é o tráfico de drogas.

O Brasil têm uma produção de entorpecentes relativamente pequena, mas é uma escala de muitas
rotas de tráfico internacional. As principais são as que levam cocaína da Jordânia para os Estados
Unidos e cocaína e maconha da Colômbia para a Europa e Estados Unidos. Por conta dessa ligação
internacional, membros das FARC já foram descobertos fornecendo treinamento com armas pesadas
para traficantes cariocas, e um outro guerrilheiro estava envolvido com o sequestro do empresário Abí-
lio Diniz em São Paulo.

Os comandos se envolvem frequentemente em disputas territoriais. A cidade de Santos no litoral pau-


lista foi palco para uma disputa entre o PCC e o Terceiro Comando. O Primeiro Comando da Capi-
tal (que é de São Paulo) havia decidido absorver a cadeia de tráfico de Santos, que pertencia ao Ter-
ceiro Comando (que é do Rio de Janeiro).

As Milícias são grupos paramilitares, formados por policiais e ex-policiais civis e militares, bombeiros,
vigilantes, agentes penitenciários e outros, em grande parte moradores das comunidades, que cobram
taxas dos moradores por uma suposta proteção e repressão ao tráfico de drogas. Este fenômeno surgiu
no Rio de Janeiro, onde atualmente existem 92 favelas, das quais cerca de 18% das favelas se encon-
tram dominadas por milícias urbanas ilegais, coordenadas por agentes de segurança pública, políticos
e líderes comunitários".

A máfia do colarinho branco é uma designação geral dada a várias quadrilhas formadas por autorida-
des legais, sem que necessariamente tenham ligação entre si. Geralmente incorrem em crime de tráfico
de influência e lavagem de dinheiro. O crime organizado é investigado pelas Delegacias de Repressão
e Investigação ao Crime Organizado (DEIC - Polícia Civil), Polícia Federal e pela Abin.

Exploração do trabalho infantil e do trabalho escravo

A exploração do trabalho infantil cresceu nomeadamente no Nordeste e Sudeste, apresentando de-


créscimos nas outras regiões. O estudo mostra igualmente que 151 227 novos casos de trabalho infantil
foram detectados de 2004 para 2005, subindo de 1 713 595 para 1 864 822 registos.

Outra conclusão do 3° Relatório Nacional sobre Direitos Humanos no Brasil é a de que persiste o tra-
balho escravo em todas as regiões do Brasil, à exceção do Sul. Em 2004, os pesquisadores da Univer-
sidade de São Paulo registaram 8 806 casos de trabalho análogo ao escravo no país.

Instituições policiais e sistema prisional

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Agentes do Departamento de Polícia Federal em confronto numa favela do município do Rio de Janeiro

A Constituição do Brasil estabelece cinco instituições policiais diferentes para a execução da lei: a Po-
lícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Ferroviária Federal, a Polícia Militar e a Polícia Ci-
vil do Estado. Destas, as três primeiras são filiadas às autoridades federais, e as duas últimas subordi-
nadas aos governos estaduais. Todas as instituições policiais fazem parte do Poder Executivo de qual-
quer um dos governos federal ou estadual.

De acordo com um levantamento de 2012, apenas 5% a 8% dos homicídios registrados no país são
elucidados pelas forças policiais. O 3° Relatório Nacional sobre Direitos Humanos no Brasil (2007)
aponta falhas nos sistemas policial e penitenciário e denuncia a participação de autoridades em viola-
ções aos direitos humanos. Segundo o Relatório, a maioria dos homicídios é precariamente investigada
e uma "ínfima parte dos responsáveis é denunciada e condenada". A conclusão é de que houve retro-
cesso nesse aspecto, entre 2002 e 2005.

Por outro lado, o Brasil tem a terceira maior população penitenciária do mundo e uma das maiores
taxas de encarceramento. Em junho de 2014, havia 711.463 presos em todo o país, segundo o Conse-
lho Nacional de Justiça. Dois anos antes, em julho de 2012, havia 550.000 detentos, ou seja, a popu-
lação prisional teve um incremento de 30% em dois anos, enquanto a população total do país cresceu
menos de 1,8% no mesmo período, segundo estimativas do IBGE.

