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POR MUDANÇAS NO ENSINO DE LÍNGUAS

(PREFÁCIO DA 1ª EDIÇÃO)

Regina Zilberman

As modificações por que a sociedade nacional passou nos úl-


timos 20 anos atingiram a escola de maneira profunda. Acelerando
o ritmo de industrialização, o Brasil tornou-se uma nação eminen-
temente urbana, após quatro séculos de predomínio de uma econo-
mia rural e de uma camada social latifundiária. Os novos fenôme-
nos – industrialização com a consequente urbanização – moder-
nizaram o perfil do país e imprimiram mudanças nos setores que
deveriam colaborar para o incremento subsequente dos processos
de que eram caudatários.
Um destes setores foi a escola que, desde os anos 30, passa
por alterações que se sucedem a cada nova geração. Se ela, de certo
modo, inexistiu durante o período colonial e teve presença rara nas
primeiras décadas da monarquia, desde o final deste regime político
tem crescido e sido alvo de inúmeras reformas, as quais visam, ao
menos em princípio, estabilizar um sistema de ensino para o Brasil,
adequado às (supostas) condições e necessidades do país.
Não que este sistema de ensino não tivesse existido antes. O
fato de que faltassem escolas na época da colonização, a não ser as
de catequese patrocinadas pelos jesuítas, que a administração me-
tropolitana tenha condicionado os estudos superiores à frequência
à Universidade de Coimbra e que o governo imperial, brasileiro e
autônomo, não tenha se movimentado com a necessária agilidade
para modificar este panorama diz muito sobre as concepções que

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vigoraram sobre a educação no Brasil até quase o final do século 19.
Ela dirigia-se única e exclusivamente à classe proprietária de terras,
cujos privilégios nos campos político e econômico eram comple-
mentados pela concessão de títulos acadêmicos a seus membros.
Educação elitista para a elite: o círculo vicioso é visível, de
modo que rompê-lo nunca foi tarefa fácil. Além disso, grandes rup-
turas nunca foram o forte da política brasileira. Os grupos emergen-
tes que promoveram a república entregaram-na aos antigos patriar-
cas do governo monárquico. E as revoluções subsequentes que, de
30 em 30 anos em média, sacudiram a cena política brasileira não
deixaram de impor administrações centralizadoras e autoritárias que,
por paradoxal que pareça, não tiveram força para — e nem quiseram
— fraturar o poder das camadas dominantes que as precederam.
A escola, por consequência, padece da mesma modernização
conservadora que caracteriza, de modo geral, a ação governamental
brasileira. Se, desde 1930 principalmente, as reformas se sucedem
– a cada 10 anos, a partir de 1961, um novo projeto é implantado –
elas sofrem, com regularidade digna de nota, do mesmo mal: acres-
centam ideias novas a um sistema antiquado, tentando rejuvenescê-
lo. O ensino polivalente e profissionalizante ensaiado nos anos 70
é exemplar: destinado à formação de mão-de-obra para a indústria
em fase de expansão e oferecendo, simultaneamente, alternativas de
emprego que independiam do trânsito pelos bancos universitários,
parecia atender às necessidades de escolarização das camadas popu-
lares urbanas, engrossadas, desde a década de 60, em decorrência da
imigração motivada pela atração que a cidade exercia, oferecendo
melhores oportunidades de emprego, e pela decadência paulatina da
economia rural. Porém, nunca deixou de se orientar, e em primeiro
lugar, para a preparação dos vestibulandos. Mas estes, concorrendo
com os estudantes mais bem preparados por escolas privadas e cur-
sinhos e oriundos das camadas burguesas mais ricas, eram — e con-
tinuam sendo — preteridos pelas universidades públicas, que conce-

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dem os graus e os títulos valorizados pela sociedade e, portanto, por
aqueles que oferecem ocupações e pagam salários.
Foi na área do ensino de Língua Portuguesa que estas contradi-
ções se mostraram patentes. Regido aquele ensino, desde sua imple-
mentação, pelo objetivo final de domínio do código escrito e da norma
culta, pôde ser eficiente enquanto aquele código e aquela norma eram
expressão espontânea dos grupos sociais que passavam pela escola.
Esses não iam à escola para aprendê-los pela primeira vez, mas para
expandi-los e garantir sua supremacia. Por esta razão, nunca deixou
de vigorar, no Brasil, uma tradição retórica que teve seus adeptos nos
bacharéis ociosos do império e da primeira república, criticados por
poucos, como Lima Barreto, mas socialmente valorizados, e que não
desapareceu com a liquidação do nosso ancien régime.
Todavia, se as reformas de ensino das últimas décadas não lo-
graram o êxito esperado, nem alteraram de maneira radical este qua-
dro, elas resultam também de uma tentativa de harmonizar a peda-
gogia tradicional brasileira com o crescimento de uma demanda por
educação proveniente das camadas populares. E, se estas invadem a
escola, apesar das tentativas por manter seu isolamento, trazem con-
sigo outros valores: uma outra norma, “inculta” por contraposição
ao padrão dominante, e uma outra prática, caracterizada pela ênfase
nos modelos de expressão oral e gestual.
O propalado rebaixamento do nível de ensino decorre daí: sem
acesso a graus superiores de expressão verbal, assim como não tem
acesso a patamares mais altos na escala social, os novos grupos que
frequentam a escola entram e saem dessa sem mudar seu padrão
linguístico — isto é, sem se alçar à plataforma recomendável de ma-
nifestação oral e escrita; nem eles obtêm qualquer tipo de reconheci-
mento para as modalidades de expressão que empregam.
De um lado, amplos setores da população assistem à recusa de
legitimidade social para suas formas de manifestação, a não ser quan-
do reduzidas ao exotismo ou à pasteurização, consumíveis através dos

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meios de comunicação de massa ou de outras possibilidades de co-
mercialização, tais como artesanato, folclore, etc., o que os despoja de
um discurso autêntico, no qual acreditem e se reconheçam. De outro,
a escola e as teorias de ensino de língua, que se debatem perante um
impasse: ensinar como e o quê? A norma gramatical, a fim de equipar
todos os locutores, independentemente de sua procedência social, a
um debate de igual para igual com os detentores do poder linguístico,
o que é politicamente válido, mas que, ao mesmo tempo, descredencia
o discurso do falante popular perante si mesmo? Ou o reconhecimen-
to das variedades populares, urbanas e rurais, e o esforço ao padrão
interiorizado pelos diferentes grupos, o que incide num paternalismo
protecionista e endossa as segmentações sociais, sem alterá-las? Ou,
enfim, uma atitude conciliatória, que acaba se confundindo com a
confissão de incapacidade de superar o impasse?
Questões como estas afligem todo aquele que se interroga a
respeito do ensino de língua nas escolas de 1º grau. E invadem se-
tores das Universidades e departamentos de letras, empurrando a
linguística a se tornar prática e oferecer alternativas de ação. Estas
podem ser contraditórias, quando oriundas de posições diferencia-
das ou opostas; mas importam sempre, porque evidenciam o debate
e retiram as ciências da linguagem de uma apatia que, rotulada de
ou confundida com neutralidade e espírito científico, pode não pas-
sar de esterilidade. Com efeito, se nem todas as soluções agradam
ou são pedagogicamente eficazes, elas resultam de uma fertilidade
intelectual recuperada, que não deixará de ser doravante benéfica e
estimuladora.

***

O livro Metodologia e prática de ensino da Língua Portuguesa,


de Luiz Carlos Travaglia, Maria Helena Santos Araújo e Maria
Teonila de Faria Alvim Pinto, indica desde o título que participa vi-

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