Se também fosse computado o número de mandados de prisão em aberto em 2014 (373.991, de


acordo com o Banco Nacional de Mandados de Prisão), a população prisional ultrapassaria um milhão
de pessoas, com aproximadamente 535 presos para cada 100 mil habitantes, e teria havido um incre-
mento de 94% em relação à taxa de encarceramento de 2012, que era de 276 presos para cada 100
mil habitantes. O índice de 2012, por sua vez, já mostrava um aumento de 258% em relação ao índice
de 1992. Em 1992, o Brasil tinha um total de 114.377 presos ou aproximadamente 77 presos por
100.000 habitantes.

O crescimento exponencial da população carcerária levou o sistema prisional brasileiro a uma situação
crítica, com um déficit estimado entre 200 mil e 350 mil vagas nas prisões do país.

Cidades mais violentas

Em 2017, foi divulgado o Atlas da Violência. Estão listadas a seguir as 30 cidades mais violentas do
pais, divulgadas pelo Ipea. Os dados são de 2015.

Taxa
Posição Estado Cidade
(por cem mil habitantes)

1 PA Altamira 107

2 BA Lauro de Freitas 97,7

3 SE Nossa Senhora do Socorro 96,4

4 MA São José de Ribamar 96,4

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Taxa
Posição Estado Cidade
(por cem mil habitantes)

5 BA Simões Filho 92,3

6 CE Maracanaú 89,4

7 BA Teixeira de Freitas 88,1

8 PR Piraquara 87,1

9 BA Porto Seguro 86

10 PE Cabo de Santo Agostinho 85,3

11 PA Marabá 82,4

12 RS Alvorada 80,4

13 CE Fortaleza 78,1

14 BA Barreiras 78

15 BA Camaçari 77,7

16 PA Marituba 76,5

17 PR Almirante Tamandaré 76,2

18 BA Alagoinhas 75,7

19 BA Eunápolis 75,1

20 GO Novo Gama 75

21 GO Luziânia 74,7

22 PB Santa Rita 74,1

23 MA São Luís 73,9

24 GO Senador Canedo 73,7

25 PA Ananindeua 70,2

26 GO Trindade 69,8

27 CE Caucaia 69,8

28 PE Igarassu 69,4

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Taxa
Posição Estado Cidade
(por cem mil habitantes)

29 ES Serra 69,2

68,5
30 BA Feira de Santana

Em toda a história brasileira e mundial foi possível perceber a ocorrência de delitos penais que, em
função de sua relevância jurídico-social, trouxeram à baila a necessidade de punir o transgressor como
resposta à ‘sociedade vítima’. Neste diapasão, os crimes que tem como finalidade ofender o bem jurí-
dico ‘vida’ como, por exemplo, o homicídio, sofrem singular reprovação por parte da sociedade que
busca, através do cumprimento das leis, justiça para o caso concreto.

Ocorre que, além da capitulação supramencionada, existem delitos previstos na legislação infraconsti-
tucional que violam o mesmo bem jurídico como consequência mais grave a outro injusto penal. Entre
eles, olatrocínio ganha destaque, já que, mesmo tipificado na sessão de crimes contra o patrimônio,
configura-se como crime complexo, tendo como resultado à subtração de coisa alheia móvel, a vida.

Com base em conceitos sustentados pela dogmática penal à luz da Constituição, além de dados em-
píricos colhidos em uma das maiores cidades do país e o posicionamento da jurisprudência pátria no
que toca tal temática, se fará uma análise crítica no âmbito político, social e legiferante desses crimes
no cenário brasileiro.

Conceito Etimológico

Obedecendo a ordem típica trazida pelo Código Penal Brasileiro, qual seja o crime de homicídio no
artigo 121 e o latrocínio no 157, §3o, se observará o conceito carreado pelos principais nomes da
dogmática criminal no tema.

O homicídio, do latim homicium, significa uma ação ou omissão, cuja prática tem o poder de tirar a vida
de outrem. Tais condutas podem ser orientadas pela simples manifestação volitiva do resultado morte,
o que a técnica denomina como dolo, ou por culpa, uma vez inobservado o dever de cuidado do agente.

Diferente do que ocorre no homicídio, o latrocínio não possui tipificação própria, tendo sua razão de ser
extraída do §3o do artigo 157 do diploma penal, in verbis:

Roubo
Art. 157 – Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a
pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência:
(…)
§ 3o Se da violência resulta lesão corporal grave, a pena é de reclusão, de sete a quinze anos, além
da multa; se resulta morte, a reclusão é de vinte a trinta anos, sem prejuízo da multa

Visão Histórica

Um dos primeiros homicídios relatados na história da humanidade está descrito em texto bíblico,
quando narra o crime praticado por Caim contra Abel, seu irmão. Conforme Rogério Greco, “Caim agiu
impelido por um sentimento de inveja, pois Deus havia se agradado da oferta trazida pelo seu irmão
Abel e rejeitado a dele. (…) Pelo fato de ter causado a morte de se irmão, Deus puniu Caim amaldiço-
ando-o, fazendo com que passasse a ser um fugitivo e errante pela Terra.” (Rogério Greco – Curso de
Direito Penal Parte Especial, ed. Impetus, vol II, pág. 130/131 ano 2013, Niterói/RJ)

Estudiosos têm afirmado que ainda se é possível encontrar corpos da época da pré-história, oriundos
da violência – ou do excesso dela – que deu origem às mortes. Tal assertiva vem no bojo da ideia de
que o homem pré-histórico não possuía um senso de solidariedade e fraternidade apurados, de modo
que o respeito a seus pares praticamente não existia. A morte soava como consequência natural dos
combates intervivos na busca por alimento e acasalamento. A completa falta de cultura e civilidade no
homem pré-histórico o condicionava a uma vida selvagem e perversa, na qual todo tipo de violência

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era válida para obter o que se desejava.

No Brasil, antes mesmo da colonização portuguesa, há relatos de homicídios perpetrados por tribos
indígenas que povoavam o país. Segundo João Bernardino Gonzaga (sem data, 65-72) “nesta época
o que havia não eram leis, mas sim lendas, tabus e mitos. Foi assim que se estruturou basicamente o
direito entre os indígenas”. Registra, ainda, que a vingança privada era a característica do povo que
vivia naquela época, ou seja, caso determinado indivíduo praticasse algum ato que fosse contra o que
a comunidade entendia por correto, a aplicação da sanção ocorria de maneira coletiva contra o trans-
gressor do costume posto. Além disso, em sendo morta qualquer pessoa de uma determinada família,
esta teria o “direito” de, para vingar o óbito, escolher qualquer indivíduo da família do agressor e retribuir
a agressão, em sinal de “acerto de contas”.

Com o advento da Independência do Brasil, e após ela, códigos criminais foram elaborados no sentido
de catalogar condutas reprováveis e aplicar sanções previamente estabelecidas de modo a tornar equâ-
nime o ius puniendi. Lei após lei e, em 1o de Janeiro de 1942, entra em vigor o Código Penal Brasileiro,
legislação que permanece em vigor até os dias de hoje. Embora seu texto tenha sofrido modificações
em 1984, trata-se de um diploma já ultrapassado no que diz respeito, tanto aos tipos penais, quanto a
pena estabelecida.

O Latrocínio, por sua vez, passou a existir no ordenamento jurídico através da observância de que os
agentes, para alcançar a consumação dos crimes patrimoniais, contavam com o uso de violência tal
que importava, no fim das contas, na morte da vítima.

Homicídio no Direito Penal

O homicídio resta tipificado no artigo 121 do Código Penal, in verbis:

Homicídio simples
Art. 121. Matar alguém:
(…)

Além de ser um dos delitos mais sensíveis do ordenamento jurídico, ele é um dos que mais desperta a

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curiosidade da sociedade que diariamente clama pela sua apuração e, posterior punição, alimentando,
desta forma, o sentimento de justiça avivado na população quando da prática deste tipo de ilicitude
contra seus semelhantes.

Cuidados com a defesa pessoal

Não se pode imaginar, entretanto, que, diante de uma sociedade complexa como a nossa, homicídios
sejam praticados com o mais puro dolo de subtrair a vida de outra pessoa. Entendo isto, a Lei Penal
instituiu, no §1o do referido artigo, a modalidade privilegiada do homicídio que nada mais é do que uma
causa que diminui a responsabilidade penal do transgressor, visto estar este imbuído de sentimento
outro que o levou a prática do crime supradescrito. Neste sentido, in verbis:

Caso de diminuição de pena

§ 1o Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o
domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a
pena de um sexto a um terço.

Porém, não se pode olvidar que além de se tratar de crime grave, o homicídio dispõe de uma conside-
rável pluralidade de meios para atingir sua finalidade. Pensando nisso, a legislação tratou de majorar a
pena deste crime na oportunidade de se verificar, na descrição da conduta do agente, determinados
modus operandi que o Legislador entendeu oferecer maior proteção jurídica. Qualifica-se, portanto, o
homicídio quando praticado

§ 2o (…):
I – mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe;
II – por motivo futil;
III – com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de
que possa resultar perigo comum;
IV – à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne im-
possível a defesa do ofendido;
V – para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime:

Recentemente, o poder legiferante, diante do crescente número de homicídios praticados contra mu-
lheres, instituiu sua incidência como qualificadora ao crime supradito. Neste sentido, o agente que in-
cidir em tal tipificação terá majorado e qualificado o homicídio, com pena que pode alcançar trinta anos
de reclusão.

Feminicídio

VI – contra a mulher por razões da condição de sexo feminino:


VII – contra autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e 144 da Constituição Federal, integrantes do
sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em decorrên-
cia dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau, em razão
dessa condição: (Incluído pela Lei no 13.142, de 2015)
(…)
§ 2o-A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve:
I – violência doméstica e familiar;
II – menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

Homicídio no Direito Penal

O homicídio resta tipificado no artigo 121 do Código Penal, in verbis:

Homicídio simples
Art. 121. Matar alguém:
(…)

Além de ser um dos delitos mais sensíveis do ordenamento jurídico, ele é um dos que mais desperta a
curiosidade da sociedade que diariamente clama pela sua apuração e, posterior punição, alimentando,
desta forma, o sentimento de justiça avivado na população quando da prática deste tipo de ilicitude
contra seus semelhantes.

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Cuidados com a defesa pessoal

Não se pode imaginar, entretanto, que, diante de uma sociedade complexa como a nossa, homicídios
sejam praticados com o mais puro dolo de subtrair a vida de outra pessoa. Entendo isto, a Lei Penal
instituiu, no §1o do referido artigo, a modalidade privilegiada do homicídio que nada mais é do que uma
causa que diminui a responsabilidade penal do transgressor, visto estar este imbuído de sentimento
outro que o levou a prática do crime supradescrito. Neste sentido, in verbis:

Caso de diminuição de pena

§ 1o Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o
domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a
pena de um sexto a um terço.

Porém, não se pode olvidar que além de se tratar de crime grave, o homicídio dispõe de uma conside-
rável pluralidade de meios para atingir sua finalidade. Pensando nisso, a legislação tratou de majorar a
pena deste crime na oportunidade de se verificar, na descrição da conduta do agente, determinados
modus operandi que o Legislador entendeu oferecer maior proteção jurídica. Qualifica-se, portanto, o
homicídio quando praticado

§ 2o (…):
I – mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe;
II – por motivo futil;
III – com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de
que possa resultar perigo comum;
IV – à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne im-
possível a defesa do ofendido;
V – para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime:

Recentemente, o poder legiferante, diante do crescente número de homicídios praticados contra mu-
lheres, instituiu sua incidência como qualificadora ao crime supradito. Neste sentido, o agente que in-
cidir em tal tipificação terá majorado e qualificado o homicídio, com pena que pode alcançar trinta anos
de reclusão.

Feminicídio

VI – contra a mulher por razões da condição de sexo feminino:


VII – contra autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e 144 da Constituição Federal, integrantes do
sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em decorrên-
cia dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau, em razão
dessa condição: (Incluído pela Lei no 13.142, de 2015)
(…)
§ 2o-A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve:
I – violência doméstica e familiar;
II – menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

Bailando, ainda, sobre o Feminicídio, é necessário ressaltar a observação que o legislador traz na
oportunidade de sua incidência. Caso o homicídio praticado contra a mulher ocorra na oportunidade de
a mesma se encontrar em situação de delicada saúde, seja pela gestação de um filho ou logo após,
seja contra menor de 14 anos ou maior de 60 ou, até, na presença de algum ente familiar, a pena é
majorada, consequentemente. Assim dispõe o §7o do artigo 121 do Código, in verbis:

§ 7o A pena do feminicídio é aumentada de 1/3 (um terço) até a metade se o crime for praticado:

I – durante a gestação ou nos 3 (três) meses posteriores ao parto;


II – contra pessoa menor de 14 (catorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos ou com deficiência;
III – na presença de descendente ou de ascendente da vítima.

A inobservância de um dever de cuidado, ou seja, a culpa, também é levada em consideração quando


o magistrado, ao deparar-se com um caso concreto, segue o iter do artigo 59 do Código Penal e ame-
niza a pena aplicada tendo em vista motivação menos reprovável, salvo quando o agente que transgride
tal norma a faz no exercício de função que não admite falhas deste porte. Nesta hipótese culposa, em

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especial, a punição se demonstra majorada.

Homicídio culposo

§ 3o Se o homicídio é culposo:
Pena – detenção, de um a três anos.
Aumento de pena

§ 4o No homicídio culposo, a pena é aumentada de 1/3 (um terço), se o crime resulta de inobservância
de regra técnica de profissão, arte ou ofício, ou se o agente deixa de prestar imediato socorro à vítima,
não procura diminuir as consequências do seu ato, ou foge para evitar prisão em flagrante. Sendo
doloso o homicídio, a pena é aumentada de 1/3 (um terço) se o crime é praticado contra pessoa menor
de 14 (quatorze) ou maior de 60 (sessenta) anos.

Latrocínio no Código Penal

Trata-se de crime listado no rol de delitos penais considerados hediondos, na lei 8.072/1990. Além
disso, na legislação ordinária, o latrocínio encontra-no capítulo de crimes contra o patrimônio, classifi-
cando-se como sendo a ação que visa subtração de coisa alheia móvel com emprego de violência para
alcançar tal finalidade. Para estar incurso neste tipo penal, a violência empregada deve, necessaria-
mente, resultar a morte da vítima da subtração.

Importante ressaltar que a morte observada deve ter, essencialmente, nexo de causalidade com a vio-
lência perpetrada no momento do delito de cunho patrimonial para que seja punido na qualificadora e
não no caputque trata, tão somente, do roubo. Tal resultado pode ser observado a título, tanto de dolo,
quanto de culpa, ou seja, tendo o agente a intenção ou não de sua ocorrência.

O latrocínio é classificado doutrinariamente como sendo crime complexo, ou seja, num único tipo penal
se vislumbra a incidência de dois tipos penais distintos. Neste diapasão, a consumação do referido
delito se mostra ser palco de grandes discussões, tanto por parte da doutrina, quanto da jurisprudência.
Sabendo que no crime de latrocínio o dolo do agente, ou seja, a vontade de delinquir, recai para a
subtração do bem móvel, a violência decorrente da subtração com resultado morte só poderia ser con-
sumada caso o objeto da subtração restasse assegurado nas mãos do sujeito ativo do delito, não im-
portando, para tanto, a morte ou não da vítima. Nesta lógica, o latrocínio se consumaria com o êxito da
subtração. Porém, debruçando-se sobre o fato de ser tal delito de relevante repugnância social, a juris-
prudência pacificou o entendimento de que o latrocínio se consuma independentemente do objeto do
roubo ser levado pelo transgressor, desde que a morte se perfaça. Neste sentido tem entendido o
Supremo Tribunal Federal, conforme súmula 610 do STF, in verbis que:

Súmula 610

Há crime de latrocínio, quando o homicídio se consuma, ainda que não realize o agente a subtração
de bens da vítima.

Apuração e punição de delitos criminais

O Estado atraiu para si a administração da justiça e o ius puniendi que é, na verdade, o dever de pu-
nir aquele que infringir o direito posto na legislação pátria. Embora ius signifique ‘direito’, o Estado não
tem o direito de punir ninguém, mas o dever assegurado desde há muito. Tanto é que, visando inibir a
vingança privada que assolara o Brasil em tempos passados e assegurar a paz social, o legislador
criminalizou, no artigo 345 do Código Penal, o exercício arbitrário pelas próprias razões, in verbis:

Exercício arbitrário das próprias razões

Art. 345 – Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando
a lei o permite:

Pena – detenção, de quinze dias a um mês, ou multa, além da pena correspondente à violência.

O processo penal, neste diapasão, deve ser instrumento máximo de limitação da atividade estatal, de
modo a garantir a plenitude dos direitos individuais e fundamentais previstos, tais como a ampla defesa,
contraditório, devido processo legal, igualdade, legalidade, dentre outros.

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Além da punição inerente ao exercício da função administrativo-judicial do Estado, direitos e garantias


fundamentais intrínsecos de todos aqueles que ostentam a condição humana é de essencial e neces-
sária observância por parte do aplicador do direito no caso concreto. A lei, portanto, tem uma função
dúplice, qual seja de assegurar, além do cumprimento de seu conjunto normativo, os direitos funda-
mentais decorrentes do princípio que rege todo o ordenamento jurídico que é dignidade da pessoa do
humana.

Segundo Norberto Bobbio, o Estado não é mais um fim em si mesmo, mas sua atuação é e deve ser
sempre um mecanismo de tutela dos direitos que são inerentes a (boa) condição humana. No âmbito
hierárquico, portanto, o indivíduo se sobrepõe ao Estado quando os interesses das duas partes se
chocam em forma de lide.

O judiciário tem o dever de, através do poderio garantido pela constituição, assegurar, como supradito,
o cumprimento dos direitos ditos fundamentais. Diferente do que se observava há tempos atrás, o poder
judiciário tem se aproximado da realidade social e atuado como um dos braços do Estado Democrático
de Direito na consecução e perfeita aplicação da lei em sua ratio originária.

Os crimes descritos supra, quais sejam o homicídio e o latrocínio, possuem competências jurisdicionais
distintas, sendo aquele julgado pelo Tribunal do Júri e este, pela justiça comum.

A competência do Júri Popular para julgar e condenar (ou absolver) seus pares em casos de crimes
dolosos contra a vida, tem assento constitucional no rol de direitos fundamentais, elencados no artigo
5o do referido diploma:

Art 5o Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros
e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XXXVIII – é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:

a) a plenitude de defesa;
b) o sigilo das votações;
c) a soberania dos veredictos;
d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida;

Nos crimes de latrocínio, entretanto, além de ter como resultado mais grave a morte da vítima, a com-
petência para o julgamento de tal delito é da justiça comum. Embora pareça gerar controvérsias quanto
à jurisdição competente, deve-se ter em mente que o latrocínio nada mais é do que um roubo qualifi-
cado, oportunidade em que o dolo do agente em sua prática não recai em tirar a vida da vítima, mas
sim, subtrair para si coisa alheia móvel. Neste sentido, embora a morte tenha ocorrido, não sendo a
manifestação volitiva voltada para tal circunstância, o Tribunal do Júri não tem a alçada de atuar em
desfavor do sujeito ativo do crime em questão.

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Por outro lado, em comparação aos dados supradescritos, o Instituto de Segurança Pública do estado
do Rio de Janeiro demonstrou, através dos dados referentes a 2013, 2014 e 2015, o número de inci-
dência de casos referentes a homicídio (na modalidade culposa e dolosa), latrocínio e roubos, no
mesmo período de tempo.

Foi possível observar que o número de homicídios registrados diminuíram no decorrer do tempo, visto
que no ano de 2013, o índice de homicídios registrados foi de, no total, 6.976 casos. No ano de 2014
e 2015, entretanto, o Instituto registrou, respectivamente, 7.022 e 5.979 casos.

No que toca aos latrocínios, ou seja, roubo qualificado pelo resultado mais grave morte, o ISP registrou,
nos anos supramencionados, respectivamente, 148, 152 e 133 casos, demonstrando, novamente, uma
queda no número desta modalidade delito.

O roubo, em contrapartida, surpreende quando demonstra, ao passar do tempo, a alarmante incidência


de 126.190, 157.998 e 147.994 casos em 2013, 2014 e 2015, respectivamente.

Como é possível se notar a partir dos dados estatísticos fornecidos pelo IBGE, no estado do Rio de
Janeiro e em sua capital há uma parcela populacional significativa que se encontra em estado de po-
breza. Diante disto e a partir de uma observação mais atenta da dinâmica social da cidade do Rio de
Janeiro, bem como de estudos mais aprofundados no aspecto criminológico, é possível se levantar a
uma hipótese que pode explicar o elevado número de homicídios e latrocínios identificados, ainda que
tal ideia careça de bases mais firmes: a maior parcela destes crimes decorre da marginalização social.

Com efeito, a pobreza combinada com um oferecimento precário dos serviços públicos em geral, leva
aos indivíduos que estão nessa situação a gozarem de modo insuficiente de bens como a educação, a
saúde, a alimentação, o lazer, e também de exercerem em condições inadequadas atividades como o
trabalho. Em outras palavras, e traduzindo para o linguajar constitucional, é limitada a efetividade dos
direitos fundamentais sociais, bem como de direitos coletivos e transindividuais tutelados na Lei Maior,
para esses grupos carentes, levando a uma consequente mitigação dos efeitos dos direitos fundamen-
tais individuais, como a liberdade e a igualdade.

Tal situação se deve a uma falha do Estado em promover e garantir tais direitos em sua face positiva,
isto é, de dever positivo do Estado em prestá-los aos seus habitantes, de forma a concretizar esses
direitos, materialmente. Por outro lado, esse Estado também erra na proteção desses direitos em sua
face negativa, isto é, no dever de abstenção, quando, por exemplo, fere a integridade psicofísica de um
cidadão – sendo que, novamente, os segmentos mais empobrecidos da sociedade que estão sujeitos
a essa atividade inconstitucional do Estado.

Como explicar tamanha inefetividade do direito estatal, especialmente direcionada a essa parcela do
povo? Em primeiro lugar, nem sempre as suas normas são criadas para produzir efeitos que podem
ser concluídos de sua literalidade, pelo contrário, os efeitos pretendidos podem ser ocultos, como o
apaziguamento social sem transformação alguma da sociedade, como bem aponta Marcelo Neves. Já
em segundo, o direito estatal serve a manutenção de um status quo, ainda que isso não seja oficial-
mente reconhecido, de modo que tal estrutura de poder sob a qual o direito se sustenta justifica o uso
‘dissimulado’ do direito para fim diverso do que seria o claro.

No âmbito do direito penal, essa questão se reflete claramente na seletividade do sistema penal, como
apontado por diversos autores, dentre eles, Zaffaroni. Como dito em tópico anterior, o direito penal e o
processo a si ligados tem a finalidade de limitar e guiar o poder de punir do Estado. Todavia, isso é
uma meia verdade, já que na prática se verifica que há um tratamento diferenciado, tanto na esfera
judiciária, quanto na legislativa e na executiva, dos diferentes segmentos da sociedade, punindo-se
precípua e excessivamente os pobres, os não consumidores, à margem do sistema capitalista.

Posto isso, o elevado número de homicídios e de latrocínios citado pode ser explicado especificamente
através de duas linhas de raciocínio, de certo modo diametrais.

A primeira, é a reação dos segmentos marginalizados, decidindo por não seguir o ordenamento jurídico
estatal, rompendo parcialmente com a estrutura por de trás dele e, por isso, adquirindo um poder que
lhes é negado pelo Estado. Não se trata tal pensamento, por óbvio, em uma defesa do cometimento
de tais crimes, mas sim uma observação lógica: se a opção dada a sociedade é ficar necessariamente
à margem dela, alguns indivíduos acabam por decidir ir de encontro a suas próprias normas.

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A partir disso, se traça a segunda explicação, que vem de encontro à contrarreação do Estado. Como
o delito só o é por definição legislativa criada pelo estado e o direito oficial é, também, desenhado por
tal ente, este passa a criminalizar de modo mais intenso exatamente as condutas que buscam ferir a
estrutura social de base, condutas estas que encontram frontalmente ao status quo. Assim, se há um
foco da seletividade penal sobre crimes cometidos pelos ‘desviantes’, o que ocorre especialmente com
o latrocínio, mas também com o homicídio, é claro que se terá um número mais elevados desses crimes
se comparado com outros, principalmente àqueles em que o olhar do poder punitivo se demonstra
cego.

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